Otlet realizador ou visionário? O que existe em um nome?

Helio da Silva Ferreira Jr.

Docente do Departamento de Informática da PUC-Rio e professor-tutor do FGV On-line. Advogado em direito de informática, administrador de dados e bancos de dados. Mestrando em ciência da informação, programa de pós-graduação em ciência da informação, Ibict-UFF (convênio)

E-mail: helio@inf.puc-rio.br

Tente considerar que, por acaso, Deus não existe. Qual é a única garantia de que você foi Proust ou um dos sans-cullotte que tomaram a Bastilha? É a biblioteca, é a memória da humanidade.

(Umberto Eco, “De L´Oeuvre Ouverte au Pendule de Foucault”, Magazine Littéraire*

Resumo

Do muito que já foi publicado sobre o duplo papel de Paul Otlet, parece haver um entendimento majoritário quanto à prevalência do papel de realizador sobre o de visionário. Na medida em que o foco da análise costuma ser direcionado sobre sua capacidade de prever a importância e o impacto da Internet como um sucedâneo da biblioteca universal, a polêmica naturalmente acaba por desbordar os limites (em si mesmos, já tradicionalmente difusos) da ciência da informação. Com esse ponto de vista, o presente ensaio parte de Isabelle Rieusset-Lemarié e tenta buscar, em autores como Michel Foucault, Norberto Bobbio, Hannah Arendt e Pierre Bourdieu, entre outros, novas luzes que, adicionadas àquelas emanadas por artigos já clássicos em nossa área, possam contribuir para gerar novas e repensar tradicionais interpretações sobre os papéis desempenhados pelo grande cientista social belga.

Palavras-chave

Ciência da informação. Paul Otlet. Biblioteca universal. Internet. Acesso à informação científica. Mundaneum.

Was Otlet an entrepreneur or a visionary? What is in a name?

Abstract

The major understanding extracted from published works in the domain of Information Science seems to converge in the sense that the entrepreneur role played by Paul Otlet prevails over the visionary one. Mainly focused on his ability to foresee the Internet as a succedaneum of the Universal Library, the discussion uses to cross the frequently fuzzy boundaries of Information Science. This essay started from an Isabelle Rieusset-Lemarié paper and tries to capture new lights in the Michel Foucault, Norberto Bobbio, Hannah Arendt and Pierre Bourdieu´s works that may aggregate some contributions to other classical papers in our field. Its presupposition, according to the author´s view of point, points out to the possibility of new readings about the double role played by the great Belgian social scientist.

Keywords

Information science. Paul Otlet. Universal library. Internet. Scientific information access. Mundaneum.

* Apud SCHIFFER, 2000, p.227.

** RIEUSSET-LEMARIÉ, 1997, p. 301

Desde 1916, ainda longe do fim da Primeira Guerra Mundial, ele já previa a inevitável interdependência internacional que resultaria daquele conflito mundial. Embora não tenha reclamado a parte que lhe cabia na sua inspiração original, para Otlet, a Liga das Nações era antes de tudo um determinismo sociológico, o que, no entanto, não significa dizer que era suficiente ou mesmo irreversível. Pelo menos no que se refere à criação da Liga, o protagonismo estava destinado ao seu companheiro de lutas e ideais, Henri La Fontaine, o qual, pelos esforços no sentido da realização do determinismo imaginado, acabaria por receber, merecidamente, o Prêmio Nobel da Paz.

Otlet entendia que cumpria conscientizar e organizar a sociedade civil em prol de uma organização mundial da informação. Ao Mundaneum assim vislumbrado estaria reservado o papel de ajudar a transformar a interdependência dos países em solidariedade dos povos. Mas a Liga das Nações não teria sucesso em atingir esse objetivo. O recurso a sanções, cuja ausência foi vista por muitos como principal causa do fracasso, eram, a seu ver, apenas outra forma de violência que inevitavelmente redundaria em mais violência. Tal era a manifestação da índole pacifista de Otlet, que, coerentemente, repudiava soluções dessa natureza.

Esse era o lado visivelmente democrático da visão de Otlet, o qual, no entanto, foi ofuscado pela maior atenção dada a um aspecto pretensamente totalitário, ainda que este jamais tenha freqüentado suas intenções originais. Mas a que se deve isso? Concordando com Smit, Tálamo e Kobashi*, a “dimensão humana e libertária do acesso à informação” tem sido freqüentemente negligenciada em benefício da dimensão tecnológica. Cada novo progresso parece acelerar e tornar inevitável a emergência do próximo desenvolvimento. O meio prevalecendo sobre o fim. Nessa ótica, não chega a ser estranha a sedução irresistível de encetar a comparação entre o ideal imaginado no passado e o “real”, tal como se nos afigura no presente. É próprio do fazer científico proceder a essas revisões periódicas. Ainda que nem sempre lembremos que sedução, pelo étimo, implica desviar do caminho.

* SMIT, TÁLAMO E KOBASHI, 2004.

Assim, W. Boyd Rayward, a par de apontar para a crença de Otlet na existência de um conhecimento objetivo contido e escondido nos documentos (o que seria revelador de seu positivismo), interpretava sua visão do conhecimento como um círculo exaustivo, necessariamente limitado e dotado de um centro eqüidistante da periferia, quase como a revelar a existência de um poder homogeneizador e, em decorrência, inevitavelmente totalitário. A bem da verdade, esta é uma preocupação recorrente (e pertinente) nos trabalhos de Rayward. Entre outros, ele voltaria ao tema ao criticar a idéia de uma enciclopédia mundial baseada no livro World Brain de H.G. Wells. No artigo, em que pese apontar as semelhanças, ressalva não ter encontrado evidência de que Wells tenha sido influenciado pelo pioneirismo de Otlet*.

Ainda em Rieusset-Lemarié, encontramos a crítica convergente de Georges Bataille, o qual, por seu turno, prefere caracterizar o projeto do Mundaneum (e também da Bibliópolis – a International City) como “edificação espiritual de monumental estrutura arquitetônica”, aqui ressaltando especialmente o aspecto do monumentalismo. Para Bataille, o sonho de Otlet não poderia ignorar que a história mostra o imperialismo, qualquer que seja seu matiz e sua inspiração (Império Romano, Igreja Católica, Nazismo, Fascismo etc.), sempre se servindo de estruturas centralizadas e monumentos gigantescos.

Aliás, a própria idéia de uma estrutura central, irradiando saber para a periferia (e, dizem seus críticos, irradiando também poder e controle), freqüentemente remete à criação mais conhecida de Jeremy Bentham: o Panóptico. No entanto, costuma escapar a estes mesmos críticos o fato, também sobejamente demonstrado pela história, de que o monumentalismo apreciado pelo imperialismo não é exatamente aquele projetado para disseminar conhecimento. Muito ao contrário, as luzes que prefere são aquelas emanadas das fogueiras alimentadas por livros e obras de arte. Aliás, o próprio trabalho de Otlet não escaparia a esse funesto destino, tendo parte expressiva do resultado de seu esforço sido destruída precisamente pelo imperialismo nazista.

PANOPTISMO

Como fonte de inspiração na tentativa de um controle total, o Panoptismo tem suas raízes no esquema de quarentena que era empregado no século XVII**. Em caso de epidemia, a cidade era fechada e todos os animais errantes (cachorros, gatos e outros) eram mortos. As pessoas eram trancadas em suas casas e proibidas de sair sob pena de morte. Dividia-se a cidade em quarteirões, e a guarda destes era dada a um intendente. Cada rua estava sob a vigilância de um síndico que vinha pessoalmente trancar todas as casas. Ele tinha uma lista de nomes de todos os moradores de cada uma das casas da vila. O intendente possuía uma lista, e o prefeito também. A comida era entregue por roldanas, havia corpo de guarda nas portas da prefeitura e em todas as ruas.

RAYWARD, 1999, p. 571.

FOUCAULT, 1996, p. 173 e seguintes

Todos eram obrigados, diariamente, a aparecer na janela e informar seu estado de saúde ao síndico e prestar informações sobre os doentes e os mortos. Qualquer tipo de sonegação de informação era sumariamente penalizada com a morte. Os registros dessa vigilância, realizada em bases permanentes, subiam a hierarquia de autoridades da comunidade. Preparados pelos síndicos, chegavam até o prefeito, depois de passar pelos níveis intermediários da burocracia local. Máximo controle que, entretanto, não era exercido predominantemente de modo visual em todos os momentos. Não visava a controlar todas as ações dos encarcerados, senão primordialmente sua circulação, o que exigia significativa alocação de recursos para sua manutenção.

O ponto-chave no avanço imaginado por Bentham no século IX era exatamente possibilitar total controle visual e, se possível auditivo, a ser exercido sobre indivíduos presos a um espaço perfeitamente delimitado. Indivíduos classificados, distribuídos e localizados segundo sua classe (por exemplo, vivos, doentes e mortos no caso da quarentena), em celas que permitiam a vigília constante de cada movimento. Mais além, a arquitetura, em si mesma, foi projetada para instilar disciplina social em cada indivíduo sob controle. Tal era a base do esquema panótico disciplinar.

Como a seguir visualizado, a edificação era organizada segundo uma distribuição de anéis concêntricos. No mais externo, celas com janelas para o exterior, de modo a permitir a passagem da luz para todos os demais anéis no sentido do centro da circunferência representada pela construção. A abertura voltada para o interior deveria permitir um campo visual amplo e totalmente desimpedido à torre central. Nela, em um compartimento indevassável aos trancafiados nas celas, um único vigia seria capaz de observar, dependendo da finalidade específica do panóptico em questão, cada louco, doente, condenado, operário ou escolar sob controle.

Para Bentham, é a consciência permanente, por parte do indivíduo controlado, do seu estado de visibilidade contínua que garante a eficiência, mais que o simples funcionamento do poder. É fundamental saber-se vigiado, mesmo na impossibilidade de determinar o momento e o autor da vigilância. Esta é simbolizada pela onipresença inafastável e inverificável da torre central. Nenhuma luz, nenhum som deveria poder trair a presença do guardião. Apenas nestas circunstâncias, os indivíduos disciplinariam a si próprios para seguir, em todos os instantes, as regras da instituição. Assim, o construtor do panóptico passa a ser visto como demiurgo de um pequeno mundo. O homem como um “Deus de seu próprio universo”. Não apenas o universo é criado pelo controlador, mas somente existe para ele. Nas palavras de Norberto Bobbio:

FIGURA 1

fg1

 

Planta do Panóptico*

“O poder em sua forma mais autêntica sempre foi concebido à imagem e semelhança de Deus, que é onipotente exatamente porque é o onividente invisível”**.

Recorrendo a Foucault, o mesmo mecanismo podia ser encontrado no zoológico de Le Vaux, em Versailles. O zoológico segue a mesma disposição arquitetônica. No lugar da torre central do panóptico, o pavilhão octogonal do salão do rei com ampla visão para o exterior, onde, no lugar das celas, havia sete jaulas para, no lugar de homens, diversas espécies de animais. Mesmo não havendo a comprovação histórica de ter servido como inspiração para Bentham, uma vez que o zoológico não mais existia em sua época, parece inegável que, para a mesma finalidade (enclausurar, observar, caracterizar, classificar e controlar), seus construtores chegaram à mesma solução de engenharia. O panóptico e o zoológico se equivaliam. A principal diferença está em que, em Le Vaux, o poder controlador não precisava se preocupar em não ser visto.

*FOUCAULT, 1996, p. 32

**BOBBIO, 2000, p 400.

Em qualquer das suas aplicações imaginadas (prisão, hospital, empresa, escola etc.), sempre a busca incessante pela eficiência no exercício do poder. Pela redução dos recursos empregados, pela extensão de seu alcance a todos os elementos da comunidade envolvida, pela multiplicação dos controlados e, principalmente, pela utilização, inconscientemente voluntária, da contribuição dos próprios esforços dos vigiados para a obtenção do resultado final. O esquema panóptico é essencialmente conformador do comportamento esperado, e suas palavras de ordem são eficácia e capacidade de penetração. “Um dispositivo funcional que deve melhorar o exercício do poder tornando-o mais rápido, mais eficaz, um desenho das coerções sutis para uma sociedade que ainda está por vir”*.

Bentham acreditava que apenas instituições panópticas (instituições totais) poderiam ser objeto de um tal mecanismo. Controle não só por parte daqueles diretamente designados para a vigilância, mas também por parte do público vigiado. Dada a sua aplicação restrita, não haveria, na ótica benthamiana, risco de que o crescimento do poder, devido à máquina panóptica, pudesse extravasar e degenerar em tirania. Sempre cabe, no entanto, a questão, inevitavelmente subjetiva, sobre aquela que poderia ser considerada uma instituição panóptica.

Em Foucault, o panóptico podia ser visto como uma metáfora do moderno poder disciplinador, sempre que baseado em isolamento e supervisão, tal que os indivíduos se sentissem forçados a policiar a si próprios, agindo sempre de tal forma a prevenir punição por parte de seu controlador. Para ele, todos, em alguma circunstância, exercem poder de vigilância e controle sobre outrem. Mas, se as relações de poder são inerentes a todo agrupamento humano, disto não decorre, necessariamente, que sua criação seja privilégio do poder dominante, vale dizer, do Estado. Na verdade, em sociedade, existem inúmeras relações de poder das quais não participa o Estado e que, inclusive, estão fora do alcance da atuação estatal.

* FOUCAULT, 1996, p. 184.

Nada mais distante, no entanto, da idéia de Otlet sobre a biblioteca universal. Aquela sonhada como um repositório do saber mundial e informada pelos princípios de “totalidade, simultaneidade, gratuidade, voluntariedade, universalidade e mundialidade”*. No conjunto desses princípios, em mais um indício de sua capacidade de sonhar o futuro, poderíamos enxergar as raízes do projeto contemporâneo do acesso livre. Na verdade, recuando ainda mais no tempo, vários autores imaginaram encontrar na Internet os ecos de uma Ágora ateniense.

DEMOCRACIA E CONTROLE SOCIAL

Referência clássica, a Ágora sempre foi conhecida como o espaço político por excelência da Grécia Antiga. De fato, em Atenas, isto acontecia em determinada colina chamada Pnyx. Nas assembléias nela realizadas, os cidadãos participavam ativamente das decisões que afetavam o destino da pólis, manifestando-se de forma direta nas grandes questões que agitavam a sociedade ateniense. Tratava-se, como dizia Constant**, do exercício coletivo e direto, no todo ou em parte, da soberania. Em verdade, o próprio direito de falar em assembléia (isegoria) era tratado por autores da época como sinônimo de democracia. Por meio de seu voto, os cidadãos podiam declarar a guerra, concluir alianças e tratados com potências estrangeiras, votar leis, aprovar obras públicas, controlar os gastos dos administradores e fiscalizar a atuação dos magistrados. Também servia para escolher ocupantes de cargos eletivos, como, por exemplo, o corpo legislativo.

Mas tal não era a regra. Na realidade, havia muitas funções públicas preenchidas por sorteio e em sistema de rodízio, como forma de garantir o desenvolvimento da politike techné pela experiência administrativa. O conceito de politike techné em Protágoras, ironizada pelo Sócrates platônico, admitia que todos os homens possuem, em algum grau, a arte do julgamento político. Em Bobbio***, chegamos a encontrar menção à oração fúnebre de Péricles, qualificando como inúteis os cidadãos que não se ocupam dos negócios públicos. Em contrapartida a todo este poder, não havia um só aspecto de sua vida privada que estivesse imune ao olho e à mão do Estado.

* PEREIRA, 1995.

** CONSTANT, 1980, p 10

*** BOBBIO, 2000, p 372.

Ressalvando a maior amplitude dos direitos individuais existentes em Atenas, particularmente no século de Péricles, Constant chegou a afirmar ser a liberdade dos antigos uma completa submissão do indivíduo à autoridade coletiva*. Realizava-se, em sua plenitude, exclusivamente na dimensão pública.

Já naquela época, mesclavam-se ingredientes fundamentais da democracia então nascente: poder e saber. Ingredientes estes que, desde então, alimentaram o debate acerca de serem apanágio e privilégio dos aristocratas, os antecessores dos patrícios romanos, autoconsiderados detentores da virtude (aretê) que lhes garantiria a exclusividade do exercício do governo. Moses Finley** ressalta que, embora haja evidências da participação política de cidadãos pouco instruídos (camponeses, comerciantes e outros), isto não era muito comum. Estima o comparecimento em 15% a 20% da cidadania, percentual que podia variar significativamente em função de expedições guerreiras ou comerciais ou até mesmo epidemias. Distância, dinheiro e educação, também naquela época, eram fatores importantes a despertar ou inibir o interesse e, principalmente, a participação e a influência. À parte, evidentemente, da exclusão de escravos, estrangeiros e mulheres.

Não se trata aqui de mais uma crítica apressada e de moderno viés etnocêntrico do conceito grego de cidadania. Qualquer tentativa neste sentido seria rapidamente rechaçada pela lembrança de que, nas democracias ocidentais, as mulheres só tiveram direito ao voto no século recém-findado. Surpreendentemente, ainda em 1996, como reporta Mário Sérgio Cortella***, em uma das sociedades mais evoluídas da Europa, que se orgulha de realizar vários referendos e plebiscitos por ano, alguns cantões suíços não reconheciam este direito elementar da cidadania às mulheres.

Tratava-se de um debate, da série Diálogos Impertinentes, do qual participaram Dalmo de Abreu Dallari e José Carlos de Almeida Azevedo, conjuntamente promovido pela Folha de S. Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Serviço Social do Comércio (Sesc). Ainda segundo Cortella, mesmo no Brasil, o sufrágio completamente universal somente se tornou realidade com a Constituição de 1988 e, na América Latina, apenas dois países (Brasil e Nicarágua) então admitiam o voto a partir dos 16 anos.

* CONSTANT, 1980, p 11

** FINLEY, 1988; p 67.

*** CORTELLA, 1996.

Em vez de criticar, trata-se, na realidade, de tão-somente destacar a efetividade resultante do cotejo entre as possibilidades e os meios. O espaço das primeiras, por circunstâncias geográficas ou patrimoniais, nem sempre era viabilizado pelos últimos. A Ágora grega, tal como outras que lhe pretenderam suceder, tampouco era privilégio de todos. Sequer da maioria. Não obstante, a possibilidade de uma Ágora contemporânea, baseada na democratização do conhecimento por meio da Internet, ainda segue sendo um sonho perseguido por muitos.

Sonho que, forçoso é reconhecer, não é de agora e que a ciência social do advogado belga precocemente compartilhava com a arte expressa na epígrafe deste ensaio. Se para o poeta argentino Borges, quem sabe antecipando a metáfora do rizoma virtual, a biblioteca simboliza o universo composto de “um número indefinido, e talvez infinito de galerias hexagonais”*, para o semiólogo italiano Eco ela representa o próprio Deus – o absoluto a que se aspira por intermédio da soma de todos os livros**. E, se hoje, a partir de nossa confortável perspectiva histórica, podemos percebê-la simultaneamente ancorada no passado (a biblioteca de Alexandria) e no presente (a Internet), temos de reconhecer que esta última, a julgar pelo alcance daqueles princípios sonhados por Otlet na sociedade contemporânea, ainda tem uma dívida considerável a resgatar no futuro.

No benefício da dúvida, ainda poderíamos argumentar que os críticos de Otlet enfocaram o meio, e não o fim. Afinal, a crítica parece privilegiar o aspecto topológico da estrutura tecnológica em detrimento da sua dimensão social e política. Mas eis que aqui também entendemos que se precipitam, vez que ambos são importantes, mesmo que não haja consenso sobre suas proporções relativas. Ainda que saibamos que a ideologia sempre está presente (de forma consciente ou não) desde o momento inicial do projeto de uma tecnologia, a estrutura resultante não é inevitavelmente determinante dos efeitos sociais atingidos.

* Grifo nosso.

** Apud SCHIFFER, 2000, p.228

A história está plena de exemplos desse tipo, entre os quais podemos destacar o avião de Santos Dumont e o Projeto Manhattan. Em ambos, os efeitos não imaginados por seus criadores os perseguiriam até ao final da vida. Em ambos, igualmente, a luta por uma utilização ética e com finalidades sociais ainda persiste, em mais um indício de que a sociedade sempre seguirá tendo meios de influenciar (e modificar) o uso que será feito de uma tecnologia. Talvez por isso Otlet insistisse tanto na eficácia da solidariedade dos povos.

Em adição, é claro que a Internet, agora reconhecidamente organizada em rizoma, tampouco é infensa ao poder, ao controle e à vigilância. Paulo Otero, em seu alerta sobre a possibilidade de uma “democracia totalitária”, afirma que a propalada impossibilidade de controle centralizado da rede sempre permitirá, por seu turno, amplo espaço para a conquista por parte de grupos econômicos, religiosos ou ideológicos*.

Como exemplo, a possibilidade de acesso amplo e eficiente tem sua moeda de troca na perda de privacidade. O fornecimento de dados cadastrais e a obrigatoriedade de senhas são complementados pela trilha deixada pelos cookies. Sob este nome inocente e, por incrível que possa parecer, ainda desconhecidos por muitos, escondem-se os rastros deixados (e, comumente, não percebidos) pelo internauta em sua navegação. Pequenos arquivos gravados pelos softwares dos sites visitados, no próprio computador do usuário. Contendo sua identificação, momento do acesso e operações realizadas, uma vez combinados, possibilitam a exposição de seus dados pessoais (nome, idade, estado civil, endereço, profissão, renda familiar, cartões de crédito etc.), seus assuntos de interesse e hábitos de compras, sem que disso o usuário tenha consciência e sem que lhe tenha sido informado sobre suas conseqüências e destinação futura.

* OTERO, 2001, p. 196.

Assim, ao entrar em um portal, o visitante estará suscetível, embora nem sempre consciente, de monitoramento por várias empresas. Cadabanner (janelas publicitárias que patrocinam e viabilizam comercialmente o site) presente na página poderá gravar o seu próprio cookie. Não que as empresas não virtuais (o agora chamado “mundo de tijolo e cimento”) não reunissem e dispusessem livremente dos dados de seus clientes. A novidade é que agora estes dados podem ser mais velozmente integrados e, com isto, adquirirem nova conotação. Um candidato a cliente de uma companhia de seguros pode ter o risco (e seu prêmio) majorado em função de habituais compras de vinhos. As chances de um recém-formado de ingressar no mercado trabalho podem ser reduzidas se sua ficha médica, desde sua infância, estiver disponível aos seus potenciais empregadores. Que dizer então das chances de um ex-sindicalista desempregado? Ou de um desempregado que processou seu antigo empregador? Mas as nuances entre vítimas e vilões nem sempre são facilmente perceptíveis. A esse respeito, sempre vale lembrar as felizes palavras de Bourdieu:

“O poder simbólico é esse poder invisível, o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem*.”

Tal modelo, portanto, não é impermeável a tentativas de fraudes, mistificações e, em tema que toca muito de perto à nossa ciência, a iniciativas que visam à instrumentalização da informação, transmutando o real no virtual que se deseje! A sofisticação tecnológica aqui servindo de instrumento à alienação do homem pelo homem. Apenas à guisa de exemplo, podemos ressaltar, por um lado, o desconhecimento pelos usuários dos critérios de seleção dos mecanismos de busca, eis que condicionados pelo lucro e pelo mercado, e, por outro, as promessas de liberação dos pólos de emissão de informação que, literalmente, caíram no vazio dos buracos negros dos sítios invisíveis. Nunca é demasiado ressaltar que o totalitarismo de mercado é uma infeliz alternativa ao totalitarismo de Estado, este, ao que parece, a principal preocupação dos críticos de Otlet. Exatamente como nos alerta Mattelart:

Tudo indica que, se a capacidade de conexão das redes destrói as velhas centralidades do poder, ela abre também a via a novas definições das “ordens centrais” e dos “macrotemas**.

Voltando a Foucault, além da exclusão digital, agora tão intensamente discutida, devemos preocupar-nos com a inclusão compulsória – aquela que costuma passar despercebida e tem várias causas possíveis. Pode decorrer, por exemplo, das intranets nos ambientes de trabalho, das ligações telefônicas sobre IP ( Internet protocol), de computadores vestíveis (wearable machines), de carros equipados com GPS que selecionam as rotas a serem seguidas etc. De novas tecnologias, enfim, já presentes ou que nos acenam do horizonte próximo. Se a Internet é ubíqua, como nos afirma Maria Nélida Gonzalez de Gómez***, não devemos esquecer que também pode ser subreptícia. Ou seja, furtiva, desleal e, também por vezes, ilícita. Cumpre, portanto, precaver-se contra o uso inconsciente, freqüentemente projetado por interesses não declarados, centralizados ou não, de vigilância e controle.

* BOURDIEU, 1998, p.7.

** GÓMEZ, Maria Nélida Gonzalez de. A informação como instânciade integração de conhecimentos, meios e linguagens. Questões epistemológicas, conseqüências políticas.In POLITICAS DE MEMÓRIA E INFORMAÇÃO: Reflexos na organização do conhecimento. Maria Nélida Gonzalez de Gómez e Evelyn Goyannes Dill Orrico (orgs.). No prelo, p. 3.

*** Op. cit.

No dizer de Raymundo Faoro*, em inspirado prefácio à autobiografia de Norberto Bobbio, “o poder oligárquico persiste inabalável na democracia, sem que, em nenhum lugar, se tenha encontrado o sistema de permitir ao povo participar diretamente das decisões políticas”. Para esta participação, são necessárias ações efetivas que possam produzir resultados concretos para questões há muito colocadas. Há previsão de alguma solução para a fome em meio à fartura, à sofisticação e ao desperdício? Há uma luz para o desemprego crescente que não seja o de olhar para o brilho da prosperidade alheia? Existe resposta para o problema da educação, ou melhor, para a falta dela?

É possível que ainda haja quem acredite que estas questões não estejam estreitamente vinculadas, mas até mesmo estes acharão difícil negar que, pelo menos para a última, o sonho de uma biblioteca universal pode representar uma resposta concreta que, cada vez mais, a Internet pode ajudar a tornar real. Tampouco podemos olvidar que, se a resposta a todas estas questões for negativa, então a velha Ágora estará mais próxima do que desejaríamos. Aquela Ágora distante do Pireu. A Ágora na qual terão voz apenas os privilegiados de sempre (os happy few). E dela seguirão excluídos os deserdados de todos os matizes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para Rayward, ao sonhar uma biblioteca universal centralizada, Otlet não foi capaz de prever a estrutura revolucionária e descentralizada da Internet. Mas vale a pena investigar quais os sentidos em que ela pode ser realmente considerada uma revolução. Embora o sentido moderno da palavra esteja mais associado à noção de ruptura com o passado, do que simplesmente com mudança, seu étimo tem origem na astronomia de Copérnico**, significando o movimento cíclico e regular de rotação das estrelas. Tornar a percorrer a mesma rota.

Hannah Arendt lembra que o primeiro uso político da expressão trazia o significado de restauração, no caso, a Revolução Gloriosa que restaurou a monarquia inglesa em 1660. Aqui como um “regresso a uma ordem preestabelecida”***. De certa forma, também assim podia ser vista a Revolução Americana.

* BOBBIO, 1998, p. XII.

** ARENDT, 1971, p. 41

*** Op. cit.; p. 42.

O retorno à liberdade ameaçada pelos ingleses e a defesa daquilo que é visto por Arendt como a sua verdadeira face revolucionária: o fim da distinção natural (e, à época, vista mesmo como divina) entre pobres e ricos*, considerada como o primeiro legado dos colonos originais. Talvez, por possibilitar trazer de volta elementos do passado, um instrumento do presente que se projeta no futuro, como a Internet, também assim possa ser qualificado. Também talvez pensar assim possa significar reconhecer um elemento de identificação entre o sonho de Otlet e a nostalgia arendtiana.

De qualquer forma, se, em sã consciência, não podemos cobrar aos críticos contemporâneos o pecado de não ter visto tudo, o mesmo tampouco pode ser imputado a Otlet. Resta evidente que aquilo que enxergou (mais que tudo, sonhou) ultrapassa de longe o não percebido. A esse respeito, Rieusset-Lemarié lembra que Otlet foi capaz de antecipar os sistemas de hipermídia/hipertexto e perceber a importância que alcançariam, para a cognição, na busca de melhores métodos de organização da informação. Até mesmo o seu criticado esquema arquitetural foi considerado, por Buckland, como influenciador da sua concepção tridimensional do documento.

Hoje, quando se fala em biblioteca universal pela Internet, já não é difícil prever que o maior impacto se dará exatamente sobre aqueles que não têm acesso a livros caros, raros e remotos. Aqueles para quem a distância (geográfica e econômica) tem tirado as possibilidades de sonhar. Assim, não ser capaz de vislumbrar o possível, tiraria também a capacidade de imaginar como atingir o impossível. Não é demasiado, portanto, entender que parte importante do sonho de Otlet era democratizar o próprio acesso ao sonho. Nada menos totalitário. E, naquele sentido dado por Hannah Arendt, nada mais revolucionário!

Aqueles que, presos à estrutura rizomática da rede, não conseguem percebê-la senão como um agregado geograficamente disperso de bibliotecas, talvez tenham perdido, por um momento, também a capacidade de experimentar a visão do leitor. Aquele para quem a estrutura tecnológica subjacente da Internet não é perceptível e que, para o fim imediato da leitura, talvez sequer seja importante. Talvez não esteja longe o momento de, alimentados pelo legado de Otlet (e apoiados em seus ombros de gigante), podermos ultrapassar a sua visão revolucionária. Se este dia chegar, talvez a visão de uma biblioteca universal possa se transformar em um livro universal. Nada mais que outra grande e justa homenagem ao visionário belga.

* Grifo nosso.

Mas o que, finalmente, Paul Otlet evoca? Como sabemos, os temas que enxergou e suscitou continuam e ainda continuarão na ordem do dia da ciência da informação, o que ajuda a explicar, sobejamente, o importante papel que suas idéias desempenharam no passado e o muito que ainda têm a desempenhar no futuro. As palavras de Julieta (“A rose by any other word would smell as sweet.”), a trágica e célebre personagem shakesperiana, sempre serão capazes de nos lembrar que, afinal, um nome não significa tanto assim. No que o Wittgenstein tardio certamente concordaria. Ainda que lhe sejam negados o nome e a qualidade de visionário, Otlet era, por seus atos e idéias, um cientista social permanentemente preocupado com o desenvolvimento do gênero humano e, em seu campo, seguirá sendo um revolucionário. No sentido mesmo daquele que enxerga muito à frente de seu tempo.

 

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Lisboa: Morales Editores, 1971.

__________. A condição humana. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1999.

BOBBIO, Norberto. Diário de um século. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1998.

__________. Teoria geral da política. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2000.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: BCD União de Editoras SA, 1998.

CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. In: GAUCHET, Marcel (Org.). Filosofia política. Tradução de Loura Silva da edição francesa. São Paulo: L&PM, 1985. CORTELLA, Mário Sérgio. Democracia é ferramenta para construção da cidadania. Diálogos impertinentes. Folha de S. Paulo, 19 set. 1996. FINLEY, Moses I. Democracia antiga e moderna. Rio de Janeiro: Edições Graal Ltda., 1988.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1996.

OTERO, Paulo. A democracia totalitária – do estado totalitário à sociedade totalitária: a influência do totalitarismo na democracia do século XXI. Cascais: PRINCIPIA, Publicações Universitárias e Científicas, 2001. PEREIRA, Maria Nazaré de Freitas. Bibliotecas virtuais: realidade, possibilidade ou alvo de sonho. Ciência da Informação, v. 24, n. 1, 1995.

RAYWARD, W. Boyd. H. G. Wells´s idea of a world brain: a critical reassesment. Journal of the American Society for Information Science, v. 50, n. 7, p. 557, May 1999.

RIEUSSET-LEMARIÉ, Isabelle. P. Otlet’s mundaneum and the international perspective in the history of documentation and information science. Journal of the American Society for Information Science, v. 48, n. 4, Apr. 1997.

SCHIFFER, Daniel Salvatore. Umberto Eco: o labirinto do mundo –uma biografia intelectual. São Paulo: Globo, 2000.

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