CONHECIMENTOS PARA QUE? TRANSFORMAÇÕES DA ORDEM DOS SABERES NO TEMPO

 

 

Giulia Crippa [1]

Università degli Studi di Bologna – Unibo

giulia.crippa2@unibo.it

 

 

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Resumo

Este artigo busca discutir, dentro da Ciência da Informação, como se orienta o conhecimento em função de suas finalidades. Aborda a relação entre Ciência da Informação e ordem do conhecimento, em uma perspectiva genealógica, observando como se orientam os registros de informação perante a finalidade atribuída ao conhecimento, que se desdobra em sua organização, ao longo da Modernidade (do século XVI à primeira metade do século XX) para entendermos como se estrutura uma organização cientificista do conhecimento. Discute a relação entre heurística e métricas. Observa as mudanças ocorrida entre um sistema de conhecimento fundamentado em bibliotecas e outro atrelado às Tecnologias de Informação e Comunicação. Analisa alguns aspectos da organização do conhecimento nas bibliotecas ao longo da modernidade, destacando alguns elementos constitutivos da confiabilidade dos registros.

 

Palavras-chave: Ciência da Informação; Organização do Conhecimento; Biblioteconomia; Modernidade.

 

 

ABSTRACT

 

Abstract

This article seeks to discuss, within the Information Science, how knowledge is guided by its aims. It deals with the relationship between Information Science and the order of knowledge, in a genealogical perspective, observing how information records are oriented towards the purpose attributed to knowledge, which unfolds in its organization throughout Modernity (from the 16th century to the first half of the 20th century) to understand how a scientific organization of knowledge is structured.Discusses the relationship between heuristics and metrics. It observes the changes that have taken place between a system of knowledge based on libraries and another linked to Information and Communication Technologies. It analyzes some aspects of Knowledge Organization in libraries throughout Modernity, highlighting some elements that constitute the reliability of records.

Keywords: Information Science; Knowledge Organization; Library Science; Modern Age.

 


 

1 INTRODUÇÃO

 

Podemos afirmar que objeto da Ciência da Informação (CI) é a organização da informação. Sua raiz de sustentação privilegia o estudo do armazenamento e, principalmente, da organização e circulação de informação de natureza científica e tecnológica, no sentido de, com base nela, desenvolver ulteriormente a ciência e a tecnologia. Nesse sentido, tende a destacar os produtos que considera de maior valor nos processos de disseminação das proposições de natureza científica, constituídas por artigos e, pela CI, por suas representações, evidenciadas pelas métricas – nas últimas décadas promovidas a instrumento bibliográfico por excelência.

Determinante, no surgimento do campo da CI, é o desenvolvimento das tecnologias digitais. Perante estas afirmações, podemos observar a insurgência de um sistema que se desenvolve na base de uma memória “positiva”, típica das ciências empíricas modernas, ou seja:

1)         Se retêm no sistema aqueles produtos que deram resultados positivos nas pesquisas, eliminando ou mudando de lugar, na hierarquia dos saberes, àqueles que já foram validados e encorporados nos conhecimentos ou que não levaram a resultados positivos, isto é: não integraram mais os conhecimentos científicos. Resultado disso é, por exemplo, a prática bastante consolidada da perda de valor referencial para produções (papers de congressos, artigos em revistas científicas validadas pelo sistema acadêmico) com mais de cinco anos.

2)         Se favorece a produção e circulação de artigos, em detrimento das monografias. Uma das razões fornecidas é que para produzir monografias precisa de muito tempo, fator que pode, eventualmente, tornar os dados das pesquisas desatualizados.

A tipologia da memória “positiva”, obviamente, apresenta fortes limitações para aqueles campos do conhecimento cuja memória é cumulativa, ou seja, em geral, as ciências humanas, para as quais a dispersão ou a eliminação de registros de memórias é considerada involuntária e para as quais a produção de monografias é, muitas vezes, mais relevante do que a de artigos. Ao longo das décadas de desenvolvimento da CI se observa, porém, como ela teve que se adaptar à inclusão de algumas modalidades de produção de áreas diferentes, em um dialogo sobre natureza, uso e forma dos documentos bem como sobre memória em amplo sentido. De um certo ponto de vista, a CI, coetânea do desenvolvimento digital, dedicou-se, em primeiro lugar, à ciência e tecnologia porque se colocou, como princípio, a ideia que o campo das ciências humanas e de suas exigências memorialísticas fossem contemplados pela existência de bibliotecas físicas, de arquivos históricos e de museus e de que o interesse humanístico fosse, de alguma forma, alheio à tecnologia. Porém, se a estrutura das exigências positivas da CI tem se revelado resistente à memória cumulativa, por outro lado a tecnologia ofereceu não somente um atrativo, bem como um instrumento de interesse para as aplicações nas ciências humanas que, dialeticamente, tem buscado, ao longo dos anos, seu espaço de legitimação somente nos fenômenos, bem como na epistemologia da CI.

Se enfrenta uma aporia, quando se busca entender se a CI surge em seguida à tecnologia, que precisa organizar conhecimentos científicos em um espaço não mais físico, considerando que a tecnologia em questão permite o acesso à informação independentemente do lugar e do tempo. Por outro lado, se coloca a hipótese de um desenvolvimento da tecnologia porque haveria uma mudança sistêmica que se orienta para determinados tipos de informação. Hipótese que aprende pelos escritos de notáveis críticos e observadores da sociedade, como veremos à frente, no artigo.

Por outro lado, a busca das origens não é um ponto de partida interessante para se pensar historicamente. Toda origem se finca em algo anterior, é uma transformação, uma reelaboração ou uma ruptura epistemológica, todos eventos que necessitam de uma revisão do existente anterior.

O que nos interessa estudar, aqui, são os vários mecanismos que persistem ou desaparecem nas/das novas estruturas. Propomos uma estratigrafia capaz de revelar os sintomas das funcionalidades que recorrem ao longo dos tempos. Nos interessa abordar a relação entre CI e ordem do conhecimento, em uma perspectiva genealógica, observando como se orientam os registros de informação perante a finalidade atribuída ao conhecimento, que se desdobra em sua organização. Para tanto, consideraremos o eixo da Modernidade (do século XVI à primeira metade do século XX) para entendermos como se estrutura uma organização cientificista do conhecimento.

Obrigatoriamente, não querendo, aqui, propor um tratado histórico, mas, sim, uma proposta fenomenológica, muitas nuanças resultarão simplificadas. Como marcos do referencial teórico e metodológico vale a pena recorrer às proposições de Aby Warburg (2012) no campo das representações visuais e à sua teoria sobre a persistência das formas e o conceito de sintoma, à luz da releitura de Didi-Hubermann (2013). Com base em Warburg, Carlo Ginzburg (2009) elabora um método histórico entendido como hermenêutica dos indícios, abrindo caminhos metodológicos.

 

 

 

2 DESENVOLVIMENTO. ALGUMAS AFIRMAÇÕES

 

Boa parte dos interesses da CI concentram-se, ainda que não exclusivamente, no estudo e desenvolvimento de ferramentas de busca, organização e apropriação da informação no âmbito de ambientes digitais, ainda que trabalhe com materiais não unicamente existentes em formato digital. Fundamentada na tecnologia, a CI desenvolve a partir dela e para operar dentro dela suas ferramentas, pois se baseia na ideia de que, através das tecnologias de informação e comunicação (TICs), os fenômenos informacionais encontrem seu espaço funcional de existência na contemporaneidade. Um grande esforço de inovação se torna, portanto, necessário para organizar, facilitando seu acesso, registros de informação não mais necessariamente dispostos em espaços físicos, isto é, topograficamente.

Em relação à representação da localização de um documento – um livro, uma revista, um mapa – há uma identidade hierárquica que as próprias salas e estantes produzem quando o material é colocado. Em suma, em uma biblioteca física o espaço desencadeia um processo heurístico de organização dentro de um esquema classificatório proposto.

Para entendermos este processo, vale a pena lembrar que a heurística é uma metodologia voltada para a “solução de problemas” quando não é possível, para soluciona-los, seguir um percurso definido. Os processos da heurística movem da falta de caminhos claros, onde o intuito e a adaptação às circunstâncias para buscar e produzir conhecimentos. A heurística utiliza várias ferramentas para disponibilizar de maneira rápida os conteúdos mais pertinentes à demanda informacional. Na falta de elementos específicos, o sistema - se trate de bibliotecas físicas e arquivos ou de ambientes de informação digital – disponibiliza conhecimentos parciais ou liminares. Isso porque se torna necessária a ativação de categorias mais amplas, na medida que registros específicos não estão presentes. A esta ampliação categorial corresponde uma maior inexatidão dos dados e a exigência de elaborá-los. Uma das formas de controle do método heurístico é o controle da frequência com que os registros foram acessados. Este controle, no âmbito da CI, é exercido pelas métricas e pelo seu desenvolvimento, e intervém quando a busca em categorias mais amplas oferece um número excessivo de registros e/ou informação incompleta. Selecionando, entre todos os registros disponíveis, os que apresentam maior frequência de acesso. Utiliza um algoritmo que integra a falta de qualidade informacional através da estatística, portanto não aleatoriamente. Podemos dizer, porém, que a frequência valida um registro através de “juros compostos”, isso é: o material consultado/acessado tem maiores possibilidades de ser novamente consultado e acessado do que um registro que nunca foi consultado. Acessado duas vezes, o registro duplica mais uma vez suas possibilidades, depois a quadruplica, independentemente de sua qualidade informacional.

Em sistemas de dados digitais, que permitem o cálculo instantâneo das métricas de acesso e citação de artigos científicos, com efeitos deveras interessantes para a produção do conhecimento.

Voltemos a considerar, por um momento, a ideia de “princípio”, de “razão” pela qual a CI, idealmente, se desenvolve, a partir de algumas proposições sociológicas.

 

2.1 A razão da Ciência da Informação.

 

Marcuse (1999) considera a tecnologia como conjunto de dispositivos de controle, na medida em que ela é modo de produção, O dispositivo de dominação se orienta pelas diretrizes da eficiência, que o autor observa delinear-se no século XVIII, Anteriormente, a tecnologia era o resultado do que ele chama de racionalidade individual. Sua existência se sustenta em valores éticos que, mesmo entrando em conflito com autoridades externas devem ser preservados. O desenvolvimento da vida social e pessoal entre os séculos XVI e XVII propõe uma nova racionalidade, fundamentada na liberdade de pensamento como agente de transformação da realidade. Trata-se de um desenho social que, como veremos em relação ao exemplo de Naudé a seguir, opõe a liberdade de pensamento às restrições milenárias impostas pelo pensamento teológico teocêntrico.

Os princípios do individualismo moderno se fundamentam no reconhecimento de um pensamento autônomo que, por sua vez, responde a demandas sociais– a não ser confundido, portanto, com o interesse individual. O indivíduo é livre em sua crítica à realidade e, através desta crítica, encontra as ferramentas de sua transformação racional. A conduta social passa a ser medida pelo trabalho, no qual a realização individual se mede quando seus produtos se tornam necessidades sociais (Marcuse oferece alguns exemplos, entre os quais a produção de café, de tabaco ou de açucar).

Por outro lado, a tecnologia permite desenvolver primeiro a mecanização e, mais recentemente, a digitalização. São processos que, aos poucos, tendem a suplantar a ideia de “sujeito econômico livre” (MARCUSE, 1999, p. 76)  com o que são, hoje, os megaconglomerados multinacionais, cujo princípio da eficiência competitiva é voltado para os lucros e quem está incluído nos processos de tecnologização concentra o poder econômico em verdadeiros impérios financeiros e industriais. A tecnologia favorece o poder de empresas que estabelecem redes transnacionais cada vez mais padronizadas, simplificadas, sem desperdícios. Em uma palavra: eficientes.

Em uma visão decerto excessivamente idealista, Marcuse afirma que a racionalidade individual era o compromisso entre as necessidades individuais e o bem-estar comum. A passagem para uma nova racionalidade, dita tecnológica, se caracteriza pela: [...] lucratividade e a competitividade são os verdadeiros determinantes da inovação tecnológica e do crescimento da produtividade.” (CASTELLS, 2002, p. 136).

Para autores como Castells, o poder tecnológico institui padrões e atitudes que predispõem os atores envolvidos a aceitar as regras do sistema. As percepções ligadas ao conhecimento como qualidades individuais devem se tornar padronizadas enquanto o desempenho individual é medido por dispositivos que estabelecem as tarefas e as funções individuais:

[...] a empresa tende a reduzir os custos incrementando a exploração de seus dependentes. Para os quais, geralmente, as “máquinas informáticas” desempenham as mesmas funções das máquinas da grande fábrica, enquanto são um instrumento utilizado para a produção do valor. De fato, os trabalhadores da economia do conhecimento correspondem só em parte mínima àquela imagem, que lhes é com freqüência atribuída, de “supertécnicos” criativos capazes de produzir sempre conhecimentos novos. Em grande parte, são simples apêndices das novas máquinas informáticas que desempenham um trabalho repetitivo e vinculado a normas específicas. (CODELUPPI, 2012, p. 27)

 

O indivíduo eficiente é, portanto, aquele que cumpre as demandas do aparato, enquanto sua liberdade se desenha dentro das seleções dos meios à disposição para alcançar as metas do sistema, que não necessariamente coincidem com as do indivíduo. O progresso deste corresponde à sua eficiência em termos de desempenho para o sistema. A eficiência aparece, então, como elemento de contradição da racionalidade individual que, racionalizando o mundo, tornou esta racionalidade um poder ao qual os indivíduos devem se adaptar. De fato, para que o sistema funcione, seus atores devem se submeter aos ritmos e às linguagens do sistema. Se estabelece, assim, o ideal da máquina automática, para o funcionamento da qual se exige treinamento, prática, atitude factual, categorias do conhecimento que se defininem “técnicas” e que tendem a excluir interpretações.

Trata-se de uma condição que não permite uma saída individual de um sistema que tende à padronização: obedecendo às instruções se alcançam os resultados almejados, o sucesso é o resultado da adaptação.

Essa condição atrela o avanço científico ao desenvolvimento tecnológico, pois a competitividade tecnológica é peça chave na concorrência. O comportamento individual se adapta à racionalidade do sistema, que porém agora podemos afirmar ser algo de conteúdo social definido.

Este sistema de dominação se dissemina da ordem tecnológica para a ordem social na aplicação do treinamento como método privilegiado de aprendizagem, bem como na estrutura dos tempos da vida, estabelecendo parâmetros para o desempenho no trabalho, no descanso e no lazer.

Muitas proposições da CI se estruturam para dar conta de uma solução possível para um sistema que se deseja eficiente, desenvolvido por indivíduos treinados, ou seja, que aprenderam práticas que os colocam no plano de uma submissão razoável, porque garantem o convívio pacífico com a ordem e a instituição da tecnologia cuja finalidade é desenvolver uma maior eficiência.

Se o desenvolvimento ideal da CI movia do princípio de progresso, é preciso entender que se tratava de um progresso em parte ligado às promessas de desenvolvimento do estado-nação moderno (dentro de um quadro ainda de Guerra Fria) e em parte aos interesses de uma economia que buscava cada vez mais a realização de processos de globalização. Afinal, vale lembrar que a partir do final da década de 1980 o quadro tecnológico de prepara para a explosão digital, período que coincide com o fim da Guerra Fria, fornecendo uma base solida para a globalização dos mercados.

As TICs proporcionaram também novos canais de comunicação científica. Se comunicação acontecia por meio de cartas e encontros, até o desenvolvimento de periódicos impressos, já a partir do século XVI, chega hoje aos periódicos eletrônicos acessíveis pela Internet. As TICs foram responsáveis pelas mudanças de paradigma da comunicação científica e, consequentemente, os processos de comunicação da ciência impactados pelas TICs afetam todos os sistemas de informação. Verificando que essas mudanças transformam as modalidades de comunicação científica, através da disponibilização cada vez mais “instantânea” das pesquisas, constata-se que a CI privilegia a memória da qual falamos antes, isso é, a memória positiva, em detrimento da memória cumulativa, cujos tempos se diferenciam.

 

2.2 Funções da biblioteca na Modernidade

 

Para que servem, as bibliotecas, hoje em dia? Uma ideia compartilhada por muitos profissionais e por boa parte da comunidade acadêmica é a de biblioteca como lugar de produção de cidadania, principalmente quando se colocam em pauta as bibliotecas públicas. Há, paralelamente e, muitas vezes se entrelaçando com esta, a linha de pensamento que levou ao desenvolvimento da CI, com seu destaque para a informação científica e tecnológica no âmbito dos processos de produção capitalista e de mercado. Confiando o controle da informação mais estratégica e valiosa nas mãos de grupos relativamente restritos e altamente especializados, impede-se ou, pelo menos, dificulta-se a mobilidade social, na medida em que se reduz o acesso ao conhecimento. É claro que houve, aqui, uma esquematização extrema das duas perspectivas, e que não há uma fronteira rígida entre elas. Quer nossa propensão seja maior por uma das duas visões, nossa pergunta sobre o norte do conhecimento se volta para uma perspectiva histórica.

Entre o séc. XVI e o séc. XVIII, a biblioteconomia não é científica, nem axiomática, nem experimental, na medida em que não tinha como tarefa a investigação e o conhecimento de uma realidade externa. A biblioteconomia, entendida como desenvolvimento de coleções e de sua catalogação e classificação apresenta as ambiguidades de um conhecimento heurístico, apresentando tanto formas intuitivas e elementares quanto manifestações de complexidade elevada e de articulação intelectual. Eliminado o desentendimento ligado a uma ideia de biblioteconomia única e integrada – dentro da qual os protocolos iguais regulam todas as operações, procedimentos e os fazeres bibliotecários – pode ser interessante estudar os critérios de avaliação das relações de competência, funcionalidade e eficiência das estruturas de mediação entre coleções e usuários.

De fato, a biblioteca moderna se reformula devido às mudanças nas estruturas do conhecimento, provocadas ao mesmo tempo pelo desenvolvimento da ciência e pela tecnologia do livro impresso e, portanto, na lógica da organização da informação, principalmente através da produção bibliográfica e catalográfica. A organização bibliográfica, destinada a tornar-se, através dos catálogos, uma estrutura física nas bibliotecas, acreditamos se fundamentar em um novo assentamento das partes envolvidas na discussão sobre o conhecimento.

Falamos em partes, na medida em que a voz unívoca do mundo Cristão medieval fragmenta-se já a partir do humanismo renascentista. O Renascimento resultou na formação das igrejas Protestantes, bem como a fundamentação empírico-experimental da ciência moderna. Como resultado, hove uma forte reação por parte da Igreja Católica, que busca se reformar no Concílio de Trento, encerrado em 1548, durante o qual se enunciam as características do conhecimento. Como escreve Balsamo (2017), ao longo do século XVII se colocam, de fato, as fundações de princípios sobre os quais nos encontramos em crise hoje ou seja: para que e para quem se seleciona, ordena e permite o acesso ao conhecimento.

Na história cultural, após a invenção do livro impresso, podemos observar a constituição de dois modelos de função da cultura na sociedade. De um lado, desenvolve-se uma proposição laica para a qual o homem se dignifica com a pesquisa responsável e racional da verdade, na busca atenta e inesgotável de entender a realidade. Podemos identificar esta proposição com a construção da racionalidade individual da qual fala Marcuse. Do lado oposto, antagônica, se reconstitui a visão dogmática dos representantes das certezas inabaláveis na perspectiva de um bem superior, que impedem a liberdade de escolha aos indivíduos, porque a interpretação ortodoxa é garantida pelas instituições oficiais, cuja outra tarefa é a de seu controle e da sua disseminação.

Podemos identificar entre primeiros grandes representantes desses dois modelos, Conrad Gesner que, em sua compilação “universal” de espírito laico, oferece um corpus para a racionalidade individual enquanto, do lado oposto, Antonio Possevino propõe um conhecimento (a Bibliotheca Selecta) rigidamente configurado para alicerçar o espírito da Contrarreforma católica (SERRAI e SABBA, 2005). Em termos efetivos de constituição de coleções de livros, o século XVII abre-se nessa luta ideológica, centrada na biblioteca como serviço público que disponibiliza todos os instrumentos de estudo e informação ou sua versão de acesso restrito ao conhecimento.

Federico Borromeo, fundador da Biblioteca Ambrosiana, em 1609, abre 4 horas por dia ao público, ainda que seja tão especializada em letras clássicas a ponto que, na realidade, somente os especialistas a frequentavam (BOTTASSO, 1984); Thomas Bodley inaugura a Bodleiana em Oxford, em 1602 (KERBAKER, 2015); Angelo Rocca, fundador da biblioteca Agostiniana em Roma, em 1605 (BOTTASSO, 1984), representam experiências que confluem na elaboração do panfleto mais conhecido de Gabriel Naudé, o Advis pour dresser une bibliothèque, libelo destinado a ser referência para a biblioteconomia até hoje e, certamente não por ser um “manual” para bibliotecários.

Observamos, de um lado, uma proposta de controle teológico e moral no acesso ao conhecimento, (SANTORO, ORLANDI, 2006). Do outro lado, se desenvolve o pensamento libertário, de matriz burguesa, de acesso “universal” e laico, ao conhecimento. Identificamos a corrente de pensamento ligada à visão pós-conciliar, na qual se coloca, como princípio de base, o controle por parte da instituição eclesiástica do conhecimento, através de sua administração e disseminação rigidamente controlada, em que o conhecimento rejeita os autores que não se perfilam nos dogmas católicos, como Giordano Bruno, Copérnico, Galileu.

Por contraste, se destaca-se a posição de Naudé que, no Advis, solicita a presença desses mesmos autores na biblioteca, pois para ele “uma biblioteca para o público deve ser universal, e tal não pode ser se não contemplar todos os principais autores que escreveram sobre todos os assuntos e todos os campos, e em particular sobre todas as artes e ciências” (NAUDÉ, 1994, p.25).

Assim, no Advis se estabelece não somente uma “missão” libertina para a biblioteca, bem com a perspectiva libertina se reforça justamente na explicitação das necessidades bibliográficas de uma biblioteca “pública”, isso é: nos anseios de ser “universal” e não exclusiva, tanto na oferta bem como na ideia de um público para os quais a ordem dada aos conhecimentos constitui um percurso de esclarecimento. A biblioteca, através de sua uma ordem, desempenha, portanto, uma função, uma “missão” que se apresenta já a serviço dos escopos de um Estado Moderno.

Não entraremos, aqui, no mérito das inúmeras formulações filosóficas e políticas que tratam das noções de cidadania, de formação e participação da opinião pública à vida econômica e social, pois são plurais, multíplices e, frequentemente, contraditórias, pois elas se encontram nas produções bibliográficas desde o próprio Gesner até os grandes classificadores universais do século XIX e do começo do XX (Cutter, Dewey, Otlet). Se no começo deste processo ainda há uma clara predominância dos estudos teológicos, no século XVIII a filosofia toma a frente dos saberes, enquanto novos ramos e bifurcações nas árvores do conhecimento se expandem e individualizam. As transformações na estrutura organizacional se entrelaçam à história da cultura impressa e, nesse sentido, o fulcro do processo se estabelece nas bibliotecas e em suas estruturas, estas sim, cada vez mais heurísticas para gerenciar a aumentada quantidade de informação.

O Advis de Naudé tem sido visto como referência enviesada, quando se utiliza na forma de lugar comum da vontade de tornar as bibliotecas públicas. É uma leitura que reduz a efetiva relevância do panfleto. Em primeiro lugar, porque não é uma proposta inovadora de Naudé o conceito de biblioteca publica, a ponto que ele mesmo se refere aos antecedentes nesta proposta, como a Biblioteca Ambrosiana de Milão ou à Bodleyana na Inglaterra. Em segundo lugar, porque a “biblioteca pública” de Naudé é, em primeiro lugar, bibliográfica que física. Para esclarecer isso, lembramos que o Advis é o fruto das polêmicas eruditas que tomavam as posições opostas das quais tratamos anteriormente.

 

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Quando se pensa na biblioteca, nos referimos a um lugar onde o conhecimento é ordenado, classificado e preservado em registros variados, desde o livro ao periódico até os suportes audiovisuais, em versão analógica ou digital. Trata-se de um ambiente onde a hierarquia existe tanto quando se considera a faceta da classificação, bem como na relação bibliotecário/usuário. Na biblioteca física, per exemplo, o serviço de referência, interface entre a biblioteca e o usuário, se identifica una estrutura “rígida”, na qual o bibliotecário possui um conhecimento maior que o usuário para poder satisfazer as exigências deste. Todas as ferramentas necessárias para se chegar à informação procurada destacam o caráter de “busca da verdade” da qual a própria biblioteca se torna, em tese, garantia. Em uma biblioteca, teoricamente, se encontram os registros publicados que representam a qualificação de diferentes perspectivas sobre o conhecimento. Não somente reconhecemos a autoridade do conhecimento nos indivíduos, mas também nos livros, nas instituições, nas ferramentas de organização e busca. Para usuários “ingênuos” todas as publicações podem ter autoridade Todavia existe uma hierarquia, que permitiu que a comunidade científica e a instituição social da ciência adquirissem um papel, tornando sua produção confiável, em termos de informação, na medida em que são “certificados” pelos sistemas de produção e controle da própria comunidade científica. Trata-se de uma interação complexa, que compreende fatores ligados à vontade, à necessidade e às expectativas que, ao lado das oportunidades e das habilidades de aprendizagem, produz efeitos sobre as visões de mundo.

Enquanto a maioria da produção especializada não alcança o grande público, tornando-se o domínio da CI, existe uma indústria da cultura e do conhecimento que se dedica à produção de livros de divulgação e entretenimento, destinada a um leque amplo de leitores e que deveria ser encontrada nas bibliotecas públicas. Também nesse âmbito, na modernidade, se produziam e buscavam indícios que garantiam a qualidade da informação, podendo ser identificados nas garantias oferecidas por determinadas editoras, nas publicações apresentadas por organizações profissionais ou institucionais, por agências oficiais ou tipografias estatais, pelos prêmios recebidos. Tudo isso, teoricamente, garante a qualidade da oferta informacional, mesmo a discussão envolvendo os processos capazes de transformar notícias e testemunhas em bases de informação.

A confiabilidade da biblioteca fundamenta-se na ideia que os registros percorreram processos de elaboração dentro dos campos em que foram produzidos, portanto lhes atribui una designação bibliográfica. Isso não significa que a biblioteca contém verdades absolutas, mas, sim, que é o lugar onde, com o tempo, se consolidou a possibilidade de encontrar informações oriundas de sistemas que buscam oferecer bases socialmente compartilhadas para a formação de opiniões estruturadas e, com elas, operacionalizar escolhas que geram conhecimento.

As garantias são ideais e não todas as bibliotecas as respeitam. Ainda assim, não há dúvida que na base de suas existências se encontra a possibilidade de acesso a materiais selecionados e organizados para estimular a transformação de opiniões instáveis em escolhas informacionais que geram conhecimento.

O papel das bibliotecas parece ter sido o de oferecer alternativas diferentes para os vários assuntos, permitindo desenvolver novos insights e buscar alternativas para as perguntas de informação que foram colocadas pelos usuários, ou seja, pode ser necessário que um usuário precise procurar em um número mais ou menos vários textos para encontrar o que ele está procurando, e as bibliotecas se desenvolveram nessa direção.

Pode-se dizer que, se a biblioteca não é um lugar de verdade absoluta, nela trabalham profissionais que, em um sistema mais amplo de produção de conhecimento, estabeleceram metodologias que permitem a seleção e o fornecimento de informações que podem ser consideradas confiáveis porque assim se estabeleceu pelos processos estabelecidos nas áreas que as produziram.

Pode parecer irrelevante reiterar esses aspectos que caracterizam a constituição das bibliotecas na modernidade, mas se trata de questões atuais, pois elas atravessam por uma fase de descrédito na medida em que são colocadas em uma falsa competição com múltiplas ofertas, aparentemente muito mais amplas, com a rede global. Nesta rede tão "rica", parece-nos, há uma armadilha bastante perigosa: a questão da seleção e confiabilidade das fontes é aberta e ainda sem soluções satisfatórias. Pensamos, de fato, em como a lógica da Ciência da Informação funciona quando se dedica a problemas de comunicação do ponto de vista da eficiência, mas de maneira indiferente à qualidade das mensagens, cuidando da perspectiva mais estritamente informativa e não informacional. A grande preocupação dos sistemas informatizados se concentrou na velocidade e na confiabilidade dos sinais, mas não, necessariamente, na seleção e na qualidade do que esses sinais carregam. O importante era elaborar sistemas em que o que era transmitido correspondesse ao que era recebido (isto é, a base da informação é a teoria matemática de Shannon), mas qualquer informação transmitida, nessa lógica, tem o mesmo valor, independentemente de sua origem. A preocupação dominante desta perspectiva é que as informações recebidas são aquelas necessárias, e não que correspondam ao resultado produzido no âmbito do conhecimento. Da mesma forma, o aspecto da competência informacional do usuário, que pode ou não ter a capacidade de buscar as informações apropriadas, não foi considerada por longo tempo. Para resolver este tipo de problema, é necessário recorrer a especialistas, e as habilidades necessárias são, incidentemente, precisamente aquelas dos bibliotecários como bibliógrafos e trabalhadores de serviços de referência.

Além do fato de que a biblioteca pode ser "universalista" e não especializada, a divisão que propõe está vinculada a divisões disciplinares que identificam, ainda hoje, a tripartição baconiana da mente que divide seus produtos entre razão, memória e imaginação. Com o advento da world wide web, no entanto, essa relação hierárquica tende a se dissolver, a partir do momento em que o que é validado e classificado pela instituição da biblioteca, ao qual Latour (2004) atribui papel fundamental na rede de produção de conhecimento, é comparado a informações efémeras que, através dos motores de busca, se encontram com o mesmo peso que as "certificadas".

Cada informação adquire esse valor dentro de um contexto de pesquisa individual no qual os filtros disponíveis são pouco conhecidos pelos usuários. A distinção entre verdadeiro e falso, representada na história pela própria biblioteca e suas divisões internas, perde suas fronteiras. Nos espaços da rede mundial, o princípio da autoridade e divisão dos campos do conhecimento transcende as fronteiras dos campos disciplinares e o conhecimento torna-se, para usar a metáfora de Bauman (2002), "líquido".

Eis então, dentro da discussão realizada alguns elementos que podemos destacar:

1)  A ideia de ampliação do acesso à informação, já presente em Naudé, esbarra na alta seletividade dos usuários que efetivamente tem acesso à informação estratégica agenciada pela CI.

2)  Por se voltar à informação científica e tecnológica de matriz acadêmica, a CI se sistematiza, em primeiro lugar, para um nível de acessibilidade bastante restrito e especializado.

3)  A maior abrangência da CI tem sido o resultado de disputas, ainda em pauta, entre os diferentes regimes de memória, positivo ou cumulativo.

4)  Os processos da CI podem ser inscritos nas transformações da razão individual para a racionalidade tecnológica. Um exemplo disso é a eliminação ou, pelo menos, a forte limitação dos procedimentos heurísticos em favor da aplicação determinante das métricas.


 

REFERENCIAS

 

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[1] Livre Docente em Ciência da Informação pela USP. Doutora em História Social pela USP. Bacharel em Lettere Moderne pela Unibo. Professora Associada do Dipartimento di Beni Culturali da Unibo. Professora credenciada do PPGCI/ECA/USP (Mestrado e Doutorado).