COMPETÊNCIA DISCURSIVA:
UM CASO ESPECIAL DE COMPETÊNCIA COMUNICATIVA
Clóvis Ricardo Montenegro de Lima [1]
Instituto
Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT)
Universidade do Sul de Santa
Catarina (UNISUL)
helen.fg@gmail.com
Mariangela Rebelo Maia[3]
IBICT/UFRJ
mariangela.saude@gmail.com
______________________________
Resumo
Neste artigo
quer-se delinear o conceito de competência discursiva como um caso especial de
competência comunicativa, tanto quanto o Discurso é um caso especial de agir
comunicativo. Parte-se da discussão de competência dentro do processo de
aprendizagem e do desenvolvimento moral, e dentro dela a competência
linguística e a competência comunicativa. Faz-se o desenvolvimento da noção de
competência discursiva como capacidade de argumentar racionalmente, de
reconhecer o outro e os seus argumentos e de fazer acordos em torno do melhor
argumento. Inclui também a capacidade de universalizar o processo
argumentativo. O desenvolvimento da competência discursiva está vinculado ao
desenvolvimento moral de indivíduos, grupos sociais e sociedade. Conclui-se que
existe sim uma competência discursiva e que esta pode ser desenvolvida, não
apenas como habilidade técnica, mas também como desenvolvimento moral.
Palavras-chave: Agir Comunicativo. Desenvolvimento Moral.
Competência Discursiva.
DISCOURSE COMPETENCE: A
SPECIAL CASE OF COMMUNICATIVE COMPETENCE
Abstract
This article
intends to delineate the concept of discursive competence as a special case of
communicative competence, just as Discourse is a special case of communicative
action. It starts from the discussion of competence within the learning process
and moral development, and within it the linguistic competence and the
communicative competence. The notion of discursive competence is developed as
the ability to reason rationally, to recognize the other and his arguments, and
to make agreements around the best argument. It also includes the ability to
universalize the argumentative process. The development of discursive
competence is linked to the moral development of individuals, social groups and
society. It is concluded that there is a discursive competence and that it can
be developed, not only as a technical skill, but also as a moral development.
Keywords: Communicative Action. Moral Development.
Discourse Competence.
1
INTRODUÇÃO
O conceito de competência discursiva pode ser considerado como um caso especial de competência comunicativa e, nessa perspectiva, o discurso é um caso especial de agir comunicativo.
A linguagem tem um uso cognitivo, que faz afirmações sobre objetos e fatos, e um uso comunicativo, que produz relações intersubjetivas. Os atos de fala têm dupla estrutura performativo-proposicional: criam-se laços intersubjetivos de diversos tipos ao mesmo tempo que se fazem afirmações sobre o mundo.
A partir da discussão de competência dentro do processo de aprendizagem e do desenvolvimento moral, e dentro dela a competência linguística e a competência comunicativa, faz-se uma recuperação breve da teoria do agir comunicativo de Habermas, e o seu desdobramento em uma teoria do Discurso. Habermas usa os estágios de desenvolvimento moral de Kohlberg para argumentar que no Discurso há uma relação especial entre Ego e Alter.
A competência linguística é um conhecimento operacional e tático, envolve uma competência gramatical - conhecimento das unidades linguísticas e regras gramaticais - e uma competência pragmática/sociolinguística - conhecimento de como usar a língua apropriadamente em situações concretas.
A competência comunicativa envolve mais elementos, além da competência gramatical e da pragmática/sociolinguística, requer conhecimentos discursivos e estratégicos.
Sendo assim, desenvolve-se a noção de competência discursiva como capacidade de argumentar racionalmente, de reconhecer o outro e os seus argumentos e de fazer acordos em torno do melhor argumento. Inclui também a capacidade de universalizar o processo argumentativo. O desenvolvimento da competência discursiva acompanha o desenvolvimento moral de indivíduos, grupos sociais e sociedade.
2
A COMPETÊNCIA, COMPETÊNCIA LINGUÍSTICA E A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA
Kolberg (1927-1987), dedicou-se ao estudo do desenvolvimento moral, redefinindo estágios de julgamento moral propostos por Piaget (1896-1980). Em sua teoria do desenvolvimento moral Kohlberg conclui que o desenvolvimento moral passa por três níveis: pré-convencional, convencional e pós-convencional (FINI, 1991). E observa que a construção moral aumenta à medida que as crianças crescem, semelhante ao que acontece com outras habilidades como por exemplo, o uso da linguagem.
Aspectos cognitivos, orgânicos, emocionais, psicossociais e culturais fazem parte do processo de aprendizagem que acontece a partir da aquisição de conhecimentos, valores e atitudes, desenvolvendo habilidades e competências no ser humano. Entende-se que a habilidade torna uma pessoa capaz para desempenhar determinada função, a competência é algo mais amplo, pois exige a junção e coordenação de habilidades adquiridas com conhecimento e atitudes (TABILE, JACOMETO, 2017).
Ferreira (1995), apresenta três significados para competência: faculdade concedida por lei a um funcionário, juiz ou tribunal para apreciar e julgar certos pleitos ou questões; qualidade de quem é capaz de apreciar e resolver certo assunto, fazer determinada coisa, capacidade, habilidade, aptidão, idoneidade; e, oposição, conflito, luta. Atendo-se ao segundo que está relacionado ao processo de aprendizagem, a competência precisa de um tempo (individual) para ser alcançada.
Na linguística competência é o conhecimento adquirido da língua materna que é o mesmo para todos os falantes normais de uma dada comunidade de fala. Para uma melhor interação entre as pessoas, considera-se que a competência linguística e a competência comunicativa sejam fundamentais para gerar uma maior competência discursiva (BALTAR, 2004).
Competência linguística é a capacidade do usuário da linguagem de produzir e entender sequências linguísticas (sentenças, frases ou enunciados), permitindo que a pessoa emita e receba frases. A competência comunicativa é a capacidade do usuário de uma língua, produzir e compreender textos adequados à produção de efeitos e sentidos desejados em situações específicas e concretas de interação comunicativa. Situações concretas de comunicação envolve competência linguística ou gramatical para produzir frases (TRAVAGLIA, 2009; 2011).
O linguista, filósofo e sociólogo Noam Chomsky distingue desempenho e competência; atribuindo que o desempenho se encontra no “plano individual, particularístico e exteriorizado, não sendo este de interesse para os estudos científicos da língua” e que a competência está no” plano universal, ideal e próprio da espécie humana (inato)” (MARCUSCHI, 2008, p. 32).
Além da dicotomia competência e desempenho, Noam Chomsky também estabelece uma visão dicotômica para competência (conhecimento da língua) e performance (uso da língua). Para Marcuschi (2008, p. 36), Chomsky não considera “a vida social da linguagem, isto é, a pragmática, a sociolinguística, a interação verbal, o discurso etc., ligados ao uso, funcionamento ou desempenho linguístico”.
Chomsky considera a linguagem como faculdade mental inata, transmitida geneticamente pela espécie. A competência linguística é vista por Chomsky como um sistema de conhecimento linguístico que é possuído por todos e quaisquer falantes de uma língua; é universal propriedade humana, comum a qualquer ser humano, independentemente de raça, classe econômica ou condição física características e independentemente de seus atributos intelectuais e de personalidade. Este sistema permite que os falantes passem de um número finito de regras - específicas de qualquer idioma - para a produção de um número infinito de novas frases. Além disso, também permite que as pessoas distingam frases gramaticais das não gramaticais (BONA; MACHADO, 2012).
O termo competência em Chomsky se refere “a noção de uma aptidão inata para o desenvolvimento/aquisição da língua com a qual se tem contato na infância” e não com “a noção do senso comum de ser hábil, de se ter capacidade para fazer algo” (BORGES, 2011). Posteriormente, Dell Hymes (1927-2009), amplia o sentido do termo competência chomskyano e considera a noção de competência comunicativa (uso linguístico):
A competência é dependente tanto do conhecimento (tácito) quanto do (habilidade para) uso. O conhecimento é distinto, então, tanto da competência (enquanto sua parte) quanto da possibilidade sistêmica (em que sua relação é uma questão empírica). A ´competência´ subjacente ao comportamento de uma pessoa é identificada como um tipo de ´desempenho´ [...]. A especificação de habilidade para o uso como parte da competência permite o papel de fatores não cognitivos, como a motivação, como em parte determinando a competência (HYMES, 1972, p. 282-283).
A linguagem é que constrói o ser no mundo e a sociedade onde os indivíduos vivem, interagem e trabalham. Há materialidade na linguagem usada nas relações dos sujeitos consigo, com os outros e com o mundo da vida. Assim como há materialidade na intersubjetividade que se constrói. A linguagem pode ser vista como uma mídia universal, ainda que carregue distinções semânticas, pois viabiliza a possibilidade da comunicação entre os sujeitos e contribui para criar um ente para além de cada indivíduo comunicante (GOYARD-FABRE, 2003).
Em Verdade e Justificação (2004), Habermas se apropria da concepção de Humboldt que distingue três funções da linguagem: a função cognitiva “de formar pensamentos e representar fatos”; a função expressiva “de exprimir sentimentos e suscitar sensações”; e, a função comunicativa “de comunicar algo, levantar objeções e produzir acordos” (HABERMAS, 2004, p. 65).
A análise semântica se concentra na visão do mundo linguístico e a análise pragmática na conversação. Além de representação e de expressão, a linguagem tem na terceira função uma importância relevante no pensamento habermasiano que é a criação de vínculos sociais, a integração social e a própria constituição da sociedade.
Assim, a competência comunicativa tem para Habermas um sentido mais amplo do que a competência linguística. A competência comunicativa tem uma dimensão intersubjetiva, onde os sujeitos se expressam e representam as coisas, os fatos e o mundo da vida. Essa competência inclui também a capacidade de interagir com Alter, de se fazer entender, de reconhecer e entender a perspectiva de Alter e construir acordos intersubjetivos em torno do melhor argumento.
3 O AGIR COMUNICATIVO E DISCURSO
O agir comunicativo, essencialmente, consiste em interação racional mediada pela linguagem. Esta permite o entendimento mútuo entre os sujeitos, constituindo a intersubjetividade (LIMA; LIMA; GÜNTHER, 2019). No agir comunicativo, os atores buscam harmonizar internamente seus planos de ação e, então, perseguir suas respectivas metas sob a condição de um acordo existente ou a se negociar sobre a situação e as consequências esperadas. Esse agir orientado para o entendimento mútuo especifica condições para um acordo alcançado comunicativamente sob as quais Alter pode anexar suas ações às do Ego (HABERMAS, 1989).
No agir comunicativo, os planos de ação dos interagentes são coordenados pelo mecanismo do entendimento mútuo linguístico. Para que seja estruturado, é necessário a perspectiva do observador no domínio da interação como uma complementação do sistema das perspectivas do falante, em que os papéis comunicacionais da primeira e da segunda pessoas são conectados com o papel da terceira pessoa (impactando a organização do diálogo). Além disso, a partir da construção de um mundo social de relações interpessoais reguladas legitimamente, forma-se uma atitude de conformidade às normas e uma correspondente perspectiva, que complementam as atitudes básicas e perspectivas do mundo associadas ao mundo interno e externo. Esse sistema das perspectivas do mundo encontra seu correlato linguístico no emprego da linguagem, que os falantes competentes podem, numa atitude performativa, distinguir e conectar sistematicamente (HABERMAS, 1989).
Consequentemente, no agir comunicativo, as identidades de um sujeito e da coletividade se formam e se mantêm de modo co-originário em processos de comunicação. A diferenciação e a racionalização das estruturas culturais comunitárias acompanham proporcionalmente os vários fatores e ordens sociais dos quais depende o processo de autodeterminação do sujeito (SIEBENEICHLER, 2018).
Habermas (1989), coloca o discurso argumentativo como um derivado especial, e até privilegiado, do agir orientado para o entendimento mútuo. O Discurso pode ser visto como um prolongamento do agir comunicativo com outros meios, derivado da ética do Discurso, uma atitude reflexiva de conotação naturalista.
A ética do Discurso coaduna-se com a concepção construtivista da aprendizagem, uma vez que compreende a formação discursiva da vontade como uma forma de reflexão do agir comunicativo e, na transformação do agir para o Discurso, exige uma mudança de atitude que carece de intensa prática comunicacional (HABERMAS, 1989, p. 155).
Essa mudança de atitude na passagem do agir comunicativo para o Discurso ocorre com a tematização de questões de justiça e segue o mesmo processo das questões de verdade. Transmuta-se um relacionamento ingênuo com as coisas e os eventos (aceitação sem crítica, sem questionamento) para um relacionamento judicioso em que pondera os fatos como algo que pode existir, mas que também pode não existir. Esse novo sentido, portanto, entende que os fatos são ''estados de coisa'' e não coisas em si, da mesma forma que as normas habitualizadas socialmente modificam-se para possibilidades de regulação passíveis de aceitação como válidas ou de recusa como inválidas (HABERMAS, 1989, p. 155).
Tal como a frase aludida a Einstein - a mente que se abre a uma nova ideia jamais voltará a seu tamanho original - uma vez que a atitude questionadora ou reflexiva se instaura, o sujeito se vê impelido a “reconstruir seus conceitos fundamentais (sob pena de uma total desorientação)” (HABERMAS, 1989, p. 156), constituindo um ponto de não retorno de sua identidade.
O autor ainda orienta que da justificação erige-se o novo edifício do olhar crítico de uma pessoa que perdeu suas ilusões e que, a partir disso, aprende a distinguir entre normas vigentes em uma sociedade e normas válidas, entre as que são de fato reconhecidas e as que são dignas de reconhecimento.
O discurso é uma forma de comunicação mais pretensiosa em que os pressupostos do agir orientado pelo entendimento podem ser generalizados partir da noção de uma comunidade de comunicação ideal que inclui todos os sujeitos dotados de fala e de ação (SIEBENEICHLER, 2018).
A mudança de atitude que a ética do Discurso exige para a argumentação é um processo de desnaturação, significa um “rompimento com a ingenuidade das pretensões de validade erguidas diretamente e de cujo reconhecimento intersubjetivo depende a prática comunicativa do quotidiano” (HABERMAS, 1989, p. 156). Essa desnaturação equivale aos estágios do processo de aprendizagem construtivo de Kohlberg, pois se trata da sublimação do agir guiado por regras para o Discurso destinado ao exame das normas.
Habermas (1989), afirma que a ética do Discurso remete a (e depende ela própria de) uma teoria do agir comunicativo, demanda a inserção do Discurso prático em contextos do agir comunicativo e possibilita a reconstrução vertical dos estádios da consciência moral, com as estruturas de uma interação guiada por normas e mediatizada linguisticamente.
“O conceito do agir comunicativo está formulado de tal maneira que os atos do entendimento mútuo, que vinculam os planos de ação dos diferentes participantes e reúnem as ações dirigidas para objetivos numa conexão interativa” (HABERMAS, 1989, p. 165).
O Discurso é a forma de reflexão correlata ao agir comunicativo. As argumentações servem para tematizar e examinar as pretensões de validez que as pessoas erguem a princípio implicitamente e levam consigo ingenuamente no agir comunicativo (HABERMAS, 1989, p. 193).
É verdade que a razão prática na interpretação da ética do Discurso também exige uma inteligência prática na aplicação das regras. Mas o recurso a essa faculdade não confina a razão prática no horizonte de uma época determinada ou de uma cultura particular. Mesmo na dimensão da aplicação são possíveis processos de aprendizagem guiados pelo conteúdo universalista de norma a ser aplicada. A adoção ideal de papéis serve de palavra-chave para um tipo de fundamentação procedural. Ela requer operações cognitivas exigentes. Estas, por sua vez, estão ligadas por relações internas a motivos e atitudes emocionais como, por exemplo, a empatia (HABERMAS, 1989).
Pode-se recorrer a relações semelhantes entre a cognição, a faculdade da empatia e a ágape para realizar a operação hermenêutica da aplicação de normas universais com sensibilidade para o contexto. Essa integração de operações cognitivas e atitudes emocionais na aplicação e fundamentação de normas caracteriza toda faculdade plenamente amadurecida do juízo moral (HABERMAS, 1989).
A moral fundamentada na ética do Discurso apoia-se num modelo que é, por assim dizer, desde o início inerente à empresa do entendimento mútuo linguístico (HABERMAS, 1989, p. 197). Com isso, da interação entre os falantes erige intersubjetividade e subjetividades, que proporcionam aprendizagem cognitiva, construtora e pragmática. O Discurso constrói acordos, e faz aprender a criticar, argumentar, decidir e agir (LIMA; LIMA, GÜNTHER, 2019).
Com a passagem do agir regulado por normas para o Discurso prático, os conceitos básicos de uma moral guiada por princípios resultam imediatamente da reorganização, necessária do ponto de vista da lógica do desenvolvimento, do equipamento sóciocognitivo disponível. Com esse passo, o mundo social vê-se moralizado, enquanto que as formas de reciprocidade, embutidas nas interações sociais e elaboradas de maneira cada vez mais abstrata, constituem o núcleo como que naturalista da consciência moral (HABERMAS, 1989).
Portanto, o Discurso é um caso especial de agir comunicativo e é condição necessária para o aflorar da competência discursiva que é detalhada na próxima seção.
4
A COMPETÊNCIA DISCURSIVA: TÉCNICA E DESENVOLVIMENTO MORAL
O desenvolvimento da noção de competência discursiva envolve a capacidade de argumentar racionalmente (saber), de reconhecer o outro e os seus argumentos e de fazer acordos em torno do melhor argumento. Inclui também a capacidade de universalizar o processo argumentativo e está relacionado com o desenvolvimento moral de indivíduos, grupos sociais e sociedade.
Baltar (2004) resgata o conceito de voz de Berstein e, atribui à esta noção as identidades e os papéis sociais performados pelos sujeitos falantes. “O conceito de voz coloca em relevo a relação competência social e competência individual e indica as mudanças não apenas das línguas, mas sobretudo das sociedades” (BALTAR, 2004, p. 221).
O autor elucida que os grupamentos de sujeitos elegem vozes segundo suas necessidades e objetivos em comum e, quando uma voz fala por si, frequentemente se sobrepõe a outra ou a outras. A competência discursiva vem para aclarar essa tênue divisão das vozes sociais, das instituições que as sustentam (BALTAR, 2004).
Isso só é plenamente possível discursivamente, o que implica o agir comunicativo apoiado no desenvolvimento moral. Com efeito, resgata-se um elemento da formação do juízo moral, de Kohlberg, que é necessário à competência discursiva: “as estruturas cognitivas de um estádio superior "superam" as estruturas dos respectivos estádios inferiores, isto é, tanto substituem como conservam essas estruturas sob uma forma reorganizada e diferenciada” (HABERMAS, 1989, p. 157).
Haste (2008), elucida que o desenvolvimento moral entende ativa e construtivamente o humano em um domínio que expande a humanidade para além da cognição, ancorando-a em preocupações sociais, não apenas na solução de problemas. Tal perspectiva influenciou a justiça social, a educação para uma sociedade melhor e também aspectos mais abrangentes de cidadania, atraindo amplamente pesquisadores que se sintonizam com o clima contemporâneo de envolvimento em questões político-sociais.
O desenvolvimento moral qualifica as ações humanas coletivas e fundamenta as competências, pois busca o entendimento com os atores envolvidos em um processo de caráter comunicativo. Compartilha-se pretensões de validade em um processo que viabiliza julgamento objetivo, problematização e debate, sobre os quais se estabelece o consenso, que nada mais é do que a escolha do melhor argumento (HABERMAS, 1987).
Segundo Travaglia (2019), a competência discursiva associa-se à competência gramatical ou linguística e à competência textual para formar a competência comunicativa. Fundamentalmente, a competência discursiva trata de saber adequar o ato verbal às situações de comunicação, isto é, relaciona-se à contextualização do agir, ao respeito às regras e princípios (TRAVAGLIA, 2019).
Baltar (2004), ainda no campo da linguagem, associa a competência discursiva à capacidade de mobilizar saberes das mais variadas ordens, por exemplo, o conhecimento do ambiente discursivo onde se dá a interação, o conhecimento das posições de sujeito dos interlocutores, dentre outros. Trata-se de mobilizar recursos de vários níveis para interagir sócio-discursivamente.
Esses recursos englobam, mas não estão restritos a, a autonomia do sujeito emancipado, a empatia para a construção da intersubjetividade, para se colocar no lugar do outro e assim viabilizar a reconstrução do seu próprio eu. Saberes argumentativos, comunicativos, negociais, sociais e de aprendizagem que permitem conhecer a si, ao outro e ao conjunto intersubjetivo.
Tal noção de competência discursiva viabiliza o entendimento do jogo social dentro das diversas instituições de uma dada sociedade. Permite transitar de uma instituição a outra, percebendo a diversidade de ambientes discursivos das variadas instituições sociais. Tal capacidade de transferência se relaciona com a disposição e a capacidade de aprender, organizar e atualizar os saberes desenvolvidos nas mais variadas situações da prática social que ocorrem na sociedade e nos diversos espaços discursivos (BALTAR, 2004).
Gutierrez e Almeida (2013), definem competência discursiva como uma construção discursiva de consensos. Habermas pretende demonstrar a existência de um espaço sadio, onde subjetividades intactas, através da busca discursiva de consensos em condições de liberdade, constroem a cultura, a sociedade e a própria personalidade.
A competência discursiva pode representar importante ferramenta para realização de projetos individuais e coletivos em sociedade, pois qualifica o sujeito para interagir nas relações sociais que desenvolve com seus interlocutores, por meio de atividades de linguagem, nos mais variados ambientes discursivos (BALTAR, 2004).
Ser hábil em uma competência discursiva, na presente conjuntura social, constitui-se como uma necessidade gritante pelo fato de que ela pode instrumentar o sujeito para a própria vida e possibilitar que este sobreviva. Do contrário, significa a sua rejeição e alheamento a qualquer hipótese de crescimento e melhora da qualidade de vida (ZILBERMAN, 1982). Cabe ao sujeito aprimorar sua competência discursiva para agir por meio da linguagem nos diferentes domínios discursivos e compreender a interdiscursividade presente nas relações sociais (BALTAR, 2004).
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ideia de competência está presente nas teorias da aprendizagem e da Educação, como capacidade complexa de agir frente a situação problema. Uma das mais básicas competências é a linguística, que significa saber interagir através da linguagem, representando as coisas, e se expressando.
Neste artigo delineou-se o conceito de competência discursiva como um caso especial de competência comunicativa, tanto quanto o Discurso é um caso especial de agir comunicativo.
Partiu-se da discussão de competência dentro do processo de aprendizagem e do desenvolvimento moral, e dentro dela a competência linguística e a competência comunicativa. As teorias da aprendizagem falam da aquisição de competências e habilidades e o conceito de competência está muito bem estabelecido dentro da Educação e da Pedagogia.
No estudo de Letras e Literatura se desenvolve o conceito de competência linguística, em que Habermas se apropria da concepção de Humboldt sobre as funções da linguagem. Além das funções de representação e de expressão, a linguagem tem uma terceira função extremamente relevante e que contribui para erigir a competência discursiva: a criação de vínculos sociais, a integração social e a própria constituição da sociedade.
Habermas em um dado momento na sua obra faz uma guinada linguística, o que implica em observar e pensar o mundo da vida a partir das interações mediadas pela linguagem. Assim, é a linguagem que constrói o ser no mundo e a sociedade onde os indivíduos vivem, interagem e trabalham. Há materialidade na linguagem usada nas relações dos sujeitos consigo, com os outros e com o mundo da vida. Assim como há materialidade na intersubjetividade que se constrói.
Assim, a competência comunicativa tem, para Habermas, um sentido mais amplo do que a competência linguística para que os sujeitos se expressem e representem as coisas, os fatos e o mundo da vida. A competência comunicativa tem uma dimensão intersubjetiva. A competência comunicativa está relacionada à capacidade do Eu de se expressar, representando coisas e fatos do mundo da vida.
Essa competência inclui também a capacidade de interagir com Alter, de se fazer entender, de reconhecer e entender a perspectiva de Alter e construir acordos intersubjetivos em torno do melhor argumento.
Desenvolveu-se a noção de competência discursiva como capacidade de argumentar racionalmente, de reconhecer o outro e os seus argumentos e de fazer acordos em torno do melhor argumento, que inclui também a capacidade de universalizar o processo argumentativo.
No princípio da ética do discurso Habermas apresenta a ideia fundamental de uma teoria moral, a saber, o princípio do discurso (D): “só podem reclamar validez as
normas que encontrem (ou possam encontrar) o assentimento de todos os concernidos enquanto participantes” (HABERMAS, 2003, p.116).
Na ação comunicativa Habermas considera como situação linguística ideal o discurso (Diskurs). Para Habermas o discurso é um procedimento e também um processo. Considerado a partir de aspectos processuais, o discurso argumentativo apresenta-se, finalmente como “processo comunicacional que, em relação com o objetivo de um acordo racionalmente motivado, tem que satisfazer a condições inverossímeis” (Habermas, 2003, p.111).
A teoria do discurso tem uma perspectiva não de esclarecimento, mas sim de uma dinâmica interativa, remetendo-a a um processo de aprendizagem. O discurso é uma forma especial de comunicação porque envolve aspectos morais no desenvolvimento de uma competência comunicativa.
O desenvolvimento moral qualifica as ações humanas coletivas e fundamenta as competências, pois busca o entendimento com os atores envolvidos em um processo de caráter comunicativo. Compartilha-se pretensões de validade em um processo que viabiliza julgamento objetivo, problematização e debate, sobre os quais se estabelece o consenso, que nada mais é do que a escolha do melhor argumento. O desenvolvimento da competência discursiva está vinculado ao desenvolvimento moral de indivíduos, grupos sociais e sociedade.
Conclui-se que existe sim uma competência discursiva e que esta pode ser desenvolvida, não apenas como habilidade técnica, mas também como desenvolvimento moral.
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ZILBERMAN, Regina. Leitura em
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[1] Doutor em
Administração e Doutor em Ciência da Informação. Pesquisador do Instituto
Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT).
[2] Doutora em Engenharia e Gestão do Conhecimento.
Pesquisadora e Docente da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL)
[3] Doutoranda em Ciência da Informação PPGCI
IBICT/UFRJ