PROCESSO DEMOCRÁTICO: RECONHECIMENTO DO OUTRO COMO FORMA DE ACESSO À JUSTIÇA

 

 

José Antonio Callegari [1]

UFF-PPGSD

 calegantonio@yahoo.com.br

 

 

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Resumo

O texto analisa o processo judicial a partir de uma visão instrumental desse instrumento jurídico através da abordagem sociológica. Capta a interação entre pessoas regidas por determinada gramática jurídica, onde o autor, réu e juiz praticam atos de fala na jurisdição, formando uma comunidade particular num espaço público institucionalizado. Ao exercer o seu papel como falantes, interagindo entre si, cada um deles postula um tipo de reconhecimento em práticas intersubjetivas com o outro da relação. Ao se reconhecerem como sujeitos de direitos eles legitimam o processo como instrumento discursivo, dialético e dialógico de acesso à justiça, estabelecendo entre eles uma pedagogia de reconhecimento.

 

Palavras-chave: Processo Judicial. Relações Intersubjetivas. Reconhecimento.

 

 

DEMOCRATIC PROCESS: RECOGNITION OF THE OTHER AS A MEANS OF ACCESS TO JUSTICE

 

Abstract

The text analyzes the judicial process from an instrumental view of this legal instrument through the sociological approach. It captures the interaction between people governed by certain legal grammar, where the plaintiff, defendant and judge practice speech acts in the jurisdiction, forming a particular community in an institutionalized public space. In exercising their role as interacting speakers, each postulates a kind of recognition in intersubjective practices with the other in the relationship. By recognizing themselves as subjects of rights, they legitimize the process as a discursive, dialectical and dialogical instrument of access to justice, establishing among them a pedagogy of recognition.

 

Keywords: Judicial Process. Intersubjective Relations. Recognition.

 

 


 

1 PROCESSO JUDICIAL

 

1.1 INSTRUMENTALIDADE PROCESSUAL

 

O direito apresenta o processo como instrumento da jurisdição. Através dele, o juiz diz o direito aplicável ao caso concreto. Cintra, Grinover e Dinamarco (1994, p. 41, 42), percebem essa função instrumental a serviço de uma paz social genérica. Ao Estado caberia a função de operar o sistema processual, eliminando conflitos para devolver à sociedade a paz desejada.

Em suas análises, os autores apresentam dois aspectos dessa instrumentalidade processual. O aspecto positivo consiste em utilizar o sistema processual de forma eficiente, reduzindo ou eliminando os óbices econômicos e jurídicos que dificultam, quando não inviabilizam, o acesso à justiça. No sentido negativo, releva notar que o processo não é um fim em si mesmo, de modo que as formalidades processuais devem cumprir um função garantista, não podendo servir de obstáculo ao exame do mérito das questões levadas ao juiz.

Visando a efetividade do processo, os autores sugerem que, além das reformas legislativas que atualizam as regras processuais, deve-se buscar uma alteração na postura mental dos operadores do direito (juízes, advogados, promotores de justiça). Nesse sentido, é indispensável "a consciência de que o processo não é mero instrumento técnico a serviço da ordem jurídica, mas, a cima disso, um poderoso instrumento ético destinado a servir à sociedade e ao Estado" (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 1994, p. 45).

Com esta visão, Bedaque (2006, p. 24, 25) analisa os obstáculos à efetividade processual, destacando a incompreensão e a má aplicação da técnica processual. Visando aprimorar o uso adequado do processo, o autor sugere duas estratégias. Uma de natureza científico-legislativa, através da qual se articulam estudos visando a elaboração de leis menos formalistas, mais claras e mais coerentes com a realidade social circundante. Uma outra de natureza pedagógico-pragmática, por meio da qual o cidadão e os técnicos do direito possam compreender a função de cada um deles como intérpretes e construtores de uma ordem jurídica aberta ao diálogo, como forma civilizada de resolução de conflitos.

Como adverte Bedaque (2006, p. 25), o formalismo exagerado é sinônimo de burocracia. Se por um lado o formalismo prejudica a fluência processual, por outro a ausência de forma fragiliza a segurança jurídica das partes, tal como identificamos no processo kafkiano, onde o réu é lançado na trama de um processo sem forma definida, à mercê de um tribunal autoritário e corrupto.

Se a efetividade processual depende da mudança de atitude das partes, do juiz, dos advogados, dos membros do Ministério Público, etc., podemos afirmar que o processo contém uma comunidade jurídica, na qual cada um desempenha um papel fundamental na formação e no desenvolvimento válido e regular desse instrumento.

 

2 COMUNIDADE PROCESSUAL

 

Como destacam Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2017, p. 438), "o processo é importante não apenas por envolver, em uma relação, o juiz e as partes". Na correta interpretação dessa comunidade, identificam-se fatores sociais e jurídicos de legitimação do processo como instrumento civilizado de aplicação do direito:

 

A legitimação pela participação decorre da efetividade da participação das partes na formação da decisão, já que apenas proclamar o direito de participação, sem outorgar às partes as condições necessárias a tanto, implica negar a própria legitimidade que se pretende transmitir com a ideia de participação. Isso quer dizer que o processo requer a legitimidade do exercício da jurisdição e a efetividade da participação das partes, envolvendo, de uma só vez, exigências que fazem com que os participantes da relação processual civil se dispam das suas máscaras de elementos e, principalmente, que as partes compreendam que a efetividade da participação é necessária para legitimar a tarefa jurisdicional (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO. 2017, p. 440).

 

A existência de uma comunidade jurídica, com direito de participação em contraditório efetivo, legitima a formação, o desenvolvimento e a extinção do processo como instrumento de acesso à justiça.

Desse modo, o pronunciamento judicial contém em si a síntese de atos discursivos e dialógicos de outros agentes como partícipes e co-autores do texto processual.

Por conseguinte, essa comunidade de falantes é fator de legitimação democrática do processo, uma vez que:

 

Para a legitimidade da jurisdição não basta a participação e a adequação do procedimento às necessidades do direito material, sendo ainda necessário a legitimidade do procedimento diante dos direitos fundamentais, devendo ser dito ilegítimo, nessa linha, o procedimento que restringe as alegações do réu, no que toca ao direito material, em desatenção aos direitos fundamentais - não apenas processuais, como o direito ao contraditório, mas sim materiais (MARINONI, ARENHART; MITIDIERO, 2017, p. 440).

 

Acrescentam os autores (2017, p. 441, 442), que o processo deve legitimar - pela participação -, deve ser legítimo - adequado à tutela dos direitos fundamentais - e ainda produzir uma decisão legítima.

No Estado Democrático de Direito, a instrumentalidade técnica do processo não revela a extensão de sua função social. Através do processo, o juiz não atua a vontade concreta da lei, numa perspectiva liberal ultrapassada e solipsista.

Em razão disto, o pluralismo social e jurídico, típico de sociedades complexas, impõe uma hermenêutica normativa e factual dos elementos da causa. Antes de dizer o direito aplicável ao caso concreto, o juiz deve compreender adequadamente os fatos da causa.

Para tanto, as partes narram os fatos, argumentam e produzem as provas. Ao juiz cabe dirigir a instrução probatória, mediante participação ampla do autor e do réu (ampla defesa em contraditório), pois a atividade probatória é fundamental para convencer o juiz sobre a veracidade dos fatos narrados pelas partes.

Num primeiro momento, o autor narra os fatos e argumenta sobre a violação do direito, postulando uma decisão judicial favorável. Logo a seguir, o réu narra sua versão sobre os fatos, expondo os seus argumentos, clamando por uma decisão judicial que o absolva. O juiz, por sua vez, procura se esclarecer sobre os fatos narrados, ponderando os argumentos das partes, interpretando a relação entre os fatos e as normas jurídicas aplicáveis ao caso concreto e proferindo sua decisão.

Com isto, percebe-se que os atos de fala na jurisdição implicam-se reflexivamente e atuam no conhecimento e convencimento do juiz sobre os fatos da causa e sobre a norma jurídica aplicável. 

Por certo, o encadeamento desses atos demonstra haver uma relação de causa e efeito entre os atos praticados pelo autor, réu e juiz, sujeitos processuais que participam dessa comunidade jurídica, legitimando o processo democrático, pois:

 

É intuitivo que o poder é exercido através de um procedimento e, portanto, que o poder jurisdicional dele também depende. A jurisdição necessita de um procedimento que realmente lhe permita a proteção do direito material. Mas esse procedimento, por constituir uma via através da qual o poder estatal é exercido, deve buscar outra fonte de legitimação.

Sabe-se que a noção de democracia está intimamente ligada à de participação, uma vez que a participação no poder é da essência da democracia (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2017, p. 442).

 

Como esclarecem os autores, o processo democrático apresenta uma estrutura aberta ao diálogo entre as partes e o juiz, pois a legitimidade do processo depende da efetiva participação deles na formação da decisão judicial.

Nessa comunidade jurídica, pois:

 

São as partes que, junto com o juiz, e de forma equilibrada com este, conduzem o processo até a formação de um resultado constitucionalmente legítimo...Partes e juiz são, todos eles, atores igualmente importantes de um processo que tem vários centros de controle (daí falar-se do processo moderno como um processo policêntrico). E devem participar juntos (daí a expressão processo comparticipativo) da construção do resultado do processo. Volta-se, então, a um ponto que já foi anteriormente afirmado: o processo só pode ser visto, no Estado Democrático de Direito, como um procedimento em contraditório, em que as partes e o juiz, de forma comparticipativa, e atuando com equilíbrio de forças, constroem juntos o resultado do processo (CÂMARA, 2018, p. 63).

 

 

3 GRAMÁTICA JURÍDICA

 

Partindo da noção instrumental do processo, identificamos a existência de uma comunidade jurídica formada por autor, réu e juiz, dentre outros falantes. Cada um deles narra fatos e articula argumentos, formando uma cadeia comunicativa até a decisão final do juiz. Nesse sentido, eles proferem atos de fala na jurisdição, sob a regência de gramáticas jurídicas diversas.

A primeira delas é a Constituição Federal como fundamento de validade de tantas gramáticas quantos são os ramos específicos do direito: civil, penal, processual civil, processual penal, trabalhista, etc.

Em plano hierárquico superior, ela projeta a sintaxe e a semântica das práticas discursivas e dialógicas que se desenvolvem no processo, segundo o princípio da ampla defesa em contraditório. Desse modo, a gramática constitucional estende uma gama de princípios e regras que garantem as inviolabilidades das pessoas e os seus direitos fundamentais.

Para termos um ideia dessa projeção gramatical, citemos o novo Código de Processo Civil. Em título específico, ele trata das normas fundamentais aplicáveis ao processo. Desse modo, atuando como gramática jurídica, ele incorpora elementos sintáticos e semânticos de matriz constitucional.

Essa comunicação sistêmica entre gramáticas parciais, que integram a gramática do mundo da vida, estabelece ritos e procedimentos que regulam a prática dos atos de fala na jurisdição.

Em consequência disto, o processo civil é ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil. Assim preordenado, ele começa por iniciativa da parte autora e se desenvolve por  impulso oficial do juiz, pois não se exclui da apreciação judicial ameaça ou lesão a direito.

Nesse contexto, a jurisdição é ativada como uma das portas de acesso à justiça. Outras portas estão disponíveis ao cidadão, tais como: processo administrativo, mediação, conciliação e arbitragem. Para nossa reflexão, interessa somente analisar o processo judicial.

Alicerçado em princípios e regras constitucionais, ampliando a participação do autor, réu e juiz, o processo judicial ganha contornos de processo democrático, onde a instrumentalidade técnica se reconfigura como instrumentalidade discursiva, dialética e dialógica.

A democratização do processo leva em conta o direito fundamental das partes em obter a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa, em prazo razoável. Considerando a marcha processual, a "vida" do processo não pode ignorar a vida das partes, gerando situações inadmissíveis de tutela de direitos tardia e ineficaz.

Por outro lado, essa gramática processual, assim constitucionalizada, concede aos falantes do processo um direito legítimo de participação e um dever de comportar-se de acordo com a boa-fé. Aqui supomos haver uma pauta ética forte a orientar as estratégias argumentativas de cada falante (autor, réu e juiz). Orientados por essa ética discursiva, os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, uma decisão de mérito adequada e justa. 

Inseridos eticamente nessa comunidade jurídico-processual, autor e réu devem receber tratamento paritário em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, sob contraditório dinâmico e efetivo. Nesse passo, o juiz dirige o processo como garantidor do equilíbrio discursivo, dialético e dialógico entre as partes.

Regendo o processo, o juiz deve atender aos fins sociais e às exigências do bem comum. No desempenho de sua função reitora, ele deve resguardar e preservar a dignidade da pessoa humana. Para tanto, deve observar princípios de regência sintática, semântica e pragmática do processo, tais como: proporcionalidade, razoabilidade, legalidade, publicidade e eficiência.

Visando a legitimação democrática do processo, o juiz, via de regra, não pode proferir decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida. Desse modo, o juiz não pode decidir com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício. Acrescente-se que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário devem ser públicos e fundamentadas suas decisões, sob pena de nulidade.

Com esta pequena amostragem, podemos dizer que o processo funciona como instrumento discursivo, dialético e dialógico de acesso à justiça. Começando por iniciativa da parte, que demonstre interesse e legitimidade para agir, cada ator integrado ao processo (autor, réu e juiz) passa interagir nessa comunidade jurídica, uma vez que se estabelece entre eles um elo comunicativo que podemos chamar de relação jurídica.

Nesse contexto, podemos analisar a dinâmica processual como esfera pública onde ocorrem consensos, dissensos e decisões a partir de reconhecimentos recíprocos de cada participante como sujeito de direito, qualidade existencial que já vem estampada no Código Civil, gramática jurídica que estabelece as condições de reconhecimento da pessoa como sujeito de direitos e deveres na ordem civil.  

 

4 RECONHECIMENTO DO OUTRO

 

Quando o autor ingressa com sua petição inicial ele narra fatos, expõe argumentos, e postula uma decisão judicial.

Ao receber a petição inicial, o juiz analisa se estão presentes os elementos da ação: a parte autora e ré, a causa do pedido e o pedido propriamente dito. Nesse momento, o juiz profere uma análise de reconhecimento do autor como sujeito de direito com interesse jurídico e legitimidade para acionar o réu. Sem este reconhecimento prévio, não se desenvolve o processo com a citação do réu.

Citado, o réu pode manifestar-se no processo, apresentando sua defesa mediante narrativa e argumentações. Ao contestar o pedido, o réu exerce um ato de reconhecimento do autor como sujeito de direito. Pode ainda deixar de reconhecer o juiz como autoridade competente para instruir e julgar a causa, apresentando o que os juristas chamam de exceção de incompetência. O processo, pois, só tem andamento sob direção do juiz quando restar reconhecida sua competência para instruir e julgar a causa.

O juiz, por sua vez, após sanear o processo e instruir os atos probatórios, profere a sentença reconhecendo a qualidade jurídica do autor e do réu como sujeitos de direitos. Desse modo, a sentença como ato de encerramento judicial do processo, é também um ato de reconhecimento da condição favorável a uma das partes e desfavorável à outra.

A partir das análises de Honneth (2009), sobre a teoria social de Hegel, podemos identificar no processo judicial um tipo específico de luta por reconhecimento. Na construção da realidade processual, com fundamento em narrativas, argumentações e provas, ocorre um movimento de repetição alternada de atos de fala que exteriorizam as individualidades reconhecidas pelo outro da relação processual. O autor se torna autor quando exterioriza sua pretensão em face do réu e diante do juiz. O réu desempenha esta função processual quando se apresenta como o outro da relação em face do autor e do juiz. Este, por fim, se torna reconhecido como autoridade legítima quando manifesta os seus poderes judiciais perante o autor e réu, desde que sua competência não seja contestada através de mecanismos de impugnação adequados.

Estando eles reconhecidos como sujeitos processuais, a relação jurídica que se estabelece legitima todo o procedimento em contraditório e ampla defesa. Sem o reconhecimento do outro como parceiro de interação, o processo não se realiza como instrumento democrático de resolução de conflitos. Um processo judicial sem reconhecimento não passa de simulacro judicial autoritário, tal como ocorre no processo kafkiano.

Honneth (2009, p. 71), informa que na relação ética do Estado ocorrem "estruturas institucionais de uma forma bem sucedida de socialização". Com esta observação, supomos o processo como estrutura dessa natureza, socializando relações conflituosas no mundo da vida, através de um consenso procedimental discursivo, dialético e dialógico.

A partir de regras definidoras do comportamento colaborativo, da boa-fé, da lealdade processual, etc., o processo funciona como um sistema de eticidade hegeliano, no qual a afirmação da eu depende do reconhecimento do outro como parceiro de interação processual. Não existe autor sem reconhecimento do réu e do juiz e vice-versa. São reconhecimentos recíprocos que, no reconhecimento do outro, reconhece sua própria existência como sujeito processual.

Tomando a sentença como manifestação de vontade intersubjetivamente constituída, podemos afirmar que ela revela uma auto experiência integral do sujeito:

 

Uma auto experiência integral do sujeito, como seria dada com a consciência dos direitos intersubjetivamente vinculantes, só é possível, portanto, sob a condição de que o indivíduo aprenda a conceber-se também como um sujeito das produções práticas (HONNETH, 2009, p. 73).

 

Por conseguinte, as trocas discursivas, dialéticas e dialógicas no curso processual atuam como produções práticas (pragmática) de sujeitos que se vincularam intersubjetivamente na relação processual.

Se entendermos o conjunto de atos processuais, encadeados mediante critérios de coesão e coerência, podemos dizer que cada falante é co-autor do texto processual. Nesse sentido, o texto é uma obra em co-autoria, um "resultado da atividade de trabalho mediada pelo uso do instrumento" (HONNETH, 2009, p. 75).

Na construção textual do processo, cada um dos falantes pode chegar a uma "consciência de si mesmo como uma pessoa de direito; pois tal autocompreensão pressuporia no mínimo o aprendizado de conceber-se como ser intersubjetivo, que existe entre pessoas com pretensões concorrentes" (HONNETH, 2009, p. 76).

O reconhecimento na relação processual decorre dessa relação de reciprocidade de "um saber-se-no-outro" (HONNETH, 2009, p. 76). Sem esse reconhecimento, nem mesmo a sentença judicial restará legitimada, pois o juiz deve assegurar às partes o direito de participação e influência na decisão judicial como sujeitos de direitos.

Desse modo, as pautas éticas que orientam a conduta colaborativa dos sujeitos processuais têm implicações do tipo:

 

[...] um indivíduo que não reconhece seu parceiro de interação como um determinado gênero de pessoa tampouco pode experienciar-se a si mesmo integral ou irrestritamente como um tal gênero de pessoa. Para a relação de reconhecimento, isso só pode significar que está embutida nela, de certo modo, uma pressão para a reciprocidade, que sem violência obriga os sujeitos que se deparam a reconhecerem também seu defronte social de uma determinada maneira: se eu não reconheço meu parceiro de interação como um determinado gênero de pessoa, eu tampouco posso me ver reconhecido em suas reações como o mesmo gênero de pessoa, já que lhe foram negadas por mim justamente aquelas propriedades e capacidades nas quais eu quis me sentir por ele" (HONNETH, 2009, p. 78).

 

Adaptando as observações de Honneth (2009, pg. 80), podemos dizer que através da atividade cooperativa na relação institucionalizada do processo ocorre um saber intersubjetivamente partilhado.

Diante do que se expôs, podemos dizer que o processo, com fundamento constitucional, exerce uma função pedagógica de reconhecimento. Através desse reconhecimento, o processo democrático cumpre sua função instrumental: discursiva, dialética e dialógica.

 

5 CONCLUSÃO

 

Destacando a função instrumental do processo, observamos que o resultado útil desse instrumento depende da mudança de atitude das partes, do juiz, dos advogados, membros do Ministério Público, etc.

Sua instrumentalidade técnica ganha novos contornos a partir da constitucionalização do processo. Nesse contexto, aqueles que interagem no processo formam uma comunidade jurídica, agindo na preservação e concretização de direitos fundamentais da pessoa humana, dentre eles o de participar efetivamente na relação processual.

O encadeamento lógico e progressivo de atos de fala na jurisdição segue uma sintaxe previamente estabelecida na Constituição Federal e no código de processo. Ao final dessa cadeia discursiva, o juiz profere uma decisão como síntese dos atos de fala proferidos por cada falante.

A relação entre cada participante não se restringe aos aspectos técnicos da divisão social do trabalho processual. Cada sujeito interage com outro em típicas relações de reconhecimento que se baseiam na legitimação individual para estar em juízo e que ao final legitimam a decisão do juiz.

Nesse percurso discursivo, dialético e dialógico, os sujeitos do processo exercem uma verdadeira pedagogia de reconhecimento.

 


 

REFERENCIAS

 

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros. 2006.

BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Código de Processo Civil e normas correlatas. 7.ed. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnica, 2013.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, D. F. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, 191-A. 05 de out.1988, p.1. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil-03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 28 abr. 2016.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. A Constituição e o Supremo [recurso eletrônico] Supremo Tribunal Federal. 5. ed. atualizada até a EC 90/2015 Brasília: STF, Secretaria de Documentação, 2016. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoLegislacaoAnotada/anexo/a-constituicao-e-o-supremo-5a-edicao.pdf. Acesso em: 10 mar. 2017.

CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 4. ed. rev. e atual. - São Paulo: Atlas. 2018.

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 11. ed. rev. Atual. São Paulo: Malheiros. 1995.

HEGEL, Georg Wilhelm. Fenomenologia do espírito. Tradução de Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 2014.

HONNETH, Axel. Luta pelo reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2. ed.Tradução de Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2009.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: teoria geral do processo. 3. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2017. v 1.



[1]Doutor em ciências jurídicas e sociais