O PROBLEMA DA IDENTIDADE NAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO

 

 

Cleyton Leandro Galvão[1]

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB)

 cleyton.galvao@ifpb.edu.br

 

 

______________________________

Resumo

Uma das questões mais difíceis de discernir no âmbito do uso das TICs é decidir o que seria aquilo que chamamos de identidade. Há termos que se referem a partes ou momentos específicos da identidade nas TICs, tanto ao uso quanto ao desenvolvimento que essas identidades podem ter em relação ao envolvimento do usuário. Deste modo, afirmamos que existe uma forma de compreender a identidade no uso das TICs como tentativa de se livrar deste emaranhado de termos e conceitos dispersos que parte da análise do progresso que as tecnologias da informação e comunicação tiveram desde a introdução em massa dos computadores pessoais e a expansão das redes sociais. Assim, será exposto o modo como a identidade passa da fase digital, para fase virtual, para a fase de identidade pessoal online, e por fim se tornando restos digitais.

 

Palavras-chave: Identidade. Digital. Virtual.

 

 

THE PROBLEM OF IDENTITY IN INFORMATION AND COMMUNICATION TECHNOLOGIES

 

Abstract

One of the most difficult issues to discern in the context of the use of ICTs is to decide what would be what we call identity. There are terms that refer to specific parts or moments of identity in ICTs, both in terms of use and development that these identities can have in relation to user involvement. Thus, we affirm that there is a way to understand the identity in the use of ICTs in an attempt to get rid of this tangle of dispersed terms and concepts that starts from the analysis of the progress that information and communication technologies have had since the mass introduction of personal computers. and the expansion of social networks. Thus, it will be exposed how the identity moves from the digital phase, to the virtual phase, to the online personal identity phase, and finally becoming digital remains.

 

Keywords: Identity. Digital. Virtual.

 


 

1 INTRODUÇÃO

 

Uma das questões mais difíceis de discernir no âmbito do uso das TICs é decidir o que seria aquilo que chamamos de identidade. Desse modo, tentarei delimitar principalmente se se refere a uma questão conceitual ou simplesmente de nomenclatura. Ou seja, se se trata de dizer em que consiste aquela entidade (se é que podemos chamá-la de uma entidade) ou se apenas de definir qual é o melhor nome para rotular tal entidade. Assim, a investigação será em torno dos nomes e noções que envolvem esse resíduo que surge como contato com as tecnologias da informação e comunicação.

Em Parkinson et al. (2017) são apresentados 16 termos diferentes para tratar da identidade nas TICs, são eles: Digital biography, Digital doppelganger, Digital dossier, Digital fingerprints, Digital footprint, Digital identity, Digital mosaic, Digital person, Digital persona, Digital Self, Digital shadow, Ersatz double, Online identity, Second self, Shadow identity e Virtual self. Os autores chegaram a esta conclusão enfocando numa busca que toma como elemento principal os dados pessoais. Assim, destes destacaram-se quatro termos com feições comuns que foram: Digital Footprint (Pegada Digital), Digital Mosaic (Mosaico Digital), Digital Persona (Persona Digital) e Virtual Self (Eu Virtual). Tal resultado alerta para o problema da dificuldade em definir uma nomenclatura adequada que gire em torno de um processo de identificação digital, como afirma Parkinson et al. (2017, p.2) “O uso de termos e conceitos consistentes é importante porque reduz a ambiguidade no debate acadêmico e melhora o compartilhamento de informações - particularmente entre provedores de serviços e seus usuários”.

Através destas análises foram encontrados problemas de vários tipos quanto a utilização de um único termo para se referir a várias entidades, como o uso de vários termos para se referir a uma única entidade. Deste modo, Parkinson et al (2017) encontraram-se nas mesmas dificuldades da nossa abordagem, como alertam em seus resultados:

A análise da terminologia e seu uso identificaram três questões principais. Primeiro, os termos usados para descrever categorias de dados descritivos de um indivíduo também são usados para rotular outras coisas; segundo, frases de substantivo único foram usadas para rotular grupos semelhantes, mas diferentes; e terceiro, mais de uma frase nominal foi usada para rotular um único agrupamento. (PARKINSON et al., 2017, p.4)

 

Nesta miríade de termos para se referir a identidade no uso das Tecnologias da Informação e Comunicação muitos autores em Filosofia ou especialistas em TICs os utilizam de forma intercambiável, sem se darem conta se há ou não uma incoerência nos significados. Resta a dúvida de saber se todos esses termos se referem a uma única coisa ou a coisas distintas, e caso esse último tipo, qual são as suas distinções.

Acreditamos que realmente não estamos falando da mesma coisa quando utilizamos alguns dos termos citados acima sobre identidade relativos às TICs. Há termos que se referem a partes ou momentos específicos da identidade nas TICs, tanto ao uso quanto ao desenvolvimento que essas identidades podem ter em relação ao envolvimento do usuário.   Deste modo, afirmamos que existe uma forma de compreender a identidade no uso das TICs como tentativa de se livrar deste emaranhado de termos e conceitos dispersos que parte da análise do progresso que as tecnologias da informação e comunicação tiveram desde a introdução em massa dos computadores pessoais e a expansão das redes sociais. Assim, será exposto o modo como a identidade passa da fase digital, para fase virtual, para a fase de identidade pessoal online, e por fim se tornando restos digitais.

 

2 HÁ OU NÃO HÁ UMA IDENTIDADE NAS TICS?

 

A dificuldade inicial em definir a identidade nas TICs residiu em estabelecer se havia ou não alguma espécie de entidade a partir da qual uma identidade poderia ser inferida. O contato que os seres humanos fazem com sistemas digitais, de forma voluntária ou não, deixa algum tipo de registro. De alguma forma, o contato com os sistemas digitais reflete padrões de comportamento do usuário, que pode vir a ser considerado como parte daquele usuário.

A primeira fase da identidade no uso das TICs se configura com a problemática sobre o status ontológico dessa entidade. Do que é composta tal identidade? Ela possui alguma realidade ou são só circuitos num sistema? Um aglomerado de bits pode ser considerado uma entidade?

Clarke (2008) sugere que as identidades não possuem base ontológica no mundo digital, pois uma identidade é apenas o desempenho de determinado comportamento. Deste modo, nega que os registros num sistema digital possam vir a ser considerados uma identidade.

Uma identidade é uma apresentação ou papel de alguma entidade subjacente. Cada identidade tem atributos, como estilo de desempenho e preferências. Identidades e atributos existem no mundo real, não nas unidades de disco. Qualquer entidade específica pode estar associada a qualquer número de identidades, e não apenas uma (CLARKE, 2008, p. 222).

 

Assim, identidades são papéis que podem ser associados a várias entidades. Isso é comum no caso de roubo de identidade. “Uma identidade particular pode ser assumida por várias entidades de tempos em tempos, ou mesmo ao mesmo tempo” (CLARKE, 2008, p. 222). Tais papéis podem ser desempenhados de forma benigna, como a troca de gerentes por turnos em uma grande empresa, ou de forma maligna, no caso de fraude de identidade.

Já Angell (2008) tenta demonstrar como nossa identidade passou a ser configurada como uma propriedade através da sua secção em amostras digitalizáveis pelas tecnologias da informação. Assim, o autor questiona:

O que é essa identidade armazenada? Não é a identidade como tal, mas sim uma simples representação das propriedades sociais, biométricas e comportamentais de cada indivíduo: um proxy que foi capturado por quem possui a base de dados. Uma vez fechado, o proxy é transformado em propriedade e alugado de volta a esse indivíduo para ser usado como prova de identidade. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que a "identidade" do indivíduo está sendo fechada, em alguns sentidos também está se tornando propriedade comum - acessível a qualquer pessoa que possa ganhar entrada (legal ou não) no banco de dados. (ANGELL, 2008, p. 24)

 

Nesse entendimento, nossas “propriedades sociais, biométricas e comportamentais” passam a ser uma espécie de intermediário que se transmuta funcionalmente como nossa identidade, pois cedemos nossa identidade para que não sofrermos o crime de “roubo de identidade”, mas ao mesmo tempo perdemos completamente o controle sobre ela.

Vimos assim como dois autores podem divergir fortemente sobre a existência ou não da identidade nas TICs. Nós assumiremos o lado pragmático do problema na nossa abordagem. Assim, uma identidade realmente existe nas TICs porque influencia de maneira prática na vida dos seus portadores, causando inclusive problemas éticos ou jurídicos no caso da manipulação de dados ou informações sigilosas.

 

2.1 FASE 1: A IDENTIDADE DIGITAL

 

Os cadastros em sites e plataformas digitais públicos ou privados são geralmente a primeira forma de contato em que um usuário gera uma identidade. Não necessariamente isso parte de um ato voluntário. Câmeras de vigilância, por exemplo, podem gravar o percurso de alguém e com isso gerar dados, criando involuntariamente uma identidade digital. No entanto, é voluntariamente que dispomos nossos dados pessoais, muitas vezes sigilosos, em troca de acesso em sites, apps e redes sociais.

Nossos dados se tornam assim nossa chave de acesso para recursos e contatos. Um simples email requer uma boa quantidade de dados pessoais para verificar a autenticidade do usuário. Dados como estes, cruzados com dados de outros usuários, geram bancos de dados úteis para empresas dos mais diversos setores. Desse modo, nossos dados digitalizados formam nossa Identidade Digital. O grau de digitalização vai depender do grau de envolvimento do usuário com as TICs, passando a integrar em sua identidade, além de traços básicos como nome, endereço, etnia, também altura, cor dos olhos, tipo sanguíneo, locais preferidos, gosto musical, trajetos frequentes, etc.

 

2.2 FASE 2 - A IDENTIDADE VIRTUAL

 

Uma das características principais do Virtual é sua capacidade de simulação de um ambiente, o qual requer uma interatividade. Tomaremos o critério interatividade para distinguir a identidade digital do seu passo seguinte evolutivo. A tênue linha que os separa é menos conceitual do que pragmática, dependendo do uso da identidade num momento específico. Assim, em alguns momentos, os dados inertes armazenados em dispositivos digitais formam nossa identidade digital. Em outros momentos, a interatividade do usuário com o meio simula a ação de alguém no meio digital, transformando esses dados em outro tipo de identidade, a Identidade Virtual. Assim, uma identidade virtual simulará certas feições ou características que representam capacidades interativas, como afirma Bailenson (2001) abaixo:

O que é o eu virtual? A resposta para esta questão pode, de fato, ser mais apropriada para os filósofos do que para os cientistas sociais ou da computação. No entanto, nesta discussão, nós operacionalmente definimos o eu virtual como uma entidade virtual que se assemelha a um dado humano junto com umas certas dimensões (por exemplo, rosto, corpo, comportamento, personalidade, etc.). [...] Nós contrastamos o termo "eu virtual" ao termo "avatar", que foi recentemente adotado para descrever uma entidade virtual que serve como um proxy de alguém, porque um avatar não precisa se parecer com o eu junto com qualquer dimensão particular (BAILENSON, 2001, p. 87).

 

O passo evolutivo da fase anterior da identidade para a virtual consiste em que esta identidade pode ser apresentada em forma de perfil ou em forma de avatar, simulando alguma espécie de corporeidade que age sobre um ambiente artificial. O termo perfil parece servir bem tanto quando falamos de grupos, como na expressão “Esse é o perfil dos consumidores da loja x”, como quanto estamos falando de indivíduos, como na expressão “Esse é o perfil de compras do consumidor y na loja x”. Desse modo, um perfil consegue unir o geral e o particular num único termo.

Perfis podem ser traçados o tempo todo a partir de análise de dados. Isso pode ocorrer inclusive de maneira autônoma em ambientes inteligentes. O ambiente passa a responder ao perfil traçado para o usuário a partir dos dados retirados dele. O mesmo termo, porém, ganhou força com o uso de redes sociais como o Facebook, na qual o usuário cria uma conta em que disponibiliza uma gama de dados pessoais de forma voluntária através de postagens, aproximando o perfil à vida cotidiana do usuário.

Já um avatar pode distinguir completamente da identidade pessoal do usuário. O envolvimento do usuário com o ambiente virtual requer um engajamento e dedicação para uma performance satisfatório do usuário naquele terreno, como afirma Childs (2011):

[...] o primeiro estágio é o de aprendizagem do ambiente. Se este limiar é passado, então os usuários vão continuar a trabalhar dentro do ambiente e tornar-se mais familiarizados com ele, no entanto, é apenas quando o segundo limiar é ultrapassado (o "limite do cuidado") que os usuários vão se identificar com seu avatar e vê-lo como uma extensão de si mesmos. Há um terceiro limiar, em que a identidade estendida pode tornar-se distinta da identidade física muitas vezes em resposta a interações sociais e culturais dentro do mundo virtual. Com o tempo, múltiplas identidades e, portanto, múltiplos avatares, podem ser criadas (CHILDS, 2011, p. 24).

 

A possibilidade de uso de múltiplos avatares e também da disparidade do avatar para com a identidade pessoal do usuário é fruto de diversas pesquisas em Psicologia e em Ciências Sociais, o qual não faz parte do nosso escopo.

 

2.3 FASE 3: A IDENTIDADE PESSOAL ONLINE

 

Os ambientes virtuais são comumente vistos como um outro contexto no qual a pessoa pode se expressar, onde envolve os mesmos problemas clássicos concernentes à identidade pessoal, como o problema da liberdade de expressão e da privacidade. Quanto mais tempo o usuário se dedica em interações em plataformas, sites ou apps sociais, maior é a identificação que ele terá com seu perfil ou avatar.

Desse modo, o envolvimento emocional é o elemento que faz com que um perfil ou avatar passe agora a ser concebido claramente como um prolongamento da identidade pessoal no âmbito das TICs. Neste caso, muito mais do que aspectos técnicos ou jurídicos, laços afetivos fazem com que a identificação ganhe status psicológico. Tais laços se estreitam dependendo do tempo e recursos que foram investidos na elaboração e customização de um perfil/avatar. Nesta etapa, perder um perfil/avatar é o mesmo que perder uma parte significativa da sua vida.

Deve-se também distinguir os avatares das identidades online. As identidades online são representações digitais distribuídas de uma pessoa. Humanos conhecem uns aos outros por e-mail, salas de bate-papo, homepages e outras informações na World Wide Web. Consequentemente, muitas pessoas têm uma identidade online, constituída pela representação distribuída de todas as informações relevantes, embora possam não ter um avatar (BAILENSON, 2004, p. 65).

 

Nesta fase, claramente o usuário assume ao seu perfil ou avatar como parte integrante da sua identidade, principalmente no caso em que informações confidenciais foram compartilhadas e depositadas na rede.

Portanto, teríamos assim uma caracterização primária de um modo de encarar a identidade como evolutiva nas TICs. Isso implica que os termos acima não são sinônimos ou intercambiáveis, como sugeriria a literatura corrente. O que há de se notar é que quanto maior o contato, maior o grau de identificação. Na primeira passagem (da digital para a virtual), os dados inertes passam a ser interativos através de perfis ou avatares. Já na segunda passagem (da virtual para pessoal online), o envolvimento com o perfil/avatar gera uma identificação do usuário com a própria criatura, incorporando-a a sua própria história pessoal.

 

2.4 FASE 4 - OS RESTOS DIGITAIS E O FALECIMENTO DO USUÁRIO

 

Avançados serviços tecnológicos buscam prolongar a presença humana mesmo após a morte. Dados do uso do cartão de crédito, serviços de mensagens de texto, perfis virtuais em redes sociais, uso da avatares em jogos de videogame são exemplos dos dados gerados por um usuário que perduram mesmo com seu falecimento. O Facebook transforma, a pedido da família ou responsável, o perfil do usuário falecido num memorial, que pode ser usado para prestar homenagens e relembrar momentos marcantes, por exemplo. Assim, afirma Öhman e Floridi (2017): “[...] como os usuários de redes sociais deixam suas informações online quando falecem, o tipo de existência pós-vida informacional que anteriormente era reservado para celebridades agora também está se tornando cada vez mais disponível para o público em geral” (ÖHMAN; FLORIDI, 2017, p. 4). Analogamente, portanto, como o que sobra do corpo físico é chamado de restos mortais, o que resta do corpo informacional é chamado de restos digitais.

Há dois grandes problemas envolvidos nessa perpetuação do indivíduo nas plataformas digitais. O primeiro consiste em saber qual é o tratamento legal que pode ser dado aos restos digitais de alguém, pois esse banco de dados foi gerado através da interação desse usuário com as tecnologias de informação e comunicação, que são geralmente plataformas privadas que visam ao lucro. Assim, a quem pertence os lucros advindos dos restos digitais? O segundo problema vem das questões éticas que surgem pelo modo como a identidade do usuário pode ser moldada para que se torne mais comercial. Desse modo, as plataformas digitais nas quais estão contidos tais dados podem distorcer a imagem do usuário para que seus amigos e parentes continuem acessando frequentemente aquelas plataformas, sem se importarem com a disparidade entre o usuário real e sua imagem digital distorcida. Desse modo, até onde é ético um serviço moldar a identidade do usuário para obtenção de lucros?

Assim, quando morremos deixamos restos digitais, uma espécie de corpo informacional e este corpo precisa ser tão bem tratado como o corpo físico que o usuário deixou, como sugerem Öhman e Floridi (2017):

Os restos digitais dos mortos não podem ser explorados em termos de lhes ser negada sua parte legítima de lucro, mas, no entanto, merecem o respeito digno de um corpo humano (cadáver) - não um mero instrumento de geração de receita. Portanto, devem ser protegidos como tal. Os mortos, assim como os vivos, têm o direito de não serem alienados de si mesmos, o direito à dignidade humana. Assim como um cadáver humano tem o direito de ser tratado com dignidade, também temos nossos restos digitais” (ÖHMAN; FLORIDI, 2017, p. 12).

 

Dentro da nossa abordagem, pode-se entender que é possível passar de uma das fases anteriores direto para os restos digitais, como o falecimento do usuário. Por exemplo, alguém que tem sido constantemente registrado através de câmeras de vigilância tem parte da sua identidade, através do seu corpo, digitalizada, possuindo, portanto, uma identidade digital, mesmo que não tenha consciência disso. Com seu falecimento, esse conjunto de imagens registradas passam a ser considerados seus restos digitais, possuindo informações valiosas como a hora em que ele saia de casa, quais tipos de roupa usava, amizades, etc. O mesmo acontece com quem tem graus mais avançados de identidade nas TICs. Quanto maior a interatividade, maior o corpo informacional deixado como legado.

 

3 E TUDO SE DISSOLVE EM INFORMAÇÃO...

As abordagens sobre o problema da identidade pessoal desde Locke sugerem que a identidade consiste na continuidade da memória. Assim, a identidade é abordada a partir de estados ou eventos mentais. A dificuldade nesse estudo vai esbarrar na fronteira do que é considerado mental e do que é considerado físico, com o problema clássico da relação mente-corpo. O uso massivo das TICs permitiu enxergar o problema da identidade por um novo ângulo. Com a assunção básica que não podemos atribuir (ao menos até o momento tecnológico) estados ou eventos mentais às identidades que criamos online, o arcabouço mentalista teve que ser deixado de lado e outro conceito fundamental tomou seu lugar: o conceito de informação.

Juntamente com o aparato cognitivista, uma abordagem substancialista da identidade nas TICs também se tornou obtusa. Ficou claro a estranheza de tratar a identidade, formada por informações espalhadas em diversos locais na rede, como algo que possui um “núcleo duro”. A identidade nas TICs seria muito mais semelhante a um feixe de informações que se entrelaçam de maneira não uniforme, não possuindo um centro no qual se possa referenciar.

Hongladarom (2016) afirma que a identidade nas TICS é composta por informação e não possui um epicentro, assim a identidade pessoal segue o mesmo modelo que a identidade nas TICs

O complexo mente-corpo é mais parecido com uma cebola, que não produz nada dentro além das camadas concêntricas do mesmo. Isso, ao contrário, não significa que não haja eu, mais precisamente nenhum eu a que sempre nos referimos sempre que usamos o pronome da primeira pessoa. Portanto, o próprio eu é informativo, de acordo com a postura budista; não é meramente algo construído a partir de um conjunto de instruções ou informações, embora possa ser prontamente considerado como tal. Como funciona como um unificador de experiências ou um ponto de apoio que une a narrativa para formar um todo coerente (HONGLADAROM, 2016, p. 73)

 

A identidade é informacional, abrangendo do analógico ao digital, sendo portanto, uma única identidade, sem barreiras mentais ou físicas a delimitando. Por isso, a compreensão da identidade pessoal como fundamentalmente informacional implicaria automaticamente a implicação da identidade online com informacional também. Vemos assim, que a compreensão da identidade online influenciou e reformulou a compreensão da identidade pessoal, alargando seus horizontes para além a dicotomia mental-fisico.

Isso só é possível se o eu offline e sua contraparte online puderem ser considerados contínuos um com o outro. Se seguirmos o argumento sobre o eu como informacional que propus antes, então um caminho pode ser encontrado para unir os dois tipos de eu e ver como eles são realmente contínuos. Se o eu é, em última instância, informacional, então, como o eu online é obviamente informacional (afinal, se o eu é informacional, então o eu online não pode ser mais do que informacional também), então qualquer tipo de análise que funcione com o eu offline deve trabalhar com o eu online também (HONGLADAROM, 2016, p. 108)

 

Nós, no entanto, acreditamos que simplesmente dissolver as identidades em informação obscurece a compreensão de fenômenos como, por exemplo, o envolvimento do usuário com seu perfil através da interatividade com plataformas virtuais. Analogicamente, seria como tentar explicar a amizade entre duas pessoas apenas pelo nível atômico dos corpos das pessoas envolvidas.

O que nos parece é que algumas características da identidade nas TICs são como fenômenos supervenientes que não se esgotam com a explicação dos seus elementos de base. Uma explicação completa de como a informação veicula a identidade não explica porque nós aderimos aquelas identidades às nossas. O elemento chave, por enquanto, é a simulação interativa a qual o virtual nos conduz. Sem ela dificilmente a criação de ricas identidade nas TICs chegaria ao patamar atual.

Portanto, tentar explicar as identidades nas TICs apenas como conceito de informação negligencia facetas do virtual que são essenciais para a criação, manutenção e aprimoramento das identidades online.


 

4 CONCLUSÃO

 

Vimos que os diversos termos relativos à identidade nas TICs podem ludibriar pesquisadores, usuários e desenvolvedores da área quanto aos seus significados. É fácil achar que são intercambiáveis e que podem ser utilizados impunimente em diversos contextos sem prejuízo conceitual. Nós, no entanto, acreditamos demonstrar que tais termos nem são idênticos, como alguns deles possuem contextos específicos, definidos a partir do grau de envolvimento dos usuários com as tecnologias.

Deste modo, elencamos quatro expressões (Identidade Digital, Identidade Virtual, Identidade Pessoal online e Restos Digitais), que seguem uma sequência progressiva de uso, para compreender como a identidade se dá e quais problemas cada fase envolve.

Diferente da tendência atual, acreditamos que “dissolver” a identidade no termo ‘identidade informacional’ ou correlatos torna nublado a especificidade que cada fase da identidade possui atualmente e não ajuda a entender o peso que a identidade nas TICs exerce sobre nosso cotidiano.

Provavelmente mais adiante, com progresso tecnológico dos ambientes identidades e acrescente transformação do analógico no digital, as pessoas cotidianamente se referirão as suas identidades nas TICs simplesmente com o termo ‘identidade’, sem qualquer distinção conceitual das suas partes ou fases digitais, pois finalmente temos atingido o patamar da indistinção radical entre o analógico e o digital.


 

REFERENCIAS

 

ANGELL, Ian. As I see it: enclosing identity. Identity in the Information Society, v. 1, n. 1, 2008, p. 23-37.

 

BAILENSON, Jeremy N. Avatar. In: BAINBRIDGE, William S. (Ed.). Berkshire encyclopedia of human-computer interaction. Great Barrington: Berkshire Publishing Group, 2004. p. 64-68.

 

BAILENSON, Jeremy N.; BEALL, Andrew C.; BLASCOVICH, Jim; RAIMUNDO, Mike; WEISBUCH, Max. Intelligent agents who wear your face: Users’ reactions to the virtual self. In: INTERNATIONAL WORKSHOP ON INTELLIGENT VIRTUAL AGENTS, 3., 2001, Madrid. Proceedings… Berlin: Springer Verlag, 2001. p. 86-99.

 

CLARKE, Roger. Dissidentity. Identity in the Information Society, v. 1, n. 1, 2008, p. 221-228.

 

HONGLADAROM, Soraj. The Online Self: Externalism, Friendship and Games. New York: Springer, 2016.

 

ÖHMAN, Carl; FLORIDI, Luciano. The political economy of death in the age of information: a critical approach to the digital afterlife industry. Minds and Machines, Dordrecht, v. 27, n. 4, 2017, p. 639-662.

 

PARKINSON, Brian; MILLARD, David E; O’HARA, Kieron; GIORDANO, Richard. The digitally extended self: A lexicological analysis of personal data. Journal of Information Science, Amsterdam, v. 44, n. 4, 2018, p. 1-14.



[1] Doutorando em Filosofia pelo programa de Doutorado Integrado UFPE-UFPB-UFRN. Mestre em Filosofia pela UFPE em 2014. Graduado em Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco em 2007. Professor de Filosofia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba desde 2014. Líder do Grupo de Pesquisa Mente, Tecnologia e Informação do IFPB. Atua nas áreas de Filosofia da Mente, da Linguagem e da Informação.