A POTENCIALIDADE DA IMAGEM FOTOGRÁFICA COMO MEDIADORA

questões epistemológicas

Alzira Tude de Sá[1]

Universidade Federal da Bahia

alziratude@gmail.com

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Resumo

Este artigo discorre sobre as proposições do homem de ultrapassar o que lhe é visível, de apropriar-se da informação por meio da mediação de sujeitos e dispositivos, apontando para questões epistemológicas que nos séculos XX e XXI têm sido levantadas sobre a imagem fotográfica. Traz conceitos e teorias que, no campo da Ciência da Informação, voltadas para a mediação da informação e seus suportes, dentre eles a fotografia, são revistas por força de modalidades e novas práticas de comunicação possibilitadas pelas tecnologias. Aborda aspectos da relação mantida pela fotografia com a cultura, sua função e usos sociais. Apropriando-se do método heurístico, elege como objeto empírico imagens de objetos da casa do escritor Jorge Amado, registradas no livro Rua Alagoinhas 33, Rio Vermelho. As etapas de identificação, numeração e resumo possibilitaram a desmontagem visual das imagens, a criação de grupos temáticos e a sua remontagem verbal, comprovando que as imagens fotográficas, como dispositivo e fonte de informação, podem ser consideradas um elemento de mediação, cuja leitura e interpretação sinalizam para as relações socioculturais construídas pelos sujeitos e viabilizam a criação de novas narrativas.

Palavras-chave: Mediação da informação. Fotografia - Mediação cultural. Jorge Amado - Relações socioculturais.

the potential of the photographic image as a mediator

epistemological issues

Abstract

This article discusses the propositions of man to overcome what is visible to him, to appropriate information through the mediation of subjects and devices, pointing to epistemological issues that, in the 20th and 21st centuries have been raised about the photographic image. It brings concepts and theories that, in the field of Information Science, focuses on the mediation of information and its supports, among them photography, magazines due to modalities and new communication practices made possible by technologies. It addresses aspects of the relationship maintained by photography with culture, its function and social uses and appropriating the heuristic method, it chooses as an empirical object, images of objects from the house of the writer Jorge Amado, recorded in the book Rua Alagoinhas 33, Rio Vermelho. The identification, numbering and summary steps enabled the visual disassembly of the images, the creation of thematic groups and their verbal reassembly, proving that the photographic images, as a device and source of information, can be considered a mediating element, whose reading and interpretation signal the socio-cultural relations built by the subjects and enable the creation of new narratives.

Keywords: Information mediation. Photography - Cultural mediation. Jorge Amado - Sociocultural relations.

1  INTRODUÇÃO

Não se pode prescindir do entendimento acerca das imagens fotográficas como mediadoras da cultura sem nos debruçarmos sobre os tempos da fotografia, antes e depois da sua cultura, dos efeitos culturais provocados pelas sucessivas revoluções tecnológicas das quais foi objeto, demonstrativo da intermediação do dispositivo fotográfico entre o homem e a natureza, seus costumes e sociabilidade, sobre seu realismo decantado e função documental. Este é um percurso que se fez necessário para compreender as mudanças perceptivas da sociedade do século XIX, quando do advento e florescimento da fotografia e sua técnica, e que aponta para questões epistemológicas que, no século XX, foram levantadas e tem perseguido a trajetória da imagem fotográfica. Neste trabalho propomos analisar, como um elemento de mediação cultural, as imagens fotográficas de objetos, obras de artes e mobiliário da casa do escritor Jorge Amado, registradas no livro Rua Alagoinhas 33, Rio Vermelho, em especial da sua sala de visitas, como representações que podem apontar para as relações sociais e culturais construídas pelo escritor. Buscamos um quadro referencial amplo que pudesse abordar o tema sob pontos de vistas diferenciados, tangenciando aspectos da relação que a fotografia vem mantendo com a cultura, sua função, o papel, a apropriação e os usos sociais que das imagens fotográficas têm sido feitos.

Traçamos um breve percurso do cenário e das proposições do homem de ultrapassar o que lhe é visível, de apropriar-se da informação por meio da mediação de sujeitos e dispositivos, centrados nas óticas de Benjamin (1994a, 1994b), Bourdieu e colaboradores (2003), Bártolo (2007), Medeiros (2010), Barthes (2012) e Didi-Huberman (2012), que sustentam os conceitos sobre as práticas e usos sociais da fotografia, as mudanças advindas da reprodutibilidade e os fatores que passam a interferir na sua produção, significação e recepção. Como aportes teóricos norteadores da pesquisa, utilizamos estudos desenvolvidos por pesquisadores da Ciência da Informação no que tange à mediação da informação, os quais vêm ressaltando a imagem fotográfica e sua potencialidade como mediadora. Por se destacarem nesse cenário, elegemos o pensamento dos autores Manini (2002), Davalon (2004), Frohmann (2006), Almeida Júnior (2009), Rodrigues e Grippa (2011), Henriette Gomes (2014) e Marco Antônio de Almeida (2014).

Partimos do princípio de que a fotografia como medium entre o sujeito e o real tem sido alvo de longas e históricas discussões quanto à veracidade desse intermédio desde que teorias, discursos, polêmicas perpassam questões que põem em dúvida, que desconfiam da verdade de um realismo decantado a ela atribuído, que colocam em xeque a subjetividade, a figura do fotógrafo, a luta por ele travada com uma exterioridade que lhe é adversa. Centramo-nos também em estudos que salientam aspectos ideológicos e culturais, realistas e miméticos da fotografia, mas que a evidenciam como produto histórico e culturalmente construído. Através deles reconhecemos o potencial da imagem fotográfica no conjunto de mediadores participantes do processo de construção do conhecimento: a mediação não mais como um processo facilitador de travessias entre a realidade e o sujeito, como uma prática universalizante, mas como um processo em que as significações e os sentidos são gestados pelo compartilhamento objetivo e intersubjetivo dos sujeitos entre si, pelas técnicas, tecnologias e dispositivos. Neste caso, a análise das imagens fotográficas resultou do compartilhamento objetivo e intersubjetivo estabelecido entre o sujeito/fotógrafo e a realidade representada, objetos e obras de arte da casa da Rua Alagoinhas, 33 e a nossa forma de ver e pensar essa realidade. Pela relação estabelecida e a partir dela foram gestadas as significações dadas às imagens fotográficas analisadas.

 

2  “A REVELAÇÃO NUNCA SE DÁ SEM MEDIAÇÃO”

Quando Medeiros (2010, p. 7) investiga a relação que o ser humano mantém com a imagem fotográfica, a tentativa teórica de desnudá-la do seu caráter realista, ideológico e cultural, ela elenca autores que, ao longo do tempo, a isso se propuseram. Afirma que muitos deles, tais como Barthes, Burgin, Dubois, Sekula, Tagg, Krauss, Schaeffer, dedicaram-se, no seu tempo, a apontar para a falsidade do realismo fotográfico, o seu lado cultural e ideológico, as suas convenções. Atenta a autora para o fato de que a fotografia, por ser uma linguagem sem código tal como a considerava Barthes (2012), insinua-se no seio da cultura moderna como suporte de uma equação entre a produção da verdade, a constituição de um resíduo epistêmico e a existência de certas tecnologias. Medeiros (2010) ainda chama a atenção para o fato de que muito ainda teria de ser feito para que se chegasse à compreensão cultural da fotografia tal qual um conjunto diversificado de práticas relacionadas a mudanças epistemológicas, perceptivas, sociais e mesmo psicológicas, designadas modernas. Práticas atreladas à compreensão de que as imagens fotográficas não são apenas a coisa em si, mas objetos mutantes, discursivos, inseridos na cultura, representativos da história e da memória.

As imagens fotográficas da casa da Rua Alagoinhas, 33, não são vistas nesta investigação apenas como a coisa em si, mas como um espaço que revela o enlace possível entre informação e cultura. No entanto, não estará desatrelado da imagem fotográfica e da sua cultura o olhar do sujeito que a captura, bem como o seu caráter mecânico, já que há sempre um fator que se coloca entre a imagem e o significado que a ela é dado: um dispositivo, um aparelho, tal como o denomina Flusser (2011), além do sujeito que o manipula. Ao se executar o ato fotográfico através de um aparelho que se interpõe entre o sujeito/fotógrafo e o mundo fotografado, ele acaba por evidenciar a disjunção entre sujeito e objeto, por deixar à mostra a intermediação técnica estabelecida entre eles, o que vem expondo, histórica e socialmente, na opinião de Medeiros (2010, p. 8) “[...] na sua nudez, a ideia de verdade associada à imagem mecânica.”

Todas essas reflexões giram em torno de um desejo, da ânsia do homem, ao longo do tempo, pela manifestação do invisível, pela sua nudez. A despeito dessa evidência, Bártolo (2007, p. 157, grifo nosso), que investigou sobre as mediações na cultura visual da modernidade, acaba por afirmar que “[...] a história dos media é, em grande medida, a história desse anseio [...] no qual a revelação nunca se dá sem mediação e onde o saber se constrói a partir da sua própria interpretação.” Se a revelação não ocorre sem mediação, o medium é aquele que dá a ver o invisível, que lhe permite ser manifestado, é aquele que permite que o oculto entre em cena e se manifeste, mediunicamente, por ser esse o caráter fantasmático dos meios, sejam eles novos ou velhos. Bártolo (2007) aponta para as profundas modificações que ocorreram, desde a cultura medieval, advindas do desenvolvimento da ciência instrumental, haja vista a invenção e o uso de instrumentos mediadores então forjados, os quais permitiram ao homem uma maior acuidade sobre o mundo: as lunetas e os aparelhos ópticos os faziam ver o mundo do infinitamente pequeno e infinitamente distante, bem como os aparelhos médicos, os alicates, escalpelos, pinças permitiam fosse possível a devassa do olhar sobre o interior dos corpos. Operados pelo olho e pela mão do homem, na modernidade, esses instrumentos/dispositivos e seu aperfeiçoamento foram permitindo a revelação/mediação não só do que se encontrava ao redor e acima do homem, mas misteriosamente o que se encontrava dentro dele. Permissão que, sob o ponto de vista de Bártolo (2007, p. 159), os fazia funcionar como “[...] agentes activos de modificação da linguagem; instrumentalizavam e funcionalizavam os comportamentos quotidianos, funcionando como instrumentos mediadores e fornecendo linguagem mediadora da nossa relação com a sociedade.” Essas invenções acabam por tornar-nos herdeiros de uma cultura científica alicerçada na observação e de toda uma cultura sob o domínio da visibilidade, na qual é agregado mais valor ao que está exposto, em cena, revelado. E são os mediuns, por não estar o agenciamento da mensagem desatrelado da realidade, visível e iluminada, que investem no poder de nos confrontar com ela, de espantar-nos diante da busca e do encontro, às vezes inesperado, da revelação do que jaz submerso no real, através de suportes que se supõe não sejam semioticamente neutros.

Historicamente, os mediuns causavam espanto, seja através das imagens projetadas pela câmara obscura, pelas fantasmagorias da lanterna mágica, pelas imagens técnicas, pela fotografia. Intermediavam o visível e o invisível, o ausente e o presente, espanto que também era causado pela tomada de consciência da impossibilidade do objeto identificado não se dar por inteiro, “[...] por saber-se que há no que se vê algo que se esconde, que se deve conservar escondido, que se deve saber escondido, permitindo admirar no que se manifesta o que se oculta”, como nos adverte Bártolo (2007, p. 163). De forma assertiva, essa proposição é encontrada e defendida por Michel Foucault (1992) na introdução do livro As palavras e as coisas, e acatada por Didi-Huberman (2012) na obra Imagens apesar de tudo. São pensadores que advogam que, em toda produção que se queira testemunhar, em cada ato de memória que se queira preservar, a linguagem e a imagem, independente das suas limitações lacunares, se solidarizam, se complementam por que “[...] por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aquele que as sucessões da sintaxe definem.” (FOUCAULT, 1992, p. 25).

Pela combinação entre linguagem e registro, a imagem fotográfica figura como objeto do conhecimento, como mediadora entre o homem e o mundo, dotada de singularidade e de universalidade em relação às demais representações imagéticas que fazem parte do universo iconográfico e textual, apesar da noção de imagem, historicamente, confundir-se com a luta incessante de “mostrar o que não se pode ver.” Didi-Huberman (2012), quando descreve e escreve sobre quatro fotografias tiradas por prisioneiros do campo de concentração de Auschwitz, considera que, na verdade, há coisas que não podemos ver, mas que é preciso, muitas vezes, que sejam vistas; e as imagens, apesar de tudo, por mais lacunares e relativas que sejam, em seu conjunto, abrem caminhos que visam dar a ver o que nos escapa. Nesse sentido, afirma que toda história das imagens pode ser contada como um esforço para dar a ver a superação visual das oposições entre o visível e o invisível. Na perspectiva do autor,

Não podemos <ver o desejo> enquanto tal, mas os pintores souberam utilizar o escarlate para o mostrar; não podemos <ver a morte>, mas os escultores souberam modelar o espaço como se fosse a porta de um túmulo que <nos olha>; não podemos <ver a palavra>, mas os artistas souberam construir as suas figuras como uma série de dispositivos enunciativos; não podemos <ver o tempo>, mas as imagens criam o anacronismo que nos mostra o seu trabalho; não podemos <ver o lugar> mas as fábulas tópicas inventadas pelos artistas mostram bem- por meios simultaneamente sensíveis e inteligíveis – o poder de uma <evidência>. (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 171)

A tentativa de ultrapassagem entre o visível e o invisível fez com que os homens criassem meios, instrumentos e dispositivos, “relógios de ver”, como os denomina Barthes (2012, p. 23) e, através de uma cultura técnica instituída, esses meios acabaram por impor novas formas de reinterpretação do mundo, diferentes modalidades de saberes que passaram a interferir e a gerir as relações e a mediá-las tecnicamente. Na perspectiva de Didi-Huberman (2012), as imagens fotográficas simulam a coisa a qual não podemos ter um acesso direto ou que, por razões quaisquer, não nos foi facultada uma aproximação. Retornando a Barthes (2012, p. 72) quando ele analisa a relação da foto com o seu referente, a dupla posição conjunta de realidade e passado, instaurada numa imagem fotográfica, reconhece que a referência é a ordem da fotografia, que o noema da fotografia é isso foi”, que o efeito que ela produz não se limita a trazer de volta o que deixou de existir, mas sobretudo prova que o que vemos existiu num dado tempo e numa certa geografia. Destaca-se para o autor, neste contexto, a presença do fotógrafo que, no processo mediador, não é eximida e a sua vidência consiste em “ver”, em “estar lá”. Movimenta-se, esse sujeito, em busca da sua presa, não por uma pradaria aberta, mas na floresta densa da cultura, como prognostica Flusser (2011) quando reflete sobre o papel do fotógrafo e a decisão da tomada ao apertar o “gatilho” e consumar o gesto fotográfico.

Partimos assim do pressuposto de que a imagem fotográfica é caracterizada, na sua constituição, por um sistema de códigos culturais eleitos, sistematizados e apreendidos pelo fotógrafo no contexto sociocultural representado. Como fonte de informação, considerada não só pelo conjunto de sentidos que desencadeia como também pela capacidade mimética de representar o real, à fotografia é atribuído o caráter probatório de atestar o que foi capturado pelo dispositivo, o que existiu. Dubois (2012) defende a tese de que o dispositivo fotográfico, como todos os dispositivos tecnológicos do olhar, é uma tentativa teórica e técnica da qual o sujeito se mune para realizar a articulação de dois grandes princípios metafísicos: o cogito cartesiano e o percept de Berkeley. O primeiro princípio coloca a existência do sujeito na atividade de pensar e o segundo o colocaria do lado da percepção. Só o pensar e o ser visto não completariam esse jogo. Acrescenta o autor mais um princípio, o acreditar, por associar-se à questão do ver, que por sua vez está ligado à questão da crença. Exemplifica-a com as máximas: “É preciso ver para crer”, “só acredito no que vejo”, nas quais a visibilidade é tomada qual fundamento da credibilidade. A fotografia seria então a conciliação do pensar e do ser visto como definidor (pela negativa) da categoria do sujeito, enquanto o “ver, pensar, acreditar” funcionariam como operadores fundamentais, a partir dos quais questionamos os meios e os efeitos da representação.

Se para Barthes (2012) o nome do noema da fotografia é isso foi, se para Dubois (2012) na fotografia se concilia o pensar e o ser visto como categoria do sujeito e o acreditar se impõe como uma questão que interfere nos efeitos da representação, para nós os registros fotográficos da casa da Rua Alagoinhas, 33, Rio Vermelho, não negam que a casa, os objetos, artefatos foram, existiram, estavam lá. Que a casa tenha sido habitada pelo escritor Jorge Amado e sua família e que as imagens fotográficas tenham sido produto do trabalho de um fotógrafo. Ver, pensar, acreditar. Ademais, com base no que diz Medeiros (2010) sobre a dimensão pulsional e fantasmática desencadeada por toda e qualquer fotografia, em virtude do poder de convicção que convoca, procuramos reconstruir, reenquadrar, desocultar e mesmo reinventar a realidade a que ela, fotografia, supostamente se refere. Essa pretensão não deixou de levar em conta o que dizem Bourdieu e colaboradores (2003) quando analisam os usos sociais da técnica fotográfica, na obra Un art moyen: essay sur lês usages sociaux de la photographie. Os autores argumentam que os valores estéticos, as ideologias, os valores éticos, acabam por definir o que deve ou o que é fotografável, bem como por determinar o perfil que o sujeito ou grupo social predispõe que seja exposto. Para além do uso dos dispositivos técnicos do qual decorre o ato de captura da imagem, a escolha do objeto que se quer fotografar corresponde ao valor que a esse objeto é agregado, ao valor que lhe é dado pelo sujeito ou grupo social.

Para Bourdieu e colaboradores (2003, p. 24, tradução nossa) “O ato fotográfico acaba por outorgar ao que é fotografado uma promoção ontológica, em cuja dignidade o motivo é fixado, conservado, comunicado, exibido, admirado.”[2] Vendo na prática fotográfica uma função familiar e uma função de integração, atribuem à fotografia a capacidade de solenizar a vida e os acontecimentos, bem como reafirmar o status social, a legitimação cultural de determinado grupo. Considerar as imagens fotográficas um elemento de mediação da figura do escritor Jorge Amado impôs-nos levar em conta conceitos sobre a função social da fotografia, emitidos e justificados por Bourdieu e colaboradores (2003), quando atentam para as fantasias individuais e a subordinação dos grupos aos esquemas de percepção ditados e por eles apreciados. Ao defender essa tese fazem essa observação particularmente relevante:

[...] Porque ela possui a intenção de fixar, quer dizer de solenizar e eternizar, a fotografia não se pode confiar aos acasos da fantasia individual e, pela mediação do ethos, interiorização das regularidades objetivas e comuns, o grupo subordina esta prática à regra coletiva, de tal modo que a mais simples fotografia exprime, além das intenções explicitas daquele que a fez, o sistema dos esquemas de percepção, de pensamento e de apreciação comum a todo um grupo[3]. (BOURDIEU et al., 2003, p. 24, tradução nossa)

Vale a pena trazer à cena outra questão central: o reconhecimento da possibilidade dada pelas imagens fotográficas se constituírem em reproduções técnicas, mediadas por um dispositivo cuja existência não está desatrelada do fato histórico, ou seja, da possibilidade que um dia lhes foi facultada de serem reproduzidas tecnicamente. Sobre esse acontecimento Benjamin (1994) escreveu o antológico artigo A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, no qual profecia a tendência das massas de superar o caráter único dos objetos através de sua reprodutibilidade, fruto da histórica mudança na percepção e sensibilidade da sociedade, ocorrida no final do século XIX e início do século XX. Analisa a perda da aura, a desvalorização do aqui e do agora, a ausência da materialidade do objeto, o anseio das massas pela proximidade e superação do caráter único das coisas, questões firmadas como elementos que desencadearam uma valorização da exposição da obra de arte, em detrimento do valor de culto que lhe era atribuído. Atrelada à febre pela reprodução da obra de arte em série, à fotografia foi agregada uma potencial capacidade mediadora, comprovadamente apregoada por Benjamin (1994, p. 168) quando afirma que os detalhes de uma obra de arte, de uma escultura ou mesmo de um edifício, são muito mais visíveis na fotografia que na realidade, que a olhos vistos. Com isso acaba por elevar a fotografia a um status de mediadora entre a realidade e os homens e dá o devido valor à sua capacidade de trazer à cena o real, com uma acuidade como nunca dantes havia sido possível. Quanto à capacidade de reprodução da imagem fotográfica, segundo Benjamin (1994, p.168), esta aproxima a obra do indivíduo, intermedia a relação que se estabelece entre a realidade e o sujeito, capacidade que tanto pode ser sob a forma da fotografia, quanto sob outras formas. O advento da primeira técnica de reprodução verdadeiramente revolucionária - a fotografia - acaba por assumir um papel importante ao favorecer que o idêntico sempre retorne, ao viabilizar, através da sua reprodutibilidade técnica, que a unicidade, característica da obra de arte, seja perdida. Nesse sentido, o objeto reproduzido se destaca do domínio da tradição: ao espectador é facultada a possibilidade de aproximação e, desse modo, a de atualizá-lo. Na perspectiva de Benjamin (1994), à medida que a fotografia viabiliza a reprodução, substitui a existência única da obra por uma existência serial, e à medida que essa técnica permite a reprodução vir ao encontro do espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido.

Essa concepção benjaminiana de aura, na visão de Manini (2002, p. 69), tem a ver com o princípio da distância possível entre registro fotográfico e referente, desde quando a aura que reveste a fotografia se deve, exatamente, à distancia existencial, espacial e temporal que ela mantém com o referente, tanto passada, quanto presente. A ideia de aura atrelada ao registro fotográfico, defendida pela autora pode ser entendida pelo fato de o documento fotográfico trazer em si o tempo e o espaço, por aproximar o que está longe, por ser representante de algo que existe, mas está distante. Ainda quanto à aura, no que tange aos registros fotográficos, ela está associada ao grau de prestígio da coisa retratada, ao valor que lhe é agregado, à consideração que lhe é atribuída, ao que foge ao trivial. Fatores condicionantes do processo de mediação, da relação estabelecida entre sujeito e realidade, dispositivo e mundo. Dessa forma, Miranda (2005, p. 53) adverte que “[...] só se permite a fotografia do trivial caso este seja especialmente preparado para a fotografia: a casa deve estar arrumada, decorada, como se fosse um dia de festa, momento eletivo da prática fotográfica.” O depoimento do fotógrafo Adenor Gondim, autor das imagens fotográficas da casa da Rua Alagoinhas, 33, é assertivo quanto à escolha do que, deveria ser fotografado. Um roteiro foi elaborado pela família de Jorge Amado, no entanto, da profusão de objetos que povoam os espaços da casa, os ângulos e enquadramentos foram escolhidos pelo fotógrafo que, além da técnica e de critérios estéticos, ideológicos, subjacentes ao ato da tomada, representaram a realidade que lhe foi apresentada. A tentativa da família ao definir um roteiro só vem reafirmar a premissa de que a fotografia, como uma prática social ao ser exercida, restringe-se ao julgamento do grupo e, ademais, que só é fotografável aquilo que ao grupo aprouver.

Outra interferência no processo, tão bem explicitada por Bourdieu e colaboradores (2003), refere-se à atitude do grupo familiar quanto à visibilidade e à divulgação do que foi fotografado. Assim como definiram as tomadas que deveriam ser feitas na casa, seus donos elegeram as imagens que, num determinado suporte e como documentos, poderiam integrar o livro Rua Alagoinhas 33, Rio Vermelho. Distanciadas do aqui e do agora, da materialidade do objeto, mas de posse do objeto reproduzido, as imagens da casa da Rua Alagoinhas, 33, “[...] arrumada, decorada, como se fosse um dia de festa” (MIRANDA, 2005, p. 53), chegaram até nós num tempo em que as relações estabelecidas entre os sujeitos já se instituíam dissociadas do ambiente físico, em que a informação é disponibilizada através dos mais variados meios e meios de comunicação. A tradição perdida, sobre a qual Benjamin (1994) se refere, tem sido revivida por meio da interligação de processos que vêm facilitando que uma troca simbólica seja mediada, através da materialização da informação, nos seus mais diferentes suportes.

 

Mediação da informação x mediação cultural

Faz-se pertinente, neste momento, trazer Frohmann (2006) e o que pensa sobre o caráter social, material e público da informação. Ele discute e aprofunda estudos sobre a sua materialidade, elegendo quatro campos de força que lhes caracterizam na contemporaneidade: institucional, tecnológico, político e cultural, forças que se configuram características sociais e públicas impressas aos documentos. As imagens fotográficas, consideradas como suportes que materializam a informação e como documento, desde Paul Otlet, em 1934, em seu Tratado de Documentação, não estão ausentes dessas considerações. No artigo O caráter social, material e público da informação, Frohmann (2006) retoma a ideia de que o conceito de materialidade traz uma compreensão mais rica do caráter social e público da informação. Na leitura que Ortega e Lara (2010) fazem do artigo opinam que o autor imprime um caráter de informatividade aos fatores que devem ser levados em conta para compreender-se como os documentos tornam-se informativos. Tais fatores são representados por categorias: materialidade, lugar institucional, circunstância histórica e disciplina aos quais os documentos são sujeitados. Em consonância, e inspirado no discurso foucaultiano, Frohmann (2006) acaba por creditar às práticas documentárias institucionais o peso, a massa, a inércia e a estabilidade que materializam a informação, fatores cuja interferência não deixa de configurar fatalmente a vida social. Desta forma, como produto social, o documento fotografia situa-se entre a materialidade dos objetos físicos e a imaterialidade dos objetos ideais, estando sua existência atrelada e dependente da crença que os sujeitos lhes creditam.

Nesse momento, quando a interferência na vida social é preconizada por Frohmann (2006), faz sentido que retornemos a alguns conceitos de Bourdieu e colaboradores (2003) sobre os seus usos sociais. Os autores levam em conta e consideram o lugar institucional, a circunstância histórica, a disciplina, os ritos, as distinções que legitimam os grupos sociais, fatores que interferem e condicionam a prática e o uso da imagem fotográfica. Tanto é que afirmam: “[...] a significação e a função conferidas à fotografia são diretamente ligadas à estrutura do grupo, mais ou menos a sua grande diferenciação e, sobretudo, a sua posição na estrutura social”.[4] (BOURDIEU et al., 2003, p. 27, tradução nossa) Os fatores elencados pelos autores citados e que advêm de diversas áreas do conhecimento apontam para a relação estabelecida entre documento, fotografia, informação e cultura e para a sua interferência na vida social dos sujeitos e dos grupos, que pode ser atribuída às mudanças nos processos mediadores da informação, oriundas do desenvolvimento da técnica, da tecnologia e sua ingerêncianos relacionamentos sociais. No campo da Ciência da Informação, os olhares têm se voltado para as questões epistemológicas que envolvem a mediação da informação. Releituras e revisões de antigas formas têm sido desenvolvidas por força de modalidades e práticas de comunicação no cotidiano dos sujeitos, possibilitadas pela inserção das novas tecnologias. A mediação, nesse contexto, não mais é vista simplesmente como ponte facilitadora de uma travessia entre a realidade e o sujeito, não como uma prática universalizante. Segundo a ótica dos pesquisadores Moraes e Almeida (2013), a informação passa a se relacionar muito mais aos esquemas culturais de quem a disponibiliza do que aos esquemas de quem a busca.

Almeida Júnior (2009) vê a fonte de onde emanam as mediações culturais-informacionais, no processo de produção, circulação e apropriação da informação. Considera que as ações sociais e os conteúdos simbólicos resultam das conexões entre os sujeitos e que os grupos sociais são os fomentadores dessas mediações. Ao ressaltar a interferência do sujeito no processo de mediação, remete-nos o autor à questão da intencionalidade que subjaz à produção e recepção da informação, em oposição à pretensa neutralidade e imparcialidade que, “[...] imersa em ideologias, em nenhuma hipótese é desnuda de interesses, sejam econômicos, políticos, culturais, etc.” (ALMEIDA JÚNIOR, 2009, p. 93) Nesse diapasão, o mesmo se dá com o ato fotográfico: não podemos eximi-lo da intencionalidade que subjaz a todo enquadramento, movida pelos fatores elencados pelo autor. Na perspectiva de Gomes (2014), o processo de construção do conhecimento depende da interação do acervo simbólico que é transmitido pelos suportes e ambientes que preservam e dão acesso aos conteúdos informacionais. Esta compreensão levou a autora a considerar que toda experiência humana está subordinada às práticas de comunicação e da transmissão cultural e que estas se constituem no locus da mediação. Comungam esses autores da ideia de que, distanciado das interações estabelecidas através do contato direto, face a face, pela mediação dos fatos e acontecimentos, o avanço da técnica acabou por instituir não só outras modalidades de transmissão da informação, como também novas formas de mediação. A participação efetiva das técnicas no processo de mediação da informação aponta para a dependência existente nas relações estabelecidas entre os sujeitos do domínio dos dispositivos tecnológicos, das questões ambientais, dos instrumentos e técnicas. Nessa perspectiva, é no processo de compartilhamento objetivo e intersubjetivo estabelecido entre os sujeitos que as significações são gestadas.

Novas modalidades de transmissão da informação passaram a interferir e a modificar as relações sociais estabelecidas pelos sujeitos quando “[...] deixaram de representar simples artifícios de transferência de conteúdos informacionais, e passaram a se constituírem em dispositivos geradores de sentidos”. (GOMES, 2014, p. 51) Para a autora, essas mudanças passaram a requerer dos profissionais da informação, na condição de mediadores, não só destreza no uso dos dispositivos de informação, mas e, sobretudo, a predisposição para estabelecer relações centradas na dialogia. Em sintonia, Perrotti e Perrucini (2014) consideram que a mediação é uma categoria intrínseca a qualquer processo cultural e que, no quadro histórico e cultural em que nos encontramos, novas leituras dos fenômenos informacionais e comunicacionais são propostas, conferindo centralidade aos processos de mediação cultural. Com o surgimento de novos meios de comunicação, a interação dissocia-se do ambiente físico, do “aqui e agora,” como prenunciara Benjamin (1994). No encontro entre informações e conteúdos simbólicos, distanciados do cotidiano dos sujeitos, estes se mobilizam e se munem de outras prerrogativas no seu encalço. Haja vista a nossa pesquisa, que se debruça sobre fontes documentais em busca de informações e conteúdos simbólicos não mais presentes no aqui e agora, e se utiliza de imagens fotográficas como fonte de informação, instrumento de mediação cultural, fonte de memória. Essa busca e apropriação deve-se ao fato de às imagens fotográficas não lhes ser atribuído apenas um valor documental e memorialístico, mas por conter, na sua composição, códigos socioculturais do contexto que representam, capturados que são pelo olhar de um sujeito que se põe, através do uso de dispositivos tecnológicos, como mediador entre os objetos representados e nós que, no lugar de leitor/pesquisador, buscamos lhes dar sentido.

Como no processo de mediação estão implícitos homem e dispositivo, Davallon (2007) considera que a mediação dos saberes constitui um domínio quase específico que reenvia, por um lado, à mediação da informação e, por outro, aos aspectos sociais ou semióticos da comunicação. As operações técnicas no processo de comunicação são designadas, pelo autor, como mediação técnica e como mediação social, ressaltando-se, nesse processo, a interferência da subjetividade. À mediação cultural associou-se como prioritária a mediação técnica, cujo reflexo, no cotidiano dos sujeitos, pode ser percebido na mudança de práticas sociais e culturais. Na opinião de Perrotti e Pieruccini (2014, p. 19) essas práticas colocaram em xeque antigas concepções relativas a “[...] público/privado, subjetivo/objetivo, pessoal/impessoal, identidade/alteridade, autonomia/heteronomia, dentre outras,” num contexto em que

[...] o uso dos dispositivos culturais passarem a ser concebidos como instâncias de negociação de signos por sujeitos tomados em sua dimensão de criadores culturais, da mesma forma que os processos de mediação passam a ser entendidos como ato constitutivo dos processos de construção de sentidos e ele próprio instância produtora de significação. (PERROTTI; PERUCCINI, 2014, p.19)

A noção de mediação cultural, portanto, resulta da junção de um substantivo e um adjetivo, na qual intermediar relações sociais fica por conta do substantivo mediação, enquanto ao adjetivo cultural é agregado o ato de intermediação por um “terceiro,” visando a convivência dos sujeitos entre si. É neste contexto e com esses propósitos que estão sendo gestadas novas formas de leitura dos fenômenos informacionais e comunicacionais, dando uma centralidade aos processos de mediação cultural. À fotografia, como representação, é conferido o poder de ser uma fonte de interpretação da cultura relevante no processo de mediação, postulação advinda dos autores Rodrigues e Grippa (2011) que assim realçam a potencialidade da fotografia como mediadora cultural.

Diante desse cenário teórico, e por ele referendado, o conjunto das imagens fotográficas que compõem o livro Rua Alagoinhas 33, Rio Vermelho, e em especial os objetos retratados, como memórias artificiais e configurados como um texto imagético, representativo da intimidade do escritor Jorge Amado, é tratado, nessa pesquisa, como documento, como um espaço de reconstituição da memória, além do caráter documental e narrativo que lhes é atribuído. As imagens vistas como indícios apontam para a dimensão pragmática da fotografia, para o seu caráter simbólico e para a sua potencialidade como mediadora. E, ademais, como um objeto social de grande complexidade que exige uma mediação da cultura do seu tempo, o tempo de vida vivido pelo escritor e sua família, o contexto no qual estavam inseridos, as relações estabelecidas, o tempo e o espaço no qual se encontravam os objetos registrados pelas lentes do fotógrafo.

Buscamos na superfície das imagens da casa da Rua Alagoinhas, 33, Rio Vermelho, numa superfície onde o real não pôde ser apagado, informações sobrepostas nas camadas que sobre elas foram acumuladas com o tempo. E mesmo que a relação com o passado tenha sido modificada, ele, o passado, passa a existir porque o consideramos como tal. A fotografia evoca a ausência, mas, por outro lado, o real nos é por ela apresentado. Ele passa a existir, sugerindo uma presença àquele que sobre a imagem se debruça em busca de informações. A função mediadora atribuída à imagem fotográfica vem confirmar a possibilidade de considerá-la um modo de conhecimento, uma ferramenta que, posta no centro do processo de investigação, nos possibilitou uma leitura e análise das imagens fotográficas da Casa da Rua Alagoinhas, 33. No entanto, atentos ficamos ao fato de que as escolhas técnicas e estéticas que subjazem às suas tomadas dizem respeito ao olhar do fotógrafo e ao ponto de vista daqueles que se deixaram fotografar ou fotografar seus pertences. Historicamente, esse sujeito opera a câmera, filtra a realidade e, mergulhado na cultura, nos circuitos sociais, dela participa como mediador privilegiado.

Tais conceitos e práticas fundamentaram o reconhecimento do potencial da imagem fotográfica como mediadora cultural, sabendo-se, a priori, da complexidade que envolve a noção de mediação, imbricada que está em outras noções, tais como informação, tecnologia e seus dispositivos, comunicação e cultura. Esses conceitos e práticas nos possibilitaram ver no fotógrafo o sujeito mediador entre nós e a realidade/casa, morada do escritor Jorge Amado, realidade capturada no gesto decisivo de fotografar que congelou, no tempo, o nosso objeto de investigação e que nos possibilitou ter o tempo necessário para observá-lo, decompô-lo, para ter tempo de enfim saber e narrar.

 

3  ENFIM… O QUE DIZEM AS IMAGENS FOTOGRÁFICAS: PROCEDIMENTO METODOLÓGICO

Para demonstrar através da análise e leitura a potencialidade mediadora dos registros fotográficos e como podem se constituir numa fonte de informações sobre o capital social e cultural de um sujeito - no nosso caso, do escritor Jorge Amado -, foi escolhido o método heurístico, por caracterizar-se como intuitivo e experimental e por utilizar-se da criatividade, da intuição, da percepção e erudição na análise do objeto. O procedimento heurístico, segundo Moles (1971), é aquele em que o discurso que desenvolve tem como efeito produzir e formular um processo de descoberta no qual o valor heurístico dá lugar a outras capacidades intelectuais. Nele, “o conhecimento vai sendo construído na ação de busca pela elucidação da questão, englobando estratégias, procedimentos de aproximação, de tentativa e erro, até chegar a um determinado fim” (MOLES, 1971, p.89-90). Adotamos a pesquisa bibliográfica e documental como procedimentos que, pelo caráter multidisciplinar da pesquisa, abarcou literaturas nacionais e estrangeiras oriundas das áreas da Antropologia, da História, da Sociologia, da Filosofia, da Ciência da Informação e afins. A pesquisa documental constituiu-se da escolha da foto da sala de visitas, da identificação de cada figura/objeto, da elaboração de uma ficha técnica com categorias identificadoras (autoria, data, local e tipologia), na qual foi acrescentado um resumo temático contendo informações que enriqueceram o estudo. Sistematizadas, essas fichas técnicas perfizeram um conjunto de 52 (cinquenta e duas), mas apenas 32 (trinta e duas) delas foram analisadas por trazerem as assinaturas de seus autores, informação que sinalizava para as relações com artistas e artesãos construídas pelo escritor.

A proposta metodológica para a leitura, categorização e análise das fotografias foi inspirada na desmontagem e remontagem de uma prancha do Atlas Mnemosyne, da Biblioteca Mnemosynede Aby Warburb, a prancha 79. Sobre esta obra, Didi-Huberman (2013, p. 383) afirma que “[...] Antes de mais nada, Mnemosyne é uma disposição fotográfica [que] forma um quadro sobretudo no sentido combinatório - uma “serie de séries”, pois cria conjuntos de imagens, os quais em seguida relaciona entre si.”Considerada como um sistema complexo de imagens, a prancha 79 foi desmontada e remontada pelos editores da obra e usada como objeto de estudo por Etienne Samain (2012), antropólogo e pesquisador da UNICAMP, cujo modelo adotado aqui apresentamos.

 

As etapas da tríplice operação heurística

São três as etapas: 1) Identificação, que consiste em nomear a temática central de cada figura/objeto representada nos registros fotográficos, através da análise e decifração de dados tais como: tipo, autoria (artista/artesão); local, data, dados técnicos; 2) Numeração e ordenação das figuras/objetos, que consistem na interpretação, por meio de uma possível ordem numérica, de um sistema de numeração das figuras que obedece aos parâmetros: agrupamento por temática, vizinhanças, associações, parentescos, aproximações, às vezes, pelas diferenças; 3) Resumo temático, que consta da atribuição de palavras-chave representativas da sala como um todo. A definição e composição das temáticas é a etapa que caminho para a remontagem da sala de visitas. Na etapa da desmontagem, constitutiva da identificação, numeração e análise dos resumos temáticos de cada figura/objeto representado, foram aflorando as palavras-chave que vieram a compor as temáticas adotadas: objetos diversos; figuras da cultura baiana e brasileira; animais; candomblé; flores e frutos; marinha; catolicismo; mobiliário, uma composição articulada pelas afinidades, semelhanças e analogias que abriu caminho para a remontagem da sala de visitas da casa da Rua Alagoinhas 33. De cada objeto analisado e descrito, buscamos identificar o modo de aquisição, o tempo e a origem, momento em que o discurso visual possibilitou que um discurso verbal fosse construído. Cada relação estabelecida entre o escritor e o artista foi pesquisada com a finalidade de ser encontrado o sentido da existência do objeto ali representado, o valor a ele agregado e como indiciador das crenças, valores, afetos, senso estético, trajetórias, afinidades, pudesse apontar para a rede sociocultural tecida pelo escritor Jorge Amado. Como parâmetros e seguindo a proposta do método, esses indícios nos conduziram a avaliar e perceber, ou mesmo intuir, o nível e o aprofundamento da relação mantida entre artistas, artesãos e o escritor, baseados nas afinidades refletidas nas escolhas e nas apropriações, levando em consideração a sincronia temporal estabelecida entre o escritor, os artistas e as obras.

Para proceder à remontagem da sala apelamos para o conhecimento tácito que dispúnhamos, para a criatividade, intuição, a percepção e a erudição propostas pelo método, para os fundamentos que construíram a base teórica aliados aos dados levantados e às declarações que colhemos, do fotógrafo, de familiares. Através da análise das temáticas instituídas, demonstramos como foram puxados os fios históricos e memoriais que nos permitiram, como uma Ariadne, reconstituir uma história e tecer uma rede sociocultural do escritor através da mediação das imagens fotográficas da sua sala de visitas, registradas no livro Rua Alagoinhas 33, Rio Vermelho. (RUA..., 1999), como aqui demonstramos:

 

Temática: Figuras da cultura baiana e brasileira

Nos registros fotográficos que compõem o conjunto temático de figuras/objetos que representam elementos da cultura baiana e brasileira, estão presentes obras de Caribé, Di Cavalcanti e Willys, nas quais percebe-se que os olhares desses artistas se voltam para a mesma direção do olhar do escritor Jorge Amado. Para a Baiana, figura/objeto 2.1, e os Cangaceiros, 2.2, de Carybé, para a Paisagem com moça na janela 2.3, pintada por Di Cavalcanti e para os Sobrados 2.4, de Willys, obras que representam tipos e cenários que povoam o imaginário de artistas e escritores, que encenam pessoas, moradas e ladeiras, não só da Bahia, mas de dezenas, centenas de ruas e cidades desse país. Mulheres, homens e cenários que povoam e compõem as páginas dos inumeráveis romances do escritor Jorge Amado, cujas visões imaginárias, construídas por brasileiros e estrangeiros sobre a Bahia e o Brasil, são alimentadas pela vida e obra do escritor. Executadas entre os anos de 1960, 1962 e 1968, essas obras estão inseridas num tempo de ebulição e dinamismo cultural, no qual “[...] o país vive um processo de modernização técnica e de renovação cultual manifestada pelo surgimento de diversos movimentos artísticos que atingiram profundamente a sociedade brasileira”. (CARVALHO, 1992, p. 47) Anos efervescentes no plano da cultura, anos da contracultura, da recuperação do exótico, do diferente, da valorização do outro, de povos distantes, orientais, da cultura negra e indígena. É o tempo do Brasil de JK, da chegada da televisão, da bossa nova, do Teatro de Arena, do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), que inspiram um clima de euforia desenvolvimentista no Brasil e amplas transformações sociais. A Bahia de Juracy Magalhães (1959-1963) também respira os ares de modernização, movida pelos ecos do discurso modernizador do governo Kubitschek. Na Universidade Federal da Bahia, os reflexos se fazem sentir nas transformações vividas sob a égide do reitor Edgar Santos, que a insere nesse processo através de ações renovadoras que favorecem uma ambientação propícia à geração de artistas e intelectuais.

Muitos deles, como Jorge Amado, Carybé, Mário Cravo, Willys, Calasans Neto e tantos outros, ao verem sua terra buscando uma afirmação da identidade, imprimem às manifestações culturais fortes características de “baianidade”. A busca pelas raízes, pela origem, pela identidade, aflora na classe média e na intelectualidade cujo anseio era o de representar a cultura de sua terra e de seu povo através do exotismo e da exuberância, da sua diferença, por meio das expressões culturais que lhes eram próprias. Um projeto nacional de recuperação das origens que remetem à Bahia, desde quando “Os artistas plásticos afro-baianos ou seus simpatizantes arregimentaram-se para dar visibilidade aos impulsos criadores [...]” conforme declaração do pesquisador Benedito Veiga (2006, p. 112). São desse período as músicas cantadas por Elis Regina – Arrastão, de Ruy Guerra e Edu Lobo, e Canto de Ossanha, de Vinicius de Moraes e Baden Powell -, tempos do Cinema Novo, do Pagador de Promessas, da literatura de Jorge Amado, das artes de Carybé, de Mário Cravo e outros. Na perspectiva de Prandi (1990), esses são anos de produção de uma nova forma de cantar, em que elementos do candomblé vão se firmando, em que as mães de santo vão sendo reverenciadas por artistas e intelectuais, tais como Olga de Alaketo e mãe Menininha do Gantois. Vale ressaltar que foi no início dos anos de 1960 que Jorge Amado e Carybé foram agraciados com o mais alto título do candomblé, o de Obá Orolu, pelo Axé Opô Afonjá, o que veio reforçar a presença das mitologias do candomblé na produção de suas obras.

Nesse contexto, propício à criação de afinidades e aproximações, Jorge Amado transitava e mantinha com pintores/artistas e artesãos uma relação que ultrapassava o plano da amizade, a qual era ungida por afetos, identidades e, especialmente com Carybé, por uma religiosidade professada nos terreiros de candomblé. Muitas páginas foram escritas louvando a relação que mantinha com artistas e artesãos das artes da Bahia. Não se furtava o escritor de sobre eles tecer elogios, de cobrir as paredes da casa com suas obras, muitas vezes inspiradas nos personagens de seus romances, obras muitas das quais se alojavam na sua sala de visitas. Tanto é que um painel de Calasans Neto, formado pelas talhas originais que compunham as ilustrações do romance Tereza Batista cansada de guerra, cobre uma das paredes do quarto de hóspedes. Confessa Zélia Gattai (2004, p. 44) que muito “Teria o que falar dos quadros que embelezam nossa casa, iluminando suas paredes, trazendo ao nosso convívio, artistas ainda vivos e outros que já se foram. Lá estão Caribé, Di Cavalcanti, Calasans Neto, Willis, Djanira, Lev Smarcevisky [...]” sujeitos que, privando da intimidade da casa, participaram como artífices, colaborando com a sua construção.

Gattai (2004, p. 19) volta a reconhecer os préstimos dos amigos ao declarar que “Entusiasmados com a vinda de Jorge para Salvador, amigos, artistas e não artistas, alguns deles residentes no próprio Rio Vermelho, ofereceram seus préstimos. Colaboraram para transformar o que era feio em bonito, num recanto aprazível que prenderia o amigo para sempre na terra.” E o próprio Jorge Amado (1992, p. 68), ao referir-se à participação e entrega dos amigos na construção e embelezamento da casa, afirma, no livro Navegação de cabotagem, que precisaria “[...] vender à empresa ianque os direitos autorais de cinema de outro livro se devesse pagar as doações, as dádivas.” E como diz Amado, foi para prender o amigo para sempre, que Carybé tomou de instrumentos, da goiva, do formão, do macete, dos materiais mais nobres, a madeira, o cimento, o barro e, armado com a força dos orixás, fixou para sempre a face verdadeira da Bahia em tantas pranchas e telas, em superfícies e dentre elas, na casa do Rio Vermelho, 33, que dessa terra representava uma porção. Carybé foi aquele que, descrito por Gattai (1999), depois de ter nascido na Argentina, aportou aqui na Bahia, com malas e bagagens, para comprovar que tudo o que Jorge Amado tinha escrito em Jubiabá era pura verdade. Pintor, desenhista, escultor, muralista, escritor e jornalista, integrou-se à Bahia, à sua cultura e tradição, professou o candomblé, dançou capoeira, tocou berimbau, misturou-se à terra e ao povo, miscigenou-se. Para Jorge Amado, Carybé foi o mais baiano de todos os baianos, aquele que

[...] plantou raízes fundas na terra baiana como nenhum cidadão aqui nascido e amamentado. Bebeu avidamente essa verdade e esse mistério, fez da Bahia carne de sua carne, sangue de seu sangue, porque a recriou a cada dia com maior conhecimento e amor incomparável. (AMADO, apud BARRETO; FREITAS, 2009, p. 13)

A amizade que os unia era estreitada pelos laços do candomblé. Eram filhos de Oxóssi e Oxum, Obás de Xangô. Uma amizade reverenciada em eventos, palestras, exposições dedicadas a aclamar a relação fraterna que entre eles existia, expressa também em livros produzidos pelo escritor, em páginas e capas, ilustrações e desenhos executados pelo artista. Amizade declarada nas palavras do escritor, cuja força e crença na vida e obra do artista são projetadas para um futuro apocalíptico. Assim acredita Amado e assim declara:

Quando nada mais restar de autêntico, quando tudo se fizer apenas representação, mercadoria e transformar-se em dinheiro na sociedade de consumo, a memória perdurará pura, pois o filho de Oxóssi e de Oxum, o obá de Xangô, guardou a verdade íntegra na criação de uma obra sem igual pela autenticidade, pela beleza, feita com as mãos, o talento e o coração. (AMADO, 2012, p.177)

Marcado pela presença de Carybé, pelas figuras/objetos 2.1 Baiana e 2.2 Cangaceiros, o grupo temático Figuras da cultura baiana e brasileira longe está de representar a intensa relação que unia o escritor ao artista. Cantada em prosa e verso, a presença de Carybé ultrapassa a geografia da sala de visita e pode ser medida, ao alojar-se além dos seus muros e paredes. Aloja-se com vigor e exuberância em outros espaços da casa da Rua Alagoinhas, 33, e comparece em todos os seus ambientes, desde a porta de entrada aos lugares mais íntimos. Sua presença é uma evidência. Numa escala numérica a qual agregamos um valor afetivo, peças de sua autoria espraiam-se pela casa: entre azulejos que recobrem escadas, orixás, frutas, bichos, peixes, estão as portas, figuras do candomblé, janelas, vigas que em forma de pássaro, sustentam os telhados da casa. Suas obras estão presentes nas varandas, na piscina, nos quartos, na entrada da casa, no bar, nos fundos. Em bronze, terracota, cimento, tinta, madeira, como lembra Gattai (2004, p. 49-50), quando descreve sobre os elementos que comporiam a entrada da casa. “[...] Caribé não perdeu tempo, desenhou um portão de ferro, largo, que em seguida foi feito e colocado: uma beleza! [...] O pórtico de entrada foi, então, revestido de azulejos com desenhos de Caribé.”

Na sala de visitas fica a figura/objeto 2.1, Baiana, em cerâmica que, em relevo, são realçadas as vestes, os adereços e o instrumento de trabalho - o tabuleiro -, características identitárias da mulher negra da Bahia, da tradição africana herdada dos ancestrais, um símbolo da cultura baiana. Na mesma sala também fica a figura/objeto 2.2, os Cangaceiros, pintura a guache que representa sujeitos participantes de um fenômeno social do Nordeste, no qual a Bahia está incluída - o cangaço. Esse tema tem ocupado e alimentado o imaginário de escritores, artistas e poetas, ao qual não se furtou Carybé, que chegou a ser, nos anos de 1950, o diretor artístico do filme O Cangaceiro, de Lima Barreto. Com um traçado leve, característico do artista, os quatro cangaceiros são representados vestidos a caráter, com chapéu e indumentária de couro, empunhando armas, as espingardas, cartucheiras cruzadas no peito e míticos chapéus que remontam à saga de Lampião. Paloma Amado, filha do escritor, os tem em boa conta. Quando se refere a esse quadro do artista, ressalta que “[...] pela porta de madeira vazada que entramos na sala, Os Cangaceiros de Caribé montam guarda [...].” (AMADO, P., 1999, p. 24) Ausente da casa por um período, esse quadro foi emprestado para compor uma exposição retrospectiva da obra de Carybé na Alemanha, segundo ainda declaração de Paloma: “O quadro foi, ficou fora por mais de um mês, a sala parecia vazia. Sorte a nossa, que hoje ele já está aqui de novo.” (AMADO, P., 2004, p. 33) Como prova da doação, no quadro está inscrita uma dedicatória: “Para Jorge e Zélia e para João e Paloma”, dedicatória singela que longe está de representar a visceral relação que unia Carybé à família Amado.

Paisagem com moça na janela, figura/objeto 2.3, representa uma mulata tendo ao fundo sobrados e igrejas que sobem ladeiras de uma cidade imaginária, Salvador ou São Paulo... Mulatas e não negras povoam as telas de Di Cavalcanti, tais quais as mulatas nas páginas dos romances amadianos. Nos anos de 1950 e 1960, a busca por uma identidade baiana e brasileira vai confluindo para a imagem de uma mulher híbrida, não uma mulher negra, para um modelo, um tipo ideal de mulher, símbolo de identidade nacional. Vai deslizando para a imagem de uma mestiça, para Gabriela, por exemplo, com cor de cravo e sabor de canela, cuja reincidência se configura, posteriormente, tanto em personagens de romances amadianos, como Dona Flor, Tereza Batista, Tieta do Agreste, quanto nas telas do artista. Como Amado, os temas que Di Cavalcanti aborda são tipicamente brasileiros e em suas telas os temas sociais como festas populares, figuras do povo, movimentos sociais são representados, refletindo a posição política que ambos assumiam. Por serem membros do Partido Comunista Brasileiro, primavam por temas inspirados na cultura popular (RUBIM 1995, p. 221). Em sintonia, a sensualidade da mulher mulata é enfatizada nos matizes das cores tropicais que colorem as telas do pintor e no desejo de Jorge Amado de representá-la, como o fez, ao criar a personagem Gabriela.

Privando da intimidade do escritor, Di Cavalcanti visita muitas vezes a Casa do Rio Vermelho, cultivando uma amizade iniciada nos tempos em que o escritor morava em São Paulo. E foi nesse tempo que o quadro Paisagem com moça na janela, figura/objeto 2.3, chega às mãos do escritor, em trajetória narrada por Gattai (2004) no livro Memorial do amor. Diz-nos a autora que, no tempo em que Jorge Amado morava em São Paulo, um dos quadros de Di Cavalcanti o impressionava pela beleza, Mulata deitada no divã.

Diante do entusiasmo do amigo pelo quadro, generoso, Di Cavalcanti lhe disse: ‘É teu.’ Jorge adotara uma teoria, repetida sempre por um jornalista seu amigo: ‘Ao te oferecerem uma obra de arte, não faça cerimônia, aceite sem discutir’. Foi o que ele fez. A Mulata deitada no divã embelezava a sala do apartamento em São Paulo, quando certo dia, Di todo afobado: Vim buscar o quadro. Apareceu um cliente querendo um trabalho meu e eu não tenho nenhum pra remédio. Levo este e pinto outro pra você. (GATTAI, 2004, p.47)

Cumprida a promessa, esse outro, Paisagem com moça na janela, figura/objeto 2.3 passou a fazer parte da coleção amadiana no qual uma dedicatória amorosa demonstra o afeto que os unia: “Jorge Amado, Zélia Amada, um do outro e os dois meus, o Rio de Jorge, Bahia de Zélia Amada, que também são terras minhas, graças aos dois, graças a Deus, Di Cavalcanti.” Essa tela se junta a outras obras do pintor que embelezam as paredes da casa, tais como Gabriela, um guache sobre papel, que foi o primeiro estudo para capa da primeira edição brasileira do romance (1959) e outra Gabriela, óleo sobre tela, com assinatura do artista e datada do ano de 1972. Telas que ficam no Bar e no Quarto do Casal.

Os sobrados e as ladeiras são elementos reincidentes na pintura de Willys, encontrados na figura/objeto 2.4, Sobrados. A força das cores que lhes caracterizam são as mesmas encontradas na obra literária de Jorge Amado que os expõe, tanto como espaço representativo do fausto, da herança arquitetônica portuguesa, quanto reduto das desigualdades sociais. A presença marcante dos sobrados na obra do escritor, como cenário revelador de relações sociais, é representada no livro Suor, no qual o número 68 da Ladeira do Pelourinho transmuta-se em sobrado/personagem. Justifica-se, portanto, que a tela Sobrados ocupe, na sala de visitas, um lugar de destaque, e que ela traga a assinatura e uma dedicatória do artista: “Para Amado, 1968.” Para que se perceba o afeto e a apreciação pela obra de Willys, nutrida pelo escritor, bem como as afinidades que os aproximava, torna-se válida a transcrição de alguns excertos que sobre ele foram escritos no livro de autoria de Jorge Amado, Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios. A começar pelo título que os identifica: Willis envolto nas cores da Bahia.

Na manhã domingueira o pintor Willis desce a Ladeira do Papagaio envolto nas cores da Bahia, vai distribuindo-as em seu caminho, valerão para a semana toda. [...] Casas de esperança verde, românticas cor de rosa, azuis- celeste, corações, violentos azuis marinhos de noivos em ânsia, o amarelo do ciúme e o vermelho da paixão, de todas as paixões. Quem sabe as cores dacidade e de seu lugar exato é o pintor Willis e mais ninguém. (AMADO, J., 1986, p. 282)

O primitivismo da obra do artista e a profusão das cores que utiliza nos seus quadros iluminam a intimidade do escritor e ocupam espaços nas paredes da casa da Rua Alagoinhas, 33, tanto é que no Quarto está exposta a tela Atelier de Alfredo Santeiro, cujo momento da doação representa o nível do afeto e consideração do artista pelo escritor. A declaração de Paloma Amado (1999, p. 68) comprova o acontecido: Willys tirou o quadro Atelier de Alfredo Santeiro de sua parede, para dar a Jorge, pouco antes de morrer.” Repousa na parede da Varanda Fechada o quadro Os Vendedores, tela datada de 1968 e a tela Casario que pode ser apreciada no ambiente do Bar. Como seu admirador e amigo, Jorge Amado (1986, p. 282) propaga a quatro ventos que na Bahia: “Quem sabe das cores do mar, cada um em sua hora exata é o pintor Willis e mais ninguém.”

 

4  CONCLUSÃO

Mediados pelo olhar do fotógrafo encontramos nos registros fotográficos, considerados como documentos, um sentido que possibilitou-nos ultrapassar o conceito de mediação cultural como um reflexo e revelar a possibilidade de entender a mediação como um ato de conhecer, fruto de um processo de produção de sentido, produto de uma representação social. Reafirmamos que, neste trajeto, foi relevante a evidência do processo de mediação que se deu entre o olhar do fotógrafo e o objeto fotografado. Não só os aportes teóricos nos deram a devida confirmação da sua existência, como a experiência empírica vivenciada. Foi a partir do entendimento sobre a relação das práticas sociais com as técnicas e as funções sociais que delas advêm, que a fotografia se nos apresentou como uma técnica social e como médium, não se caracterizando como a coisa em si. Através de um conjunto diversificado de práticas relacionadas com mudanças epistemológicas, perceptivas, sociais e mesmo psicológicas, a imagem fotográfica se configura como um objeto discursivo, inserido na cultura e representativo da história e da memória. Tal percepção nos levou ao desenvolvimento deste estudo, à sua realização nos moldes que o concebemos, bem como à compreensão da fotografia e sua potencialidade como mediadora, como uma prática que distingue os sujeitos e os grupos e encena a sua distinção.

 

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[1] Profa. Dra Departamento de Fundamentos e Processos Informacionais do Instituto de Ci~encia da Informação da UFBA

[2] “L’acte photographique comme promotion ontologique d’um object percu en objet digne d’être photographié, c’estt-à-dire fixe, conserveé, comunique, montré, admire.”

[3] Parce qu’elle est um <choix qui loue> parce qu’elle est l’intention de fixer, c’est-à-dire de soleniser, et eternizer, la photographie ne peut être livrée aux hasards de la fantasie individuelle, par la médiation de l’ethos, interiorisation dês regularités objectives et communes le groupe subordonne cette pratique a la regle collective.

[4]“[...] La signification et la fonction conférées à la photographie sont directment liées à la structure du groupe, à sa plus ou moins grande différenciation et surtout à sa position dans la structuresociale.”