VIRTUAL E DIGITAL À LUZ DA TEORIA SOCIOLÓGICA E FILOSÓFICA CONTEMPORÂNEA: ENTRE CRÍTICAS E COMPARAÇÕES

 

 

Julio Marinho Ferreira [1]

Universidade Federal de Pelotas - UFPel

 juliomarferre@hotmail.com

 

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Resumo

Apresentar a sociologia e a filosofia frente a dimensão tomada pela informação, e seus usos na contemporaneidade, requer uma mirada sobre relações e interações em ambientes on-line chamados de virtuais ou digitais, como mídias e redes sociais. Com isso, ao pensar os estudos acerca do social e a dimensão de uma filosofia aplicada ao entendimento dessa mesma relação virtual/digital na internet, surgem indagações a ser exploradas de modo a se entender certas transformações pelas quais a sociedade atual tem passado. Dessa forma, a partir de uma exposição de exemplos dessa interação, e transformação social, tornada digital, miro nos novos tipos de trabalhos (e trabalhadores), formas de argumentar acerca dos impactos dos usos dessas formas midiáticas digitalizadas de apropriação da realidade.

 

Palavras-chave: Sociologia. Filosofia. Internet. Trabalho.

 

 

 

VIRTUAL AND DIGITAL IN THE LIGHT OF CONTEMPORARY SOCIOLOGICAL AND PHILOSOPHICAL THEORY: BETWEEN CRITICISMS AND COMPARISONS

 

Abstract

Presenting sociology and philosophy in the face of the dimension taken by information, and its uses in contemporary times, requires a look at relationships and interactions in online environments called virtual or digital, such as media and social networks. With this, when thinking about the studies about the social and the dimension of a philosophy applied to the understanding of that same virtual / digital relationship on the internet, questions arise to be explored in order to understand certain transformations that the current society has undergone. Thus, from an exposition of examples of this interaction, and social transformation, made digital, I focus on new types of jobs (and workers), ways of arguing about the impacts of the uses of these digitalized media forms of appropriation of reality.

 

Keywords: Sociology. Philosophy. Internet. Labour.

 

 


 

1 Introdução

 

Este breve ensaio visa discutir as críticas e as possíveis comparações sociológicas e filosóficas acerca dos conceitos de virtual e de digital, e de seus usos no contexto social atual levando em conta aspectos concernentes às novas formas de relação social na mediação entre humanos e máquinas, ou seja, em computadores, internet e redes sociais digitais como promotores de escolhas e oportunidades. Tendo como base alguns teóricos contemporâneos, entre sociólogos e filósofos – principalmente Pierre Lévy, Manuel Castells e Gilles Deleuze. Isso, somado ao pensamento crítico acerca dos impactos do neoliberalismo sobre as relações sociais atualmente, onde uma ideia de privado parece “empurrado” para a dimensão do público, gerando uma inversão do modelo clássico neoliberal – tornar privados os bens públicos.

Ademais, pontuo que inúmeras correntes teóricas acerca da mesma ideia de “sociedade” pautada pela tecnologia e pela informação (na qual os computadores surgiram), que seriam chamadas de pós-industrial (BELL, 1977), de controle (DELEUZE, 1992; COSTA, 2004) e informacional (CASTELLS, 1999) vem há décadas sendo discutidas pela sociologia – cada qual com pontos explicativos sobre os motivos que fizeram com que a ideia de social fosse impactada pelo tecnológico, geralmente tendo no capitalismo um norte “culpado”. No entanto, deve-se pensar nesses modelos sociais como processos sobre um mesmo ponto (tecnologia/maquinário) surgido na modernidade capitalista e neoliberal.

Esse “modelo” de neoliberalismo não seria mais uma ideologia (DARDOT; LAVAL, 2016) e sim uma prática econômica capaz de alterar as percepções de mundo, onde a informação em larga escala, e seus usos por parte de indivíduos e instituições alteram (deslocam?) a noção de realidade, com isso, trazendo ao ponto que pretendo discutir: o virtual seria análogo ao digital? Além disso, o discurso sobre uma modernidade e sobre a chamada pós-modernidade é brevemente apresentado como ilustrativo dessa mesma problemática acerca de uma possível perda de “realidade” em prol de uma sociedade imersa no digital/virtual.

Os computadores, e a possibilidade de existir um ambiente como a internet/web – um espaço interativo infinito – se fixaram na mentalidade popular como um avanço, como o futuro das relações sociais, principalmente na questão da interação mediada através da construção e manipulação de perfis on-line, ou seja, uma ideia de uma cultura social acerca dos usos da tecnologia, ou uma cibercultura de cunho prático e cotidiano (RÜDIGER, 2016, p. 07). Nesse sentido, um olhar sociológico sobre a tecnologia e a informação, e seus sobre as relações (interações) sociais na contemporaneidade acaba por evocar essa pretensa dualidade entre dois conceitos (virtual e digital) e apontam novos paradigmas para a vida atual.

 

2 CIBERNÉTICA, CIBERCULTURA E VIDA DIGITAL: O SOCIAL E O INFORMACIONAL

 

A sociologia enquanto disciplina de conhecimento científico para “dar conta” da dimensão do pensamento complexo na contemporaneidade acabou por “se ramificar”, e um desses “galhos” é a chamada Sociologia Digital. Como apontado por Deborah Lupton (2015), teorizar o que seria essa “sociologia é muito difícil, tendo em vista as complexas relações que surgem ao se tentar articular os estudos sobre uma “era informacional” com o modelo social atual – no qual a dataficação da realidade se apresenta como alternativa (única?). Ainda com Lupton (2015, p. 22), “em uma escala ampla, cada ato de comunicação através da mídia digital se transformou em um valioso bem a ser convertido em dados para um conjunto massivo de outros dados”.

Contudo, como uma forma de entendimento acerca dessa “dataficação da vida” é importante olhar os estudos da cibernética como um avanço na percepção dos impactos da tecnologia sobre as relações humanas no século XX, e que apontam para as questões relativas a essa digitalização da sociedade e de suas instituições. “Assim, o projeto cibernético foi primeiramente político, na medida em que a universalidade dos seus conceitos pressupunha uma redefinição do ser humano” (LAFONTAINE, 2004, p. 25).

Apresentada por seu fundador Norbert Wiener como uma ciência dedicada à investigação das leis gerais da comunicação e às suas aplicações técnicas, a cibernética deu lugar a um número incalculável de definições, tanto centradas nos seus conceitos teóricos como viradas para seu pragmatismo tecnológico. (LAFONTAINE, 2004, p. 26)

Já nas palavras de Wiener:

A minha tese é a de que o funcionamento físico do indivíduo vivo e o de algumas das máquinas de comunicação mais recentes são exatamente paralelos no esforço análogo de dominar a entropia através da realimentação. Ambos têm receptores sensórios como um estágio de seu ciclo de funcionamento, vale dizer, em ambos existe um instrumento especial para coligir informação do mundo exterior, a baixos níveis de níveis de energia, e torná-la acessível na operação do indivíduo e da máquina. (WIENER, 1978, p. 26)

Cumpre apontar a própria etimologia da palavra cibernética, que provém do grego kubernetes, ou seja, governador ou piloto. Nesse “comando”, a máquina ocuparia o papel central, sendo tanto uma forma de progresso quanto um tipo de guia para uma sociedade capitalista que florescia – onde o emprego massivo de maquinário para a produção em larga escala se estabeleceu desde o século XVIII. Sendo assim, a cibernética seria um importante sinônimo para a chamada modernidade e para uma sociedade informacional:

Dentro e fora, a cibernética oferece um modelo de “causalidade circular”. Você consegue imaginar isso? Wiener conseguiu. O que vem primeiro: a galinha cibernética ou um ovo dourado? A resposta, com certeza é nenhum dos dois. Os dois são circularmente causados: interativamente, dinamicamente, reciprocamente. Não mecanicamente, mas através de uma troca energética conduzida pela informação. (PFHOL, 2004, p 196)

A informação, “conceito do pensamento cibernético, refere-se a qualquer elemento físico codificado matematicamente e capaz de introduzir organização material em um dado sistema de comunicação” (RÜDIGER, 2016, p. 299). O modelo social capitalista – par importante para a sociedade informacional – teria nos computadores os seus aliados para a formação de um imaginário tecnológico capaz de criar um culturalismo acerca do digital. E dos escritos acerca da cibernética, já com o estabelecimento de uma “cultura” para a máquina (computador) se tem o nascimento de uma chamada Cibercultura. Que pode ser melhor entendida a partir da ideia de Ciberespaço, um conceito emprestado da literatura de ficção cientifica, notadamente extraído da obra “Neuromancer” de William Gibson, lançada em 1984.

Esse espaço seria como um outro mundo, “criado artificialmente pela convergência entre o mundo on-line gerado pelas redes temáticas e as projeções digitais e imaginarias dos sujeitos que, direta ou indiretamente, interagem por seu intermédio” (RÜDIGER, 2016, p. 297). Para o filósofo francês Pierre Lévy (1999, p. 17), “a cibercultura seria um conjunto de regras (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço”. Manuel Castells, conhecido pelo jargão “sociedade em rede”, em seus escritos também aponta esse “domínio” da cultura cibernética sobre o social: “a internet penetra em todos os domínios da vida e os transforma. Assim é uma nova configuração, a sociedade em rede [...]” (CASTELLS, 1999, p. 333). Segundo Francisco Rüdiger:

O aparecimento do que, daí então, foi passando a ser chamado de cibercultura por vários comunicadores e intelectuais tem a ver sobretudo com essa transformação dos novos aparatos de informação em recurso de uso ordinário por parte de pessoas e instituições. (RÜDIGER, 2016, p.07)

Castells e Lévy, para Rüdiger (2016) são os pensadores e teóricos mais usados nas ciências humanas, como base para a conceituação dessa cultura do cibernético e da informação para o social. Contudo, ainda para Rüdiger (2016), tanto Castells quanto Lévy são tidos como teóricos “ufanistas” acerca dos usos da internet, da web (redes) e do digital, muito por suas visões positivas, que parecem esconder certas dimensões problemáticas. Já que para Castells, a internet está:

Fundada sobre fé tecnocrática no progresso tecnológico da humanidade; acionada pelas comunidades de hackers que defendem a livre criatividade tecnológica; integrada a redes virtuais que pretendem reinventar a sociedade; e materializada por empreendedores privados, motivados pelo ganho, no quadro dos mecanismos da nova economia. (CASTELLS, 1999, p. 80)

Para Lévy, autor de “Cibercultura”, em sua visão filosófica (e positiva) acerca dos usos do virtual: “A internet inaugura, sim, um espaço de comunicação inovador, inclusivo, dinâmico, universal e transparente”. (RÜDIGER, 2016, p. 160). Em outra de suas obras, com em “A ideografia dinâmica”, Lévy apresenta o computador como portador de uma forma de comunicação revolucionária, em todos os sentidos:

Ora, a tela do computador é um meio de comunicação capaz de suportar ao mesmo tempo a imagem animada, a interação e, [...], a abstração. Pela primeira vez na história, a informática contemporânea autoriza a concepção de uma escrita dinâmica, cujos símbolos são portadores de memória e capacidade de reação autônomas (LÉVY, 1998, p. 17).

Dessa forma:

Cibercultura é a expressão que serve à consciência mais ilustrada para designar o conjunto de fenômenos cotidianos agenciado ou promovido com o progresso das telemáticas e seus maquinarismos. […] Afinando o conceito um pouco mais, poderia bem ser definida como a formação histórica, ao mesmo tempo, prática e simbólica, de cunho cotidiano, que se expande com base no desenvolvimento das novas tecnologias eletrônicas de comunicação. (RÜDIGER, 2016, p. 11)

Partindo de uma cultura da tecnologia como um progresso (ou cibercultura), relacionada à dimensão de uma modernidade, na qual as máquinas avançadas (computadores e outros dispositivos digitais), se figuraram como verdades e como buscas. A vida social, se pode dizer, acabou alterada e “carente” de um modelo teórico de apontasse uma superação a essa forma de saturação, e se firmasse como crítica. Essa falência (saturação) ou fim das promessas tidas como metanarrativas, como percebeu Perry Anderson (1999) a partir da obra de Jean-François Lyotard[2]. Um exemplo dessas chamadas metanarrativas seria a esquerda e suas ideias de revolução como busca ad aeternum, que pareciam, ao longo dos anos, terem sido “engolidas” pelo capitalismo do período pós-guerra:

O capital era desejado por aqueles que dominava, então como agora. A revolta contra ele ocorria apenas quando os prazeres que permitia se tornavam “insustentáveis” e havia uma abrupta mudança para novos escoadouros. Mas estes nada tinham a ver com as tradicionais sandices da esquerda (ANDERSON, 1999, p. 35).

 

Ademais, Anderson (1999) enquanto um teórico e crítico de uma ideia acerca da modernidade apontou que: “um projeto de modernidade tinha ainda que ser realizado” (p. 45). E dentro dessa “irrealização” é que se funda uma cultura pelo progresso, com raízes iluministas, no qual se percebe a fusão do social e de uma interação voltado ao digital (o progresso – o futuro). O debate acerca de uma modernidade e de sua superação, ou seja, a chamada pós-modernidade é outros dos pontos discutidos pela sociologia como fundantes de um tipo de pensamento acerca das mudanças de paradigmas.

Outra distinção importante diz respeito ao chamado movimento pós-modernismo e sua diferença acerca de uma corrente de pensamento de uma pós-modernidade. Pós-modernismo está relacionado às correntes artísticas de vanguarda a partir do final do século XIX. Já a pós-modernidade seria um movimento teórico oriundo dos movimentos críticos posteriores ao Maio de 68. E com isso, “a noção de pós-moderno só ganhou difusão a partir dos anos 70” (ANDERSON, 1999, p. 20). As crises econômicas advindas da falência do welfare state norte-americano, ou seja, o aumento do preço do barril de petróleo no início da década de 1970 somadas a gradual substituição de tarefas pelo uso de computadores, principalmente em relação ao trabalho burocrático.

Uma sociedade que precisou se adaptar ao comercio de serviços, ao invés da produção em larga escala de bens de consumo (do modelo pós-guerra), se viu frente ao paradigma dos computadores e da cultura da cibernética (cibercultura) e de uma nova forma de existência. A realidade social acabou sendo alterada pelas potencialidades do digital (dos anos 1980 em diante), a uma ideia de viver no virtual acabou por se fortalecer a partir da massificação da internet – nos anos 1990. Dessa forma, a distinção entre o que seria virtual do que seria digital, e de seus usos nos dias atuais, é de primaz importância para uma crítica sociologia, já que o social parece estar cada vez mais digitalizado.

 

3 VIRTUAL E DIGITAL: APONTAMENTOS TEÓRICOS

 

Os estudos acerca do virtual, primeiro com a filosofia e depois com a ótica trouxeram olhares que foram utilizados pelo pensamento sociológico, e não apenas. Deleuze, apontou que esse virtual, do latim virtus (potência) agiria como uma forma de possibilidade, de um vir a ser (2018), a passagem do atual para o virtual, ou melhor, o par realidade/possibilidade se apresenta como uma latência. E para Lévy, essa noção de virtualidade não se mostra como contrária à realidade (1996).

Já digital seria um:

Conjunto de meios e processos de comunicação cujas informações são descritas e lidas eletronicamente por equipamentos que as codificam e decodificam com base em um código binário que, alternadamente, permite ou não (0/1) a maior ou menor passagem de uma corrente elétrica (RÜDIGER, 2016, p. 298).

Uma ferramenta paradigmática para uma mudança econômica, social e cultural foi a inserção dos computadores no mundo do trabalho e nos lares. Sendo, então, apresentados novos processos que incluem o digital como um ente, aproximando o real de um virtual. Ademais, cumpre uma breve distinção entre o real e o virtual:

a)         Real ou realidade, provém do latim, realitas, ou seja, uma coisa. Essa coisa, pode ser vista, sentida, mensurada etc. O real é um conceito estudado por várias áreas do conhecimento, sendo na filosofia objeto de debates há décadas, como nas obras de Martin Heidegger (1889-1976) e Gilles Deleuze (1925-1995);

b)         Virtual ou virtualidade, em Deleuze (2018), se refere ao aspecto desse “real” encarado como ideal, ou seja, a representação idealizada de uma imagem existente ou não. Dessa forma (ainda em Deleuze) o virtual agiria sob dois aspectos: um efeito produzido a partir da interação com a materialidade, e uma potencialidade preenchida com ações, sendo real, ainda que não material.

Em A Vida Digital, de Nicholas Negroponte (1995) tem-se a descrição das minucias do computador como máquina e ente sócio-histórico que guiaria o futuro das relações sociais na modernidade e posteriormente. Entretanto a visão de Negroponte sobre a tecnologia era ambígua (não se colocando como tecnófilo ou tecnófobo). Estando mais preocupado com os rumos da sociedade tecnológica avançada e com o mundo chamado de digital, principalmente com a ideia da grande rede (internet) e seus avanços para a humanidade. Para além de Negroponte, se pondera o dualismo observado no ciberespaço seria entre o digital e o virtual, e surgem particularidades, já que esse digital diz respeito aos números (os dígitos 0 e 1), já o virtual é uma terminologia mais complicada de ser discutida.

O virtual envolve várias esferas de significação, a primeira seria ótica, além de remeter à tecnologia (mundo virtual) e ciência (imagem virtual). Dentro dessa divisão, de um mundo digital x um mundo virtual, cumpre a percepção dos modos como isso afetam as relações, e como são utilizadas em ferramentas, interfaces e plataformas, como os computadores pessoais, notebooks (laptops), e mais especificamente os smartphones de hoje.

Na sessão seguinte deste ensaio apresento um exemplo da forma de percepção sociológica do digital através da exposição de meu problema de pesquisa, no qual discuto a utilização de uma rede social – Youtube – enquanto uma nova forma de atividade laboral, que teria na imagem de indivíduos e de suas opiniões veiculadas em contas/perfis on-line uma forma de ser (existência virtual). Contudo, pontuo uma distinção acerca do que seria “trabalho”, tendo em vista suas transformações ao longo do século XX, principalmente com a inclusão do digital e da informática avançada como produtores de realidades. Deleuze (1992) procurou na distinção entre o carbono e o silício um existir, analogia ainda hoje valida, já que vivemos sob a égide do chamado Vale do Silício. Então, nessa existência, tornada digital, seja pelo amplo uso de máquinas altamente complexas – os computadores – ou através de uma dimensão mais simbólica – os usos de imagens de si virtualizadas (em perfis on-line) se fixou como forma interativa.

 

4 Digitalização da vida e neoliberalismo: as novas formas de trabalho no (do) universo on-line

 

A socióloga Deborah Lupton (2015, p. 15-16), que vê no digital muitas formas de se entender o trabalho, principalmente como uma prática profissional digitalizada, tendo sido tornada digital por algum motivo. Dentro dessas motivações, haveria aquelas que possibilitam uma proposição e uma nova forma de se pensar o social, somada ao fazer sociológico atrelado ao mesmo digital. Os indivíduos que utilizam redes sociais como ferramenta de exposição de si, tendo como base a utilização de seus perfis/contas em ambientes digitais como Youtube, apontam para a problemática relativa ao neoliberalismo, enquanto uma política econômica, que apresenta a necessidade de tornar o privado (real) em público (digital/virtual). Nisso, notou Han que:

O sujeito contemporâneo é um empreendedor de si mesmo que se autoexplora. Ao mesmo tempo, é um fiscalizador de si próprio. O sujeito autoexplorador traz consigo um campo de trabalhos forçados, no qual é ao mesmo tempo carrasco e vítima. Como sujeito que expõe e supervisiona a si próprio, ele carrega um pan-óptico no qual é, de uma só vez, o guarda e o interno. O sujeito digitalizado e conectado é um pan-óptico de si mesmo. Dessa forma, o monitoramento é delegado ao todos os indivíduos. (HAN, 2018, p. 85).

Os youtubers – os criadores de conteúdo no Youtube – incluídos na categoria desses trabalhadores do digital procuram através da manipulação de uma reputação on-line desenvolver uma nova forma de legitimidade[3]. Ao atrair seguidores, surgiria a possibilidade de criação de consumidores, já que as redes, como Youtube, acabaram reconfiguradas como ferramentas de divulgação para empresas, como a gigante norte-americana Amazon, grande “patrocinadora” de youtubers, podendo agir como “máquinas cibernéticas dentro de uma sociedade de controle” (DELEUZE, 1992, p. 220).

O chamado Digital Labour (LISDERO; SCRIBANO, 2019) é um meio de existência buscado por aqueles que “precisam” estar imersos no universo do ciberespaço – ou de uma Matrix. A isso, se pode pensar na questão do pensamento máquina (LAFONTAINE, 2004) e seus usos enquanto atividade laboral. Dessa foram esse “labor digital” não mais se apresentaria como uma tortura (já que não manteria os indivíduos presos), pelo contrário, apontaria para a liberdade como fator de atração. Ser seu próprio chefe é o que ser livre, ter a posse de si. No modelo de trabalho dos anos 2020, por exemplo, no qual indivíduos, através de aplicativos de mobilidade e de alimentação conseguiriam uma “inserção” no mercado de trabalho, essa noção se fortaleceu como uma verdade (problemática e questionável do ponto de vista sociológico).

Han (2018), percebeu no neoliberalismo um tipo de deslocamento do biológico para o psíquico, podendo afetar o trabalho em suas dimensões emotivas, já que a exposição on-line é constante, e essas transformações da web serviriam como uma ferramenta de conquista de indivíduos e de mentes (psiques). Os novos trabalhadores, que não mais sendo amparados pela dimensão de “real” ou de uma política de empregos garantida legalmente, tiveram que buscar no on-line outras “formas” de existência (trabalhos informais) que pudessem ser colocadas como atividades. Cito algumas dessas novas modalidades de trabalho comuns no (problemático) contexto atual:

a)         Digital influencers, (influenciadores digitais), que ao fazer uso da potencialidade das mídias digitais, como Facebook, Instagram, Youtube, Twitter, entre outras, como ferramenta interativa e de criação de um público cativo, teriam na formação de uma reputação e de uma legitimidade pela imagem sua ferramenta de trabalho. Um caso interessante para o entendimento desses influenciadores, seriam os usuários do Youtube, os chamados youtubers, podendo faturar milhões de dólares, em função de números de seguidores e de seus patrocínios;

b)         Usuários de aplicativos de geolocalização como 99 Taxis e Uber, com suas jornadas de trabalho de 12, 14, 16 horas ao dia, que escondem uma ideia de liberdade, e não de aprisionamento neoliberal. O uberismo, tido como um fenômeno aponta para a dimensão da tecnologia aplicada a gestão de corpos e psiques (almas);

c)         Os riders, como são conhecidos os trabalhadores de aplicativos de entrega de alimentos, com iFood e Rappi, seriam outro desses exemplos dos corpos e psiques (almas) capturadas por uma lógica neoliberal. Usuários de veículos alternativos, como bicicletas, e até skates, percorrem cidades também em longas jornadas de trabalho em prol de suas entregas. Com o advento da pandemia de Covid-19, e a necessidade de uma política de isolamento social, os riders cresceram de forma vertiginosa.

Dos três exemplos acima citados, nota-se a importância da internet como mecanismo gestor, adequada a uma falsa ideia de liberdade, usada por grandes corporações como forma de lidar, e capturar fragilidades de indivíduos que não conseguem se inserir em um mercado de trabalho, ou não seria reconhecido por suas capacidades e qualificações. Essas formas de “trabalho” disciplinariam os corpos e as psiques, demolindo formas de existências em prol de outras:

Para construir o poder disciplinar os indivíduos não são destruídos, mais sim fabricado. Segundo Foucault, o capitalismo não se sustentaria com base apenas na imposição e repressão. Os valores, o conhecimento, são produtores de individualidades que naturalizam o poder nas intenções e desejos dos indivíduos (MONTEIRO, 2018, p. 110).

Essa nova web, mais “humana”, como pontuada por inúmeros especialistas, na verdade apenas esconde uma nova forma de exploração, onde a imagem de si e a conquista de psiques, somadas ao desespero crescente da falta de trabalho, afetos e da transparência. Os algoritmos, e suas formas de direcionar e capturas as psiques dos usuários, sejam de aplicativos ou redes sociais digitais são os exemplos mais recorrentes. O ano de 2020 trouxe uma visão crítica a esse pretenso “espaço” transparente de todos aqueles que usam o on-line, onde esses “todos” nada mais seriam que entes coagidos “pela liberdade”:

A coação por transparência, hoje, não é um imperativo explicitamente moral ou biopolítico, mas sobretudo um imperativo econômico; quem se ilumina completamente se expõe e se oferece à exploração econômica. Iluminação completa é exploração (HAN, 2017, p. 113).

Esse trabalho digital, seria fruto de uma imersão constante, e constantemente conectada entre o digital e o virtual:

We live in a digital/virtual connected world shaped by technological transformation of the last 10 years. Internet and mobile telephony are two vectors that set the stage of three strong changes in the politics of the sensibilities: (a) the organization of day/night unlinked to the experience of the subjects that experience it, (b) the modification of the sensations of classification and (c) valuations on world modifications (SCRIBANO, 2019, p.15).

Já Han (2018), percebeu nessa fusão digital/virtual, aceita pelos usuários como uma forma de existência no mundo informacional, e uma potencialidade quase ilimitada de poder:

Hoje, o número de endereços na web é praticamente ilimitado. Assim, é possível fornecer a cada objeto de uso um endereço internet. As próprias coisas se tornam emissoras ativas de informações: sobre nossa vida, nosso fazer, nossos costumes. A expansão da internet das pessoas (web 2.0) para a internet das coisas (web 3.0) completa a sociedade de controle digital. A web 3.0 torna possível um registro total da vida (HAN, 2018. p.86).

As categorias analíticas presentes nos estudos acerca do digital e do virtual, a partir de Han (2018), ao qual o neoliberalismo e os usos da internet como ferramenta de captura de subjetividades, e de dados de usuários – os seguidores tornados clientes. Para muitos autores o ciberespaço é uma falácia de tecnófilos (MOROZOV, 2018), ao invés de orientar uma discussão sobre a internet, acabaria por confundir ainda mais os que pouco a conhecem. Como tento demonstrar a internet, a web e sua faceta mais absorvidas pela sociedade atual: as redes sociais, são modos de percepção de um mundo “descolado da realidade”, que flerta constantemente com uma irrealidade (possível e virtual). E com isso, teria nesse espaço cibernético o seu campo de ação e seu lugar de existência, (ou de simulação do existir).

A direção que o trabalho (digital) tomou nas relações sociais mediadas pelas interfaces em redes, foram realocadas para esse outro lugar (ciberespaço) que seria a dimensão de uma digitalização da vida. E isso potencializaria a questão simbólica da liberdade presente na ideia de autogestão e de ser um indivíduo empresário de si mesmo (Han, 2018). Se pode dizer, que o neoliberalismo e sua (dis) junção com a tecnologia informacional dos anos 1980 em diante, acabou reconfigurando o modo de trabalhar dos indivíduos, apontando múltiplas facetas para os usos da imagem de si, principalmente na tendência de exposição do particular como interação.

 

 

 

 


 

REFERENCIAS

 

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[1] Doutorando em Sociologia pela UFPel, bolsista CAPES.

[2] LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. São Paulo: José Olympio, 1986.

[3] Em minha tese de doutorado em andamento, venho colhendo material acerca de perfis on-line de youtubers chamados de booktubers, ou seja, indivíduos que buscam analisar e comentar obras literárias dos mais variados escopos.