ANÁLISE DO DISCURSO:

diálogos epistemológicos em Foucault e Heiddeger

Mariana Rodrigues Gomes de Mello[1]

UNESP

mariana.rg.mello@unesp.br

 

Marta Lígia Pomim Valentim[2]

UNESP

marta.valentim@unesp.br

______________________________

Resumo

 A linguagem é mais que a palavra escrita ou falada, é a direção do pensamento no contato com o contexto histórico-social no qual se está inserido. O discurso se apresenta enquanto mediação entre pessoas e realidades. A AD se apresenta como um constructo teórico-metodológico que possibilita averiguar construções ideológicas e efeitos de sentido do discurso em diferentes contextos, propiciando um olhar ampliado sobre a realidade. Objetiva-se inter-relacionar aspectos epistemológicos de Foucault e Heidegger, que possam servir como aportes ao método Análise do Discurso, e refletir sobre uma estrutura que possa ser aplicada nas pesquisas da área de CI. Para tanto, propõe-se o uso da Revisão Sistemática da Literatura (RSL) enquanto técnica, a fim de subsidiar uma apresentação mais concreta referente a aplicação da AD no campo da CI. Metodologicamente trata-se de um estudo exploratório traçado na inter-relação entre questões da Filosofia da Linguagem e aspectos metodológicos e epistemológicos da Ciência da Informação e para tanto, buscou-se a revisão da literatura de ambos os domínios. Ainda há uma certa relutância do uso da AD na CI por sua forma mais teórica, ou seja, sem um procedimento preestabelecido, como se verifica em outros métodos, tais como a Análise do Conteúdo que possibilita a análise categorial, a análise de avaliação, a análise de enunciação, a análise proposicional, entre outras.  O objetivo da AD não é estabelecer se um discurso é verdadeiro ou falso, mas sim os efeitos de sentidos e as questões subliminares. Portanto, no discurso construído com bases em preconceitos, por exemplo, serão reveladas as fragilidades inerentes àquela construção. Por outro lado, em um texto reflexivo, a tendência é que por meio da aplicação da AD, sejam reveladas toda solidez das ideias e estruturas. Assim, verifica-se a grande contribuição que AD pode aferir à CI e como Foucault e Heidegger podem ser imprescindíveis para compor o arcabouço teórico da AD, dependendo dos objetivos da pesquisa.

 

Palavras-chave: Análise do Discurso. Epistemologia. Foucault. Heidegger. Metodologia.

 

SPEECH ANALYSIS:

epistemological dialogues in Foucault and Heiddeger

 

Language is more than the written or spoken word, it is the direction of thought in contact with the historical-social context in which it is inserted. The discourse presents itself as a mediation between people and realities. The Speech Analysis presents itself as a theoretical-methodological construct that makes it possible to ascertain ideological constructions and effects of discourse meaning in different contexts, providing an expanded look at reality. The objective is to interrelate epistemological aspects of Foucault and Heidegger, which can serve as contributions to the Speech Analysis method, and reflect on a structure that can be applied in research in the field of Information Science. To this end, it is proposed to use the Systematic Literature Review as a technique, in order to support a more concrete presentation regarding the application of Speech analysis in the field of Information Science. Methodologically, this is an exploratory study traced in the interrelationship between issues of Philosophy of Language and methodological and epistemological aspects of Information Science and, therefore, we sought to review the literature in both domains. There is still a certain reluctance to use Speech Analysis in Information Science due to its more theoretical form, that is, without a pre-established procedure, as seen in other methods, such as Content Analysis that enables categorical analysis, evaluation analysis, enunciation analysis, propositional analysis, among others. The goal of Speech Analysis is not to establish whether a discourse is true or false, but the effects of meanings and subliminal issues. Therefore, in the discourse constructed on the basis of prejudices, for example, the inherent weaknesses of that construction will be revealed. On the other hand, in a reflective text, the tendency is that through the application of Speech analysis, all solidity of ideas and structures are revealed. Thus, there is a great contribution that Speech Analysis can make to Information Science and how Foucault and Heidegger can be essential to compose the theoretical framework of Speech Analysis, depending on the objectives of the research.

 

Keywords: Speech analysis. Epistemology. Foucault. Heidegger. Methodology

 

1. INTRODUÇÃO

Um dos intelectuais fundadores dos estudos sobre o discurso de matriz francesa foi Michel Pêcheux (1938-1983), e também é o pesquisador mais estudado no âmbito da Análise do Discurso (AD) pela área de Ciência da Informação (CI). Durante seus estudos estabeleceu paralelos entre discurso e língua em um contexto histórico-social, revelando ideologias subliminares ao discurso. Michel Foucault (1926-1984), também, seguiu a mesma linha de pensamento, entretanto, evidenciou as estruturas da microesfera do poder ao invés das ideológicas (MELLO, 2020).

 Na acepção de Martin Heidegger (1889-1976), a partir dos elementos discursivos-epistemológicos convergentes apresentados por Pêcheux e Foucault, o homem e mundo não se encontram em contextos adversos, tal como propõe a tradição metafísica, como em Platão (427-347) por exemplo, que apresenta a dicotomia entre ser e mundo (MELLO, 2000). Homem/mulher e mundo são um único fenômeno e a linguagem os permeia. Nessa perspectiva, a linguagem é mais que a palavra escrita ou falada, é a direção do pensamento no contato com o contexto histórico-social no qual se está inserido. “A possibilidade da comunicação está no posicionamento do sentido para além do caráter evanescente e fugaz do acontecimento discursivo” (CASTRO, 2014, p.92). Logo, “[...] o falar se torna mais do que um acontecimento, conformando-se como sentido, que se estabelecem as condições de possibilidade da comunicação” (CASTRO, 2014, p.92).

Nesse sentido, o método AD contém em si toda a tensão dialética do devir, expresso em mudanças e contradições. A historicidade está sempre presente e é permeada de contraditórios. O discurso se apresenta enquanto mediação entre pessoas e realidades. A AD se apresenta como um constructo teórico-metodológico que possibilita averiguar construções ideológicas e efeitos de sentido do discurso em diferentes contextos, propiciando um olhar ampliado sobre a realidade.

O método, no entendimento de Lefebrve (2010), se trata de um referencial, uma orientação para a compreensão de determinada realidade, pois em cada uma delas se faz necessário capturar suas contradições particulares, a fim de compreender seu movimento interno, qualidade e transformações sendo neste caso compreendida como um método.

Ressalta-se que alguns pesquisadores como, por exemplo, Bardin (1977), idealizadora do método Análise do Conteúdo (AC), entendem a AD como uma técnica da AC. Vale mencionar que se comunga da ideia de que a AD pode ser aplicada em conjunto com a AC ou outros métodos, dependendo dos objetivos da pesquisa, contudo, entende-se que são métodos distintos e não se considera, portanto, que a AD seja uma técnica da AC.

A AD preocupa-se em compreender os sentidos manifestados pelo discurso que ultrapassam as margens textuais, de outro modo a AC espera compreender o pensamento do sujeito por meio do conteúdo expresso no texto, numa concepção transparente de linguagem. Na AD, a linguagem não é transparente, mas opaca, por isso o analista do discurso se põe diante da opacidade da linguagem (CAREGNATO; MUTTI, 2006).

Os elementos teóricos-metodológicos da Análise do Discurso de matriz francesa vêm subsidiando pesquisas no campo da CI, principalmente na vertente de Pêcheux (LIMA; MORAES, 2017). Foucault tem sido menos referenciado, no entanto já se encontram estudos associados a ele. Nessa perspectiva, entende-se que o pensamento de outros filósofos, como Heidegger, por exemplo, pode ser aliado à AD.

Vale destacar que não foi o objetivo de Foucault, muito menos de Heidegger, criar um método pronto com etapas delimitadas de análise, mas sim reflexões epistemológicas, sendo que algumas de suas teorias também podem servir para embasar métodos, como o método AD, isto é, dependendo dos objetivos propostos em uma pesquisa, a Teoria do Poder de Foucault, no que tange a sua concepção de conhecimento e de discurso, bem como a Fenomenologia de Heidegger, de cunho existencialista que examina questões sobre ontologia e existência, considerando as conjunturas política, sociológica e econômica, podem ser aplicadas a fim de se analisar discursos em distintos contextos.

O problema desta pesquisa se apresenta a partir de duas questões: qual o legado epistemológico que Foucault e Heidegger podem trazer à AD? Partindo-se da visão de que a AD é um método, há maneiras de expressá-lo de um modo mais concreto e objetivo no âmbito das pesquisas realizadas no campo da CI? Objetiva-se inter-relacionar aspectos epistemológicos de Foucault e Heidegger, que possam servir como aportes ao método AD, e refletir sobre uma estrutura que possa ser aplicada nas pesquisas da área de CI. Para tanto, propõe-se o uso da Revisão Sistemática da Literatura (RSL) enquanto técnica, a fim de subsidiar uma apresentação mais concreta referente a aplicação da AD no campo da CI.

 

2. APORTES TEÓRICOS DE HEIDEGGER À ANÁLISE DO DISCURSO

 

Heidegger foi um dos filósofos mais influentes do Século XX, no que tange as abordagens do ser, e da distinção entre o ser e o ente. Para Heidegger (1986), ente é aquilo que existe, um lápis, um computador, uma mesa. O homem, segundo ele, seria o ente aberto ao ser, pois é o único ente que pode compreender o ser - o ser-aí ou ser-no-mundo – numa concepção mais ampla e relacional. De modo algum, é um ente já fixo tal como o ser da pedra ou de uma cadeira, categorizado, classificado, como privilegiava o pensamento clássico. O ser do homem se caracteriza por uma relação permanente de instabilidade que se mantém em si mesmo. Nessa perspectiva, Heidegger usa a pergunta “como é ser humano?” e não “o que é ser humano?”, assim, visava responder as indagações mais profundas acerca da existência em geral, pois ao contrário se fecharia um conceito. Sobre este aspecto, há outra associação ao método AD, à medida que ele também não se fecha em um conceito, isto é, aquilo que algo é, mas pretende responder como algo se apresenta no mundo que não é estático.

Sobre o método AD, Orlandi (1994, p.59) argumenta:

Com efeito, a noção de discurso, que desenvolve à linguagem, sua espessura material e ao sujeito sua contradição, coloca-se como historicamente necessária para o deslocamento dessas relações entre disciplinas e aponta para uma nova organização, novos recortes, novos desenhos de forma de conhecimento, se não se pensam mais essas regiões disciplinares (como seus “conteúdos”) mas um novo jogo entre as formas do saber.

 

Um dos objetivos fundamentais na principal obra de Heidegger (1986) “Ser e Tempo”, se refere a investigar os sentidos do ser. Heidegger estabelece a concepção de Dasein - modos de ser do ser humano – ou seja, ente como existência (ser aí), as manifestações dos modos de ser, o ente cuja essência equivale-se à existência. O ente é a existência e, como tal, é lançado a cada instante nas possibilidades de ser, de atualizar-se, de reinventar-se, portanto, na existência o ser se realiza.

Segundo Heidegger (1986) há três etapas que caracterizam a vida humana: o fato da existência, o desenvolvimento da existência e a destruição do eu. O fato da existência é o Dasein, o despertar da consciência da vida; o homem é lançado ao mundo, sem pedir para nascer e sem escolher em que condições ele viverá. No desenvolvimento da existência, o ser humano afirma suas relações com o mundo, compreendido em dois sentidos – ambiente natural e social historicamente situado. A fim de existir, projeta sua vida de acordo com as possibilidades, almejando ser o que ainda não é. Por fim, a destruição do eu implica que ao tentar realizar seu projeto, o ser humano experimenta uma série de fatores infortúnios que o distanciam da sua trajetória existencial. Isto incide num embate do eu com os outros e, neste confronto, o eu é derrotado, diluído na banalidade e nos problemas cotidianos. Em vez de autoafirmar-se, tornar-se si mesmo, isto é, acaba tornando-se o que os outros são ou atendendo as expectativas alheias.

Na acepção de Heidegger (1986), somente a angústia é capaz de fazer com que o indivíduo desperte da alienação em que foi envolto ao sacrificar seu eu, pois ela é capaz de levar o sujeito ao caminho do nada. Na busca em acabar com a angústia, o ser humano geralmente cria refúgios, a fim de se esquecer dos problemas. A fuga, segundo Heidegger, é apenas um recurso paliativo, porque somente quando o ser humano estabelece um sentido ao seu ser, enfrentando as situações, é que ele consegue transcender o mundo e a si mesmo, superando o estado de angústia.  

A princípio pode parecer que as ideias de Heidegger sejam apenas voltadas ao existencialismo filosófico ou a Psicologia, sem relação com a AD. No entanto, ao compreenderem-se os estados que caracterizam a vida humana, percebe-se o quanto as pessoas aderem irrefletidamente aos anseios da mídia, do neoliberalismo, da sociedade de massa, enfim, aos desejos dos outros e não aos próprios. O discurso massificado tem o poder de alienar as pessoas, que irrefletidamente o seguem ao anularem seu eu.

Na obra “Ser e Tempo”, Heidegger (1986) também trata da questão da linguagem concebendo-a não apenas como veículo de transmissão de informações, mas como a manifestação do próprio existir humano. Ele explica que o fundamento da linguagem não se encontra na lógica nem na gramática, mas se estabelece na constituição existencial do ‘ser-aí’, ou seja, na abertura ‘ser-no-mundo’, que é constituída de maneira cooriginária pela compreensão, disposição e discurso, cabendo a este último o caráter de fundamento ontológico da linguagem. O discurso é abordado por Heidegger somente após a discussão das demais determinações existenciais da abertura, pois é compreendido como a instância ontológica de amarração da análise existencial da abertura, ou seja, “[...] a linguagem é o pronunciamento do discurso” (HEIDEGGER, 1986, p.161).

Dessa maneira, a linguagem não pode ser compreendida por meio de análises puramente lógico-gramaticais, tal como um sistema de signos concebidos exclusivamente como dados ou como significantes puros aos quais se acrescentariam, posteriormente, significações. “Das significações brotam palavras. Estas, porém, não são coisas-palavras dotadas de significados” (HEIDEGGER, 1986, p.161). A linguagem está fundamentalmente relacionada ao fenômeno ontológico primário do ‘ser-no-mundo’, o que implica em um ser relacional, um ser contido na linguagem e que habita um mundo já ocupado por ela.

Heidegger descontrói a ideia de linguagem como um jogo de relações entre significantes e significados, um produto do pensamento moderno cartesiano, que concebe a linguagem como algo externo ao sujeito, como se houvesse um sujeito da linguagem. Heidegger propõe que esta questão seja analisada de modo reflexivo e intersubjetivo, na medida em que o ser humano é um ‘ser-no-mundo’, um ser intersubjetivo. “A comunicação tem de ser compreendida a partir da estrutura do ser-aí, isto é, ser com o outro” (HEIDEGGER, 1986, p.362-363), de tal modo que a análise ontológica da linguagem tem que ser, simultaneamente, uma análise da coexistência. Comunicar-se, nesta perspectiva, implica em partilha de sentidos entre as pessoas, visto que a linguagem não antecede o falar, isto é, não é anterior ao seu uso.

O discurso ou o falar, tal como destaca Heidegger (1986, p.62), é definido como a “[...] articulação em significações da compreensibilidade inserida na disposição do ser-no-mundo”. O discurso não designa um comportamento linguístico, mas a condição ontológica de todo comportamento linguístico. Logo, existe linguagem porque existe o discurso e não o contrário. O sentido do discurso está presente na intersubjetividade, no compartilhamento de sentidos e nos recursos que são inferidos pela pessoa para a compreensão dos significados na sua interação com o mundo. O discurso é o fundamento da linguagem, a partir da interação dos sujeitos que vão evidenciando nele sua temporalidade e a experiência do seu ‘ser-no- mundo’. Aqui, evidencia-se o caráter temporal e relacional na construção do discurso que tem sentido dentro de um contexto histórico-social, muito próximo ao pensamento de Foucault. Sob esse aspecto, Bordenave (1982, p.93) expõe que “A comunicação é [...] capaz de contribuir para a modificação dos significados que as pessoas atribuem às coisas. E, através da modificação de significados, a comunicação colabora na transformação das crenças, dos valores e dos comportamentos”.

Da mesma maneira que na concepção de Heidegger (2003), falar não é simplesmente emitir sons vocálicos aos quais se agregam posteriormente sentidos, escutar também não é apenas ouvir meros ruídos sonoros aos quais se atribuem significados posteriores. Nessa perspectiva, silenciar não é apenas calar-se e não emitir vocábulos sonoros. Falar e silenciar são atos previamente fundamentados na pré-compreensão do ‘ser-no-mundo’. Todas essas possibilidades existenciais, tais como compreensão, disposição, enunciação, escuta e silêncio, são moldadas de acordo com os modos fundamentais de ser do ‘ser-no-mundo’. Nesse sentido, Heidegger (2003, p.7) afirma que “Falamos quando acordados ou em sonho. Falamos continuamente. Falamos mesmo quando não deixamos soar nenhuma palavra. Falamos quando ouvimos e lemos e, ao invés, realizamos um trabalho ou ficamos à toa. Falamos sempre de um jeito ou de outro”.

Na AD, o discurso não pode ser compreendido apenas como um jogo de palavras combinadas numa proposição. A AD tem como intuito buscar a intenção do sujeito ao elaborar o discurso, isto é, quais os sentidos que aquele conjunto de signos expressa. O discurso sempre está relacionado à língua e à história. Buscam-se os possíveis sentidos no contexto em que ele foi constituído (SILVA, 2004). A AD não é uma interpretação de texto comum, haja vista que não incide apenas na análise de elementos internos e linguísticos do texto. Ela transcende a sintaxe, invade a semântica[3] e, ainda, vai além, agregando aspectos da Psicanálise. Os discursos são constituídos de signos, todavia, possuem um alcance maior do que apenas o de designar coisas. Para a AD, o contexto histórico-social no qual é organizado o discurso é primordial para a constatação dos efeitos de sentidos emanado por ele, ou seja, no que o discurso gera nas pessoas. Porém, segundo Orlandi (1994), o próprio silêncio ou omissão diante de uma dada situação também diz algo, mesmo que não expresso verbalmente, isto é, o sentido não está necessariamente na palavra, mas no contexto.

No olhar de Silva (2004, não paginado), “[...] a presença obrigatória do inconsciente na elaboração do discurso atesta o quanto o sujeito se apresenta “descentrado”, dividido e com o interior já constituído de tantos outros discursos [...]”. Infere-se, assim, que a “[...] historicidade deste sujeito vai sempre falar a partir da sua participação e experiência em discursos anteriores ou paralelos”. Acerca da historicidade, Orlandi (apud SILVA, 2004, s.d.) ressalta:

Eis outra via possível de se pensar a historicidade na perspectiva em que estamos colocando: a história do sujeito e do sentido. Inseparáveis: ao produzir sentido, o sujeito se produz, ou melhor, o sujeito se produz, produzindo sentido. É esta a dimensão histórica do sujeito- seu acontecimento simbólico - já que não há sentido possível sem história, pois é a história que provê a linguagem de sentido, ou melhor, de sentidos.

 

Na concepção de Silva (2004), a AD “[...] investiga a época, o lugar, os fatos políticos, as questões religiosas e tudo mais que sirva pra detectar a “formação discursiva” que condicionaram um determinado sujeito e o seu discurso”. Portanto, a AD está imbricada aos elementos: linguagem, história, sujeito e sentido.

 

3. APORTES TEÓRICOS DE FOUCAULT À ANÁLISE DO DISCURSO

Foucault foi um dos mais influentes filósofos franceses contemporâneos. A princípio sofreu influência do estruturalismo, assim como de outras correntes filosóficas, todavia, desenvolveu um pensamento próprio e bastante criativo e libertador, como argumentam Japiassú e Marcondes (2006). Foucault foi muito importante o que se refere a análise epistemológica às Ciências Humanas e o seu papel cultural, bem como influenciou o método AD. Segundo Japiassú e Marcondes (2006, p.115) “Seu ponto de partida é o conceito de episteme, uma rede de significados – uma formação discursiva que caracteriza uma determinada época nos diversos domínios da sociedade e da cultura: da literatura à ciência e da ciência à arte”.

Na obra “Ordem do Discurso”, Foucault (2012) foi capaz de verificar a proveniência dos procedimentos de exclusão e controle discursivo, e como essas forças presentes nas relações podem construir conhecimento sob o critério de verdade. Sendo assim, cada prática discursiva pressupõe um jogo de poder capaz de determinar suas escolhas e exclusões. No entanto, essas práticas discursivas – que tratam do sujeito do conhecimento e das regras usadas para elaborar conceitos e teorias – não se referem ao caráter lógico ou linguístico, isto é, não discutem a verdade ou falsidade do discurso, nem suas regras internas de sintaxe – a função de cada palavra na proposição ou sob quais regras um enunciado foi construído.

Foucault (2012) explica que há duas espécies de princípios de controle: os procedimentos externos e internos. Nos primeiros há a interdição, a segregação e a vontade de verdade. A interdição associa o discurso ao desejo de poder, o que determina que algumas palavras não podem ser ditas, ou apenas podem ser proferidas por determinados grupos que têm o direito exclusivo à certas práticas discursivas e, até ritualísticas, num determinado campo discursivo. A segregação diz respeito aos silêncios impostos pela sociedade, seja na forma de censura ou da imposição do que é moralmente aceito ou não. Por fim, a vontade de verdade que abarca os outros procedimentos, visto que em Foucault inexiste uma verdade em si, não há uma essência. O que são apenas vontades de verdade que se estabelecem por um jogo de poder em dado contexto histórico-social. A ‘verdade’ é construída coercitivamente, apoiada e distribuída institucionalmente (GREGOLIN, 2006).

O segundo grupo de princípios de controle trata dos procedimentos internos, quais sejam: comentário, autor e disciplina. A partir do comentário separam-se os discursos constituintes ou fundamentais dos que se repetem. O comentário enquanto procedimento, “[...] exerce um controle sobre o acaso do aparecimento do discurso, restringindo os textos que retornarão, que serão preservados em uma cultura e aqueles que serão esquecidos” (GREGOLIN, 2006, p.99). Dessa maneira, “O novo não está no que foi dito mas no acontecimento a sua volta” (FOUCAULT, 2012, p.26).

 O discurso de um autor está imerso numa trama histórica e tem uma função discursiva, bem como está intimamente ligado à instituição pela qual foi proclamado. Por exemplo, o discurso no fórum é um; na biblioteca é outro, que diverge do realizado no hospital, no templo etc. Logo, a análise discursiva, na acepção de Foucault, não se refere a um sujeito individual ou consciência coletiva, algo transcendental. O conceito de autoria tem que ser compreendido sob o ponto de vista histórico-social. Para Foucault, a criação da função “autor”, remonta à Idade Média, a fim de controlar a circulação dos textos através de uma assinatura que os legitimasse. O sujeito do discurso fica impresso no texto, substituindo o sujeito-indivíduo, uma vez que a escrita confere uma representação no que tange a um corpo social e uma instituição do saber. O sujeito está imerso nos rituais que determinam a qualificação, as características, as circunstâncias e os comportamentos dos que têm a permissão para falar, bem como todos os signos que envolvem o discurso, sua eficácia sob aqueles aos quais se dirigem e seu poder de coerção (GREGOLIN, 2006). Quanto à disciplina, ela é um princípio de controle na elaboração do discurso, à medida que lhe impõe regras, ditando quais os enunciados que serão tidos como verdadeiros e quais serão falsos. As doutrinas são o modo de limitar o discurso para apenas algumas pessoas (GREGOLIN, 2006).

Na obra “Arqueologia do Saber”, Foucault (2012) descreve a constituição discursiva revelando que os discursos não são tão isolados, mas existem enquanto dispersão, não havendo uma fronteira clara entre eles. Há diversas formações discursivas que concorrem entre si, nos mais variados campos, delimitando-se entre si. O historiador Roberto Machado (1982), um dos maiores especialistas em Foucault no Brasil, exemplifica a questão, trazendo o exemplo do discurso religioso. No campo religioso há diversas formações discursivas – formação católica, espírita, budista, entre outras. Embora todas elas estejam trabalhando temáticas semelhantes, as ideias inerentes a cada discurso passam por uma delimitação recíproca, à medida que se aproximam em determinados pontos e distanciam-se em outros.

 Contudo, entende-se que se trata de uma formação discursiva religiosa, a partir da comparação com outros campos do saber de uma dada época. Foucault (2012, p.50) destaca que “Os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem”. Para Gregolin (2006, p.105) “Trata-se de investigar por que determinado enunciado apareceu e nenhum outro em seu lugar, isto é, porque tal enunciado é um acontecimento na ordem do saber. Por isso é preciso afastar categorias tranquilizadoras que dão aparente continuidade”. Trabalha-se a ideia de análise discursiva concorrente, isto é, relações de antagonismos e semelhanças. Esta espécie de confronto entre formações discursivas, a respeito de uma mesma temática, pode ser realizada em qualquer campo do saber, no nosso caso tem sido no domínio do conhecimento científico. Tem-se vislumbrado os pontos de semelhança e diferenças entre o conhecimento clássico e o complexo, a partir da análise discursiva.

Outro ponto importante a ser considerado é que Foucault, a partir da compreensão de Gregolin (2006), afasta-se da história tradicional formada por elementos tais como, continuidade, linearidade, causalidade, soberania do sujeito e apresenta noções da “nova História” que se fundamenta na descontinuidade, ruptura, limiar, limite, série, transformação. Esse novo olhar histórico está na base da análise foucaultiana do discurso.

Foucault propõe quatro maneiras de identificar uma unidade do discurso: dos objetos, dos modos enunciativos das formações dos conceitos e dos temas. Para tanto, analisa cada uma delas, fazendo inferências. Mediante a análise dos objetos, conclui que não é possível estabelecer uma unidade no discurso com um conjunto de enunciados dispersos, ou seja, em momentos distintos, que tratam do mesmo objeto. Machado (1982) ressalta que o próprio Foucault, na obra “História da Loucura” (2004), constatou que o objeto loucura varia no decurso do tempo, sendo tratado de modo diverso, se torna um objeto diferente. O triunfo do discurso da razão silencia o da loucura; o místico, sábio do mundo medieval, passa a ser o louco da Idade Moderna. Porém, entende-se que há uma mobilidade na lei das epistemes, não há uma verdade absoluta que implique em teorias ou práticas absolutamente petrificadas. Sendo assim, o discurso da loucura pode se sobrepor ao da razão em outro contexto.

Pelo modo enunciativo, foi uma nova tentativa de Foucault buscar uma unidade no discurso, todavia, também não a encontra de modo absoluto. Na obra “Nascimento da Clínica” (2011) demonstra que os métodos de coleta e posições da Medicina ficaram cada vez mais heterogêneos, na medida em que ela tentava se estabelecer enquanto Ciência. Logo, a unidade não está na maneira de se explicar, de se expressar, enfim, no modo de se enunciar algo, mas sim nas regras de coleta, classificação, descrição, demonstração de dados dentro da Medicina.

Os enunciados[4] são unidades elementares do discurso que têm uma função enunciativa, produzidos por um sujeito institucional, mediante normas sócio-históricas que definem uma proposição, uma frase ou um ato de fala que pode ser ou não ser um enunciado. Em qualquer domínio do conhecimento, o enunciado é fruto de um processo dialético que alterna singularidade e repetição, pois ao mesmo tempo em que é único, está aberto à repetição, associando passado e futuro (GREGOLIN, 2006). Não trata apenas de uma análise lógico-gramatical ou semântica, mas sim, histórica.

“A História é construída por esses jogos enunciativos, pelas batalhas discursivas. Por isso ela tem uma materialidade que se expressa na existência material dos discursos” (GREGOLIN, 2006, p.93). Isto implica em dizermos, a partir de uma análise foucaultiana, que a própria História é formada por enunciados que, por sua vez, possuem uma materialidade constitutiva, que necessitam de um contexto histórico-social, ou seja, uma data e local como suporte para sua existência. Tudo isso está inserido em uma instituição, seja jurídica, literária, científica, entre outras “[...] que define antes possibilidades de reinserção e de transcrição (mas também limiares e limites) do que individualidades limitadas e perecíveis” (GREGOLIN, 2006, p.93). Há, portanto, na acepção de Gregolin (2006), um “[...] campo associativo” e um regime de materialidade que podem ser repetidos no decurso da História, pois há uma memória discursiva.

O enunciado possui um suporte linguístico, entretanto, não está subordinado à estrutura da linguagem, à sintaxe, ou seja, cada palavra tem um lugar dentro da estrutura de uma frase, como sujeito, verbo, predicado, adjunto nominal. Como explica Gregolin (2006), a partir da visão de Foucault, há estruturas matemáticas, biológicas, entre outras, que não seguem o padrão da estrutura linguística de uma frase como, por exemplo, a classificação botânica, um livro caixa contábil, uma fórmula matemática. Nem por isso, deixam de ser discursos, isto é, um conjunto de enunciados, que representam uma instituição ou domínio.

Em relação aos conceitos, Foucault (2012) destaca que, para haver certa unidade fundamentada nos conceitos, é preciso verificar o momento da sua concepção e suas regras, entretanto detecta-se que nas Ciências Humanas, abordando a questão gramatical, cada escola de pensamento já traz formações conceituais conflitantes que criam possibilidades de novas interpretações. Sendo assim, corrobora com Foucault, quando este afirma que prefere a dispersão à unidade, pois em relação a este aspecto, a necessidade de dispersão se torna mais valiosa do que a de unidade, caso contrário o conceito se torna absoluto e ninguém mais refletiria sobre a questão, se esquecendo do jogo de poder que esteve por trás da sua criação. Vale destacar sobre este aspecto a concepção de Heidegger, mais especificamente, no que diz respeito ao conceito como algo limitador do ser. Entende-se que é necessário delimitar algo, conceituando-o, entretanto, este processo é em si limitador. A partir do momento em que se conceitua ou se classifica, se fecha para novas possibilidades

No que tange aos temas, também se constata mais a dispersão do que a unidade, visto que apesar de um discurso trazer o mesmo tema ou teoria geral, traz narrativas divergentes. Por exemplo, a Teoria da Evolução proposta pelo biólogo francês Jean-Baptiste de Lamarck (1744-1829), que implica na ideia de progresso linear da espécie é, posteriormente, contestada por Charles Robert Darwin (1809-1882), geólogo e biólogo britânico, que observa a evolução a partir da descontinuidade. São tomadas de posições divergentes, apesar da mesma temática da evolução. Consta-se, portanto, que o confronto de enunciados, objetos, conceitos e temas, entendendo suas gêneses e as relações de poder que envolveram suas concepções, se faz necessário para quem trabalha a vertente foucaultiana no contexto da AD.

 Foucault (2012) afirma que o discurso não é uma cópia exata da realidade, mas uma representação culturalmente construída, visto que o poder circula pela sociedade. A partir da desconstrução histórica de sistemas ou regimes formadores de opinião, pode-se analisar o significado e alcance de um discurso, verificando o porquê certas categorias, linhas de pensamento e argumentos tomam um caráter mais verdadeiro do que outros. Frente a este cenário, o próprio discurso acaba posicionando o sujeito, definindo seu papel diante da prática discursiva. Sobre esta constatação de Foucault, Machado (1982, p.62) explica que: “A arqueologia de Foucault relaciona diferentes discursos, articulando suas formações discursivas com práticas econômicas, políticas e sociais”. Assim, Foucault objetiva especificar um método de investigação que busca compreender a ordem interna que constitui um dado saber, sem desconsiderar o aspecto histórico-social.

Mediante este prisma, o discurso como um conjunto de enunciados sob uma determinada formação discursiva regular, não é construído sem relação com o contexto histórico-social, pois ele é inserido na história e nasce a partir de relações já construídas pelas instituições e práticas de saber que lhe conferem dada positividade. Essas regularidades são pautadas em normas, chamadas de regras de formação, ou seja, as que enquadram os enunciados dentro de uma formação discursiva, como condição de existência, coexistência ou modificação que contempla a realidade no qual está inserido. “A positividade de um discurso, como o da história natural, da economia política, ou da medicina clínica, caracteriza-lhe a unidade através do tempo e muito além das obras individuais, dos livros e dos textos” (FOUCAULT, 2012, p.154).

Retomando a questão do sujeito em Foucault, o pensar do sujeito e o efeito de sentido que ele atribui ao discurso, tem uma relação direta com as instituições. Os discursos possuem uma base histórica e institucional que possibilita ou proíbe sua realização, conforme anteriormente mencionado. Diante disso, em cada trama momentânea, o sujeito, que ocupa um lugar institucional, pode usar os enunciados de certos campos discursivos em detrimento de si próprio. Machado (1982, p.61) destaca:

As regras que constroem um discurso como um sistema individualizado se apresentam sempre em um sistema de relações. Ou seja, são relações entre objetos, tipos enunciativos, conceitos e estratégias que possibilitam a passagem da aparente dispersão de elementos à regularidade, formando um único sistema vertical de dependência, em uma hierarquia de relações.

Dessa maneira, os acontecimentos em si não têm o poder de ditarem a maneira na qual são narrados. Há um jogo de poder entre os que querem aumentar os alcances ou os direitos daquela descoberta e os que, por outro lado, anseiam por minimizá-los. O significado da descoberta dependerá de pressupostos ou tendências da época em que foi promulgada. É necessário averiguar por meio de quais aparelhos de conhecimento e por intermédio de quais práticas institucionais um discurso pode ser objetivado, ou seja, de que maneira começou a fazer parte de um jogo de saber racionalmente válido e, portanto, com caráter de verdade. Nessa perspectiva, o discurso é uma prática relacional que constrói seu sentido nos enunciados dentro de uma relação de poder. Em “Vigiar e Punir”, Foucault (2014) verifica quais práticas discursivas, técnicas de poder e regime de saber instituíram o objeto prisão como o modo correto de castigo e punição.

Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua política geral de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos [...] o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (FOUCAULT, 1986, p.12).

Foucault (2012, p.132) menciona: “[...] discurso é um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva”. Os sujeitos e os objetos não existem a priori, visto que são construídos discursivamente, a partir do que se concebe acerca deles em determinado contexto como, por exemplo, a concepção de verdade na visão pós-moderna é diferente da concepção clássica. Trata-se de interrogar e relacionar quais as práticas discursivas que articulam o saber e quais as relações de força, estratégias e técnicas que articulam o exercício do poder. Além disso, uma formação discursiva está associada a certos números de enunciados, sistemas de dispersão semelhantes e na regularidade de conceitos, escolhas temáticas e tipos de enunciação que transitam sob os mais variados níveis e campos, almejando a construção do seu objeto específico.

Etimologicamente, verifica-se que ‘poder’ é uma palavra originária do Latim e indica posse, referindo-se à faculdade de se usar a força como meio para se obter determinado resultado (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2006). Diante disso, Bobbio (2011) destaca três formas básicas de poder social: poder econômico, poder ideológico e poder político. O poder econômico diz respeito à posse de bens, estabelecidos pela sociedade como necessários, a fim de induzir quem não os contempla a buscá-los, adotando certos comportamentos. O poder político implica no uso dos meios coercitivos e legalmente aceitos, tal como o uso da força policial. O poder ideológico se refere ao uso de certas doutrinas, valores, ideias, sobretudo das classes dominantes, almejando induzir as pessoas a determinadas maneiras de ser, agir ou se comportar. “Elas contribuem para manter e instituir uma sociedade de desiguais divididas em fortes e fracos, com base no poder político; em ricos e pobres, com base no econômico e em sábios e ignorantes com base no ideológico” (BOBBIO, 2011, p.83). Foucault não trabalha diretamente com a questão ideológica, diferente de Pêcheux que a coloca expressamente. Porém, implicitamente, compreende-se que Foucault quando reflete sobre o poder, traga, de certa forma, a ideologia presente nas instituições (MACHADO, 1982).

Outro aspecto tratado por Foucault (2012, p.205) se refere à noção de ruptura epistemológica que é revista em face do conceito por ele desenvolvido no âmbito da “Arqueologia do Saber”, que “[...] percorre o eixo prática discursiva – saber – ciência”, cuja acepção é condição inerente à epistemologia ignorar a instância do saber e das relações ordenadas, cuja existência material se constitui no alicerce do conhecimento científico. Esta materialidade que Foucault destaca é sempre de ordem institucional, no sentido de uma estrutura de poder. Há um jogo interno e as relações que o constituem formam o objeto de uma determinada Ciência.

Assim, na concepção de Foucault (2012, p. 241) “A Ciência sem se identificar com o saber, mas sem o obliterar ou excluir se localiza nele estrutura alguns de seus objetos, sistematiza algumas de suas anunciações, formaliza alguns dos seus conceitos e estratégias”. Nesse sentido, percebe-se que a ordem institucional que se desdobra numa estrutura de poder, apresentada por Foucault, tem vinculação com as relações de domínio na comunidade científica. A questão do poder impera e move as pesquisas. A neutralidade absoluta do pesquisador, ou os ideais que movem uma instituição são sempre questionáveis, bem como seus respectivos discursos. Como assevera Machado (1982, p.139), partindo do entendimento de Foucault, “[...] o sujeito é por um lado objeto do conhecimento; por outro é fundamento último de onde parte a construção do conhecimento”. Diante disso, Foucault (2012 p.51) explica que, primeiramente, para se analisar um discurso é preciso verificar “[...] em suas condições, seu jogo e seus efeitos, é necessário questionar nossa vontade de verdade; restituir ao discurso o caráter de acontecimento; surpreender, enfim, a soberania do significante”.

Apesar da AD, conforme mencionado anteriormente, não ter um roteiro fechado, uma sequência que imponha etapas preordenadas, apresenta alguns outros princípios, além dos princípios de controle expostos (GREGOLIN 2006). São eles:

1.   princípio da inversão: em vez de enxergar a originalidade, a origem, a continuidade, é preciso ver o jogo negativo de um recorte e de uma rarefação do discurso;

2.   princípio da descontinuidade: porque os discursos são rarefeitos não significa que para além deles reine um grande discurso ilimitado, contínuo e silencioso que fosse por eles reprimido e recalcado; sabendo disso os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas que se cruzam por vezes, mas também se excluem;

3.   princípio da especificidade: o discurso não pode ser tomado como um jogo de significações prévias; ao contrário ele deve ser entendido como uma prática, e é nesta prática que os acontecimentos discursivos encontram o princípio de suas regularidades;

4.   princípio da exterioridade: o discurso não pode ser tomado a partir de seu núcleo interior escondido, mas, a partir do próprio discurso, de sua aparição, de sua regularidade, deve-se passar à análise de suas condições externas de possibilidade [...];

5.   princípio da não evidência do sentido, da não transparência do dizer: nem tudo é sempre dito pois o dizer tem de submeter-se à “ordem do discurso”, aos dispositivos que regulam, em certa época e em certa sociedade, os saberes e os poderes (GREGOLIN, 2006, p.187, grifo nosso).

Dito isto, Foucault entende que toda sociedade possui instituições responsáveis pela circulação e pelo gerenciamento das apropriações dos discursos, o que ele denomina de apropriações sociais dos discursos (GREGOLIN, 2006).

 

4. REVISÃO SISTEMÁTICA DA LITERATURA E ANÁLISE DO DISCURSO

 

Há vários modos de viabilizar a AD, estruturando-a mais, deixando-a com um aspecto mais metodológico. Combiná-la com outros métodos, tal como a AC é uma possibilidade. Neste trabalho propõe-se aliar a AD à Revisão Sistemática da Literatura (RSL). No entanto, apenas dar-se-á alguns conceitos gerais sobre a RSL, pois o escopo principal é demonstrar que ela pode aliar-se ao método AD.

“Revisão de Literatura é um termo genérico, que compreende todos os   trabalhos publicados que oferecem um exame da literatura abrangendo assuntos específicos” (GALVÃO; RICARTE, 2019, p. 58). A RSL é uma técnica usada na área da Saúde há décadas, porém com possibilidade de ser aplicada em qualquer área do conhecimento. Este tipo de investigação disponibiliza um resumo das evidências relacionadas a uma estratégia de intervenção específica, mediante a aplicação de modos explícitos e sistematizados de busca, resultando na apreciação crítica e na síntese da informação selecionada. Em linhas gerais, a RSL pode ser aplicada por meio de distintas etapas como: perguntas sobre os objetivos da pesquisa; definição e critérios para as buscas em fontes de informação; definição de critérios de inclusão e exclusão; identificação e seleção de textos para o fichamento e posterior análise e reflexão. Segundo Sampaio e Mancini (2007, p.84):

Uma revisão sistemática, assim como outros tipos de estudo de revisão, é uma forma de pesquisa que utiliza como fonte de dados a literatura sobre determinado tema. Uma revisão sistemática da literatura (muitas vezes referida como uma revisão sistemática ou RSL) é um meio de identificar, avaliar e interpretar toda a pesquisa disponível e relevante para uma questão de pesquisa específica, ou área temática, ou fenômeno de interesse.

Nessa perspectiva, como exemplo, aplicou-se um protocolo RSL na Base de Dados de Periódicos em Ciência da Informação (BRAPCI), utilizando-se o termo ‘reflexões epistemológicas’, sem critérios de exclusão, cujo resultado de pesquisa resgatou 11 trabalhos. A partir da leitura e análise dos textos recuperados, procedeu-se o refinamento qualitativo. Na sequência aplicou-se o método AD na perspectiva foucaultiana.

Como o objetivo desta pesquisa refere-se apenas a demonstrar uma possível aplicação da AD inter-relacionada à RSL (e não demonstrar todo o protocolo da RSL), elegeu-se um trabalho publicado nos anais do Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da informação (ENANCIB), realizado em 2017, a título de exemplificação.

 

Quadro 1: Revisão Sistemática da Literatura e Aplicação da Análise do Discurso

SALDANHA, G. S.; SILVA, M. L. G. Da loucura e da arte nos limites de uma epistemologia da organização do conhecimento. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO (ENANCIB), 18., Marília, 2017.

“Este estudo, partindo de um plano teórico para discutir elementos fenomênicos, discorre sobre o papel da classificação no entendimento da loucura e suas relações com a construção epistemológica e as fronteiras aporéticas da organização do conhecimento, lançando a hipótese da loucura como um dos aparentes limites do pensamento classificatório e, ao mesmo tempo, resultado de sua “irracionalidade”. Essa compreensão não é reduzida a uma perspectiva única, mas evidencia diversos modos de reflexão sobre a realidade, incluindo o desdobramento das confluências entre loucura, arte e as práticas de representação e organização do conhecimento. Das críticas de Bernd Frohmann e Antonio García Gutiérrez contra plano mentalista da indexação aos remotos problemas da arbitrariedade das ações classificatórias, podemos identificar diferentes cenários onde a suspeição sobre a organização do conhecimento é tensionada. Dessa forma, optou-se aqui pelos lugares de tensão que aproximam ciência, arte e loucura, ou, dito de outra forma, debate-se o olhar dos domínios científico e artístico como principais campos que se debruçaram sobre o fenômeno do sofrimento e das transformações no mundo psíquico em conexão com os dilemas teórico-aplicados do pensamento classificatório. Investiga-se nesse contexto o quadro de convergências e contrastes dos domínios, destacando os processos classificatórios não somente como registros da realidade, mas em especial pelas suas cargas simbólicas de elaboração do imaginário sobre a saúde mental e os desafios teóricos da organização do conhecimento diante de tais dilemas. Como resultado das relações teóricas aqui estabelecidas, reconhece-se como abordagem epistemológica fundamental para o enfretamento de tais aporias uma filosofia das formas simbólicas, capaz de superar parte dos dilemas fronteiriços da organização do conhecimento”.

Análise do Discurso: Artigo interdisciplinar, mostrando o rompimento com as barreiras dos domínios e, portanto, com os modos enunciativos de cada um deles, incidindo numa dispersão de enunciados. O que Foucault (2012) não vê̂ como negativo, pois compreende que é melhor a dispersão à unidade”, do contrário, o conceito se torna absoluto e ninguém mais reflete sobre a questão, apresentando novas possibilidades. Nesse sentido, “Os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram e se excluem” (FOUCAULT, 2012, p.50). A classificação, em si, implica numa forma de exercício de poder, isto desde a Antiguidade com Aristóteles. À algumas instituições é dado o poder de classificar, de acordo com o que lhe for conveniente, exercendo o princípio de controle (FOUCAULT, 2012). Unir Arte, Ciência e loucura, debatendo aspectos do domínio artístico com o cientifico, incide no rompimento do princípio de controle da disciplina, abrindo um processo dialético entre domínios diversos (FOUCAULT, 2012). O artigo propõe analisar “[...] o papel da classificação no entendimento da loucura e suas relações com a construção epistemológica e as fronteiras aporéticas da organização do conhecimento [...]”. Foucault (2004) analisou o objeto loucura no decurso histórico e constatou que ele se modifica, sendo tratado de modo diverso, se torna um objeto diferente em cada contexto histórico. O triunfo do discurso da razão silencia o da loucura; o místico, tido como o sábio na Idade Média, passa a ser o louco na Modernidade. Assim, o discurso da loucura pode se sobrepor ao da razão em outro contexto.

Fonte: Elaboração própria (2021).

 

Aplicando-se as epistemes de Foucault ao texto acima, dando-se ensejo à AD, pode-se avaliar a solidez na construção textual e na expressão dos argumentos históricos-epistemológicos expostos pelos autores. Há lógica na dispersão dos enunciados que se reflete na interdisciplinaridade do texto e na evolução conceitual.

 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Em vista do que foi mencionado, o objetivo da pesquisa foi atingido, visto que pretendeu-se inter-relacionar aspectos epistemológicos de Foucault e Heidegger, que possam servir como aportes ao método AD, e refletir uma possível estrutura para aplicá-lo em pesquisas no campo da CI. Para tanto, criou-se espaço para a reflexão da importância dos estudos linguísticos mais reflexivos, aliados à Filosofia da Linguagem que possam contribuir com as Ciências Sociais Aplicadas, mais especificamente no âmbito da CI. Anteriormente à efetividade da AD, as pesquisas que envolviam linguística não ultrapassavam questões fonéticas, morfológicas, semânticas, entre outras de cunho técnico, deixando a parte os aspectos social e psicológico da prática discursiva.

 A CI é um domínio interdisciplinar que lida com muitas dimensões discursivas. Posto isto, entende-se que o método AD pode contribuir significativamente com a CI, pois traz em seu bojo a pluralidade do discurso, o que implica na possibilidade de o pesquisador integrar textos diversos na pesquisa, desde que sua construção seja lógica, isto é, apoiada na mesma formação discursiva e atenda aos objetivos propostos. Contudo, ainda há uma certa relutância do uso da AD na CI por sua forma mais teórica, ou seja, sem um procedimento preestabelecido, como se verifica em outros métodos, tais como a AC que possibilita a análise categorial, a análise de avaliação, a análise de enunciação, a análise proposicional, entre outras.

A AD, seja em qual vertente for, sugere uma leitura preliminar dos textos do filósofo que servirá de ‘interpretante’ aos textos posteriores escolhidos pelo pesquisador. A partir da leitura dos fundamentos epistemológicos, se faz necessário trazer os princípios e reflexões aos discursos preteridos. Se for um discurso já tendencioso, como os muitos políticos ou publicitários, as estratégias ficarão latentes e as práticas discursivas e seus efeitos de sentidos bem preponderantes, assim como os aspectos ideológicos. Uma pessoa que tem conhecimento na área analisada e boa capacidade crítica de análise, não encontrará grandes dificuldades, a princípio. Porém, num texto científico, literário, ou filosófico, geralmente, as nuances são mais tênues e harmônicas e não tão explícitas. É preciso aprofundar mais no texto para interpretar o seu verdadeiro sentido. Nessa perspectiva, deve-se fazer uma leitura da fundamentação teórica mais consistente e hermenêutica. 

O objetivo da AD não é estabelecer se um discurso é verdadeiro ou falso, mas sim os efeitos de sentidos e as questões subliminares. Portanto, no discurso construído com bases em preconceitos, por exemplo, serão reveladas as fragilidades inerentes àquela construção. Por outro lado, em um texto reflexivo, a tendência é que por meio da aplicação da AD, sejam reveladas toda solidez das ideias e estruturas. Assim, verifica-se a grande contribuição que AD pode aferir à CI e como Foucault e Heidegger podem ser imprescindíveis para compor o arcabouço teórico da AD, dependendo dos objetivos da pesquisa.

 

 

 

REFERÊNCIAS

BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.

 

BOBBIO, N. Estado, governo, sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

 

BORDENAVE, J. E. D. O que é comunicação. São Paulo: Brasiliense, 1982.

 

CAREGNATO, R. C. A; MUTTI, R. Pesquisa qualitativa: análise de discurso versus análise de conteúdo. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v.15, n.4, p.679-684, out./dez. 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/tce/v15n4/v15n4a17. Acesso em: 10 out. 2020.

 

CASTRO, F. F. de. Linguagem e comunicação em Heidegger. Galaxia, São Paulo, n.27, p.85-94, jun. 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/gal/v14n27/07.pdf. Acesso em: 10 out. 2020.

 

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 8.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

 

FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collége de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola, 2012.

 

FOUCAULT, M. A história da loucura. São Paulo: Saraiva, 2004.

 

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

 

FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.

 

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento das prisões. Petrópolis: Vozes, 2014.

 

GALVÂO, M. C. B.; RICARTE, I. L. M. Revisão sistemática da literatura: conceituação, produção e publicação. Logeion: filosofia da informação, v. 6, n. 1, p. 57-73, 2019. Acesso em: 04 mar. 2021.

 

GREGOLIN, M. R. Foucault e Pêcheux: na análise do discurso: diálogos & duelos. São Carlos: Claraluz, 2006.

 

JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

 

HEIDEGGER, M. A caminho da linguagem. Petrópolis: Vozes, 2003.

 

HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1986.

 

LEFEBRE, H. Marxismo. Porto Alegre: L&PM, 2010.

 

LIMA, L. M.; MORAES, J. B. E. A legitimação dos elementos teórico-metodológicos da análise do discurso na ciência da informação brasileira: um aporte da análise de conteúdo. Brazilian Journal of Information Studies: Research Trends, Marília, v.11, n.2, p.88-95, 2017. Disponível em: https://brapci.inf.br/index.php/res/download/48927. Acesso em: 10 out. 2020.

 

MACHADO, R. Foucault a ciência e o saber. São Paulo: Zahar, 1982.

 

MELLO, M. R. G. Inter-relações entre Ciência da Informação e Filosofia da Ciência: reflexões histórico-epistemológicas. 161f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Ciências da Informação, Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista (Unesp), 2020. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/193249/mello_mrg_me_mar.pdf?sequence=5&isAllowed=y. Acesso em: 10 out. 2020.

 

ORLANDI, E. P. Discurso, imaginário social e conhecimento. Em Aberto, Brasília, v.14, n.61, p.52-59, jan./mar. 1994. Disponível em: http://rbep.inep.gov.br/ojs3/index.php/emaberto/article/download/2250/1989. Acesso em: 10 out. 2020.

 

ORLANDI, E. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996.

 

SAMPAIO, R. F.; MANCINI, M. C. Estudos de revisão sistemática: um guia para síntese criteriosa da evidência científica. Revista Brasileira de Fisioterapia, São Carlos (SP), v.11, n.1, p.77-82, jan./fev. 2007. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rbfis/v11n1/en_12.pdf. Acesso em: 10 out. 2020.

 

SILVA, R. G. da. Análise do discurso: princípios e aspectos gerais. In: VIEIRA, V. R. de A.; COSTA, M. J. D.; BARROS, L. G. (Orgs.). Hispanismo 2004: língua espanhola. Florianópolis: ABH, 2004. 504p.; p.453-460. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/0B_fPPa-m93xDQ2FxeV8xQnZYc2M/edit. Acesso em: 10 out. 2020.

 

SILVEIRA BUENO, F. Minidicionário da língua portuguesa. São Paulo: FDT, 1996.

 



[1] Bacharel e licenciada em Filosofia. Bacharel em Direito. Especialista em Direito Público com capacitação para o Ensino Superior. Mestre em Ciênncia da Informaçâo. Doutoranda em Ciência da Informação (UNESP)

[2] Professora Titular da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Pós-Doutorado pela Universidad de Salamanca (USAL), Espanha. Livre Docente em Informação, Conhecimento e Inteligência Organizacional pela Unesp. Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Docente de graduação e pós-graduação da Unesp, campus de Marília. Bolsista Produtividade em Pesquisa (PQ-1D) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) na área de inteligência organizacional, gestão da informação, gestão do conhecimento e cultura informacional desde 2002.

[3] Semântica é um ramo da linguística que estuda o significado das palavras, frases e textos de uma língua, podendo ser descritiva ou sincrônica. A primeira estuda o sentido atual das palavras, bem como das figuras de linguagem; a segunda, as mudanças que o termo foi sofrendo com o decurso do tempo (SILVEIRA BUENO, 1996).

[4] As frases ou proposições são estruturas linguísticas organizadas de acordo com as regras da sintaxe. O enunciado é a realização de uma frase numa situação comunicativa específica, ou seja, dentro de uma sequência discursiva. Além de uma dimensão material do próprio texto, como as palavras e frases, na leitura de Foucault, o enunciado traz a mensagem, o sentido que é histórico e institucional (GREGOLIN, 2006).