a materialidade simondoniana e a questão da informação

Solange Puntel Mostafa[1]

Universidade de São Paulo (USP)

smostafa@terra.com.br

Igor Soares Amorim[2]

Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

amorim.igors@gmail.com

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Resumo

A noção de informação cristalizou-se na área sob uma perspectiva da Teoria Matemática da Informação, sob o enfoque da comunicação, todavia, essa não é a única semântica possível. Gilbert Simondon utiliza o conceito de informação como elemento envolvido no processo de individuação. Em diálogo com a filosofia de Deleuze e as contribuições do pesquisador Faucher este ensaio explora a ontologia de Simondon a fim que recolocar o conceito de informação à Ciência da Informação. Para Simondon não há indivíduo físico, biológico, psíquico ou social sem informação. A informação implica o devir da e na matéria. Sob tal fundamentação, a Ciência da Informação realiza-se no ciclo virtual-intensivo-atual enquanto segue a materialidade que devém na medida em que se informa e se individualiza. À Ciência da Informação é aberta a possibilidade de pensar a informação enquanto força intensiva sobre um plano imanente.

Palavras-chave: Informação. Individuação. Simondon. Deleuze. Epistemologia.

 

SIMONDONIAN MATERIALITY AND THE QUESTION OF INFORMATION

Abstract

The notion of information crystallized in the area from the perspective of the Mathematical Theory of Information, under the focus of communication, however, this is not the only possible semantics. Gilbert Simondon uses the concept of information as an element involved in the individuation process. In dialogue with Deleuze's philosophy and the contributions of researcher Faucher, this essay explores Simondon's ontology in order to put the concept of information back to Information Science. For Simondon, there is no physical, biological, psychic, or social individual without information. Information implies the becoming of and in the matter. Under such a foundation, Information Science takes place in the virtual-intensive-current cycle while following the materiality it owes as it is informed and individualized. Information Science is open to the possibility of thinking about information as an intensive force on an immanent plan.

Keywords: Information. Individuation. Simondon. Deleuze. Epistemology.

1  INTRODUÇÃO

Um exemplo do pensamento fenomenológico na Ciência da Informação concentra-se no texto de Capurro e Hjorland (2007) e dela extrairemos apenas seu comentário sobre o nascimento do termo “informação” entre os gregos antigos.  É que, ao analisar o hilemorfismo e a compressão do universo como a união da forma e matéria, Capurro e Hjorland concluem que a partir da modernidade, ficou fora de moda pensar assim. ele detalha o período medieval em que alguns como Tomás de Aquino e Santo Agostinho, por exemplo, valorizava o aspecto pedagógico da formação das almas. No século 17 para o 18 abandonou-se a matéria e a questão ficou sendo a mente, como a Forma molda a Mente, a ponto de Descartes cunhar a expressão Formas de Pensamento. Isto lembra Kant e os seus apriori. Por exemplo Espaço e Tempo como aprioris da sensibilidade. Tempo e espaço nós só podemos sentir, são formas a priori da sensibilidade. Ainda em Kant, as formas do entendimento são também a priori: a Qualidade, Quantidade, Relação, Modalidade de modo que a mesma crítica que se faz a Kant por causa dos apriorismos, pode-se fazer a Aristóteles por causa da Forma como uma entidade exterior à Matéria, como um apriori. Em Aristóteles, a forma existe como um modelo fixo e a matéria também. Foi um filósofo do século XX chamado Gilbert Simondon que explicitamente colocou a questão da Informação neste processo de individuação, valorizando uma fase do Ser que ele chamou de pré-individual, antes do individuo. Antes da árvore ser árvore, antes do cão ser cão, antes da gente ser quem somos.

 A concepção de Aristóteles engloba uma visão de mundo em que individuação ou o tornar-se indivíduo vem depois do indivíduo constituído. Em Aristóteles temos o gênero, a espécie e o indivíduo. O indivíduo é indivisível, seja a árvore ou o animal. Individuo significa indivisível, pronto, acabado e dotado de uma essência imutável.  Esta fixidez perde a noção de movimento da matéria que talvez só tenha vindo com a física de Newton no século 18 que entendeu a matéria como movimento, fluxo, corpúsculo, luz.  O século XIX não inventou a partícula, mas continuou a enriquece-la ligando-a a um campo, como afirma Simondon (2020 p.138).

Outro gigante que viu isso ainda no século XIX foi o filósofo Henri Bergson o qual entendeu a matéria como luz, movimento e imagem. Quanta novidade: matéria é imagem!

E a grande contribuição de Bergson foi trazer para o século XX uma nova concepção de tempo pois a concepção do Aristóteles atrapalhou e confundiu o tempo com o espaço. Para Aristóteles, o tempo é a medida do movimento, o tempo é o número do movimento. E Bergson entendeu que esta subordinação do tempo ao espaço, ou esta espacialização do tempo não deixou ver que a intensidade do Tempo, o Tempo como Duração, o tempo como uma coexistência entre o passado que se acumula, o presente que não para de passar e o futuro que afinal, tambem determina o nosso presente. Esses três tempos não são lineares, eles se misturam dentro e fora de nós.

Se Simondon fala em realidade pré-individual, Bergson fala em realidade virtual. Parece-nos então que estão falando algo muito parecido. A matéria em Bergson só vira um indivíduo por uma dinâmica no ciclo virtual-intensidade-atual. Em Simondon a individuação se dá por uma diferença de potencial no ser que se defasa ou se diferencia de si mesmo. Ambos estão muito distantes do hilemorfismo aristotélico porque ambos foram leitores de Newton com uma nova compreensão da matéria e do tempo.

Capurro e Hjorland, em discussão sobre o conceito de informação ainda fala num outro gigante que é Leibniz (em conversa publicada) referindo-se ao livro de um dos austríacos do “trilema de Capurro”.

Se o Bergson falou em Matéria e Memória, Leibniz traz as mônadas e Capurro e Hjorland se referem a Leibniz como Monadas e Matéria.  Pois as mônadas são forças psíquicas. Não importa se é uma mônada inerte, viva ou humana, não importa se é uma montanha, uma flor ou uma pessoa, a mônada tem em maior ou menor grau, forças psíquicas (a mônada é desejo, crença, percepção, memória). A montanha também percebe o mundo, a matéria também guarda, como em segredo, o tempo, a memória. E o importante é que cada coisa do mundo é um espelho do universo, no sentido em que cada coisa é um pedacinho do infinito do camundo. E esse infinito ronda a coisa e nos faz ser outros o tempo todo, tudo sempre em transformação. É a noção de inconsciente cosmológica desses grandes filósofos.

 

Individuação, forma e informação em Simondon

Gilbert Simondon inicia o seu livro recentemente traduzido para o português, apresentando as duas realidades de tratamento do ser: a via substancialista que considera o ser como uma unidade, “dado por si próprio, fundado sobre si mesmo não engendrado, resistente ao que não é ele mesmo” (2020, p. 13) e a via do hilemorfismo que considerara o indivíduo como o resultado da união de forma e matéria. Apesar de diferentes, ambas as vias têm algo em comum que é pressupor um princípio de individuação anterior à própria individuação.

Ora, o que é o indivíduo?

Podemos entender o indivíduo informalmente (ou grosso modo) como tudo aquilo que pode ser apontado com o dedo. A querela dos universais da Idade Média revelou que as abstrações universais eram apenas nomes das coisas e Simondon (2020, p.112) elogia o medievalista Abelardo pela sua distinção entre nominalismo e realismo. Pode-se nomear o individual de duas maneiras: com pronome demonstrativo e mais um nome comum, por exemplo, este homem, esta cadeira, aquele copo ou aquela mulher (ULPIANO, 1995).  Todo substantivo comum mais um artigo definido chama-se universal, tal como o homem, a cadeira, o planalto. No caso do indivíduo, haverá sempre um referente após o nome. Já os nomes que se referem aos universais não têm referente. Pois bem, Simondon (2020) deixa claro já no título do seu livro que irá analisar a individuação à luz das noções de forma e informação. E já na primeira página do livro ele afirma serem as duas abordagens, substancialista ou hilemórfica concessivas ao indivíduo constituído, posição contra a qual ele se debaterá fortemente. Pois esta posição resulta fora, do exterior do processo de modelagem e distante da matéria. A união de forma e matéria desta maneira disjuntiva é aristotélica e receberá toda a crítica da inovação simondoniana. Como nosso pensamento é tensionado para o ser individuado completo, ficamos com a sensação que “existe uma sucessão temporal: primeiro existe o princípio de individuação; em seguida este princípio efetua uma operação de individuação; e por fim, o indivíduo constituído aparece” (SIMONDON, 2020, p. 15).

Se ao invés de considerarmos a ontogênese em seu sentido restrito como gênese do indivíduo Simondon propõe que ela designe o devir do ser, “aquilo por que o ser devém enquanto é, como ser” (SIMONDON, 2020). Afirma então que o devir é uma dimensão do ser ou aquela capacidade do ser de se defasar em relação a si mesmo. No ser pré-individual não há fases, mas a individuação corresponde a fases do ser e seria necessário considerar o ser não como substância, ou matéria ou forma, mas como “sistema tenso”, supersaturado, acima do nível da unidade.

Não completamos a segunda página do livro e já temos apontamentos para uma reviravolta na busca do princípio de individuação, na qual Simondon vai considerar o individuo como uma fase do ser e que supõe antes dela, uma realidade pré-individual.

E mais, a individuação não esgota os potenciais da realidade pré-individual, fazendo aparecer não apenas o indivíduo, mas o par individuo-meio.

O ser individuado é a um só tempo só e não só. Ele é só enquanto individuado e não só porque carrega a carga pré-individual da qual ele emerge. E porque o indivíduo cria o meio ao mesmo tempo em que se diferencia de si. O individuo estará sempre num equilíbrio metaestável; como o indivíduo traz consigo o pré-individual, o indivíduo já está mergulhado no metainstável.  Simondon diz que a individuação não tinha ainda sido pensada e descrita adequadamente porque os antigos só conheciam o equilíbrio estável, que exclui o devir. Os antigos só conheciam a instabilidade e a estabilidade, o movimento e o repouso “não conheciam clara e objetivamente a metaestabilidade” (SIMONDON, 2020, p.18). Para conhecê-la Simondon introduz noções da física quântica do século 20 como “energia potencial de um sistema”, “ordem” e o “aumento da entropia”. Traz três exemplos sobre a individuação física (pois o processo atingirá também a individuação vital e a psicológica). Para o caso dos objetos físicos o autor sugere 1) o caso dos cristais; 2) a construção de um tijolo. e 3) o funcionamento de um amplificador com transístores). Mas o autor vai além da individuação física abrangendo também a vital e a psíquica. O princípio da individuação não muda de natureza nos três casos, o que há é um regime de individuação. Até porque a vida vem da matéria e então é preciso verificar como a matéria viva se individua. E como é a passagem do vivo para o psíquico?  A individuação psíquica é uma dilatação, uma expansão da individuação vital. O psiquismo expressa o vital e, correlativamente, uma certa carga de realidade pré‑individual. A individuação coletiva segue o mesmo modelo, como uma nova camada de individuação do ser.

São seis os conceitos imprescindíveis de Simondon:

a)      individuação

b)      transindividual

c)      transdução

d)      metaestabilidade

e)      hilemorfismo

f)       informação.

Todos esses conceitos estão interligados. Como a individuação é um processo que ocorre em todos os sistemas, seja físico, vital ou psíquico, o transindividual se põe para a individuação do sistema vivo.

Toda individuação requer a existência de um estado metaestável, isto é, um estado de disparação, em que há diferença de potencial no sistema considerado.  A transdução é uma espécie de reconversão de sinais: “por transdução entendemos uma operação – física, biológica mental, social – pela qual uma atividade se propaga de próximo em próximo no interior de um domínio” (SIMONDON, 2020, p.29). Simondon exemplifica com o cristal: “um cristal que, a partir de um germe muito pequeno, cresce e se estende por todas as direções e sua água-mãe, fornece a imagem mais simples da operação transdutiva” (SIMONDON, 2020, p.29). O termo transdução já existia na área de eletrônica por exemplo, nossos olhos convergem luz em impulsos elétricos para o cérebro; o microfone transduz ondas sonoras em impulsos elétricos. Mas para Simondon, a transdução não é somente esta conversão sinalética, mas é a estruturação reticular e recursiva em que o patamar anterior dá vezes ao patamar que irá se formar. Como ele afirmou acima “uma atividade que se propaga de próximo em próximo no interior do domínio” (SIMONDON, 2020, p.29). O autor esclarece que a individuação “não é uma síntese dialética ou um retorno à unidade, mas defasagem do ser a partir de seu centro pré-individual de incompatibilidade potencializada” (SIMONDON, 2020, p.29). Esta concepção da individuação disparativa permite uma nova teoria do problemático que substitui as concepções da dialética e da contradição.

E a informação? A informação é a fórmula da individuação. Fórmula que não pode preexistir à individuação. A informação é uma exigência da individuação, jamais uma coisa dada. A informação nunca pode ser depositada numa forma que pode ser dada; ela é a tensão entre dois reais díspares. A informação não é um termo, ela supõe tensão de um sistema de ser. A informação só pode ser inerente a uma problemática. A informação supõe uma mudança de fase do sistema. “Poder-se-ia dizer que a informação está sempre no presente, atual, porque ela é o sentido segundo o qual um sistema se individua” (SIMONDON, 2020, p.29). Há aqui uma nota de rodapé na qual Simondon explicita que não vai contestar a validez das teorias quantitativas da informação e das medidas da complexidade (a menção à Teoria Matemática da informação de Shannon e Weaver é pertinente). Mas terá que mencionar o estado do ser pré-individual naquele presente da informação. Pois este estado do pré-individual dá à informação uma condição sinalética anterior a qualquer emissor ou receptor ou mesma anterior à transmissão da mensagem.  A informação age na matéria como uma pisca a direcionar a individuação; Simondon a chama de “informação primeira”. E o que ele quer com esta pesquisa é substituir a noção de forma e matéria pela noção de informação primeira, acompanhada de noções como ressonância interna, potencial energético e ordens de grandeza. Não é, portanto, a mesma noção da teoria clássica da informação de Shannon e Weaver.  Simondon (2020) busca um conceito mais forte de informação ligado às intensidades ou a um processo intensivo de diferenciação. Termina a introdução do livro reiterando que: “a noção de forma deve ser substituída pela de informação, a qual supõe a existência de um sistema em estado de equilíbrio metaestável; a informação, diferentemente da forma, nunca é um termo único, mas é a significação que surge de uma disparação” (SIMONDON, 2020, p. 33). E mais: “no curso desta substituição, a noção de informação jamais deve ser reduzida aos sinais, suportes ou veículos de informação numa mensagem, como a teoria tecnológica da informação, inicialmente extraída por abstração da tecnologia das transmissões, tende a fazer” (SIMONDON, 2020, p.34). O autor convoca o leitor a salvar a informação de uma visão reducionista, primeiro da redução hilemórfica entre os gregos, depois é preciso também diferenciar da teoria das formas da Gestalt e finalmente da teoria matemática da informação.  Pois nos três casos há, segundo Simondon uma inerência das significações ao ser, um hilemorfismo e ele gostaria de descobrir a informação no processo de individuação. A importância de Simondon é justo ele ter identificado, a partir de Aristóteles, um certo hilemorfismo em toda a ciência ocidental até o século XX.

 

3 O empirismo transcendental de Deleuze

Será necessário completar um pouco mais a individuação à luz das noções de forma e de informação em Simondon para discutir as questões pertinentes à Ciência da Informação, mas faremos algumas pinceladas para ir situando o nosso problema. Temos discutido o empirismo transcendental de Deleuze nos últimos anos tendo em vista a sua absorção pela Ciência da Informação. Assim tivemos oportunidade de aprofundar alguns filósofos estudados por Deleuze, por exemplo o empirismo de David Hume no Tratado da condição humana em que os tipos de associação de idéias ali propostas foi-nos útil para propor tal empirismo na construção das relações associativas do tesauro (MOSTAFA & NOVA CRUZ, 2009) este instrumento bibliotecário das linguagens documentárias; propusemos também o conceito filosófico de Linguagem Documentária Menor (MOSTAFA, 2010) para evidenciar a necessidade de entender a linguagem com uma “outra” filosofia da linguagem; introduzimos a noção de informação-afeto (NOVA CRUZ; MOSTAFA, 2014) através de nossas leituras de Espinosa e ultimamente vimos falando em leitura-esquizo (MOSTAFA, 2018) para desviar das maneiras - sempre fenomenológias - de pensar o ato de ler. Grande atenção dedicamos ao filósofo Bergson nas análises realizadas no estágio de pos-doutoramento por onde embasamos pesquisas de imagens fílmicas, em vários artigos publicados no período 2018-2021.

Hume, Espinosa, Bergson ... faltava aprofundar Gilbert Simondon em nosso percurso teórico no rol de filósofos estudados por Deleuze. A recente publicação em português dos livros de Simondon, em 2020, tornou inadiável este escrutínio. E o contraponto das idéias de Simondon e Deleuze torna-se também um imperativo para os estudiosos da filosofia da diferença.   

São também seis (6) os conceitos imprescindíveis para Deleuze:

a)      Multiplicidades

b)      Relações

c)      Devir

d)      Afeto

e)      Acontecimento

f)       Agenciamento

O empirismo transcendental do Deleuze vai exigir em primeiro lugar que entendamos a realidade como multiplicidade. A multiplicidade é central nas Ciências Sociais. Isto vai ter várias consequências. Pois o que é a multiplicidade? O próprio Deleuze explica que a multiplicidade não é a diversidade, as várias coisas. Nem é o fato de que cada coisa é múltipla em si mesma. A multiplicidade não é apenas uma resistência à unidade. Ao dizer que multiplicidade não são as várias coisas nem resistência à unidade, Deleuze avança para mostrar que multiplicidade tem a ver com as relações. O que conta não são os termos, mas o que se passa no meio. É aquela famosa frase no livro sobre o David Hume escrito na década de cinquenta: as relações são exteriores aos termos e esta é toda a riqueza do empirismo inglês.  Parece que Deleuze se encanta ao descobrir isto na leitura de Hume. Ele diz isso várias vezes. A riqueza do empirismo inglês, diz ele, não é o que lemos nos manuais, que tudo vem pela experiencia, pelo sensório. Isto poderíamos dizer até de Platão. A riqueza do empirismo do século dezoito é entender que as relações são independentes dos termos.

Onde estão as relações? Justo no meio das coisas, pois são elas que conectam as coisas. Temos que olhar para o que está entre e isto é um desafio metodológico. Ora, o que está entre é o devir. O devir não é um movimento para sair das identidades, dos lugares de origem? Então é uma sequência de conceitos: multiplicidade, relações, devir e o afeto, o sempre ignorado afeto. O afeto não como sentimento, mas como variação contínua de um corpo ou de um pensamento. Aquilo que movimenta os corpos. Seja o nosso corpo seja o corpo do carrapato no alto da árvore.  Sou afetado pela mamadeira de piroca então saio disparando fakenews. Na Ciência da Informação ainda não conseguimos dizer regime afetivo de informações. Repetimos à exaustão o “regime de informação”. Mas onde entra o afeto na Ciência da Informação?  O afeto é o devir não humano do homem. O devir abre a forma homem para modos não humanos de individuação. A gente olha a flor e quase se torna uma flor. É isso o devir, esse movimento. Todo devir é minoritário, é um elemento novo que desgruda de onde estava.

A multiplicidade pode ser entendida em termos de agenciamento, que é um agrupamento temporário de relações. O agenciamento é temporário porque não termina, é aberto, em excesso com o atual ou contendo o virtual nele. Neste sentido a abordagem deleuziana do social, a abordagem das cartografias ou das análises nômades é tanto um mapeamento do que é fixo quanto do que está em devir. Está acontecendo. O desafio metodológico é entrar pelo meio, é relacionar. Deleuze afirma que para trabalhar com as multiplicidades é necessário um estilo particular de empirismo. Aquele que despreza os universais e começa com experiencias singulares e traçando os caminhos nos quais o virtual é atualizado, podendo ser atualizado diferentemente.

Deleuze e Guattari discutem no volume 5 de Mil Platôs (1997, p. 29) as metodologias da ciência tradicional que chamam de régia e da ciência nômade que estão trazendo para a discussão das ciências sociais neste livro. Apontam o maior traço distintivo entre elas numa nova divisão do trabalho onde no caso da ciência nômade, “ela segue as conexões entre singularidades de matéria e traços de expressão, e se estabelece no nível dessas conexões, naturais ou forçadas”.

A essas observações, os autores acrescentam uma nota de rodapé aludindo à solução de Simondon para o problema da rigidez do esquema antigo entre forma e matéria. Fazem-no citando o livro de Simondon (1964) “O indivíduo e sua gênese físico-biológica” livro prévio e parte do livro-tese de doutorado que estamos analisando. E logo Deleuze e Guattari (1997, p. 33) elogiam os instrumentos matemáticos da nova ciência, como as equações integrais, o cálculo diferencial: “Se há ainda equações, são adequações, inequações, equações diferenciais irredutíveis à forma algébrica, e inseparáveis por sua vez de uma intuição sensível da variação. Captam ou determinam singularidades da matéria em vez de constituir uma forma geral. Operam individuações por acontecimentos ou hecceidades, e não por "objeto" como composto de matéria e de forma”. Somos de fato forçados a seguir quando estamos à procura das "singularidades" de uma matéria ou, de preferência, de um material, e não tentando descobrir uma forma. Assim o procedimento da ciência nômade é seguir o fluxo de matéria, traçar e conectar o espaço liso.

 

4 Simondon e as formas implícitas da operação técnica

Seguir o fluxo da matéria como diz Deleuze e Guattari nos Mil Platôs é toda a preocupação de Simondon na seção Significação física da tomada de forma técnica (2020). A questão da individuação não implica apenas matéria e forma, mas “matéria, forma e energia, singularidade” (SIMONDON, 2020, p. 59). Para que haja a tomada de forma é preciso que “a matéria bruta, já antes de toda elaboração contenha algo que possa formar um sistema conveniente...é no mundo natural que esta condição deve ser buscada” (SIMONDON, 2020, p. 59). Simondon faz ressurgir uma filosofia da natureza, à moda dos pré-socráticos.

Embora o autor prefire a individuação do cristal como exemplo da individuação do objeto físico, vamos nos deter no exemplo da madeira.

O exemplo da madeira: o autor passa a descrever a atitude do carpinteiro na floresta em busca da eicceidade da matéria bruta. Após seguem-se longas descrições sobre a adequação do instrumento de trabalho no preparo da matéria bruta, num segundo nível de eicceidade. Neste nível é preciso respeitar não a geometria das formas, mas as formas topológias do material que constituem uma ecceidade parcelar, uma informação possível topológica que constituem uma ecceidade parcelar, uma informação possível que não falha em ponto algum. Saber utilizar os instrumentos não é somente a realização de gestos necessários, mas “saber reconhecer através de sinais que chegam ao homem pela ferramenta, a forma implícita da matéria que está sendo elaborada, no preciso local que a ferramenta ataca” (SIMONDON, 2020, p. 62). Assim o autor compara ferramentas como desbastador, serra mecânica, torno e plaina em relação a tipos de madeiras e formas específicas. Enfim há uma “ecceidade elementar da matéria trabalhável que intervem de maneira absoluta na elaboração, impondo forma implícitas, limites que não podem ser ultrapassados” (SIMONDON, 2020,  p. 63). Conclue Simondon (2020) que não é a matéria enquanto realidade inerte, mas a matéria portadora de formas implícitas que impõe limites prévios à operação técnica. Percebe-se uma ambivalência hilemórfica quando se coloca o acento da individuação seja na matéria, seja na forma. 

 

5 Simondon e a crítica social

Simondon não é um sociólogo; aproxima-se mais da física e engenharia com notáveis conhecimentos em mecânica, eletrônica, hidráulica e termodinâmica. E conhece também a filosofia. Alguns capítulos do seu livro exigirão conhecimentos matemáticos do leitor expecialmente quando ele discute a teoria relativista e a teoria quântica. Mas não passará desapercebida as condições sociais da sociedade grega em que há os homens que dão ordens e os escravos que obedecem. Os mandantes acreditam que a individuação se dá por conta da matéria. Os operários investem na informação, seu campo de trabalho.

“O homem que dá ordens de execução, mas não as cumpre e só controla o resultado tem tendência a encontrar o princípio de individuação na matéria, fonte da quantidade e da pluralidade, pois este homem não experimentava o renascimento de uma forma nova...” (SIMONDON, 2020,  p.69). Já os gestos do obreiro nunca são exatamente os mesmos; “fadiga, o estado global da percepção e da representação intervém nessa operação particular de cada ato de fabricação, traduzindo-se na realidade do objeto”. Para o obreiro, “a singularidade, o princípio de individuação, estariam então na informação” (SIMONDON, 2020, p. 69-70). Pois para ele, a matéria é a matéria preparada, ao passo que ela é a matéria bruta para o que ordena sem trabalhar. 

Simondon vai mais fundo nesta crítica ao dizer que o apego do proprietário da madeira ou o proprietário dos minerais também está ligado à pertença ou a origem, “algo que está ligado a ele, que ele vigiou e viu crescer: para ele, o concreto primitivo é o concreto é a matéria enquanto ela é dele e lhe pertenca, e essa matéria deve prolongar-se nos objetos que resultarão da tomada de forma” (SIMONDON, 2020, p. 71). Daí que conclue que a ecceidade da matéria não é puramente material; ela é também uma “ecceidade relativamente ao sujeito” (SIMONDON, 2020, p.72). Além de fazer a dura crítica a Aristóteles e Platão, esses senhores de escravos da antiguidade, Simondon reconhece que ainda em nossos dias, a busca pela ecceidade na matéria existe no homem que comanda o artesão. O autor chama de lado obscuro do hilemorfismo esta cegueira acerca da individuação enquanto ela acontece. O autor vai precisar então do conceito de sistema para descrever corretamente o processo no qual o princípio de individuação toma forma. Matéria e forma devem ser reunidas num único sistema por uma condição energética de metaestabilidade (SIMONDON, 2020, p.76). Neste sistema está implicado o meio associado. O indivíduo é seu limite e seu meio associado. E neste sistema, “o que é primeiro é esse sistema da ressonância interna, singular, da relação alagmática entre duas ordens de grandeza” (SIMONDON, 2020, p77).

 

6 O Simondon de Deleuze

Giles Deleuze foi um dos filósofos que se utilizou da obra de Gilbert Simondon. Metaestabilidade, devir, disparação, pré-individual e singularidade são conceitos simondonianos que passaram a compor a filosofia da diferença de Deleuze.  Mas também são discretas as menções de Deleuze a Simondon, apesar de explícitas.

Em Diferença e Repetição a noção de intensidade aparece como a razão do sensível e intensidade é diferença. Deleuze (2000, p. 361) esclarece que “a diferença não é o diverso. O diverso é dado, mas a diferença é aquilo pelo qual o dado é dado como diverso”.  Segue dizendo que tudo o que se passa e que aparece é correlativo das ordens de diferenças: diferença de nível, de temperatura e pressão, de tensão, de potencial, diferença de intensidade (Deleuze faz notar a expressão diferença de intensidade com letras inclinadas). Ainda aponta que a expressão diferença de intensidade é uma tautologia, pois a intensidade é a forma da diferença como razão do sensível. Cada intensidade revela o conteúdo qualitativo da quantidade: “Chamamos disparidade a este estado da diferença infinitamente desdobrada, ressoando infinitamente” (DELEUZE, 2000, p. 362). Iguala os três termos: diferença, intensidade e disparidade como a razão suficiente do fenômeno, a condição daquilo que aparece.

Com isto Deleuze enfrenta Kant com o apriorismo do espaço e do tempo. Não é o tempo e o espaço a razão do sensível, mas o desigual em si, a disparação tal como ela é compreendida e determinada na diferença de intensidade, na intensidade como diferença. E mais a frente Deleuze está discutindo a diferenciação em relação à ideia que se atualiza. E sem mais afirma que o processo essencial das quantidades intensivas é a individuação. A intensidade é individuante, as quantidades intensivas são fatores individuantes. Deleuze elabora o seguinte raciocínio: “Gilbert Simondon mostrou recentemente que a individuação, supõe em primeiro lugar um estado metaestável, isto é, a existência de uma disparação como duas ordens de grandeza ...entre as quais potenciais se repartem”. (DELEUZE, 2000, p. 397). A distância entre estas ordens de grandeza faz surgir um “campo problemático” – a individuação surge como o ato de solução para tal problema.

Em A Lógica do Sentido encontraremos a noção de singularidade para trabalhar um importante conceito de acontecimento. Como o livro é construído por séries e não capítulos, a discussão está na nona serie: “do problemático”. Inicia a nona série perguntando: “o que é um acontecimento ideal? É uma singularidade” (DELEUZE, 2007, p.55). A singularidade é um termo oriundo da matemática. Os lados de um quadrado têm uma maioria de pontos ordinários que formam a reta dos lados. Próximo à curva dos ângulos retos existiriam pontos singulares passíveis de serem mensurados com o cálculo diferencial, o cálculo das curvas. Deleuze menciona o poeta francês Péguy (1875-1914) como um escritor que percebeu que “a história e o acontecimento eram inseparáveis de tais singularidades”. Menciona também um romântico alemão do século 18, Novalis defensor de dois tipos de acontecimentos, os ideais e os imperfeitos e Deleuze logo corrige esta repartição, dizendo que o problema não é tipológico mas temporal. O tempo do acontecimento é sem tempo, “seu tempo não é nunca o presente, que os efetua e os faz existir, mas o Aion ilimitado, o Infinitivo em que eles subsistem e insistem” (DELEUZE, 2007, p. 56). Esclarece também que “o modo do acontecimento é o problemático...os acontecimentos concernem exclusivamente aos problemas e definem suas condições ... um problema, com efeito, não é determinado senão pelos pontos singulares que exprimem suas condições”.

Na décima quinta série chamada “Das singularidades”, Deleuze vai analisar o campo transcendental sem sujeito. “Longe de serem individuais ou pessoais, as singularidades presidem à gênese dos indivíduos e das pessoas. Elas se repartem em um potencial que não comporta por si mesmo nem Ego (Moi) individual, nem Eu (Je) pessoal mas que os produz...” (DELEUZE, 2007, p. 105). Deleuze está discutindo nesta série a individuação biológica e psíquica e após as colocações famosas como “o mais profundo é a pele” afirma que “Gilbert Simondon diz muito bem: o vivo vive no limite de si mesmo, sobre seu limite [...] a polaridade da vida está no nível da membrana [...]” (DELEUZE, 2007, p.105). Ao discutir a membrana do corpo vivo, Deleuze abre uma longa nota de rodapé para completar o sentido do livro de Simondon: “[...] todo o livro de Simondon nos parece de uma grande importância porque representa a primeira teoria racionalizada das singularidades impessoais e pré-individuais” (DELEUZE, 2007, p. 106). A nota de rodapé segue dizendo que a partir das singularidades Simondon demonstrou a gênese tanto do indivíduo vivo como do sujeito cognoscente. Tratar-se-ia para Deleuze de “uma nova concepção do transcendental” que então teria cinco características:  potencial do campo, ressonância interna das séries, superfície topológica das membranas, organização do sentido e estatuto do problemático, todas diz ele, analisadas por Simondon. Deleuze fecha a décima quinta série lembrando de Nietzche que, após se livrar de Shopenhauer e Wagner pode explorar um mundo de singularidades impessoais e pré-individuais, “mundo que ele chama agora de dionisíaco ou da vontade de potência, energia livre e não ligada”. (DELEUZE, 2007, p. 110). E Deleuze conclue: É esta singularidade livre, anônima e nômade que percorre tanto os homens, as plantas e os animais independentemente das matérias de sua individuação e das formas de sua personalidade: super-homem não quer dizer outra coisa, o tipo superior de tudo aquilo que é. 

Mil platôs, neste livro complexo, Simondon vai aparecer em plena conferência do professor Challenger, no final do volume 1 dessa obra, ao explicar a formação da terra no platô chamado “A geologia da moral (quem a terra pensa que é?)”. Diz o professor que a terra é um corpo sem órgãos! Corpo atravessado por “matérias instáveis não-formadas, fluxos em todos os sentidos, intensidades livres ou singularidades nômades, partículas loucas ou transitórias” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, P. 53). Toda a explicação da formação da terra tem uma inspiração simondoniana; esta conferência imaginária do professor Challenger é incompreensível sem a crítica simondoniana do hilemorfismo. Junto a Guattari, Deleuze menciona explicitamente a formação dos cristais e a do estrato orgânico e o funcionamento destas individuações e a relação entre interior e exterior, remetendo o leitor ao livro de Simondon para esta compreensão e também para o caso do limite e da membrana e para as especificidades do molde, da modulação e da modelagem, as expressões simondonianas da tomada de forma na individuação física. A transdução aparece entre os estratos “que dão conta quer da amplificação de ressonância entre molar e molecular, independentemente das ordens de grandeza” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.77). Muitos outros autores da biologia, da geologia ou da linguística compõem este platô. Mas é visível a presença de Simondon no espírito do platô como um todo, mais do que nas menções explícitas a ele.

Mas é notável também a inspiração simondoniana no volume quinto dos Mil Platôs, especialmente na abertura do livro em item intitulado Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. O platô inicia-se com a discussão sobre o aparecimento do Estado e logo discute o conceito de máquina de guerra como uma exterioridade ao Estado. Segue-se a discussão sobre os dois tipos de ciência, a nômade e oficial de Estado. Aqui começa a reforma que Deleuze e Guatarri (1997) promovem nas categorias de forma e matéria, já realizada no primeiro volume da mesma obra. Na reformulação realizada também na linguística de Hemjlev, eles introduzem as categorias de conteúdo e expressão: “É assim que para a ciência nômade a matéria nunca é uma matéria preparada, portanto homogeneizada, mas é essencialmente portadora de singularidades (que constituem uma forma de conteúdo). E a expressão tampouco é formal, mas inseparável de traços pertinentes (que constituem uma matéria de expressão)” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 29). E logo afirmam que é uma outra divisão do trabalho que não adota mais a dualidade forma-matéria, mas antes “segue as conexões entre singularidades de matéria e traços de expressão, e se estabelece no nível dessas conexões, naturais ou forçadas” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 29). Veja-se que estão discutindo metodologia da pesquisa: “O esquema hilemórfico está baseado numa forma invariável das variáveis, numa matéria variável do invariante. Porém o díspar, como elemento da ciência nômade, remete mais ao par material-forças do que ao da matéria-forma” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 29).

Aqui já há remissão a Simondon em nota de rodapé ressaltando o mando hierárquico da ordem as condições energéticas do sistema. No corpo do texto seguem-se as discuções sobre as armas e ferramentas dos exércitos imperiais e da máquina de guerra nômade bem como as linhas de variação da metalurgia “variação dos meteoritos e dos metais brutos; variação dos minerais e das proporções de metal; variação das ligas, naturais ou não; variação das operações efetuadas num metal; variação das qualidades que tornam possível talou qual operação” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 75).  Nota-se que os autores estão discutindo as materialidades e seus agenciamentos, agrupando-as em duas grandes rubricas: as singularidades ou hececidades espaço-temporais, e as qualidades afetivas ou traços de expressão de diferentes níveis, que correspondem a essas singularidades e operações (dureza, peso, cor, etc.). Perguntam: “como definir essa matéria-movimento, essa matéria-energia, essa matéria-fluxo, essa matéria em variação, que entra nos agenciamentos, e que deles sai?” (DELEUZE; GUATTARI, 1997,  p. 77). Deleuze traz estes processos de transformação das materialidades para dizer que Simondon demonstrou o quanto o modelo hilemórfico deixou de lado em termos ativos e afetivos.

À matéria formada ou formável era preciso acrescentar toda “uma materialidade energética em movimento, portadora de singularidades ou hecceidades, que já são como formas implícitas, topológicas mais que geométricas” (DELEUZE; GUATTARI, 1997,  p. 77), por exemplo, ondulações e torços variáveis na madeira como o fendimeto ou a cunha” acrescentando também “afectos variáveis intensivos, por exemplo, uma madeira mais ou menos porosa, mais ou menos elástica e resistente” (DELEUZE; GUATTARI, 1997,  p. 77). Por isso, “trata-se de seguir a madeira, e de seguir na madeira, conectando operações e uma materialidade, em vez de impor uma forma a uma matéria: mais que a uma matéria submetida a leis, vai-se na direção de uma materialidade que possui um nomos” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.78).

 

7 Simondon-Deleuze e a informação

Informação é um dos significantes mais estudados nas últimas décadas. A maioria das análises recai sobre o processo de comunicação de mensagens, sendo o mais conhecido aquele oferecido pela Teoria Matemática da Informação de Shannon e Weaver. Não é exclusividade da Ciência da Informação pois o modelo da transmissão de mensagens por um canal envolvendo emissor e receptor fez verão em muitas áreas de conhecimento. O modelo é bastante criticado também pelos cientistas da informação por não envolver questões semânticas da linguagem nesta transmissão. A relação com a linguagem é apenas com relação a um alfabeto comum que prescinde de qualquer natureza linguística (tais como dígitos binários). A eficiência da transmissão é atestada na comparação entre duas identidades, emissor e receptor por onde a diferença é calculada. Isto contraria uma abordagem deleuziana ao submeter a diferença a duas identidades por meio de semelhança ou analogia, ambas figuras da representação que Deleuze tanto evita. Por outro lado, ele não desenvolveu uma teoria da informação e suas menções ao assunto são incompletas e referidas à linguística. Por exemplo, quando fala que a linguagem não é nem informativa nem comunicativa, mas sim é a transmissão de palavra de ordem, ele se aproxima do modelo clássico de Shannon e Weaver, pois esta definição supõe protocolos cibernéticos onde a informação é o que orienta e dá ordens. Manipulando conceitos cibernéticos, afirmam que tanto a informação quanto a comunicação estão subordinados à redundância que é a palavra-de-ordem.  A melhor aproximação para uma abordagem deleuziana da informação é justamente inferir o que dizem (ele e Guattari) a partir de conceitos como diagrama, sistemas e processos de individuação e diferenciação, como propõe Faucher (2013), pesquisador na área de Ciência da Informação que seguiremos neste item sobre a dupla Simondon e Deleuze e a questão da informação.

 

8 Simondon-Deleuze e Faucher

Multiplicidades com suas relações sempre apontam para agenciamentos organizados temporariamente. A abordagem de Deleuze e Guattari sobre a informação só pode ser construída na compreensão do ciclo virtual-intensivo-atual, como propõe Faucher (2013, p. 183) posição muito próxima de Simondon, se pensarmos nas categorias do pré-individual, da ressonância interna entre as séries e no potencial energético entre ordens de grandeza distintas. O real será sempre um desdobramento da potencialidade virtual do ser. A informação pode então ser considerada a antecipação do resultado de um encontro em que o novo surge do desdobramento desta potencialidade, nunca exaurida, nunca esgotada. Tal desdobramento é a “comunicação” que existe no circuito virtual-intensivo-atual, e, possivelmente nas relações que produzem encontros. A informação também poderia ser pensada como um precursor sombrio, como é a expressão de Deleuze ao manejar o vocabulário da física quântica, retomada por Faucher (Idem, p.184).  Precursor sombrio que, como diferença em si, estaria disfarçado em cada série e sempre deslocado de si.  As informações vistas neste sentido seriam os atuantes pré-individuais ou quase causa que permitem a individualização da matéria (em qualquer regime) seja na identidade de uma pessoa ou de um objeto. É com o empirismo transcendental de Deleuze que a materialidade pode sair de sua condição de dependente da forma e existir de maneira independente. No famoso exemplo das núpcias entre a vespa e a orquídea cria-se um híbrido em que cada uma não perde a própria identidade e nem se juntam na forma de uma simbiose ou de uma mistura. Mas o encontro cria uma terceira situação criada provisoriamente (a terceira margem rosiana?) pelas duas “séries” heterogêneas. Poderíamos pensar que a Ciencia da Informação, seus temas e metodologias de pesquisa desenvolvem-se mais por um plano transcendente, onde há uma estrutura invisível que dá origem ao desenvolvimento de formas. Este plano supõe uma unidade o que estimula cientistas da informação a buscarem uma teoria unificada da informação e mesmo conceitos de informação menos díspares. Contrapondo-se a isto, Deleuze e Guattari falam em plano de consistência ou composição, plano este que é unívoco e não contém nenhuma contradição, nem leva para um princípio ou um apriori por ser um agenciamento no qual os elementos não formados chegam em termos de velocidade e lentidão, como acontecimentos.

Não estamos habituados a pensar em termos deleuze-simondonianos pois o plano de transcendência nos habita há muito tempo. Nele são dadas formas (ideias) e formações (assuntos que são individualizados por ideias e teses) e o plano proposto pelos filósofos-cientistas é um plano de imanência que dissolve formas e libera velocidades e intensidades. O plano em si, como a ontogênese de Simondon “é necessariamente dado ao mesmo tempo em que dá origem”. Para Deleuze e Guattari (1997) há uma distinção entre matéria não formada e a formada. Trata-se em todo caso de um materialismo, um novo materialismo. A matéria não formada é desorganizada, uma espécie de plasma anárquica, chamada de plano de consistência ou Corpo sem Órgãos. Já a matéria formada chamam-na de “materiais” e emergem do substrato. Nos dois volumes de Mil Platôs, o primeiro e o quinto a matéria só pode ser seguida, conforme a intuição de Simondon. Agenciamentos emergem de uma seleção no plano de consistência que é puro fluxo não organizado. As informações facilitam (mais do que governam) a seleção e as conexões do processo. Se na formulação de Bateson a informação faz a diferença, na nova fórmula de Deleuze a informação é a diferença; a informação é uma seleção diferencial dentro do meio em que a coisa é constituída como ressonância entre conteúdo e expressão; informação está no trabalho de disparação entre séries heterogêneas, no meio das multiplicidades intensivas manifestas como agenciamentos. Estamos ainda com Faucher (2013) ao entender que para Deleuze e Guattari a questão depende de como a máquina abstrata chamada Informação encontra o seu exterior, o seu fora, para permitir quebrar agenciamentos. Pois na teoria da informação clássica qualquer ruído externo é entropia, ruído ou desordem a ser eliminados por gerarem incerteza. E para Deleuze é preciso interromper a comunicação, criando vacúolos para quebrar cadeias e inventar novos vetores novas direções.  E se, como diz Faucher (2013, p. 201) o glorioso ideal da informação é reduzir incerteza, o papel dos vacúolos seria multiplicar a incerteza e avançar decididamente em direção à criação de novos agenciamentos. 

Quais são então os compromissos para uma abordagem de Deleuze associado a Simondon à informação nos termos aqui colocados? Substituição da identidade em favor da transdução; rejeição da entropia e do probabilismo em favor da diferenciação e potencialidade infinita governado pelo acaso.

 

9 E a Ciência da Informação?

Em Deleuze e Guattari (2010), há uma preocupação com a criação, o acontecimento, que se dá a partir de uma matéria. Deleuze trabalha a concepção de matéria a partir de diversos pensadores, como os estóicos, Duns Scotus, Giordano Bruno, Spinoza, Nietzsche, Foucault e até mesmo por pensadores da linguagem, como Pierce e Hjelmslev. Mas entendemos que o pensamento de Gilbert Simondon é um dos mais importantes. Nesse sentido, cabe à Ciência da Informação o investimento na exploração de novos territórios, a fim de promover o ainda não visto, o não sabido, o não pensado. Estamos, pois, na relação mais geral da informação com o real, e não mais da informação enquanto forma constrita na realidade positivada. Diante essa perspectiva de dissolução das formas, podemos vislumbrar as forças que possibilitam estas mesmas formas. Assim, o informe precisaria ser revelado, tornando o invisível e o indizível, em visível e dizível.

Trabalhar a força, a informação enquanto informe, implica na abertura do sistema de coordenadas científicas ao acontecimento, o que revoga o protagonismo da forma em favor do Caos intensivo. Todavia, afirmar o real não é desacreditar nas formas. É antes lançar um olhar múltiplo sobre o real inseparável, em sua potência de devir, frente à estabilidade ilusória do ser. Abordar o informe é caminhar em direção ao plano sobre qual os estudos de informação se consolidam. O plano sobre o qual se movimentam e se imbricam forças advindas de um Caos e que estabelecem relações antes mesmo de serem enunciadas por meio de signos. É a dimensão da tendência enquanto devir.

Deleuze e Guattari (2010) afirmam que o plano é o solo das atualizações entre uma dimensão atual, a dimensão da realidade empírica, psicológica e social, e a dimensão virtual, onde encontramos o Caos e onde construímos este mesmo plano. A atualização sobre este solo é o acontecimento, a criação. A importância de pensar o informe é justamente trazer o devir para o escopo da ciência da informação, o que significa abraçar o “por vir” informacional da área. Quando tratamos de transformações não programadas estamos sobre o plano, atualizando um acontecimento, num devir. O plano é o horizonte do acontecimento. A noção de horizonte é importante, porque o plano, seja o filosófico ou o referencial, é impensável. Não podemos pensar o plano, dada sua condição informe. Pensamos os conceitos, as funções e as proposições, ou seja, por formas do pensamento. São esses que nos permitem chegar ao plano, intuí-lo. Daí a condição do plano de virtual, de potência. É um solo que permite os movimentos de construção dos conceitos e funções.

REFERÊNCIAS

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[1] Doutorado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professor Doutor da Universidade de São Paulo.

[2] Doutorado em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor substituto da Universidade do Estado de Santa Catarina.