O MÉTODO E A MÁQUINA

a produção da história e a projeção do futuro

Rodrigo Malcom de Barros Moon[1]

Universidade Estadual Paulista – UNESP

rodrigo.moon@unesp.br

Dorival Campos Rossi[2]

Universidade Estadual Paulista – UNESP

dorival.rossi@unesp.br

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Resumo

Este artigo visa debater a ontologia do método a partir da noção de máquinas enquanto produtoras de realidade. Somos dominados pelas mesmas tecnologias que criamos, retroalimentando um aparato que funciona através de nós, que constitui o final da história como concebida por Marx: construída pela humanidade. Realizamos os projetos da modernidade, as potencialidades de nossa cultura ocidental nos provaram ser amedrontadoras. Nossa sociedade foi fabricada segundo regimes de registro, consumo e produção, de tal maneira que o processo nunca para. Quebrar com essa lógica do aparato implica em projetar novas formas e forças que permitam que se projetem novos futuros. Assim, para além do método enquanto ferramenta de trabalho do Real, a deontologia de novos mundos livres de maquinações perversas, do império do método da sociedade pós-industrial, a fim de produzir uma nova história.

Palavras-chave: Método. Design. Máquina. História. Filosofia.

THE METHOD AND THE MACHINE: THE PRODUCTION OF HISTORY AND THE PROJECTION OF THE FUTURE

Abstract

This article aims to debate the ontology of the method from the notion of machines as producers of reality. We are dominated by the same technologies we create, feeding back an apparatus that works through us, which constitutes the end of history as conceived by Marx: built by humanity. We carry out the projects of modernity, the potentialities of our western culture have proved to be frightening. Our society was manufactured according to regimes of registration, consumption and production, in such a way that the process never stops. Breaking with this logic of the apparatus implies projecting new forms and forces that allow new futures to be projected. Thus, beyond the method as a working tool of the Real, the deontology of new worlds free from perverse machinations, from the empire of the method of post-industrial society, in order to produce a new history.

Keywords: Method. Design. Machine. History. Philosophy.


 

1    INTRODUÇÃO

O diagrama (DELEUZE, 2013) designa a uma confluência de fluxos de forças e formas, correspondentes ao poder e ao saber, respectivamente, como coordenadas para determinar a História. O saber se constitui dos processos do visível e dos métodos do enunciável, de tal maneira que saber é procedimento. Através da organização e da distribuição das singularidades do saber dentro do diagrama de uma formação histórica, a saber, os discursos e os regimes de luzes, suas regularidades constituem os enunciados e as visibilidades. As movimentações destes saberes através das subjetividades esquematizam as distribuições e permitem que estratégias emerjam destas configurações, o que chamaremos de forças do poder. Tais forças movimentam e redistribuem o saber dentro de uma formação história (DELEUZE, 2017), o que permite que a interação e retroalimentação das formas e forças constituam o ciclo do diagrama. Disso, emerge a produção do Real, ao qual as subjetividades reagem de maneiras diferentes. Tais fluxos diagramáticos incidem sobre os corpos e as subjetividades da mesma maneira, porém as reverberações são diferentes. Se o regime é colonial-capitalista (ROLNIK, 2018), branco, masculino e heteronormativo, os pontos foras das curvas de regularidades sofrerão resistência em sua afirmação de existência. E a tais práticas de existência se denomina subjetivação: a confluência do saber acumulado na subjetividade e as máquinas (DELEUZE, GUATTARI, 2011) que ela coloca ao seu dispor, as estratégias de poder que lhe são permitidas, fazem com que cada subjetividade exista e habite uma formação histórica de maneiras inéditas. E o ciclo do diagrama se repete indefinidamente, perpetuando o status quo, essa tendência a conservação das formas pelos percursos institucionais, burocráticos, estatais, enfim, é reforçada pelos próprios procedimentos dominantes em determinada formação histórica. Para se quebrar tal ciclo, é necessário a inserção de um elemento de fora, um ponto fora do diagrama, fora da história. Discussão sobre o Estado e o Nômade apresentada por Deleuze e Guattari: as práticas de desterritorialização do nômade permitem que o diagrama seja corrompido em determinados territórios, e as práticas de reterritorialização configuram os embates políticos entre interesses sociais distintos. Tais práticas de subjetivação exteriores a determinada formação histórica somente são evocadas pelo habitar do fora: cruzar a linha da história em direção ao futuro, a algo diferente.

Tal foi a história da modernidade em seu positivismo histórico, na qual as máquinas começaram a dominar o imaginário científico, técnico e político, em direção a novas configurações sociais que permitiam que as máquinas se inserissem fundamentalmente em nosso modus vivendi, tal qual foi projetado pela razão do iluminismo. Assim, podemos compreender que a história funciona segundo três eixos, descritos por Flusser: Metodologia, sobre os modos de produção e seus procedimentos, Deontologia, sobre os modos de uso e suas finalidades, e Ontologia, sobre os modos de existência e suas razões. Tais esferas eram integradas nas vidas pré-modernas, mas com o advento da máquina, instaurou-se uma esquizofrenia (HARVEY, 2018) à serviço do capital, na qual a ontologia e a deontologia deixaram de obter sentido ou valor ético e filosófico, em direção a uma tecnificação da vida, uma maquinação de nossa razão:

Uma esquizofrenia metodológica de tal índole, na qual uma metade da consciência devora a outra e em que o trabalho teórico se impõe ao trabalho prático, conduz desde o final do século XIX a uma tecnificação crescente do trabalho. Quando política e ciência se separam, se instala a técnica; e quando o aspecto ontológico do trabalho se separa de seu aspecto deontológico, aquele que triunfa é o aspecto metodológico. E assim as perguntas “para quê?” e “por quê?” se reduzem à pergunta “como?”. (FLUSSER, 1994, p. 2).

 

Tal é a denúncia de Deleuze e Guattari, tanto em Anti-Édipo quanto em Mil Platôs, denunciando a maquinação do real por mecanismos do pensamento, o inconsciente maquínico. O funcionamento da razão moderna, e atualmente pós-moderna, implica na noção de causalidade entre passado e futuro, da possível condução de processos perante um projeto produtivo. Tudo virá máquina na medida que, amparado pela linguagem, o pensar dá lugar ao pensamento, o que permite pensar sobre o pensamento e sobre os modos de se pensar. E não somente os modos, mas também seus componentes, engrenagens. Nesse ponto, o mundo deixa de ser uma molécula gigante e mágica. Os deuses caem por terra na medida em que a razão supera o firmamento em direção ao vazio da existência não aglomerada, e enfim adquirimos poder de Deus (HARARI, 2016). Viver deixa de ser questão de razões maiores, causas e destinos incontroláveis, mas mera luta contra o acaso, batalha travada com máquinas e processos contidos e conduzidos. Mecanizamos a realidade e isso é irreversível.

O design, neste momento histórico, surge não como estilo estético, como nova arte moderna, mas enfim como uma forma de lidar com as problemáticas de uma sociedade industrial e a própria lógica das máquinas. Os modelos produtivos e suas lógicas diferem muito das lógicas humanas. Coube, então, aos engenheiros, designers e capitalistas a condução das diretrizes dos modelos de produção nas sociedades industriais. E tão de repente se viu necessidade de se consumir o que se produz. E que essa lógica, o ciclo de produção-consumo-registro se aplica à cadeia geral dos eventos do cosmos, e, portanto, do universo á máquina. Era todo esse trabalho de preparar as mentes das populações à lógica da máquina, que é a do inconsciente. Revelar a organização da produção do real permite que a própria realidade possa ser trabalhada. O trabalho na sociedade industrial, portanto, era a realidade da própria vida, e para além disso, não existia nada. A própria dignificação da existência partir da acumulação e produção de valor. Neste sentido, a interface humano-máquina, através do projeto produtivo inaugurado nas fábricas, permitiu, enfim, a condução dos processos e o direcionamento de finalidades, visão teleológica do desejo. Percebeu-se que o desejo enquanto produção precisava consumir para produzir, o que abria um novo mercado sobre os vetores desejantes da população, desenhados para caminhar em direção a um futuro ainda a ser forjado. Assim, o projeto permite que o sujeito moderno projete a si mesmo, permite que se faça conhecimento da máquina e de suas produções, permite que a realidade se reduza ao método de produção deste. Da vida, a de sua produção. O desejo se fechou sobre si mesmo e isso permitiu que passássemos a consumir os insumos necessários ao desejo contido, biopoliticamente desenhado.

Esta mudança de atitude frente à máquina conduz a um duplo resultado: primeiro, se a percebe como um sistema que pode servir como modelo do próprio mundo; e, segundo, se descobrem seus princípios teóricos de construção. A primeira consequência — a saber, as diferentes visões mecanicistas do universo — faz com que as máquinas resultem problemáticas, porque é difícil perguntar “para que é boa”, quando a pergunta se refere à máquina do mundo. E a segunda consequência — a manipulação teórica das máquinas, a invenção de máquinas novas e a revolução industrial — também converte as máquinas em problemáticas ao fazê-las cada vez mais interessantes. Resumindo: durante a idade moderna as máquinas se fazem problemáticas, porque colocam a questão do valor, ao invés de realizarem um valor. (FLUSSER, 1994, p. 4).

 

Este desencantamento do mundo permite que a realidade deixe de ser mágica, e qualquer vestígio de uma realidade decifrável ludicamente some frente a uma epistemologia linear do processo da máquina. Etapas, procedimentos calculados, produções e consumos registrados segundo códigos sociais forjados historicamente. A lógica da máquina é a própria lógica do inconsciente, uma produção contínua. E a questão da moral, oras, ela se esvanece no ar, sublima-se perante o império frio e assignificante das máquinas. O bom e o belo são relativos ao que se deseja realizar. Ferramentas de controle, os princípios ético-estéticos conduzem a uma contenção de métodos desejantes, aprisionando as subjetividades pela produção de energia estática: nos vemos, hoje, emperrados. Não conseguimos desejar na mesma realidade que habitamos. A dissociação entre uma imagem de mundo virtual (LEVY, 2003) ultra tecnológico, cujo progresso eliminou as barreiras da vida, permitindo que a própria noção de sobrevivência deseja reinventada em detrimento do trabalho. Deus está morto e o bom e o belo deixaram de ser valores morais para se tornarem valores estéticos: o prazer do bom e do belo, a produção patológica como lógica de consumo da experiência, a produção de reações e emoções efêmeras. Não mais nos preocupamos com a natureza das coisas, quiçá suas possibilidades alternativas, pois a questão do método inunda nossas mentes através da lógica da máquina: como realizar tal desejo? E se tal desejo é produzido por dispositivos de registro no inconsciente, desejar é mera consequência de uma composição biológica e psicológica interagindo através de interfaces do inconsciente, o que significa que tais maquinações e projeções confluam numa complexidade inédita, fazendo com que o Real se torne meramente consequência do aparato, o conjunto das máquinas dispostas pelo globo e suas respectivas produções e consequente resultante.

Pois, quando ao método se incorpora o ser e o dever e quando à técnica se anexa à ciência e a política, o absurdo a tudo invade e corrói. O método pelo método, a técnica como fim e l'art pour l'art, ou seja, o funcionamento como função de uma função, eis o que constitui a vida pós-histórica sem trabalho. É pós-histórica, porque a história é o processo em que o homem transforma o mundo, para que seja como deve ser; quando o trabalho se detém, cessa também a história. E o trabalho cessa, quando já não tem sentido perguntar por como deve ser o mundo. Cessa, quando se estabelece o aparato. Não porque o aparato “trabalhe por nós”, mas sim porque o aparato modifica o mundo de tal maneira que torna impossível a pergunta de como ele deve ser. O aparato é o final da história, um final já previsto por todas as utopias. É a existência liberada do trabalho; é a existência emancipada para a arte pela arte; é a existência do consumo e da contemplação. A plenitude dos tempos. Nela existimos nós. Ou quase. Mas não reconhecemos as utopias em nossa situação, pois, em que pese se estar para além das máquinas, continuamos sendo incapazes de representar uma vida sem trabalho nem significado. Mais para além das máquinas nos encontramos em uma situação inimaginável. (FLUSSER, 1994, p. 6).

 

2    domínio das máquinas

Vivemos num paradigma pós-histórico (FLUSSER, 2011) na medida em que a invasão do método em todas as esferas da vida humana transformou a questão da produção e sua orientação de finalidades: se antes se produzia história, no sentido de que todas as ações tinham o único intuito de produzir sentido de suas ações através do julgo da história, do futuro. As produções humanas, então, se orientam pela lógica do aparato enquanto finalidade de si mesmo. Não há motivos em se perguntar quais mundos serão possíveis, na medida em que será o aparato que determinará este futuro. Neste sentido, o que enfrentamos hoje é uma diagramação brutal de nossos procedimentos através de forças e formas abstratas que sobrecodificam nossas ações, quase como se nossa história tivesse criado uma organização tão perversa, que as próprias evoluções das esferas humanas criaram algo acima que controla a tudo e todos, no sentido de conduzir os possíveis de nossas culturas. Se analisarmos a produção como um replicante, algo que se replica heterogeneamente, permitindo que um algoritmo evolutivo emerja, entendemos que os modos de se produzir constituem aspectos cruciais de sobrevivência ao sapiens (HARARI, 2015), na medida em que não mais sabemos habitar o mundo natural, somente o ambiente humano e minimamente tecnológico. Assim, a consequência inevitável de tudo isso é que nossas problemáticas deixassem a esfera da produção do valor para sua ontologia: como fazer valer algo, se a única medida de valor é o trabalho humano?

Os métodos estão presentes em nossa existência desde que podemos nos recordar do uso de ferramentas, das techné e ars gregas, instantaneamente nos remetendo a um pathos na medida em que os processos desencadeados constituem acontecimentos. Quando a razão domina a consciência humana e as possibilidades de modificação da realidade começam a surgir, a mudança estrutural é a seguinte: se antes nos ocupávamos com a ontologia das coisas, numa premissa aristotélica de desvendar a metafísica, a essência das coisas, nos tornamos imanentes na medida em que a deontologia ocupou nossos pensamentos, desde o leviatã de Hobbes até o capital de Marx. A partir do momento que a máquina surge enquanto essência metametodológica, a questão se torna a do método: a modernidade realizou as interioridades da cultura ocidental em seus mais pequenos traços, culminando em Auschwitz como realização do chão sobre o qual pisamos. Nos ocupamos quase que inteiramente de realizar os desejos históricos, de realizar as fantasias literárias, míticas, começamos a inventar histórias, novas formas pelas quais os desejos das massas poderiam ser canalizados. Guy Debord nos aponta que a sociedade do espetáculo nada mais é do que a injeção de consumo dentro da própria produção, de tal maneira que a produção do sujeito espectador é a produção do consumo.

Assim, as questões se deslocaram de realidades possíveis para processos de atualização: o design, novamente, veio para conciliar tantas máquinas com tantos desejos, forjando uma ergonomia suficientemente boa para conseguir lidar com um número quase que integral de corpos padronizados, ou então as culturas de massa que puderam fabricar um imaginário coletivo, o que permitiu que os desejos fossem distribuídos quase que igualitariamente. Mas a igualdade está no desejo desde a revolução francesa. As produções desejantes de fabricação de novos mundos possíveis nunca deixou de ser realidade, o que agora nos parece uma problemática, é a do próprio método deontológico: como fabricar mundos alternativos, que modifiquem qualitativamente o diagrama de nossa formação histórica, e que atinja a complexidade do aparato e permita que as condições de produção da realidade se alterem, e por conseguinte a da própria realidade? Não adianta pensar sobre outras possibilidades sem os métodos suficientes para competir com os métodos do aparato.

Assim, as problemáticas se retroalimentam: o método se torna a questão primordial, pois o acervo de virtualidades era grande. Agora, vemos que estamos esgotando tais potencias culturais. Filmes são refeitos, e o que muda? O método de produção, e readaptação do conteúdo a outra linguagem. As finalidades são, portanto, capitalísticas: a produção de mais-valor através das indústrias e fábricas. Os métodos foram cooptados, todos os enunciados, todas as máquinas, transformadas em engrenagens de um aparato que reproduz o atual regime. Assim, precisamos subir uma camada e entender que o método possui, ele mesmo, um método. A capacidade de produzir conhecimento sobre algum objeto permite que se elaborem métodos a partir de processos observados. Metodizar significa enunciar. Falar, dizer, fazer dizer. São as narrativas que denunciam o código das máquinas, expõe o método da coisa. Então o design nada mais é do que a tentativa de criar um método do método, que permita fabricar indefinidamente as coisas das mais diversas, desde objetos, bens imateriais, métodos como o design thinking, design systems, gestão de pessoas... Transformamos absolutamente tudo em máquina, produções incessantes, e a lógica do design não é outra: a das produções e das maquinações. A premissa do projeto é desenhar uma finalidade, um acontecimento que deve ser estruturado, sobre bases reais, para que venha a acontecer. Desenhar corresponde ao processo de organizar produções, consumos e registros em arranjos suficientemente coesos e coerentes, que permita que aquilo configure máquina e, portanto, produza. E pela dobra e desdobra do saber podemos subir e descer camadas para projetar em diversas escalas. A do aparato, a mais alta, é a mais complexa de todas.

Enfim, fabricamos uma plataforma que permite que novos métodos sejam forjados através de procedimentos científicos, artísticos... E compartimentamos o saber em diversas categorias, cada qual remetendo a um conjunto específico de métodos e processos relativos a determinadas esferas da existência. E a esta dimensão superior dos métodos dos métodos, nomeamos inteligência. A capacidade de produzir conhecimento de acordo com seus próprios métodos, de fabricar procedimentos que produzam uma realidade tal qual enunciada. Assim, os métodos do enunciável correspondem às formas de usar das máquinas que se apresentam. São as instruções de utilização de arranjos maquínicos dos mais diversos. Assim, conquanto se possa enunciar aquilo que se sabe, pode-se dobrar o conhecimento nele mesmo, e produzir uma interioridade que não estava antes ali: algo novo, um ato de criação (DELEUZE, 1999).

De tal maneira que criar também é maquinar. Há de se criar uma máquina que produza a criação, não? Seja ela conceitual, material, virtual, enfim. A questão fundamental é de que, através dos discursos e seus conceitos, functivos e prospectivos, podemos arranjar as mais diversas formas de existência segundo regras de coesão e coerência. A mera atitude de enunciar é codificar a realidade: a máquina e seu código. As regras de coesão permitem que a máquina se mantenha identitária, que ela seja uma existência própria, independente da junção das partes. A coerência permite seu funcionamento, na medida em que somente na relação com alteridades é que processos podem ser desencadeados. Portanto, remetemos a uma certa gramatologia da realidade na medida em que as palavras e as coisas (FOUCAULT, 1999) nos levam a compreender a realidade pela linguagem. E o método dos métodos remete, no final das contas, a uma capacidade projetiva, a uma balística de possíveis própria ao funcionamento da máquina enquanto afunilamento de possíveis pela contenção de erros.

 

3    projeto e as projeções

O projeto na era industrial deriva de uma necessidade de alinhar métodos produtivos através de sistemas maquínicos, com o respectivo aperfeiçoamento destes procedimentos em busca de reduzir a perda de energia ao longo do processo, bem como de possíveis erros que resultem numa margem de lucro menor. Enfim, o projeto surge como ferramenta da própria realidade, permitindo que através da maquinação do real, pela elaboração conceitual de processos através de métodos cognitivos, possamos simular a realidade e adaptar as mecânicas processuais em busca de melhorar o projeto, prototipar o virtual e realizar o real. O projeto bom, neste sentido, tem alto desempenho, simplicidade do processo, alta taxa de sucesso e cumpre com as finalidades miradas em sua balística. A História aqui toma outro rumo. As máquinas dominam o mundo e transformam as produções da Terra em produções de máquina, frias, lógicas, calculadas. A vida vira máquina, controle biopolítico, necropolítico (MBEMBE, 2018). Uma vida, neste sentido, é o início do controle populacional da modernidade, que suprime a comuna de Paris, que reforça o Estado em sua soberania micropolítica. O Estado maquina, conduz os fluxos, daí a grande invenção dos romanos: os aquedutos. Permite conduzir os fluxos e canalizar os fluidos. A metalurgia cumpre a função de lidar com as mudanças de estado, do que é fluido e do que é rígido. De tal maneira o projeto pode ser mais maleável, adaptativo. O que é rígido pode ser derretido e reorganizado, refinado, eliminando impurezas queima após queima. O trabalho do Real mudou conforme as eras, mas a única constante é sua produção ontológica: a produção de realidades favoráveis a execução de desejos. A maquinação, portanto, é necessariamente teleológica, mas num sentido muito mais temporal do que desejante: as sucessivas organizações que o desejo impõe vão modelando a realidade a partir de um espectro subjetivo. E a cultura desempenha o papel de oferecer um pool[3] de ideias a partir das quais os desejos se orientarão. São as diversas singularidades do saber e os regimes de poder que permitirão que a cultura vá apontando seus vetores de desenvolvimento sem que ninguém tome as rédeas.

Assim que surge o aparato e seus mecanismos, permitindo que a realidade se torne máquina, o projeto é a única coisa que resta. Relembrando, então, os três eixos de Flusser: o projeto constitui um mecanismo de reversibilidade ontológica na medida em que as possibilidades de virtualização e atualização são constituídas de acordo com os limiares tecnológicos e os aspectos projetivos da imaginação, o que implica que metodologicamente o projeto é um metamétodo, pois faz dos próprios métodos objetos de metodologia. Não há nada, absolutamente nada que não possa ser projetado. Afirmação deveras perigosa que merece maior explanação: o projeto trabalha com a realização de possíveis. Para lembrar as coordenadas propostas por Pierre Levy, o que é possível é aquilo que não possui forma nem força, é aquilo que existe para além daquilo do que é real pois não há formas de conceber sua existência. Portanto, para realizar algo, podemos lhe dar uma existência atual ou virtual, no sentido de aquilo existir enquanto potência de ser, ou a manifestação daquele ser.

Assim, o projeto acessa este espaço dos possíveis, resgata dali potências ou materialidades. O Bóson de Higgs era possível até sua materialidade ser confirmada, pois sua potência podia não lhe ser sua de fato sem sua existência manifesta. O projeto permite elaborar através de procedimentos um conjunto de formas e forças que realizem a possibilidade do projeto. Se ontologicamente o projeto permite que que uma existência assuma diversas formas – indo do possível ao atual e vice-versa, com diferentes intensidades de existência, percorrendo superfícies completamente distintas de registro, transversalizando planos pela abstração de suas possibilidades infinitas metalúrgicas. Podemos criar novas possibilidades pela reversão de uma atualidade em potência de nova forma e em possibilidades de novas existências através das novas formas, ou então construir procedimentos suficientes para atualizar uma possibilidade de resolução de alguma problemática. Metodologicamente, o projeto então fará uma assemblage de procedimentos e máquinas em prol de uma problematização e de uma possível resolução para esta. O projeto é esta plataforma que permite que se trabalhe a existência de algo. E isto abre a problematização para uma complexidade que pode ser sempre maior. Na realidade, ao entrar no domínio do projeto, entramos no domínio das máquinas.

Portanto, falamos de phylums e acoplamentos maquínicos, emprestando os termos de Deleuze e Guattari. Cada phylum de máquina classifica e separar segundo funções, codificações, velocidade, força... e são as propriedades partilhadas entre uma máquina e outra que permitirá que ali ocorra uma relação de acoplamento, em que o funcionamento das duas máquinas pode ser desenvolvido em movimento conjunto. Assim, as máquinas vão funcionando, e se acoplando, desacoplando, produzido ora isso, ora aquilo. E falar de projeto é falar de compor máquinas. Qual máquina poderá produzir a solução da problemática? Como produzir determinada realidade? E a cada pequena máquina que se utiliza, se coloca propriedades dentro de um sistema a ser diagramado de acordo com seu funcionamento. Então tudo se transforma em máquina neste momento: coisas, palavras, fenômenos, pessoas, mecânicas, o próprio acaso. Tudo constitui sistema aberto em relação com os outros à sua volta. E assim, projetar, e podemos projetar, novamente, absolutamente tudo, toda forma de existência pode ser projetada, mas os graus de desenvolvimento conceitual e tecnológico impede que certas existências se manifestem materialmente, por exemplo – e aqui podemos debater a própria materialidade da existência em telas, hologramas, manifestações hápticas e de realidades virtuais. Portanto, debater a mecanicidade de tais projetações impele em entender a realidade como um conjunto de processos que podem ser enunciados e que podem ser repetidos, modificados. A realidade da linguagem como dupla-existência de todas as coisas permite que as trabalhemos em potencialidades de palavras em prol de organizações formais – ou em última instância, desenhar.

A ideia de que projetar, processar, produzir e maquinar correspondem à mesma cinética, de um movimento a ser conduzido, calculado, correspondem não somente a uma questão ontológica e metodológica, pois sobre a natureza das existências e suas formas de funcionamento já estão claras graças à revolução científica e industrial. As máquinas estão por todo lado, o que fulgura que a questão metodológica, hoje, não é mais tão relevante frente à construção de um mundo. Os recursos que temos hoje são incomparáveis com gerações passadas. O progresso da qualidade de vida do sapiens demonstra que ao construir nossa própria realidade, o Antropoceno (VEIGA, 2019), passando desde o Homo habilis ao sapiens, do trabalho ao conhecimento. E a técnica invadiu o domínio da vida, de tal forma que hoje, dentro de uma sociedade pós-industrial, o sujeito neoliberal (DARDOT, NARVAL, 2016) é demandado trabalho contínuo, a ter técnicas para execução desde processos produtivos até sociais, políticos, afetivos. Hoje temos conhecimento de que todo processo pode ser conduzido, e conduzi-los parece sempre possível. Acreditamos que podemos, através de técnicas suficientes, aumentar a produtividade, o prazer, a felicidade. A escalada de todas as sensações possíveis, vivemos numa utopia da maximização das sensações. De tal forma, nos são despejados que há métodos suficientes para lidar com a desigualdade de oportunidades, mas a oferta de tais métodos sempre é feita a quem não possui os recursos necessários para executar aquilo com a eficácia necessária. O regime neoliberal converte o conceito de liberdade em falácia ao empoderar o indivíduo a executar tarefas que não compõem sua constituição subjetiva.

Assim, somos acostumados a projetar um mundo que reproduz os mesmos vícios que hoje nos habituamos a ver. Por fim, o caráter mais vital do projeto é sua questão deontológica: paramos nas máquinas, e para além delas, o futuro sequer pode ser imaginado. Os dispositivos tecnológicos dos quais fazemos uso portam em seus códigos a realidade de nossa cultura ocidental: o desejo do déspota imperial domina as formas de desejo. De tal maneira, que esta interioridade cultural se demonstra aqui e acolá em figuras fascistas, que desprezam direitos igualitários, garantia de direitos para minorias, e afins. Retroalimentamos o diagrama através de nossas ações individuais, cujos métodos foram forjados por uma história manchada com o sangue de diversos povos, por atitudes desprezáveis, por procedimentos cuja razão é duvidosa e completamente inimaginável atualmente. Nossa história, enfim, forjou um saber humano que hoje é global e cujas barreiras linguísticas estão se dissolvendo lentamente, que é capaz de ser compartilhado instantaneamente através do globo. Das redes digitais estão emergindo novos mundos possíveis, forjados por uma ética das redes, cuja imaterialidade permite que seu desenvolvimento seja desprendido de amarras mundanas, que para o bem e para o mal, pois parte do pressuposto de que todos que navegam as redes possuem direitos iguais. Reservaremos, enfim, a conclusão deste artigo a missão de debater a deontologia de tudo isso.

 

4    Conclusão: a produção de uma nova história

No final das contas, como aponta Flusser, o aparato impera suas finalidades imanentes. Assim, produzir uma nova história significa produzir uma nova maquinação que produza uma nova forma de história. Um novo jeito de se contar sobre o passado, sobre o futuro. Uma nova perspectiva de um método que não seja geo-histórico, mas sim que o método seja parte do que significa ser humano. A coordenação de métodos através da cultura é essencial para que as produções individuais correspondam a lógicas maiores de sustentabilidade de nossas ecologias (GUATTARI, 1990). Mas não miramos nenhuma finalidade ecológica. De tais maneiras, as máquinas estão aqui para produzir, mas ao que parece, dobramos o método e agora trabalhamos a ontologia do metamétodo enquanto deontologia do método: precisamos produzir formas de produção que correspondam ao mundo que queremos. A pergunta sobre o método de nada adianta sem os pressupostos norteadores da praxis do método. Carecemos de possíveis na medida em que carecemos de métodos de projeção de novos futuros.

Após analisar as condições atuais de produção da história (SANTOS, 2006), nos deparamos com a contradição de uma história contada por máquinas em um mundo que produz máquinas, as quais acabam por nos utilizar para produzir um mundo que a cada vez mais não precisa de pessoas, que são descartadas como resíduos de tempos passados. A história avança e não são todos que acompanham o estado da arte das tecnologias humanas. Portanto, quando se debate a questão do método, deve-se instantaneamente interligar com as questões ontológicas e deontológicas, para que ao que se pensa e ao que se faz suceda um novo mundo, cuja história volte a ser contada pelas subjetividades, e não pelas maquinações. Pois de possíveis distópicos o imaginário coletivo está cheio, o que de fato é necessário são novas possibilidades de orientações das produções do presente. Quebrar com a hegemonia imperial do homem branco, cis gênero, heterossexual e rico, para permitir que novas formas de existência ganhem espaço e possam se afirmar em sua diferença em todos os contextos hoje menosprezados pelos métodos de vida urbana. Enfim, o método sem sua ontologia e deontologia não é nada, e estas não podem ser analisadas separadas, somente nesta tríade que a realidade pode ser entendida.

 

Referências

 

DARDOT, P. LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal – São Paulo: Boitempo, 2016. pp 321-376.

DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2013.

DELEUZE, G. Michel Foucault: as formações históricas, traduzido por Cláudio Medeiros, Mario A. Marino. – São Paulo: n-1 edições e editora filosófica politeia, 2017

DELEUZE, G. O ato de criação. Palestra proferida em Paris em 1987, transcrita e publicada em Folha de São Paulo, 27 Jun 1999, Caderno Mais!, p. 4-5.

DELEUZE, G; GUATTARI, F. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia vol 1; tradução de Luiz B. L. Orlandi. — São Paulo: Ed. 34, 2010.

FLUSSER, V. Para além das máquinas. Tradução de Gustavo Bernardo, do artigo ‘Más alla de las máquinas’, do livro Los Gestos. Barcelona: Herder, 1994, versão espanhola do livro de Vilém Flusser Gesten. Dusseldorf: Bollmann, 1991. Disponível também em: http://planeta.terra.com.br/arte/dubitoergosum/iflusser.htm

FLUSSER, V. Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar, São Paulo: AnnaBlume, 2011.          

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail – São Paulo: Martins Fontes, 1999.

GUATTARI, F. As três ecologias. Tradução Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus, 1990.

HARARI, Y. Homo Deus – uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das letras, 2016.

HARARI, Y. Sapiens: uma breve história da humanidade. Porto Alegre: L&PM, 2015.

HARVEY, D. A loucura da razão econômica: Marx e o capital do século XXI – São Paulo: Boitempo, 2018.

LÉVY, P. O que é o virtual. Col. Trans, São Paulo: Editora 34, 2003.

MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.

ROLNIK, S. Esferas da Insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 Edições, 2018.

SANTOS, M. Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2006.

VEIGA, J. O Antropoceno e a ciência do sistema Terra. – São Paulo: Editora 34, 2019



[1] Graduado em Design, Mestre e Doutorando no programa de pós graduação em Mídia e Tecnologia – PPGMIT da Universidade Estadual Paulista – UNESP.

[2] Professor e pesquisador do programa de pós-graduação em Mídia e Tecnologia – PPGMIT e vice-coordenador do curso de graduação em Design da Universidade Estadual Paulista – UNESP.

[3] No sentido de sopa, como era a dos organismos unicelulares que deram origem à vida complexa.