PRINCÍPIOS À FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO[1]
Entre uma ontologia ou uma epistemologia do objeto
Ramon Ordonhes[2]
Universidade de São Paulo/Escola de Comunicações e Artes
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Resumo
As discussões e problemas que surgem a uma área em desenvolvimento, tal como se deu à Ciência da Informação, ensejam uma tarefa teórica “filosófica”, que se acomodaria, como dimensão fundamental deste campo de pesquisa, em debates cujas concepções e consequências discursivas escapam às formas com que se lidaria, cotidianamente, com o objeto de interesse da área e seus respectivos pressupostos. Nesse âmbito, visto como primordial, se colocariam em questão os alicerces e princípios que assegurariam o trabalho e a delimitação conceitual do objeto apreendido pela Ciência da Informação. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é colocar em análise duas propostas nomeadamente filosóficas de fundamentação da Ciência da Informação. Especificamente, desenvolver-se-á um comparativo entre duas propostas teóricas quanto ao objeto da Ciência da Informação: uma ontológica e uma outra epistemológica. Esse quadro comparativo terá por base as posições de Floridi e Frohmann de uma filosofia da informação. Assim, guiando-se pelo método teórico-exploratório de investigação, a pesquisa concentrar-se numa revisão (qualitativa) de literatura cujo resultado visa uma contribuição teórica ao plano da pesquisa fundamental na área. As considerações orbitam, finalmente, o modus operandi que cada autor acaba empreendendo para esse tipo de projeto teórico, bem como a concepção de filosofia que motiva tais pesquisas.
Palavras-chave: Filosofia da informação. Documentação. Ontologia. Epistemologia.
PRINCIPLES TO PHILOSOPHY OF INFORMATION:
Among an ontology or an epistemology of the subject
Abstract
The discussions and problems that arise in a developing area – Information Science is a case of it – lead to a theoretical and ‘philosophical’ task. In this context, as a primordial task, the foundations and principles that would ensure the work and the conceptual delimitation of the object apprehended by this science (Information Science) would be radically questioned. The goal of this article is to analyze two philosophical proposals about Information Science foundations; a comparison of two theoretical proposals about the object of Information Science: one ontological and another so-called an epistemological approach. This comparative plan will be based on the theoretical positions of Floridi and Frohmann (outlining what both proposes, as well as what would be defended by which one about an Philosophy of Information). Thus, guided by the theoretical-exploratory method of investigation, the research focuses on a qualitative literature review. The outcome intents a theoretical contribution, would consist of raising such a state of the art about fundamental research in this area. Finally, the considerations orbit the modus operandi that which one (Floridi and Frohmann) end up using for this type of theoretical project, as well as the conception of philosophy that motivates these researches.
Keywords: Philosophy of Information. Documentation. Ontology. Epistemology.
1 INTRODUÇÃO
Discute-se duas vias de acesso à dita “Filosofia da Informação”, que Luciano Floridi (2010) e Bernd Frohmann (2004) ensejaram à Ciência da Informação (CI). O debate proposto por esses autores identifica, por um lado, um programa ontológico e, por outro, uma perspectiva epistemológica da informação. Tendo por base a cultura material (e comunicacional) de nossa época (a dita sociedade da informação), analisa-se como se desdobra a questão da objetividade científica em ambas as vertentes sugeridas; apresentando, para tanto, um respectivo exame acerca do programa de fundamentação proposto por cada uma delas. As considerações teóricas alcançadas esboçam os efeitos das decisões tomadas quanto à matéria “informação”, expondo alguns dos princípios e características que mobilizam essas propostas.
No interior desse escopo do estado da arte (sinteticamente representado por Floridi e Frohmann), busca-se saber qual é o propósito que anima um estatuto teórico dessa grandeza, ou seja, quais ganhos visa, e, por fim, o que se entende por uma tal “filosofia” da informação. Utiliza-se, para isso, o método teórico-exploratório, tendo por base um levantamento bibliográfico fundamental e qualitativo. Sendo, justamente, o levantamento o instrumento utilizado para identificar a existência desses dois programas teóricos e assim categorizá-los (ontologia e epistemologia).
Por fim, um dos intuitos do estudo foi o de perceber, justamente, idiossincrasias e outros aspectos particulares que guiam o que se está chamando de uma “filosofia” à CI para cada uma dessas propostas, bem como identificar a radicalidade de cada uma dessas propostas (até que ponto cada uma delas pretende ir nessa empresa filosófica).
2 A sociedade da informação e seu eminente caráter técnico-administrativo disciplinar e telemático
Em uma sociedade tão informatizada quanto esta que vivemos, não deveria surtir estranheza o fato de que inúmeras decisões estejam orientadas em vista de um dinamismo performático de uma planta telemática digital de dimensões globais (CASTELLS, 1999; LYOTARD, 2009; HAN, 2017). Seria justamente essa planta informatizada que formataria o mundo e fundaria a dinâmica material e cultural daquilo que é chamado de sociedade da informação. A criação programática de necessidades, a atualização das expectativas e ações de indivíduos e instituições ocorreria a partir da Rede e seu background de dados disponíveis a todo instante: delimitam-se condutas ao que gráficos e projeções indicariam como apropriado num dado cenário (ILHARCO, 2003; DI FELICE, 2009; HAN, 2017).
Tal como as grandes corporações orientam suas estratégias, as pessoas, a partir dos aplicativos que deixam à mão tantas outras informações, definem um plano de ação a partir dessa mesma tecnologia. A realidade material nos é dada por bots, motores de busca e algoritmos. O mundo seria então governado, por assim dizer, expressando o problema em termos biopolíticos, por tecnologias administrativas positivadoras da vida (FOUCAULT, 2017).
Ciberneticamente orientada, a vida seria tida como atividade performática, no sentido da eficácia e do desempenho das atividades humanas (WIENER, 1968; HAN, 2017). Na gestão diária da vida já não se poderia mais prescindir da Web, dado seu enfoque vital/gerenciador das condutas, tanto aos indivíduos quanto às organizações públicas e privadas, locais e globais (ILHARCO, 2003; CAPURRO, 2009). O sistema telemático e sua função estratégica em torno da eficiência, da competitividade, enfim, da performatividade se tornaria uma linha geral de comando às atividades públicas, domésticas e empresariais (DI FELICE, 2009; HAN, 2017). Não há obstáculos à presença incessante desse dispositivo (o sistema telemático como um todo), que a tudo angariaria como fonte e fluxo de dados em prol de uma maximização e majoração dos meios produtivos e de seus efeitos (HEIDEGGER, 2007; LYOTARD, 2009; HAN, 2017).
Em meio a essa sociedade da informação, impõe-se um particular expediente quanto àquilo que se diz ser o próprio “saber” sobre as coisas e os protocolos de ação e condução a partir desse saber (LYOTARD, 2009; CAPURRO, 2009). Nesse regime dos sistemas telemáticos, a ciência e as técnicas de ponta ensejam a fragmentação dos modelos de construção, transmissão e legitimação dos saberes. Efeito decorrente da incidência das ciências high-tech sobre o campo discursivo geral a partir da assimilação das linguagens e suas formas expressivas e comunicativas de descoberta e análise (cibernética, inteligência artificial, protocolos de comunicação homem-máquina, automatismo, estoque e transferência de pacotes de dados); o que coaduna com a queda relativa que sofreram as narrativas histórico-científicas e filosóficas de então (LYOTARD, 2009).
O ideal de progresso e superação – que o espírito hegeliano pautava – sofre ruptura a partir dos efeitos da performatividade dos sistemas digitais. Suas pretensões democráticas e dialógicas respondiam ao movimento geopolítico nacionalista, que dera vasão à Segunda Guerra, a fim de salvar o mundo da destruição nuclear, formando uma aldeia global comunicativa das trocas de informação (vide o que Wiener (1968) propunha, nesse sentido). Aqui, um enorme avanço no sentido das técnicas e das tecnologias é sentido (BRETON, 1993; SARACEVIC, 1996), e essa mudança de curso, que começaria no pós-guerra e que colocaria em questão o valor (impacto) das instituições de pesquisa e seus métodos tradicionais utilizados nas pesquisas científicas, se volta aos meios e não aos fins determinados da sociedade moderna (LYOTARD, 2009). Essa “gestão vital”, fundada pelo modus operandi dos sistemas globais de informação, se manifesta por meio da reconfiguração discursiva e programática do controle cibernético.
Este seria o pano de fundo no qual a informação sairia do patamar restrito (analítico) de mero objeto de uma ciência (informação como objeto da Ciência da Informação, por ex.) e passaria a vigorar, então, como um elemento presente e verificável em todas as áreas e em todos os sistemas humanos (DAY, 1996). A informação torna-se, no conjunto desse movimento, o fenômeno sensível capaz de exibir e transformar a realidade, em razão das técnicas e meios empreendidos acerca do princípio gerencial da vida.
A mudança de status da informação – de objeto científico estrito a fenômeno central da atividade social e científica em geral – indicaria o papel essencial da informação na configuração e nos rumos da sociedade contemporânea (DAY, 1996; POMBO, 2003; LYOTARD, 2009). Aspecto que identifica a expansão da informação para fora de uma área disciplinar e sua consecutiva absorção ao factum diário da atividade tecnocientífica em geral (informação como objeto que vira princípio morfogenético de formatação das áreas e sistemas gerenciais).
A Ciência da Informação, aliás, seria um caso exemplar ao curso da suspensão e reacomodação daquelas diretrizes tradicionais da “objetividade teórica” e “autonomia objetiva”, que a ciência conservara tão estritamente até pouco tempo (DAY, 1996; POMBO, 2003; CAPURRO, 2009; LYOTARD, 2009). Quando se pensa na teoria como não sendo mais um ato especulativo garantido pelo distanciamento perante o objeto[3], se abriria um quadro de opções no qual tal fórmula tradicional se veria em processo de redefinição. O desenvolvimento teórico, que se veria em uma teoria separatista do conhecimento (que distancia sujeito e objeto) bem como em um perfil metodológico que pensaria ser tanto uma doutrina prescritiva de validade universal quanto fiduciária ao encontro e tratamento de objetos únicos e exclusivos, deveriam lidar com um conhecimento, agora, que não se separaria dos sujeitos que conhecem (reaproximação do duplo nome sujeito-objeto); e, por seu turno, com métodos descritivos que não se precipitariam a uma universalidade absoluta, nem deixariam de lado contextos sociais de criação dos saberes (DAY, 1996; CAPURRO, 2009).
Isso nos encaminharia àquilo que deve ser percebido nas entrelinhas da reacomodação dos elementos daquela tripla partição clássica nas ciências: objeto, método e teoria seriam formatados ou corporificados, daí em diante, enquanto instantes de um fluxo de informação e construção social do conhecimento, na medida em que dariam a esses caracteres fundamentais (“objeto”, “método” e “teoria”) sua devida formatação (ou corpo) enquanto “constructos de informação”. Como diria Day (1996, p. 322, tradução nossa), o “[...] conhecimento e a teoria são formas conceituais que se desenvolvem a partir do fluxo informacional.” Ou seja, não só o objeto da CI, mas, a própria ciência informacional seria atraída para o centro de gravidade da ciência pós-moderna.
O que se tem a partir daí seria o fato de a informação não mais constituir (ou se pretender a...) um objeto em si de uma ciência particular, mas, algo a que todas as ciências devem se ater. Estas configurar-se-iam como constructos de informação em fluxo, valendo-se do encontro de sistemas de informação, que alimentariam e chancelariam as hipóteses e experimentos das mais variadas disciplinas. A informação, assim, se consolidaria como parte dos métodos empreendidos nas ciências, pois seria ela um elemento pensado para além, por ex., da Ciência da Informação; algo que afetaria a ciência e a tecnologia como um todo, uma condição de possibilidade geral para o entendimento de inúmeros campos observáveis.
Nesse sentido, se vê aqui o reposicionamento de forças que ocorre ao ajuste de curso da ciência e dos elementos componentes de seu horizonte teórico e metodológico. Dada a emergência da sociedade contemporânea, a informação assume um papel central nas ciências, sendo tanto um objeto compartilhado, bem como um princípio de objetividade para o interior de cada ciência, disciplina ou campo observável específico. Ou seja, a informação pode ser uma face do aparato crítico da ciência pós-moderna. Todo ente (coisa objetável) seria visto como algo que contém informação. A informação seria aquilo em que se está pressuposto o ser de todo ente tomado como objeto de investigação.
Nessa medida, tal quadro é paradigmático tanto ao modelo filosófico ontológico quanto ao epistemológico tratados abaixo. Isto é, ou se pensará que a coisa “informação” é um fluxo a ser gerido e aproveitável, donde se entenderia informação como algo próprio de uma dimensão digital fundamental, dando, assim, autonomia ontológica à ideia de gestão performativa (cibernética) da vida, que reconduziria a uma condição tecnicista do objeto, ou; por outro lado, se entenderá que a informatividade (informativeness) dos documentos viria a depender da identificação de um conjunto e dos tipos de práticas documentais ali envolvidas, (exercitadas nos circuitos de atividades das instituições), de onde se encontrariam, então, outras questões investigativas a partir daí. Ou seja, ensejando um retorno a uma fundamentação disciplinar pautada numa noção de “documento”, o que faria do empenho filosófico da área uma tarefa recursiva.
2.1 Tecnologia enquanto ontologia: Floridi e a questão da técnica
Floridi (2002, 2010) dispõe sua filosofia da informação a partir da pergunta sobre a natureza da informação, isto é: “que” é informação? Questão propriamente filosófica, pois se interroga sobre o ente ele mesmo (estatuto de coisa). O que estabeleceria à interrogativa um âmbito de discussão anterior às práticas e disputas metodológicas acerca das atividades cotidianas do exercício, manejo de informação; ainda que sem dispensá-las e visando abrangê-las. Para Floridi (2010), seria preciso tratar a questão da informação enquanto um problema em si, desse ente enquanto mero ente, o que denotaria uma “ontologia da informação”.
Seja qual for a resposta pretendida ao curso de seu desenvolvimento (ao que é informação), ela não conseguirá se resumir, admoesta desde já o italiano, a uma busca precisa por um significado dicionarial ou uma definição analítica disciplinar. Isto se dá pelo fato de a informação – dados os aspectos mencionados quanto à sociedade da informação – não ser mais um objeto restrito a uma área, campo ou atividade científica. O caso será, então, o de buscar um conceito tão geral e livre de particularidades que pudesse servir de abrigo a qualquer determinação disciplinar ou regional de informação.
Haveria uma noção fundamental de informação que, hermeneuticamente, integraria e daria acesso a outras definições regionais de informação? Segundo Floridi (2010), essa noção já existe, mas acabaria sempre por cair numa dicotomia radical, em que tudo seria dado, enfim, ao objeto ou ao sujeito, modelo definido por ele como “epistemológico”. Floridi quer fugir a essas discussões, que ora jogam a questão ao observador, ora ao observado. Diz ele:
Onde deveríamos colocar a ‘informação’? O debate sobre o locus informationes tem sido uma tensão entre internalistas e externalistas. Algumas pessoas colocam a informação ‘dentro’ da mente (a interpretação do radiologista da chapa dos meus pulmões); outros insistem que está no mundo (o estado dos meus pulmões representado na radiografia). Esta é uma discussão sem sentido. Quando consideramos o alimento, é claro que o alimento não está nem no mundo, como meros nutrientes, nem somente como uma função do sistema digestivo do consumidor. Da mesma forma, a informação semântica em geral é uma dessas ‘coisas bidimensionais’ que não estão nem aqui nem lá, mas na interface entre nós e o ambiente, como um limiar ou limite entre os dois espaços. Eles são fenômenos relacionais. A conceituação ‘limítrofe’ da informação não é redutível à formas de externalismo (naturalização da informação) ou internalismo (informação na mente do portador), sou minimalista, se isto pode ser um rótulo. Prefiro o rótulo ligado a um anfíbio, ontologicamente. (FLORIDI, 2010, p. 42, grifo do autor)
Assim, o que o italiano defenderá foge a qualquer definição de informação que se afigure como uma teoria do conhecimento (epistemologia do sujeito-objeto), seja ela sob a égide da subjetividade e sua forma interior, seja sob a objetividade das coisas e sua maneira em si de se doar ao observador. A este ponto-limite, ao qual Floridi moverá a informação em sua noção essencial, acabando com o chamado vai e vem do sujeito e do objeto, caberá apenas espaço a uma “ontologia mínima”. Haveria, diz ele, informação em si mesma, porém, ela faria sentido apenas a nós e ao conjunto de sistemas abstratos de permissões e regulações, onde níveis de abstração fazem a vez daquilo que, acima, se chamou de sistema informatizado de positivação e majoração dos recursos vitais (LYOTARD, 2009; FOUCAULT, 2017).
Nós construímos nossa compreensão do mundo tomando plena vantagem das permissões com restrições (dados) oferecidas por fontes externas, em diferentes níveis de abstração. Certamente os dados apenas sugerem a escolha de nível particular de abstração, e a natureza do seu resultado, mas esta sugestão não é boleana e é inversamente proporcional ao grau de coerência entre os nossos níveis de abstração. (FLORIDI, 2010, p. 44)
A intercoerência multidimensional entre os níveis de abstração é que desenha a forma do sistema informacional global da Rede. Assim, ao que parece, Floridi pensa a informação no horizonte de uma categoria digital telemática, ao qual se tem tudo como recurso a ser disponibilizado a partir de um conjunto de limitações e facilitações cibernéticas sistemáticas, dadas por um regime de performatividade (necessidade, busca e recuperação). Nesse sentido:
A coerência entre os [Níveis de Abstração] [...] pode garantir algum tipo de realismo ‘interno’, se esquecermos que a natureza dos observadores é também determinada, parcialmente, pelo dado sendo modelado. Se empírico, ou conceitual, os dados permitem somente um certo espectro de modelo, e nem todos [eles] são igualmente factíveis. (FLORIDI, 2010, p. 44)
Floridi busca, com sua filosofia, defender um expediente bastante “positivador” dessa camada fundacional das ciências informacionais. Com isso se quer dizer que o teor filosófico propriamente dito da pergunta pode até intentar se debruçar sobre o “que” de coisa daquilo que denominamos informação, mas todo o projeto “eminentemente filosófico” do autor parece pouco justificado diante do seu propósito inicial. Logo, a condução da questão volta a uma necessária resposta sistêmica, que vise satisfazer o fluxo dos níveis de abstração e a demanda ininterrupta por disponibilização de dados. Isso tanto se dá que nem o jargão metafísico consegue esconder as referências aos sistemas digitais de informação, e nem as figuras de linguagem de que se vale conseguem escapar a essa visão tecnológica de mundo:
Imagine olhar o universo inteiro de um ponto de vista puramente químico: você é 70% água e 30% qualquer outra coisa. Agora considere um nível informacional de abstração. Você é 100% um conjunto de dados. Mais precisamente, você (como qualquer outra entidade) é um pacote discreto, auto-contido, encapsulado que contém 1) uma estrutura apropriada de dados que constitui a natureza da entidade em questão: estado do objeto, sua identidade única, seus atributos e 2) uma coleção de operações, funções ou procedimentos que são ativados por interações ou estímulos variados, nomeadamente mensagens recebidas de outros objetos ou mudanças dentro de si próprio, e que definem como o objeto responde ou reage a eles. Neste nível de abstração, objetos informacionais como tais, mais do que simplesmente sistemas vivos, em geral surgem no papel de pacientes de qualquer ação. A ética da informação é, então, somente uma evolução da ética ambiental. Seu princípio fundamental é que algo mais elementar que a vida, o Ser entendido informacionalmente e, portanto, algo mais fundamental que prazer ou dor, nomeadamente ‘entropia’ (não o conceito físico de entropia; aqui significando, destruição de objetos informacionais, isto é, o Nada no vocabulário da antiga metafísica substancialista do Ser). (FLORIDI, 2010, pp. 45-46)
Heidegger adverte sobre a ansiedade de se buscar, na filosofia, um imediato resultado positivo (uma caixa de ferramentas da qual se lança mão desejando uma solução prática), ou ainda, com um propósito retórico (como via à verborragia despretensiosa). Diz ele o seguinte:
[...] pertence necessariamente ao caráter da opinião habitual e do pensamento ‘prático’ o fato de sempre se estimar equivocadamente a filosofia, seja sob o modo de uma superestimação, seja sob a forma de uma subestimação. [...] A filosofia é superestimada quando esperamos de seu pensamento um efeito que traga imediatamente consigo uma utilidade. A filosofia é subestimada quando não reencontramos em seus conceitos, senão ‘abstratamente’, (de maneira dispersa e diluída), aquilo que o lidar com as coisas, pautado pela experiência, já assegurara de modo palpável. (HEIDEGGER, 2017, pp. 6-7)
Numa ou noutra ponta, sempre se volta ao problema sem que grandes transformações tenham sido desenhadas sobre a anterior forma de se ver o mundo em que aquela coisa visada se põe. Heidegger (2010) diria que qualquer pergunta que se faça intentando o “que” de coisa, a natureza de algo – ou seja, aquele mero perguntar pelo que significa ser quando dito sobre algo que já é aí –, o próprio “que” da pergunta já mereceria uma investigação filosófica prévia (que metafísica é essa e o que nela está pressuposto?). Day indica, a partir da crítica hermenêutica heideggeriana, essa fragilidade do projeto ontológico de Floridi: “[...] a crítica heideggeriana abre uma análise retórica/crítica discursiva da reificação do termo informação e rejeita uma filosofia positivista da informação (por exemplo, a de Floridi), exigindo uma crítica desta filosofia da informação (positivista) em termos de seus pressupostos metafísicos.” (DAY, 2010, p. 177)
Toda a metafísica condensada nessa “gota de gramática” (WITTGENSTEIN, 2004, p. 287), neste mero “que”, já contemplaria um outro passo filosófico ainda mais originário que o anterior. Subsumir que esse passo seria dispensável em favor da consecução da tarefa interrogativa, com efeito, seria deixar-se aquém do valor da pergunta. Isto é, se pararia de “filosofar” – caso seja mesmo essa a intenção – e se voltaria a repetir o que a imperiosa discursividade positivadora dos sistemas cibernéticos já nos orientam diariamente. Além disso, toda essa suspensão arrolada por Floridi à respeito da informação em sua ontologia mínima não parece se distanciar daquilo que Heidegger (2007) já apontara como sendo a essência da moderna ciência ocidental: ou seja, a pré-compreensão de que o mundo serviria à subjetividade humana apenas como mero recurso disponível ao cálculo e ao uso. Em suma, o projeto filosófico (ontológico) floridiano parece estar em compasso com o mais óbvio imperativo técnico; não se conseguiria escapar ao modelo sistêmico imposto pelo expediente cibernético da disponibilidade e performatividade das redes.
2.2 Documentação enquanto epistemologia: Frohmann e o paradigma do documento
A proposta de uma filosofia da informação estabelecida por Frohmann (2004) não se orientaria pela pergunta estritamente “teórica” sobre a informação (“que é informação?”, tal como se dá na visão ontológica floridiana). Frohmann, por sua vez, enfrenta essa questão fundante partindo de uma negação e mostrando, através de Nunberg (1996 apud FROHMANN, 2004), como uma pretensa filosofia da informação – que se fiasse por uma pergunta pelo “que” de coisa – acabaria por cair no solipsismo teórico subjetivista; no qual o documento seria mera representação esperando uma mente a fim de descobrí-la como algo relevante e informativo.
Em sua fenomenologia, Nunberg, diria Frohmann (2004), ao invés de perguntar por uma definição geral ou pela natureza primeira da informação, questiona sobre os modos nos quais a informação se apresenta temporalmente, sendo já uma posição não-internalista.
Sua razão para essa abordagem [Frohmann referindo-se a Nunberg] é que as ambiguidades, contradições e confusões inerentes ao fenômeno da informação respondem por sua força e autoridade. Ideias de informação que gozam do rigor teórico das definições e essências não são úteis para compreender o fenômeno da informação, porque [como diria Nunberg (1996, p. 114)] ‘qualquer esforço para tentar extrair uma estrutura conceitual coerente para a noção seria não apenas fútil, mas falso para sua fenomenologia: 'é capaz de realizar o trabalho faz precisamente porque penetra as fronteiras entre várias categorias geneticamente distintas de experiência' (apud FROHMANN, 2004, p. 388, tradução nossa)
À tentativa de delimitação se juntaria a mera especulação de conceitos, a qual enveredaria, sugere Frohmann (2004), por um tecnicismo caótico cujo teor seria a simples transferência da informação, via Web, por pacotes de dados e todos esses cálculos pouco interessados numa dimensão histórica e social da informação. Assevera Frohmann que:
[...] a pergunta ‘O que é informação?’ o que pode ser tomado como a base de tal filosofia, pertence tanto ao nosso atual fenômeno de informação quanto a ideia de quantificação. A informação se apresenta como um tipo particular de coisa; nossa impressão é de um tipo de substância. Como a gramática da ‘substância’ e seus cognatos licenciam explorações conceituais do que, precisamente, as propriedades do material em questão podem ser, ele legitima a pergunta ‘O que é informação?’ Enquanto a impressão de informação-como-substância leva a imaginação popular à busca de antídotos para os efeitos psíquicos deletérios de ser esmagada por grande parte da matéria em questão, ela direciona a imaginação teórica e filosófica para enigmas colocados pela informação imaginada como um tipo teórico coerente. isto é, o tipo de coisa sobre qual conhecimento geral teórico pode ser obtido. (FROHMANN, 2004, p. 388, tradução nossa)
O que estaria por trás dessa concepção “teórica” de informação seria apenas uma hiper-abstração de categorias encontradas nos diversos suportes de documentos aí presentes desde sempre (quantificações de espaço, memória a partir das dimensões do jornal, do livro (NUNBERG, 1996 apud FROHMANN, 2004). Aliás, outro problema trazido por essa dimensão meramente teórica da informação é aquilo que Capurro (2016) dizia ser os vestígios deixados por uma teoria platônica e dualista da verdade, na qual informação seria uma representação estocada em códigos, que partiria do mundo ideal (contemplado pela mente) de alguém e se reordenaria, fazendo sentido apenas na mente de outrem. Disso se tiraria a ideia de que o documento seria apenas um canal de comunicação entre mentes separadas umas das outras.
Por sua vez, o ambiente da discussão de Frohmann é o campo da linguagem. Nele, a corrente teórica da informação teria em Agostinho seu defensor, que pensaria ser a linguagem deflagrada por um espírito que conhece os termos, em verdade, já a priori. Mas, como o caso de Frohmann seria o de combater tal posição, a estratégia que este se vale tem natureza wittgensteiniana, a partir da qual se teria arcabouço para desbancar a concepção internalista neoplatônica acerca da linguagem e seu pressuposto quanto à verdade atemporal e abstrata (metafísica). Qualquer estatuto de verdade sobre o sentido das palavras não seria dado pelo espírito ou pela mente calculadora judicativa quanto à coisas, mas pelos jogos de linguagem que ocorrem em condições de pluralidade e contextualização histórica. (WITTGENSTEIN, 1958 apud FROHMANN, 2004).
Para Frohmann, não existira esse ser metafísico fora do tempo e do espaço que é chamado de “informação”. O que pode haver, pelo contrário, é uma capacidade informativa dos documentos, a depender do que se poderia ver acerca da relevância destes nas práticas exercidas no âmbito dos jogos de linguagem das instituições. Tudo estaria dependurado nas “alças” das movimentações sócio-protocolares das instituições e de seus regimentos administrativos, seus enunciados e dispositivos, para usar as palavras de Foucault (1999).
Para sustentar tal argumento, Frohmann se vale do fenômeno histórico da revolução cientifica. O que parece ser apenas um instrumento de argumentação, logo surge como uma crítica indireta a Floridi (2002); pois, toda aquela ética cibernética autorregulativa, que se fazia performaticamente através dos níveis de abstração e visava um incremento de toda a cadeia de indivíduos da Rede telemática, agora pode ser vista e demonstrada a partir dos jogos de linguagem, que expressariam os momentos paradigmáticos da nascente ciência moderna. Fato que indicaria o seguinte: os elementos de ruptura, reordenação dos protocolos linguísticos e científicos eram informativos o suficiente para ensejar a passagem duma física aristotélica a uma ciência experimental e tecnologicamente orientada. Portanto, mesmo que:
As principais implicações [sejam] que o estudo de práticas com documentos deve produzir um conjunto de conceitos mais promissor para pensar filosoficamente sobre informação do que estudos centrados em uma meditação teórica e filosófica da natureza da informação, a razão para essa conclusão é que uma abordagem wittgensteiniana sugeriria que práticas e documentos [...] são conceitos mais fundamentais que a informação. [Assim posto,] a atenção às práticas com documentos revelaria como os documentos específicos, em determinados momentos e lugares e em áreas específicas do terreno social e cultural, se tornam informativos. (FROHMANN, 2004, p. 404-405, tradução nossa)
Isso leva ao núcleo da proposta frohmanniana para uma filosofia da informação. Esta, com efeito, pautar-se-ia na coadunação entre os jogos de linguagem de Wittgenstein e a análise genealógica foucaultiana do discurso: a defesa de uma filosofia da informação estaria desatrelada dos traços metafísicos da tradição. Nela, não se pergunta, de forma alguma, pelo ser de algum ente e suas propriedades, mas sim se quer entender as estratégias e formas de circulação de discursos, enunciados informativos, sendo que tais referências (Wittgenstein e Foucault) propõem esse mesmo distanciamento da tradição platônica, representacionista. Postura que pode ser tida como “filosófica”, pois dialogaria com uma filosofia contemporânea (pós-metafísica e pós-estruturalista). Ou seja, as hipóteses filosóficas de Floridi e Frohmann divergiriam aqui: o que uma assume e estende, a outra se preocuparia em afastar e isolar.
Por sua vez, parece haver alguma consonância entre Frohmann e Floridi quanto ao fato de que cada um deles tenta postular uma série de considerações acerca do objeto informacional, mas acabam por se desviar da questão “filosófica”, ao se absterem de perguntar acerca dos pressupostos que sustentariam suas postulações. Floridi, ao que parece, acaba sendo absorvido pelo imperativo tecnológico, entendo, de antemão, informação como ente disponível; e Frohmann, por sua vez, acabaria por remeter a origem de sua filosofia da informação ao interior das assumpções da Documentação. A partir disso, observamos que: a) é necessário continuar a pergunta/investigação sobre os pressupostos teóricos que ensejam tais preconcepções, já que aquele ideal de uma filosofia da informação como âmbito primordial de reconhecimento duma objetividade da matéria informação acabaria sendo arrefecido pelo uso de pressupostos já dados pela prática documental tradicional ou pelo calculismo tecnocientífico, por ex.; b) as ideias de Frohmann, quanto ao caso derradeiro de uma documentação fundamental, ainda fazem jus ao que Smit (2012) dispõe sobre o objeto da CI: de que documento seria algo que está circundado/determinado por instituições, e que seria esta a limitação de atuação da área informacional. O que se mostraria, com efeito, como um desfalque ao debate “filosófico”, pois a visão ontológica de Floridi assume um amplo espectro de aplicações ao seu conceito de informação, pensando na Web (princípio de abrangência da teoria). Assim, recorrer à Documentação ou ao conceito de documento inibem, em alguma medida, uma discussão fundamental e filosófica à filosofia da informação.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Independentemente de seus resultados, as propostas de ambos os ramos dessa filosofia da informação, seja ela floridiana ou frohmanniana, parecem radicalizar a busca pelos pressupostos objetivos da informação. Com efeito, tanto o quadro ontológico de referência quanto a perspectiva epistemológica documental abrem um campo de estudos sobre itens que parecem estar ainda subentendidos à programas já em circulação. O que afiguraria mais um quadro comprometido com uma ratificação de antigas compreensões acerca do objeto, e, menos com a tarefa filosófica (radical) de escancarar referências ainda ocultas – embora operantes – ao corpo teórico da área da informação.
Tanto em um sentido floridiano, no qual a força teórica cibernética que a tudo molda a partir de uma sistemática subjacente (do ritual da disponibilidade do ente), bem como do ponto de vista duma filosofia frohmanniana, que se vê subordinada aos aspectos teóricos já dados pela tradicional Documentação, deflagra-se um trabalho que ainda não conseguiria observar e se descolar, a rigor, dos seus pressupostos mais positivadores.
Considerando a ideia heideggeriana de que a tecnologia moderna se comportaria, metafisicamente, como uma “causa eficiente”, donde a subjetividade veria o mundo como mero ente à-mão (matéria disponível), se poderia ver como esta se dá num modo-de-ser existencial, cumprindo um juízo pré-determinado da informação como recurso (hermenêutica tecnocientífica na qual esta determinaria o ser do ente informacional); por outro lado, a crítica a um sistema metafísico feita por Frohmann parece ser mais eficaz que a própria proposta que a ela se segue. Enquanto postura crítica, a hipótese frohmanniana parece mais servir como contrapartida da ontologia da informação do que realmente como um programa de pesquisa fundamental. Como essa hipótese se resumiria à retomada dos pressupostos documentalistas, a atitude filosófica acabaria se configurando como um projeto de manutenção de princípios, e não de uma iminente deflagração de causas ainda ocultas.
O que é pensado como questão “filosófica”, por Floridi e Frohmann, parece se configurar mais como defesa de um dado modo prático de encarar o objeto informacional do que uma radical suspensão dos interditos teórico-científicos a fim de sua deflagração. Isso não diverge do caso da pesquisa teórica, pois há a suposição da dimensão aplicada dessa filosofia e de suas descobertas. Porém, tal operação de determinação do objeto informação parece se dirigir ao confronto entre uma escola anglo-americana e a tradição franco-documentalista.
Como já mencionado, a filosofia não é uma mera caixa de ferramentas, cuja função fosse a de emprestar ao uso teórico verdades últimas. Ela, antes, deve falar para dar abertura hermenêutica ao problema da delimitação objetiva da informação. Existe, portanto, a necessidade de estabelecer o grau de profundidade dessa pré-compreensão ontológica da tecnologia sobre uma filosofia da informação, bem como também se deve analisar as assunções de uma filosofia de base documentalista. É preciso avançar no entendimento do que seja essa “filosofia” para que se possa analisar uma possível relação entre objetividade científica da CI e ontologia e epistemologia da tecnologia e do documento.
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[1] O autor agradece o apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), sem o qual este trabalho não teria sido possível.
[2] Doutorando e mestre em Ciência da Informação pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da USP/ECA. Possui ainda bacharelado em Biblioteconomia pela UNESP. Sendo bolsista CAPES desde 2019.
[3] isto é, a distância formal e material entre sujeito e objeto do conhecimento, bem como do método, que não seriam mais garantidores nem da exclusividade objetiva (este ou aquele objeto sendo desta ciência e apenas dela) e nem de um critério autônomo e universal de verdade (LYOTARD, 2009).