SOCIEDADE DISCIPLINAR E SOCIEDADE DE CONTROLE
um olhar a partir da ressignificação de uma biblioteca pública brasileira
Mariana Rodrigues Gomes de Mello[1] Universidade Estadual Paulista (UNESP) mariana.rg.mello@unesp.br |
Ofélia Cristina Xavier de Andrade[2] Universidade Estadual Paulista (UNESP) ofeliacristina_andrade@outlook.com |
Deise Maria Antonio Sabbag[3] Universidade de São Paulo (USP) Universidade Estadual Paulista (UNESP) deise.sabbag@unesp.br |
Daniele Achilles Dutra da Rosa[4] Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) daniele.achilles@unirio.br |
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Resumo
A partir do século XVIII, a imposição do controle das principais instituições políticas e sociais à população passa a ocorrer precipuamente por meio de estratégias urbanísticas. A arquitetura revela o objetivo de disciplinamento dos corpos de modo a prepará-los para a inserção na incipiente sociedade capitalista, seja na forma das escolas, fábricas ou prisões. Objetivamos num primeiro momento refletir, por meio da trajetória histórica e arquitetônica da Biblioteca Pública Municipal de Marília, se a biblioteca antiga tem preponderância de uma instituição disciplinar; para, em um segundo momento, apresentar a arquitetura no novo prédio, verificando se o novo modelo de biblioteca pode evidenciar a transição do modelo disciplinar ao de controle. Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, documental e bibliográfica, na qual utilizamos o método Análise de Conteúdo da Bardin para analisarmos categorias de entrevista. Para tanto, nos valemos um pouco do pensamento de Foucault e Deleuze acerca do tema, bem como o histórico, arquitetura e um pouco da organização das coleções da biblioteca em questão, nos espaços e tempos diferentes. Concluímos que a nova biblioteca não é melhor do que a anterior. Ela apenas se adequa melhor aos ditames dos novos tempos, com novas perspectivas sociais e tecnológicas. A antiga biblioteca teve uma função muito importante na história da cidade e dos seus usuários. Somente não estava mais apropriada ao século XXI, necessitando de novo aspecto e sentido.
Palavras-chave: Biblioteca pública; Sociedade disciplinar; Sociedade de controle; Inovação. Epistemologia.
DISCIPLINARY SOCIETY AND SOCIETY OF CONTROL
an analysis based on a redefinition of a Brazilian public library
Abstract
From the 18th century onwards, the imposition of control of the main social and political policies on the population began to occur primarily through urban strategies. Architecture reveals the objective of disciplining bodies in order to prepare them for insertion in the incipient capitalist society, whether in the form of schools, factories or prisons. At first, we aimed to reflect, through the historical and architectural trajectory of the Municipal Public Library of Marília, if the old library has the preponderance of a disciplinary institution; to, in a second moment, present an architecture in the new building, verifying whether the new library model can show a transition from the disciplinary to the control model. Methodologically, this is a qualitative, documentary and bibliographic research, in which we use the Bardin Content Analysis method to analyze interview categories. For that, it uses some of the thought of Foucault and Deleuze about the theme, as well as the history, architecture and a little of the organization of the collections of the library in question in different spaces and times. We conclude that the new library is no better than the old one. It just fits better to the dictates of the new times, with new social and technological possibilities. The ancient library played a very important role in the history of the city and its users. It was just no longer appropriate for the 21st century, needing a new look and feel.
Keywords: Public Library; Disciplinary Society; Society of control; Innovation. Epistemology.
Desde os primórdios da civilização, o ser humano anseia pelo poder, expresso na dominação de toda a natureza, em um sentido lato, incluindo a dominação de um ser humano pelo outro (ADORNO, 1993). A disseminação do poder, por meio das relações de forças, se deu nas famílias, nas primeiras comunidades ou tribos, até se estender à escala institucional, primeiramente pública, representada no poder imperial, e posteriormente, também privada, como a instituída no feudalismo e nas relações trabalhistas, fruto da Revolução Industrial, em época posterior.
Nesta perspectiva, a partir do século XVIII, a imposição do controle das principais instituições políticas e sociais à população passa a ocorrer precipuamente por meio de estratégias urbanísticas. A arquitetura revela o objetivo de disciplinamento dos corpos de modo a prepará-los para a inserção na incipiente sociedade capitalista, seja na forma das escolas, fábricas ou prisões (WERMUTH; FORNASIER, 2015). É nesse modelo que se percebe o modo de transição entre um exercício de poder ostensivo, como a escravidão, para um exercício também cruel, porém tido equivocadamente como livre, como o das relações assalariadas de trabalho desumanas da primeira fase da Revolução Industrial; até chegar ao poder de vigilância totalmente velado e fluido dos algoritmos que registram através de cookies (arquivos de armazenamentos) tudo o que é pesquisado em nosso navegador da internet.
O método de extrair das massas o máximo de produtividade em menos tempo, transformando-as em um grande corpo mecânico, passa a ser a preocupação central do século XIX e boa parte do século XX. Assim, o indivíduo funde-se ao espaço onde trabalha e habita (FOUCAULT, 1998). Eis que se instaurava a sociedade disciplinar, uma organização vertical, normalizadora e hierárquica, um espaço social exercido por aplicação de instrumentos e técnicas de disciplinamento.
Nas sociedades disciplinares, a informação, a hierarquia e o espaço físico estão imbricados, visto que o espaço físico é todo idealizado segundo a lógica e objetivos da instituição que ele representa. O espaço físico é muito importante, pois funciona como elemento de controle a serviço dos dispositivos de sequestro (escolas, bibliotecas, fábricas, prisões e etc). Cada instituição tem seu espaço definido com funcionários e um quinhão de informações próprias. O acesso à informação confunde-se com a posição do funcionário na instituição onde trabalha, seja pelo cargo, antiguidade ou promoção, ou seja, é uma instituição estruturada e estruturante. Neste sentido, conforme Costa (2004, p. 162), “Há uma associação profunda entre o local, o espaço físico e o sentido de propriedade dos bens imateriais”.
Porém, com o decurso do tempo, com a tecnologia, sobretudo com a internet, o desenvolvimento da Web e o mundo globalizado, a sociedade disciplinar vem sendo gradativamente substituída pela sociedade de controle, que tem como característica principal o exercício do poder fluido que independe de um espaço físico determinado e hierarquicamente organizado, sob o olhar atento de um grupo de funcionários, que são os guardiões das informações ali presentes. O poder hoje é cada vez mais ilocalizável, horizontal, impessoal, difuso e velado (DELEUZE, 2019).
Nesta perspectiva, o espaço físico é importante para inúmeras atividades, mas não é imprescindível enquanto controle, temos outros modos de vigiar e de sermos vigiados. Isto ficou claro na pandemia do Corona Vírus 19. Passamos a trabalhar em nossas casas, contudo, nem por isso deixamos de prestar contas às instituições onde estamos vinculados. As bibliotecas, tal como as demais organizações, também sentiram os efeitos dos novos paradigmas econômicos e sociais que marcaram as últimas décadas e seus espaços tiveram que se adequar pra atender um novo público imerso em novos ditames sociais.
Assim, com a proposta do estudo do espaço físico e suas implicações e representações na sociedade disciplinar e de controle analisamos a mesma instituição, na mesma cidade, uma biblioteca pública em dois espaços e em tempos diversos. Ela se localiza no município de Marília, uma cidade com 92 anos, com cerca de 240 mil habitantes, no estado de São Paulo – Brasil, a única Biblioteca Pública Municipal do local, cuja sua primeira instalação foi em um prédio antigo, uma construção que teve início em 1940, localizado na Avenida Sampaio Vidal, uma das avenidas principais da cidade. A nova instalação, a partir de 2017, se configurou em um prédio novo, na Rua São Luiz, que antes de ser atual biblioteca da cidade, era uma livraria com uma arquitetura moderna. Partimos do seguinte problema de pesquisa: Será que a Biblioteca Pública Municipal de Marília, em seus dois espaços e tempos diferentes, com arquiteturas absolutamente diferentes, pode ser pensada respectivamente como uma biblioteca nos moldes da sociedade disciplinar e uma biblioteca nos moldes de uma sociedade de controle, tendo como perspectivas teóricas Foucault e Deleuze?
Partimos da prerrogativa que devemos compreender a biblioteca pública como um espaço para práticas sociais ligadas à leitura, à escrita, e consequentemente, à produção do conhecimento. Porém, nossa hipótese incide no fato de que o espaço de uma organização pode ser concebido para servir a algum modo de controle, seja expresso ou implícito, e uma das vias se inscreve na arquitetura, ou seja, em como esse espaço foi concebido, em qual contexto e para quais fins.
Portanto, objetivamos, primeiramente, refletir, por meio da trajetória histórica e arquitetônica da Biblioteca Pública Municipal de Marília, se a biblioteca antiga tem preponderância de uma instituição disciplinar; para, em um segundo momento, apresentar a arquitetura no novo prédio, verificando se o novo modelo de biblioteca pode evidenciar a transição do modelo disciplinar ao de controle. Para tanto, explanaremos um pouco do pensamento de Foucault e Deleuze acerca do tema, bem como o histórico, arquitetura e um pouco da organização das coleções da biblioteca em questão nos espaços diferentes.
Para Foucault existe inter-relação lógica entre história, epistemologia e arquitetura. O espaço não é mero cenário, mas integra as relações de poder. Neste sentido, de acordo com Foucault (2006, p. 212, grifo nosso):
Parece-me que, no final do século XVII, a arquitetura começa a se especializar, ao se articular com os problemas da população, da saúde, do urbanismo. Outrora, a arte de construir respondia sobretudo à necessidade manifestar o poder, a divindade, a força. O palácio e a igreja constituíam as grandes formas, às quais é preciso acrescentar as fortalezas; manifestava-se a força, manifestava-se o soberano, manifestava-se Deus. A arquitetura durante muito tempo se desenvolveu em torno dessas exigências. Ora, no final do século XVIII, novos problemas aparecem: trata-se de utilizar a organização do espaço para alcançar objetivos econômico-políticos [...]. Seria preciso fazer uma “história dos espaços” – que seria ao mesmo tempo uma “história dos poderes” [...].
Na Idade Média, o local das bibliotecas era bem escondido, em masmorras, os livros eram trancados com cadeados, o conhecimento disponível para uma minoria, com uma cadeia de comando clerical. Segundo Martins (2002), nas bibliotecas medievais também existiam alguns frequentadores que não faziam parte do clero; eram pessoas aceitas ou autorizadas por ele, como alguns nobres. Conhecimento era poder e este não podia ser disseminado. Já compreendiam na época que um povo culto saberia lutar melhor pelos seus direitos e consequente pela quebra da hegemonia do poder.
É importante salientarmos que, o medo das obras serem furtadas era bastante visível, pois os visitantes dessas bibliotecas, ao entrarem no espaço, iriam se deparar com livros presos com correntes, com o principal objetivo de evitar o furto das obras. Os mosteiros e conventos definiram-se, no período medieval, como bibliotecas. Até mesmo arquitetonicamente o aspecto de biblioteca podia ser verificado, pois em muitos deles havia armários embutidos nas enormes paredes, como estantes de livros. “As mais variadas formas de estantes de leitura existiam nesses conventos para permitir um manuseio cômodo dos grossos in-folios medievais, inclusive as portáteis, mas nas quais se acorrentavam os livros”. (MARTINS, 2002, p. 82).
Tecendo comparações arquitetônicas, Foucault (1998) afirma que se engana quem pensa ser a sociedade disciplinar aquela na qual todos vigiam, como se somente houvesse um acréscimo de guardas e disciplinadores. Pelo contrário, nas instituições de vigilância precisou-se cada vez menos desses personagens. O poder disciplinar tem um viés econômico, fruto do capitalismo e se vale dos espaços arquitetônicos organizados de modo a incrementar e facilitar a sensação de vigilância múltipla, detalhadas de cada indivíduo que compõe seus interiores. Assim, ocorre também em hospitais, fábricas e escolas. A aplicação das instituições de disciplina não apenas veta a desobediência, mas torna a condição de existência principal do agrupamento, visto que são usadas para fortalecer e coordenar as habilidades dos indivíduos inseridos na máquina panóptica.
O conceito de panóptico foi originalmente idealizado por Jeremy Bentham no século XVIII “como um plano inicial para uma casa de inspeção penitenciária. Tratava- se de um edifício circular onde os prisioneiros ocupavam celas separadas entre si, celas essas que partem da circunferência em forma de raios até o centro” (CAPRIOLI et al., 2017, p. 305). Para Foucault, na leitura de Caprioli et al. (2017, p. 308), o panóptico “deve ser compreendido como um modelo generalizável de funcionamento, definindo as relações de poder com a vida dos homens enquanto cotidiana”.
Foucault (1998), em seu livro “Vigiar e Punir”, salienta modelo panóptico e pelas suas pesquisas e observações a relação de toda a arquitetura dos hospitais e escolas, seus ambientes e organizações com o saber-poder. Da visibilidade constante dos vigiados pelos vigias, concomitante à total invisibilidade dos últimos pelos primeiros, no século XVIII, o autor descreve as reformas penitenciárias do século XIX e a necessidade de um olhar centralizado e de total visibilidade nessas instituições, separando os indivíduos vigiados. O princípio da masmorra e as funções de privar a luz e esconder os indivíduos a serem punidos é substituído pela iluminação plena e pelo olhar do vigia.
Logo, o poder que na Idade Média que estava sob o controle da Igreja, passa a pertencer ao Estado. Exemplificamos, o caso das bibliotecas da Idade Média e em comparação com as primeiras bibliotecas públicas do Brasil, constituídas no século XIX; as medievais tiveram o clero para zelar o conhecimento, ficando apenas aos cuidados religiosos e, após esse período, as bibliotecas passam a ser cuidadas pelo Estado, por seus governos (MARTINS, 2002).
Portanto, a disciplina deixa de ser identificada apenas no cerne das instituições tornando-se uma modalidade de poder – o modelo panóptico do poder. Assim, passa a integrar o âmago de todas as modalidades de disciplinamento, o que levou ao surgimento da sociedade disciplinar (FOUCAULT, 1998).
Para refletir sobre a sociedade disciplinar, tendo como foco a representação arquitetônica no espaço de poder, analisamos a Biblioteca Pública Municipal de Marília, em seu antigo prédio, construída no século XX, no início da década de 1940, possuidora de uma arquitetura soberana, imponente e grandiosa.
Registros históricos relatados por Teixeira (2000) - bibliotecária da Câmara Municipal da cidade de Marília e cuidadora de seus arquivos – a primeira biblioteca da cidade possuía 2000 volumes, na época de sua fundação, em 1930. Inicialmente foi uma biblioteca escolar, pois funcionava anexo ao Grupo Escolar da cidade, passando a ser pública na década posterior. Nesses arquivos históricos de Marília, em 03 de janeiro de 1941, o então Prefeito Municipal, Sr. José Nelson Carvalho, através do decreto-leinúmero23/41, cria oficialmente a Biblioteca Municipal, junto a Diretoria de estatística e publicidade. Também estabelece seu regulamento especificando suas atribuições.
No ano de 1953, a Biblioteca Pública, por meio da lei 443/53, regulamentada pelo decreto-lei 714/54, passa a denominar-se "Tomás Antonio Gonzaga". Este mesmo decreto altera também alguns artigos do seu regulamento. Em 1959, pela Lei 784/59, cria-se o Museu Municipal, como órgão anexo à biblioteca. Já em 1960, pela Lei 877/60, é firmado convênio como Instituto nacional do Livro (extinto INL), do Ministério de Educação e Cultura. Por esse convênio, a biblioteca passou a receber verbas para aquisições de livros destinados ao aumento do acervo. Em 1979, de acordo com a Lei 2576/79, altera-se o regulamento da biblioteca, estabelecendo o recolhimento de uma taxa para inscrição dos leitores (TEIXEIRA, 2015).
Em relação ao seu acervo, este permaneceu durante muitos anos fechado, sem acesso ao público diretamente. Os usuários não tinham contato direto com o acervo pra poder conhecer livros novos, folheá-los, dependendo totalmente dos funcionários da biblioteca para busca pela informação. Havia as fichas catalográficas físicas, em arquivos, os quais o acesso era restrito apenas aos funcionários. Existia, ainda até na década de 1980, uma catraca para acesso ao espaço de leitura da Biblioteca, com mesas e cadeiras de madeira. Ficava sempre um funcionário na catraca para controle de entrada e saída, assim como para manter o silêncio.
Em meados dos anos 1990, a catraca de acesso a biblioteca é retirada, mas o acervo ainda permanece fechado, sem acesso direto do usuário. Somente em meados de 2010, o acervo e os arquivos das fichas catalográficas, passam a ser livre, à disposição dos usuários. Nesta perspectiva, toda a trajetória da Biblioteca Municipal Pública de Marília, instalada na Avenida Sampaio Vidal, teve um perfil muito tradicional e poder exercido de modo verticalizado, com uma estrutura arquitetônica que colaborava com isso, nos moldes do que o filósofo Foucault (1998) denominou de sociedade disciplinar.
Partindo das reflexões de Deuleze (1990), suas comparações quanto a sociedade disciplinar e a sociedade de controle, o filósofo sugere que as sociedades disciplinares possuem dois polos: a assinatura que indica o indivíduo, e o número de matrícula que incide na sua posição numa massa. No entanto, nas sociedades de controle," o essencial não seria mais a assinatura nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha [...] A linguagem digital do controle é feita de cifras, que marcam o acesso ou a recusa a uma informação" (DELEUZE, 1990, p. 52).
A sociedade de controle é caracterizada, então, pela ausência de limites definidos (as redes de informação se fundem ao espaço físico). Essas interpretações residem na análise, da relação entre identidade pessoal e código intransferível (cifra), ora aceito, ora recusado, afirma Deleuze (1990). Logo, podemos tecer uma comparação da sociedade de controle ao modelo mais tecnológicos das bibliotecas atuais, onde tudo depende de um cadastro, senha de acesso ao sistema e às bases de dados, tanto no momento da pesquisa como do empréstimo. Nem sempre a pesquisa é feita no meio físico, ela pode se dar nas bases de dados de livre acesso ou assinadas pelas bibliotecas.
Neste sentido, podemos refletir acerca da mudança de paradigma da Biblioteca Municipal Pública de Marília e a mudança de espaço geográfico e arquitetônico maior que uniu o espaço físico ao virtual, conferindo novas possibilidades de pesquisa aos usuários, como já era conferido nas bibliotecas universitárias, além das práticas tradicionais e culturais. De acordo com a administração municipal, a biblioteca passa para um prédio novo, moderno com espaço maior que o anterior. O prédio possui 850m² de espaço livre para trabalhar o conceito de biblioteca viva[5] com várias ações e programas culturais de qualidade, oferecendo melhores acomodações para diversos públicos e idades (PREFEITURA DE MARÍLIA, 2017).
Suas novas instalações foram inauguradas dia 19 de julho de 2017, em espaço de 850 m², totalmente acessível, com condições para oferecer vários projetos e programas para todas as idades. Com conceito de organismo vivo, atuante, participativo na comunidade, a Biblioteca de Marília tornou-se um lugar de convivência, trocas e aprendizado mútuo.
As atuais instalações estão dispostas da seguinte forma: no primeiro inferior (subsolo) estará o telecentro–projeto de informática para a terceira idade, auditório, brinquedoteca, jogos de tabuleiro, espaço de convivência, oficinas e exposições.
No piso superior está o acervo de literatura nacional e internacional e livros infantis, juvenis, em braile, gibiteca (equivalente a bedeteca em Portugal). Os livros ficam expostos como numa livraria e com área para leitura de jornais e revistas, livros didáticos e paradidáticos, além do programa Agenda Cidadã que possibilita o acesso à sala de estudo individual ou em grupo a partir de agendamentos. No piso térreo, está a recepção, holster, balcão de empréstimo centralizado, e cabine para braile aos deficientes visuais.
De acordo com a Prefeitura Municipal de Marília (2017), a Biblioteca Pública está localizada em um prédio totalmente acessível, com elevador com painel também escrito em braile aos deficientes visuais e banheiros adaptados às pessoas com redução de mobilidade. Também possui espaços fixos para contação de histórias, cursos, oficinas, jogos, palestras e convivência. O novo espaço da biblioteca mantém os setores infantis, juvenis e aos idosos, tornando-se um lugar mais adequado à leitura, climatizado, confortável e disponível com diversos serviços. Atualmente, as bibliotecas mudaram seu perfil e conceito, “biblioteca não é mais um depósito de livros velhos, desatualizados que efetua apenas empréstimos e atende às pesquisas. É também um lugar de convivência, trocas e aprendizado mútuo” (FAGOTI, 2017, sem paginação).
O novo modelo de biblioteca é fruto das novas relações de trabalho e de gerenciamento, que alteraram, o exercício do controle. Este se dá num espaço mais aberto, fluido, menos normatizado. O número do Registro Geral (RG) da carteira de identidade (identificação do cidadão brasileiro), telefone residencial e o endereço pessoal são substituídos pelas novas formas de controle, como logins e senhas, os quais permitem, ou negam o acesso do usuário.
Deste modo, no âmbito da sociedade de controle, os saberes são produzidos sob práticas de monitoramento, análise e categorização desse imenso fluxo de dados e rastros pessoais em circulação, por meio de tecnologias. Devemos compreender que não há relação de poder sem constituição relativa de um campo de saber, nem saber que não pressuponha e não constitua simultaneamente relações de poder. (DEULEZE, 2019).
A Biblioteca Pública Municipal de Marília, instalada no prédio antigo, tinha um perfil e conceito tradicional. As disponibilidades dos móveis eram de madeira e antigos; estantes de ferro desgastadas e sem estruturas. Em meados de 2010, começa-se a passar as informações da representação descritiva para um sistema informatizado de biblioteca, pois até então era totalmente manual as fichas catalográficas, em arquivos físicos.
Mantendo dessa forma, a biblioteca numa sociedade disciplinar, onde o indivíduo era, de certa forma, disciplinado ao silêncio e ao controle de acesso às informações, poiso acervo era fechado. A normas eram muito bem estabelecidas e o usuário que não se adequasse a elas era retirado do local. Como em qualquer instituição nos moldes disciplinar, os corpos dóceis, fruto do capitalismo industrial, eram perfeitamente moldados, adestrados num espaço fechado, repleto de normas, se integrando aos ditames institucionais (FOUCAULT, 1998).
O regime do poder disciplinar não tem como fim a repressão em si, ela é o meio. O que ele almeja mesmo é a normalização, por meio de técnicas de vigilância, obrigando à homogeneidade, à medida que há comparação, classificação, hierarquização, homogeneização, e consequentemente, exclusão (FOUCAULT, 1998).
Além disso, as informações parecem adequar-se à estratégia de compartimentalização que configura o dispositivo disciplinar. A seguir, a imagem externa do antigo prédio da Biblioteca Municipal da cidade de Marília-SP.
Figura 1 - Imagem externa do antigo prédio da Biblioteca Municipal da cidade de Marília-SP |
Fonte: Assessoria Prefeitura Municipal de Marília |
Nessa perspectiva, há uma mudança de natureza do próprio poder, que não é mais hierárquico, e sim disperso numa rede, difuso. Isso pode significar que a antiga dicotomia opacidade-transparência não seja mais pertinente. Para Deleuze (2019), o poder hoje seria cada vez mais ilocalizável, disseminado nas redes. Sua ação não seria mais vertical, como anteriormente, mas horizontal e impessoal.
É fato que a verticalidade sempre esteve associada à imagem de alguém: é o ícone que preenche o lugar do poder, porém, o poder não tem mais uma face única. Sua ação agora não se restringe apenas à contenção das massas, à construção de fronteiras, à contenção ou promoção do consumo. Essas são estratégias que pertencem a um outro contexto.
No entanto, a Biblioteca Pública, em novas instalações, apresenta um novo conceito e perfil. Com uma instalação mais moderna e adequada aos usuários da comunidade local, seja adulto ou infantil. Com novo conceito de biblioteca, a de Biblioteca Viva, se preocupa mais com a convivência, trocas e aprendizado num formato mais agradável e digital, que provém de um estudo de marketing nos moldes de uma livraria, sem dispensar alguns objetos de antiguidade para compor a decoração de alguns ambientes.
Em sua nova estrutura possui também computadores de acesso aos seus usuários, ligados à base de dados no auxílio às pesquisas, deixando o espaço mais fluido e indeterminado, o que constitui uma das características primordiais da sociedade de controle. Logo, o poder atua de uma forma mais indireta, enquanto sugestões e direcionamentos dos funcionários, já que as câmeras de segurança, senhas e outros dispositivos fazem o efetivo controle e seleção do que pode ou não ser feito pelo usuário. Não há mais necessidade do modelo de vigilância direta da sociedade disciplinar. Abaixo, as imagens da novo espaço da Biblioteca Pública Municipal da cidade de Marília-SP.
Figura 2 – Imagens do novo espaço da Biblioteca Pública Municipal da cidade de Marília-SP |
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Fonte: Assessoria Prefeitura Municipal de Marília |
5 METODOLOGIA
Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa e documental, visto que averiguamos registros acerca da Biblioteca Pública Municipal de Marília, quanto aos aspectos arquitetônicos e históricos. Contudo, não deixa de ser também uma pesquisa bibliográfica, pois recorremos à literatura da Ciência da Informação (CI), especialmente na Base de Dados Referencial de Artigos de Periódicos em Ciência da Informação (BRAPCI), Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Library and Information Science Abstracts (LISA). No âmbito da Filosofia consultamos as obras de Deleuze e Foucault, que tinham ligação com a temática, bem como de seus comentadores mais notáveis, a fim de compormos nosso referencial. Ademais, há um caráter exploratório ao inter-relacionarmos a sociedade de disciplinar e a de controle numa biblioteca.
Após desenvolvermos o referencial teórico, fizemos uma entrevista com três frequentadores da biblioteca municipal em ambos os espaços - com idades entre 38 e 64 anos, com curso superior, e que frequentam a biblioteca há pelo menos 25 anos - a fim de podermos elucidar a questão, buscando ratificar uma tendência, e assim, abrir um espaço pra reflexão, visto a natureza teórica e exploratória da pesquisa. Deste modo, não fechamos a questão ante a baixa representatividade da amostra, apenas a ilustramos. Fizemos a entrevista via Google Meet, individualmente no mês de julho de 2021.
As perguntas aos entrevistados foram as seguintes:
a) Quais as diferenças primordiais quanto a estrutura da biblioteca você pode nos relatar?
b) Você se sentiu mais livre no ambiente da nova biblioteca? Justifique:
c) E quanto ao atendimento, o que mudou com o decurso do tempo?
Para tanto, categorizamos as respostas por meio da aplicação do método Análise do Conteúdo da Bardin (2009), adaptando-o à sistematização e análise das informações coletadas.
Na interpretação que Silva e Gobbi apud Mello et. al (2020:379) fazem de Bardin, “inexiste na Análise do Conteúdo um sistema rígido de utilização. Sendo assim, o pesquisador pode usar desta flexibilidade, sem deixar de imprimir nitidez ao referencial e à metodologia”. Portanto, trata-se de um método flexível, porém muito complexo, usamos apenas aspectos dele pra categorizar nossa entrevista, adaptando a técnica Análise Categorial que “[...] funciona por operações de desmembramento do texto em unidades, em categorias segundo reagrupamento analógicos” (BARDIN, 2009:199).
6 RESULTADOS
Por meio da análise das categorias, baseadas em Bardin (2009) definidas a posteriori, foi possível apresentarmos os resultados a seguir sintetizados nos quadros 1, 2 e 3, frente as respostas dos três usuários da Biblioteca Pública Municipal de Marília-SP em tempos e espaços diferentes (no quadro identificados como E1, E2 e E3):
Quadro 1 - Categoria – Estrutura do prédio.
CATEGORIA: Há grandes diferenças na estrutura dos dois prédios. |
DEFINIÇÃO: Com o decurso do tempo, o prédio antigo da biblioteca foi modificando, a catraca foi retirada, o acervo foi aberto, alguns móveis mais confortáveis foram adquiridos e o ambiente foi informatizado. Porém, o prédio novo tem uma outra visão, menos histórica, mais no formato de uma livraria, com mais tecnologia e conforto. O ponto negativo é a localização. |
TEMA: Exemplos de verbalizações |
E1: “Inúmeras, mas a estrutura já foi se modificando no endereço antigo. A catraca foi retirada, o acervo foi aberto, alguns novos móveis mais confortáveis, surgiram os computadores. Mas, no novo prédio tudo está melhor ainda, bem mais confortável”. E2: “Os móveis, a disposição do acervo, tudo muito diferente comparando os dois espaços. Contudo, não necessariamente melhor, porque se hoje o novo espaço é mais confortável, a localização e o aspecto histórico do primeiro prédio era melhor”. E3: “O segundo espaço é mais moderno, atrativo ao jovem na forma de livraria. E entendo que tem que ser assim pra concorrer com a internet. Se já é mais difícil trazer o jovem pra biblioteca, imagine se o espaço não for atrativo. Mas a localização do prédio antigo era melhor para uma biblioteca”. |
Fonte: Elaboração própria com base nos dados coletados (2021).
No que tange a categoria: “há grandes diferenças na estrutura dos dois prédios”, obtivemos as opiniões dos entrevistados e, por meio da análise e interpretação das informações obtidas, chegamos as seguintes inferências: esta categoria ratifica o relatado no referencial teórico, ou seja, a estrutura da biblioteca foi se modificando bastante com o decurso do tempo, acompanhando tendências tecnológicas. Porém, no novo endereço a biblioteca assume uma nova forma, de acordo com novas tendências arquitetônicas, e outras visões sociais, expressas em novas relações de poder.
Quadro 2 - Categoria - Liberdade.
CATEGORIA: Existe a promoção da liberdade aos usuários no novo espaço da biblioteca. |
DEFINIÇÃO: A sensação de liberdade foi ficando maior com o decurso do tempo, o acervo aberto, a disposição das prateleiras, mobiliário e a tecnologia contribuíram com isso. Não entregamos mais o RG, mas a tecnologia nos vigia de alguma forma. |
TEMA: Exemplos de verbalizações |
E1: “Eu frequento a biblioteca desde a época que tinha uma catraca para a entrada, mostrávamos o RG, que as vezes era retido, e o acervo era todo fechado, não tínhamos acesso aos livros. Tudo foi ficando mais livre sim, a disposição das estantes e os tipos de móveis nos deixam numa sensação de maior liberdade”. E2: “Creio que pela tecnologia a sensação de liberdade foi maior, antes a pessoa poderia sumir com o livro, hoje é mais difícil, a pessoa não sabe se está sendo filmada, ou se vai apitar algo quando sair. Então, os funcionários podem ficar mais tranquilos neste sentido”. E3: “A biblioteca em si já é um espaço livre, pois promove à leitura, um ato de liberdade. Mas, poder pegar o livro na estante, olhar, folear, como se estivesse na livraria, é muito prazeroso. Me sintomais livre sim no novo espaço”. |
Fonte: Elaboração própria com base nos dados coletados (2021).
Por meio da análise e interpretação das respostas da categoria “existe a promoção da liberdade aos usuários no novo espaço da biblioteca”, podemos inferir que na sociedade de controle há uma “liberdade vigiada”, uma forma de exercício do poder mais velada. A sensação de liberdade é maior do que na época em que entregávamos sempre a carteira de identidade e passávamos na catraca ao entrarmos na biblioteca. Agora o controle se dá por meio de senhas.
Quadro 3 - Categoria – Atendimento ao usuário.
CATEGORIA: Há diferenças no atendimento na biblioteca municipal de Marília-SP no decurso do tempo. |
DEFINIÇÃO: A tecnologia e a formação dos funcionários na graduação em Biblioteconomia favoreceram o melhor atendimento. |
TEMA: Exemplos de verbalizações |
E1: “Eu frequentei a biblioteca quando ainda tínhamos que entregar o RG às bibliotecárias e elas preenchiam a ficha, não tínhamos acesso aos livros, mas algumas davam algumas sugestões. Não sei se na época estas pessoas tinham a formação superior em Biblioteconomia e treinamento. Mas, com o decurso do tempo, acho que o atendimento melhorou consideravelmente”. E2: “Considero que o atendimento hoje é melhor e mais rápido pela tecnologia e treinamento dos funcionários, neste sentido, o considero melhor.” E3: “Sempre fui bem atendido nas bibliotecas em ambos os espaços, porém, considero tudo mais ágil na atualidade, a computação favoreceu algo mais célere e preciso. Talvez um pouco também porque a digitalização dos livros e a internet tornou o público menor e, assim, é possível melhor atendimento”. |
Fonte: Elaboração própria com base nos dados coletados (2021).
No que diz respeito a categoria “atendimento ao usuário”, podemos verificar, por meio do relato dos entrevistados, que a tecnologia e maior formação dos funcionários melhoraram o atendimento na Biblioteca Pública Municipal da cidade de Marília.
Portanto, os resultados corroboram o referencial, haja vista que podemos perceber que o formato da biblioteca antiga, tanto na estrutura do prédio, na organização do espaço e do acervo, quanto no atendimento, refletia uma instituição típica de uma sociedade disciplinar. No entanto, nos dias hodiernos, a sociedade de controle com sua forma mais indireta do exercício do poder, de modo tecnológico, imbuído de marketing, representa melhor o novo formato da biblioteca em questão.
À luz de tal perspectiva, a sociedade disciplinar e de controle estruturam de forma diferente suas informações. No primeiro tipo de sociedade, temos uma organização vertical e hierárquica das informações, logo, classificatória e segregadora. Neste caso, o problema do acesso à informação, por exemplo, confunde-se com a posição do indivíduo numa hierarquia, seja ela por função, posto, antiguidade e etc.
Já na sociedade de controle, no tange às bibliotecas, podemos dizer que há uma inclusão maior de usuários de perfis diferentes, por meio da biblioteca com nova ótica de biblioteca viva, inclusiva. Contudo - ao mesmo tempo que agrega perfis mais diversificados de usuários, com flexibilizações de normas – com as novas tecnologias, ela acaba, também exercendo o controle e isso ocorre por meio de códigos, câmeras, entre outras tecnologias. A sensação de liberdade é maior, todavia, a relação de poder permanece, mesmo com outra roupagem, mais velado, difuso e imbuído de uma estrutura de marketing e tecnologias.
Quanto aos resultados, como dissemos anteriormente, ante a baixa representatividade da amostra, as entrevistas serviram para elucidar o referencial e compor a argumentação das conclusões numa pesquisa de natureza qualitativa.
O objetivo do trabalho foi alcançado, uma vez que abrimos um espaço pra reflexão, por meio da trajetória histórica e arquitetônica dos dois espaços contemplados pela Biblioteca Pública Municipal da cidade de Marília em tempos distintos. E podemos constatar que a antiga biblioteca teve um aspecto preponderante de uma instituição disciplinar. Contudo, o novo espaço tem assumido mais uma forma de instituição de controle.
Finalmente, cabe nos ressaltar, que não compreendemos que a nova biblioteca seja melhor do que a anterior. Ela apenas se adequa melhor aos ditames dos novos tempos, com novas perspectivas sociais e tecnológicas. A antiga biblioteca teve uma função muito importante na história da cidade e dos seus usuários. Somente não estava mais apropriada ao século XXI, necessitando de novo aspecto e sentido.
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[1] Doutoranda em Ciência da Informação (UNESP). Mestre em Ciência da Informação. Especialista em Direito Público com capacitação para o Ensino Superior. Bacharel e licenciada em Filosofia. Bacharel em Direito.
[2] Mestranda em Ciência da Informação e bibliotecária na empresa SENAC.
[3] Doutora em Ciência da Informação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/2013). Professora da Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão.
[4] Professora Adjunto do Departamento de Biblioteconomia (UNIRIO). Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Biblioteconomia e do Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO).
[5]O programa Biblioteca Viva busca revitalizar as bibliotecas municipais da cidade de São Paulo, estado de São Paulo – Brasil - apostando no papel cultural do livro e na importância do incentivo à leitura na formação dos cidadãos paulistanos (BIBLIOTECA VIVA/PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2021).