EPISTEMOLOGIAS, GÊNERO E DOGMATISMO CIENTÍFICO Desdobramentos na Organização do Conhecimento

 

Daniel Martínez-Ávila [1]

Universidad de León

d.martinezavila@gmail.com

 

Mariana Rodrigues Gomes de Mello[2]

UNESP

mariana.rg.mello@unesp.br

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Resumo

Há uma filosofia da diferença que precisa ser mais considerada nos nossos tempos, visto que se opõe à tradição filosófica identitária dos pré-socráticos à atualidade, que se apegou obstinadamente à ideia de identidade, que vislumbra o real, somente através da referência ao idêntico. Nessa perspectiva, os anseios e peculiaridades dos mais diversos movimentos sociais precisam ser ouvidos de modo mais efetivo pela filosofia e pela ciência. Mesmo nas ciências exatas, a teoria não é eterna, quanto mais nas sociais aplicadas, como é na ciência da informação, e consequentemente, na organização do conhecimento. Posto isto, este trabalho tem como objetivo inter-relacionar alguns aspectos históricos da epistemologia geral com as epistemologias feministas, destacando-se a corrente pós-estruturalista. E assim, compreendermos alguns dos seus desdobramentos na organização do conhecimento, a fim de percebermos se ela está disposta a incorporar novas práticas, a partir de reinvindicações de movimentos, como o feminista. Constatamos que além de toda historicidade das relações de poder que tem raízes profundas e muito antigas, há nos dias hodiernos um grupo despreocupado em ratificar novas práticas mais humanizadas e coerentes às várias esferas, dentre as quais está a organização do conhecimento, por questões não só políticas, mas econômicas.

Palavras-chave: Epistemologia. Epistemologias feministas. Gênero. Dogmatismo científico. Organização do conhecimento.

EPISTEMOLOGIES, GENDER, AND SCIENTIFIC DOGMATISM

Unfoldings in Knowledge Organization

Abstract

There is a philosophy of difference that needs to be more considered in our times, since it opposes the identitarian philosophical tradition from the pre-Socratics to the present time, which obstinately clings to the idea of identity, which glimpses the real only through reference to the identical. In this perspective, the yearnings and peculiarities of the most diverse social movements need to be heard more effectively by philosophy and science. Even in the exact sciences, theory is not eternal, let alone in applied social sciences, as it is in information science, and consequently, in the organization of knowledge. Having said this, this work aims to interrelate some historical aspects of general epistemology with feminist epistemologies, highlighting the post-structuralist current. And, thus, to understand some of its unfoldings in the organization of knowledge, in order to understand if it is willing to incorporate new practices, based on the claims of movements such as the feminist one. We can see that beyond all the historicity of power relations that have deep and very old roots, there is nowadays a group unconcerned about ratifying new practices that are more humanized and coherent in various spheres, among which is the organization of knowledge, not only for political but also for economic reasons.

Keywords: Epistemology. Feminist epistemologies; Gender; Scientific dogmatism; Knowledge organisation.

 

 

1. INTRODUÇÃO

 

O “poder-conhecimento” é um modo de poder que estabelece a maneira pela qual o conhecimento é conduzido, o porquê é legitimado, determinado e os desdobramentos dos seus efeitos aos nossos comportamentos. O que implica no estabelecimento de quem somos; o que achamos que somos, além de propiciar nossos comportamentos e modos identitários de expressão, que é o seu efeito performativo (BUTLER, 1998).

Sob esse prisma, compreendemos que o conhecimento não pode mais ser considerado apenas pelo seu aspecto reducionista, dogmático e, portanto, objetivamente válido. É inegável que ciência se faz a partir de observações e verificações, falsificações, o seu lado objetivo tem um papel importante. Porém, há um aspecto dialógico, relacional, o qual não pode ser desconsiderado. As observações e verificações necessitam de comunicações intersubjetivas entre as próprias comunidades científicas, bem como com a sociedade como um todo.

Há uma filosofia da diferença que precisa ser mais considerada nos nossos tempos, visto que se opõe à tradição filosófica identitária dos pré-socráticos à atualidade, que se apegou obstinadamente à ideia de identidade, que vislumbra o real, somente por meio da referência ao idêntico. Se faz necessário, segundo Deleuze (2000), pensarmos o devir, o movimento, a produtividade da diferença, ao invés de ficarmos sempre à mercê do idêntico. Poucos filósofos, tais como Heráclito, Hume, Nietzsche, Bergson, Sartre, Foucault, Deleuze pensaram em adentrar a multiplicidade da diferença e nela reconhecer o real. No pensamento formal, na concepção de Deleuze (2000), vigora a identidade e ela é uma abstração. No entanto, a realidade se faz na diferença, no processo de diferenciação.

Nessa perspectiva, os anseios e peculiaridades dos mais diversos movimentos sociais precisam ser ouvidos de modo mais efetivo pela filosofia e pela ciência. Uma teoria não pode ser única e nem eterna, pois não resiste a falseabilidade para sempre, por melhor que seja, tal como dizia Kuhn (2006). Mesmo nas ciências exatas, a teoria não é eterna, quanto mais nas sociais aplicadas, como é na ciência da informação, e consequentemente, na organização do conhecimento. Revisões são necessárias, a partir do contexto histórico-social que é dinâmico.

No que diz respeito à organização do conhecimento, em linhas gerais, ela é um campo de pesquisa, ensino e prática, principalmente afiliado à ciência da informação e à biblioteconomia, institucionalizado em universidades ao redor do mundo (KNOWLEDGE ORGANIZATION, 2016).

 Na acepção de Saldanha e Silva (2017), as práticas de organização do conhecimento podem ser compreendidas de modo polissêmico, em saberes diversos. A própria ampliação do espaço que a organização do conhecimento conquista na ciência da informação manifesta a gama de indagações filosóficas e aplicadas que confluem aos dilemas da informação e do conhecimento que envolvem o classificar, o indexar, o catalogar. Neste sentido, para Saldanha e Silva (2017, s. p):

A configuração epistêmica e distintiva adquirida no contexto de uma epistemologia histórica da Ciência da Informação (CI), marcada por um processo de institucionalização de disciplinas, grupos de trabalho, associações científicas, pode, ela própria, clarificar a extensão e a exaustividade sempre parcial da condicionante conceitual e das múltiplas disciplinas interessadas nos métodos e nas práticas que se questionam pelas ações do classificar [...]. Das críticas de Frohmann (1990) e García Gutiérrez (2011) contra plano mentalista da indexação aos remotos problemas da arbitrariedade das ações classificatórias, podemos identificar diferentes cenários fronteiriços onde a suspeição sobre a organização do conhecimento é tensionada.

 

Assim, podemos considerar que as epistemologias feministas fazem parte do universo dessas reflexões. Na atualidade, as reinvindicações feministas não estão apenas na esfera da militância de rua dos movimentos sociais, mas estão sendo incorporadas na academia, epistemologicamente, mesmo que ainda de modo tímido em alguns domínios.

Logo, este trabalho tem como objetivo inter-relacionar alguns aspectos históricos da epistemologia geral com as epistemologias feministas, destacando-se a corrente pós-estruturalista. E assim, compreendermos alguns dos seus desdobramentos na organização do conhecimento, a fim de percebermos se ela está disposta a incorporar novas práticas, a partir de reivindicações de movimentos, como o feminista.

Metodologicamente, é uma pesquisa histórico-epistemológica, na forma de ensaio, fundamentada na revisão bibliográfica de obras da filosofia e da ciência da informação, tanto clássicos, como obras mais contemporâneas. Também fizemos uma pesquisa em artigos em periódicos. Para tanto, usamos a Base de Dados Referencial de Artigos de Periódicos em Ciência da Informação (BRAPCI) e a Library and Information Science Abstracts (LISA), sem lapso temporal predeterminado. Os termos de busca foram: epistemologia; epistemologias feministas; gênero; dogmatismo científico e organização do conhecimento, separadamente, e posteriormente, em conjunto.

 

2. EPISTEMOLOGIA

 

O termo epistemologia possui uma gama de conceitos e interpretações. Japiassu e Marcondes (2006) explicam que, em linhas gerais, a epistemologia pode designar uma teoria geral do conhecimento, ou estudos mais restritos quanto á gênese de um domínio, suas estruturas lógicas. Almeida et. al. (2008, p. 111) define epistemologia como “uma das disciplinas centrais da filosofia na qual estuda-se a natureza do conhecimento, os seus requisitos e limites”.

Em alguns locais, tal como no domínio anglo-saxão, a epistemologia assume uma roupagem de teoria do conhecimento[3] ou gnoseologia, sendo mais conhecida por philosophy of science, ou seja, sinônimo também de filosofia da ciência (JAPIASSU; MARCONDES, 2006). O que não ocorre no Brasil, sobretudo nas graduações em filosofia, à medida que nos currículos a teoria do conhecimento e a filosofia da ciência são disciplinas autônomas e, portanto, com objetivos diferentes na composição das estruturas curriculares dos cursos.

 O filósofo italiano Nicola Abbagnano (2000) também defende a epistemologia como sinônimo de teoria do conhecimento, porém, não a compreende como sinônimo de filosofia da ciência. Por outro lado, segundo Japiassu e Marcondes (2006, p. 88), a epistemologia pode ainda ser compreendida como uma disciplina que tem as diversas ciências como objeto de investigação e ainda:

a) A crítica do conhecimento científico (exame dos princípios, das hipóteses, e das conclusões das diferentes ciências, tendo em vista determinar seu alcance e seu valor objetivo; b) filosofia da ciência (empirismo, racionalismo e etc) [...] Seu problema central e que define seu estatuto geral, consiste em estabelecer se o conhecimento poderá ser reduzido a um puro registro, pelo sujeito, dos dados já anteriormente organizados independentemente dele no mundo exterior, ou se o sujeito poderá intervir ativamente ao conhecimento dos objetos.

 

 Japiassu e Marcondes (2006) ainda propõem que a epistemologia pode ser compreendida não mais como a disciplina que tem como objeto a ciência “verdadeira”, solidificada, mas aquela que compreende as ciências em construção, no seu processo de gênese, de estruturação progressiva, e portanto, inacabada. 

Todavia, Chaui (2000, p. 66) tem uma visão ampla acerca do conceito do termo. Para ela, a epistemologia incide na análise crítica das ciências, tanto às ciências exatas ou matemáticas, quanto às naturais e às humanas; avaliação dos métodos e dos resultados das ciências; compatibilidades e incompatibilidades entre as ciências; formas de relações entre as ciências, etc.”

Historicamente, o problema do conhecimento, que levam às questões epistemológicas, torna-se crucial na Idade Moderna, embora, como já dito, sempre foram indagados por outros filósofos em outros tempos. Conhecimento e poder sempre estiveram associados. Quem detinha o poder ditava as regras acerca de quem, ou não, teria acesso ao conhecimento.

Na Grécia Antiga, mais precisamente em Atenas, local onde emanou a filosofia ocidental, somente eram considerados cidadãos os homens livres, nascidos em Atenas e proprietários de terra. Só aos cidadãos, os eupátridas, eram ofertados os direitos políticos e o livre acesso à informação e ao conhecimento acerca dos saberes, tais como arte, filosofia, política e ciência. Aqui se faz necessário ressaltar que a ciência tinha uma concepção diferente e mais abrangente do que concebida a partir da Idade Moderna, que ainda vigora na atualidade.

Na Antiguidade, Platão e Aristóteles foram exemplos filósofos que trabalharam a concepção do conhecimento.  A teoria platônica serviu de base, em certos aspectos, tanto à concepção de verdade na Idade Média, com o cristianismo, quanto ao racionalismo da Idade Moderna.  Já a de Aristóteles contribuiu muito à escola empirista.

Platão difere quatro modos ou escalas de conhecimento que se operam do inferior ao superior: crença, opinião, raciocínio e intuição intelectual. Os dois primeiros graus formam o que Platão entende como conhecimento sensível, uma espécie de simulacro do real, um conhecimento pautado no mundo empírico, que para ele, é apenas uma cópia do mundo real (inteligível). Somente no plano inteligível podemos contemplar o conhecimento verdadeiro que é imutável, eterno. Raciocínio e intuição, na concepção platônica, fazem parte desta esfera (MELLO; MARTÍNEZ-ÁVILA, 2021).

A crença incide na nossa confiança no conhecimento sensível, que parte dos nossos cinco sentidos: tato, olfato, paladar, visão e audição. A nossas crenças partiriam desse mundo sensorial. A opinião remete às aceitações, sem reflexões, sobre o que nos ensinaram, fruto de nossas lembranças. Platão (2000) compreendia essas duas primeiras fases como ilusórias, que devem ser afastadas por quem almeja o conhecimento verdadeiro.

No entanto, para Platão “o raciocínio treina e exercita nosso pensamento, purifica as sensações e opiniões e o prepara para a intuição intelectual, que conhece a essência das coisas, ou o que Platão denomina de ideia” (CHAUI; OLIVEIRA, 2007, p. 47). É necessário, então, abandonarmos as duas primeiras esferas para chegarmos nas fases as quais o conhecimento pode ser verdadeiramente contemplado.

Em Aristóteles (1973) encontramos sete modos ou graus de conhecimento: sensação, percepção, imaginação, memória, linguagem, raciocínio e intuição. Apesar de Aristóteles ter separado as fases do conhecimento, diferente de Platão, concebia que nosso conhecimento derivava do armazenamento de tudo que aprendemos no decurso de todas as etapas. Dessa forma, as informações contidas nas sensações se organizam, permitindo a percepção. Da organização das percepções deriva a imaginação. Em conjunto percepção e imaginação levam à memória, à linguagem e ao raciocínio. Porém, pelos gregos tratarem mais questões ontológicas do que epistemológicas, se surpreendiam com a possibilidade do erro, ilusão ou mentira. Nesse sentido, na acepção de Chaui e Oliveira (2007, p. 47):

Para os gregos, a pergunta filosófica só pode ser: como é possível erro ou ilusão? Ou seja, se o verdadeiro é o próprio Ser: se fazendo ver em todas as coisas, presente em todas as percepções, em todas as palavras, em nossos pensamentos, como o falso é possível se o falso é dizer e pensar que existe o que não existe?

 

Não compreendemos a Idade Média como a “era das trevas”, tal como os Iluministas, pois em todos os períodos históricos há fatos bons e ruins. Na Idade Média, apesar de muitos percalços, houve também fatos positivos como o surgimento das primeiras universidades, bem como muitas invenções importantes.

  Todavia, o conhecimento só seria possível pela revelação divina, pois os pensadores da época compreendiam que nosso intelecto finito não teria alcance à razão infinita divina, por si só. Logo, tudo que fosse proclamado pelo sagrado seria inquestionável pelo argumento de autoridade poderoso das autoridades eclesiásticas.

Na Idade Moderna, a primeira atitude dos filósofos da época foi a de separar radicalmente fé e razão e destituir qualquer argumento de autoridade, sejam os eclesiásticos, os das escolas ou dos livros (CHAUI; OLIVEIRA, 2007). Neste cenário, o problema do conhecimento se torna o ponto central da discussão dos filósofos da época.

Um dos grandes expoentes da filosofia moderna foi Descartes (2015).  Em Descartes a   própria razão se torna a garantia do conhecimento. O foco do conhecimento é centrado no sujeito cognoscente à luz da razão, portanto. A certeza implica no “penso, logo existo”, ou seja, o sujeito pensante (res cogitans) garante a verdade, a certeza dentro de si mesmo. A materialidade da res extensa (corpo), todo o mundo empírico em Descartes não representa conhecimento. Implica na negação total dos corpos tão criticada séculos depois por filósofos, como Foucault.

Em “Meditações Metafísicas” Descartes (2015) vai colocando em xeque, por meio da dúvida hiperbólica, toda a crença ou conhecimento, duvidando do mundo empírico, do seu próprio corpo, da mente do outro, pra chegar na certeza de que somente o pensamento poderia garantir a existência. Logo, desconstrói tudo, por uma cadeia de raciocínios lógicos, para posteriormente verificar o que poderia permanecer enquanto conhecimento, que para ele, tem uma conotação de verdade absoluta, imutável. Destas certezas indubitáveis emanariam o conhecimento verdadeiro.

Essa questão de conhecimento como sinônimo de verdade absoluta toma uma proporção até maior do que o próprio Descartes idealizou. “Descartes não era essencialmente cartesiano [...]” (MORIN, 2017, p. 92). Séculos depois, Nietzsche (2008), seguido de muitos outros pensadores, e domínios, como o da física quântica, critica muito este posicionamento de estabelecermos verdades absolutas para qualquer tema. Nietzsche compreende que a verdade é relacional. 

Foucault (2012) também tece críticas severas ao movimento cartesiano do império da verdade e de atos puros da razão, no que tange à negação dos corpos e da instituição do sujeito descorporificado, tal como fazem os racionalistas. Epistemologias únicas e imutáveis a dado assunto, a negação dos corpos e das relações sociais e a tomada do individualismo são questões fundamentais e debatidas pelos movimentos sociais, dentre eles o feminista, tal como veremos na seção posterior.

 

3. EPISTEMOLOGIAS FEMINISTAS E ORGANIZAÇÃO DO CONHECIMENTO

 

No decorrer da década de 1970, o movimento feminista começa a ter voz nas discussões acadêmicas, principalmente em disciplinas que envolvem ética e política, a fim de rever metodologias e produções acadêmicas a partir da instituição de novos debates voltados também às questões epistemológicas.

As epistemologias feministas, no decurso da segunda onda do movimento feminista, têm despontado de forma díspar, fruto de uma série de transações, tais como na filosofia da ciência, aliadas aos aspectos do marxismo, do pós-estruturalismo, apresentando ainda os desafios sociais de raça e classe (FOX; OSLON, 2012). Segundo as autoras, não há uma “epistemologia feminista” singular e unificada. Na leitura que fazem de Alcoff e Potter (1993), aconselham a utilização do plural, a fim de reconhecermos a variedade de abordagens das epistemologias feministas.

Antes de tratarmos de aspectos gerais das epistemologias feministas, Fox e Oslon (2012) defendem que é importante a analisarmos na perspectiva social. A epistemologia tradicional centra-se no conhecimento e no indivíduo, enquanto que a epistemologia social examina a natureza social da produção do conhecimento.

As epistemologias sociais feministas criticam o papel do gênero nos processos normativos, com o objetivo de refinar estes processos, a fim de trabalhar metodologias de produção de conhecimento livres, sem a influência do poder. As abordagens sociais aceitam a noção de "mulher" como um grupo e sugerem múltiplas comunidades epistêmicas, ao invés de uma singular epistemologia universal.

Se assim procede, as epistemologias sociais são de grande importância à organização do conhecimento (EGAN; SHERA, 1952), bem como às epistemologias de gênero, como as feministas, uma vez que minimizam a autoridade cognitiva. A teoria do ponto de vista feminista, conforme Fox e Oslon (2012), implica numa posição epistêmica social, tal como é a perspectiva de saberes situados.

Outro ponto a considerar, é reconhecimento do papel das emoções no processo de conhecimento. Jaggar (1989) valida a emoção não só como aceitável, mas também como um ato positivo, sob o ponto de vista feminista. Aquilo a que ela chama "emoções fora-da-lei", aquelas incompatíveis com as percepções e valores dominantes.

Keller (1985) também ratifica a inclusão da emoção e do cuidado no processo do conhecimento, ampliando assim, a compreensão da ciência também por meio da experiência da mulher. Ela reconhece que generaliza a experiência feminina, contudo, defende que existe alguma semelhança na experiência das mulheres, independentemente da raça, classe, ou outras características distintivas. A epistemologia, sob a ótica do papel social ocupado, sugere que a pessoa que está enraizada em um conjunto particular de estruturas sociais, tem mais dificuldade de enxergar para além delas.

Desse modo, aqueles que observam a vida a partir das margens têm um ponto de vista privilegiado, no sentido em que as estruturas sociais dominantes são mais visíveis, assim como as falhas e preconceitos. Os conhecedores da sociedade dominante não têm qualquer interesse em mudança social, uma vez que já estão, por assim dizer, no topo da cadeia de dominação. Por conseguinte, eles não tentam ver para além dos seus próprios privilégios, tendo em vista que isso resultaria em um reconhecimento incomensurável e talvez uma mudança nas suas condições materiais (KELLER, 1985).

Nesta perspectiva, qualquer epistemologia que saia do padrão das epistemologias reducionistas dos que ocupam as grandes estruturas do poder - representadas pelo homem branco, heterossexual dos países dominantes do Norte da Europa e EUA - será refutada, ou não refletida, desconsiderada. Isso se dá, porque os conceitos epistemológicos de objetividade e de razão foram organizados pela ótica não só epistemológica, mas política do domínio da masculinidade há séculos (LONGINO, 2012).

De acordo com Fox e Oslon (2012), as epistemologias feministas tipicamente foram subdivididas em três categorias primeiramente articuladas por Harding (1986) com a obra The Science Question in Feminism, sendo que epistemologias feministas pós-estruturalistas são exemplos de uma dessas categorias. Porém, deixa claro que quaisquer categorizações são provisórias, com o reconhecimento do cruzamento entre teorias. E isso aconteceu. De acordo  com Grasswick (2017), já no início dos anos 1990, as categorias constatadas por Harding (1986)  não foram mais suficientes para enquadrar todas as correntes novas formuladas, bem como suas nuances. Há um processo de construção, desconstrução e reconstrução que evolve a questão.

 Para Fox e Oslon (2012), o conceito chave a considerar em qualquer exame epistemológico, sendo de importância primária nas epistemologias feministas, é a relação entre o conhecedor (sujeito) e o objeto (objeto conhecido). As teorias diferem quanto a abordagem da relação sujeito/objeto.

A abordagem pós-estruturalista sugere realidades subjetivas, dinâmicas, diferentes de um assunto para outro. O pós-estruturalismo rejeita definições estáveis e, com elas, a universalidade do pensamento. Elas contrariam totalmente os métodos cartesianos. A realidade, segundo essa corrente, é construída por múltiplos discursos, portanto de modo relacional, que por sua vez, constroem categorias múltiplas. E não fundada no binarismo patriarcal, que divide o mundo em duas esferas: dominadores (o masculino) e dominados (o feminino). Ou em outros termos, uma realidade constituída pelos e para os que têm o poder de fala e detêm a “verdade”.  Na leitura que Mendes (2002) faz de Scott (1989):

Seguindo na linha relacional, está também a historiadora norte-americana Joan Scott (1989), que rejeitando o uso permanente da oposição binária e antagônica nos estudos de gênero, propõe uma desconstrução dos termos da diferença sexual pela via teórica do pós-estruturalismo francês de Jaques Derrida e Michael Foucault, que vão eleger o discurso como instrumento ordenador do mundo. A autora entende gênero enquanto constituinte das relações sociais, e enquanto forma de entender as relações de poder. Poder, entendido não em sua concepção institucional de Classe ou Estado, mas em sua concepção micro, tal qual a utilizada por Foucault.

 

Posto isso, os pós-estruturalistas afirmam que uma mistura de discursos constrói cada um de nós, e que nós, por nossa vez, construímos os discursos. Um discurso neste sentido foucaultiano é uma esfera de conhecimento social fortemente delimitada, um sistema de declarações no qual o mundo pode ser conhecido (FOUCAULT, 1980).

Sob esse prisma, se o conhecimento for construído, então, o que passa por verdade absoluta ou sabedoria recebida é sujeito a interrogatório e mudança. Os discursos manifestados em presunções invisíveis e inquestionáveis se tornam, portanto, questionáveis quando revelado pela crítica pós-estrutural. Para tanto, Fox e Oslon (2012) exemplificam: Se tomarmos a categoria "mulher" e a categoria de "mulheres", podemos verificar que estão sujeitas aos diferentes discursos em contextos diferentes. Assim, o pós-estruturalismo feminista oferece uma pluralidade de modalidades. Um dos pontos fortes que esta pluralidade traz ao feminismo pós-estrutural é a acomodação da diferença.

O conhecimento universal, reducionista, que desconsidera as peculiaridades, há tempos vem sendo passível de críticas.  No entanto, ele ainda vigora na maioria dos domínios, o que reflete também na organização do conhecimento. De acordo com Fox e Oslon (2012), a suposta organização universal do conhecimento possui sistemas de conhecimento que se destinam a acomodar qualquer representação do conhecimento.

Segundo as autoras, com um sistema universal de controle bibliográfico, as bibliotecas reduzem os custos da mão-de-obra intelectual, evitam a criação de sistemas mais personificados, a partir do zero, e ostensivamente, têm um sistema de organização que varia pouco de biblioteca para biblioteca, não permitindo a familiaridade dos utilizadores. Todos têm acesso a um corpo maior de produtos, porém, o serviço é impessoal e os produtos são genéricos.

Cada registro pode figurar de forma automática, sem a análise crítica de como o conhecimento social e as estruturas mudam. O bibliotecário pode se sentir desorientado, totalmente subordinado aos mecanismos de poder que regem a unidade de informação onde trabalha (FOX; OSLON, 2012). Sob esta análise das autoras, vemos que na prática, ainda muito tem que ser feito pra reverter os dogmatismos epistemológicos na organização do conhecimento. Crippa (2019, p. 81) vai mais além, segundo ela, a biblioteca “trata-se de um ambiente onde a hierarquia existe tanto quando se considera a faceta da classificação, bem como na relação bibliotecário/usuário”

 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Esta é uma pesquisa teórica e inicial que merece novas investigações. Os debates sobre gênero estão fluindo em várias partes do mundo, em muitos domínios, dentre eles na organização do conhecimento. Contudo, verificamos que particularmente, no que tange às epistemologias feministas, podemos dizer que possuem representatividade na organização do conhecimento, que apesar de ainda insuficientes, começam a ser pauta em livros, artigos em periódicos e eventos na área.

Ademais, percebemos que há um grupo que anseia por mais representatividade das esferas marginalizadas e condenam o dogmatismo e as grandes generalizações em qualquer ciência. Na organização do conhecimento são representados por pesquisadores, bibliotecários, arquivistas e museólogos que visam uma unidade de informação que represente o contexto no qual está inserida. Para tanto, buscam por um sistema de classificação que considere as particularidades de quem não detém o poder, ofertando visibilidade aos sujeitos diferentes e descontruindo as posições binárias fixas e permanentes do paradigma clássico. 

E por fim, constatamos que além de toda historicidade das relações de poder que têm raízes profundas e muito antigas, há nos dias hodiernos um grupo despreocupado em ratificar novas práticas mais humanizadas e coerentes às várias esferas, dentre as quais está a organização do conhecimento, por questões não só políticas, mas econômicas. A universalização, a padronização, ou seja, a uniformização, monetariamente é mais viável.

 

 

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AGRADECIMENTOS

Esta pesquisa foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

 

 



[1] Professor da Universidad de León. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI) da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Doutorado internacional pelo Programa Oficial de Doctorado en Documentación pela Universidad Carlos III de Madrid (2012).

[2] Doutoranda em Ciência da Informação na Universidade Estadual Paulista (UNESP). Mestra em Ciência da Informação. Bacharel e licenciada em Filosofia. Bacharel em Direito.

[3] Segundo Chaui e Oliveira (2007), a teoria do conhecimento se configurou como uma disciplina somente com os filósofos da Idade Moderna. Isto não implica obviamente que em outras fases não houve pensadores que não tenham se preocupado com a questão do conhecimento. Porém, para os filósofos modernos, a questão do conhecimento foi considerada anterior à questão da ontologia e pré-requisito para a filosofia às ciências.