CURIOSIDADE, AMBIÇÃO INTELECTUAL E CONHECIMENTO:

"Que sais-je?"

 

Roberto J. G. Unger[1]

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro de Ciências da Saúde. Instituto de Estudos em Saúde Coletiva

roberto_unger@iesc.ufrj.br

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Resumo

A curiosidade recebe diferentes considerações ao longo dos tempos: mau hábito, luxuria, vício, e virtude. As análises de diferentes épocas e autores perpassa a religião, preconceitos e, finalmente a ciência, que a consagra. É a faculdade mais ativa na infância e adolescência e possibilita o desenvolvimento das aptidões gerais da mente. No passado remoto foi condenada pela religião e considerada a responsável pela queda da civilização adâmica assim como o infortúnio da mítica Pandora. Na atualidade, pesquisadores apontam que a curiosidade aumenta com a incerteza e desperta a busca por conhecimento. Compreender a base neural da curiosidade têm importantes implicações substantivas permitindo observar que a busca de informações é evolutivamente adaptativa. As modernas tecnologias modernas e a internet ampliam a quantidade de informações disponíveis, aumentando, portanto, os efeitos potenciais da curiosidade. O arquétipo ambição intelectual e o conceito de conhecimento são utilizados para compreender o aprimoramento do intelecto juntamente com a curiosidade.

 

Palavras-chave: Curiosidade. Intelecto. Conhecimento. Filosofia.

CURIOSITY, INTELLECTUAL AMBITION AND KNOWLEDGE:

"Que sais-je?"

 

Abstract

Curiosity receives different considerations over time: bad habit, lust, vice, and virtue. The analyzes of different times and authors permeate religion, prejudices and, finally, science, which enshrines it. Is the most active faculty in childhood and adolescence and enables the development of the general aptitudes of the mind. In the remote past it was condemned by religion and considered responsible for the fall of the Adamic civilization as well as the misfortune of the mythical Pandora. Currently, researches point out that curiosity increases with uncertainty and awakens the search for knowledge. Understanding the neural basis of curiosity has important substantive implications allowed us to observe that search for information is evolutionarily adaptive. Modern technologies and internet expand the amount of information available, therefore increasing the potential effects of curiosity. The archetype intellectual ambition and the concept of knowledge are used to understand the enhancement of the intellect along with curiosity.

 

Keywords: Curiosity. Intellect. Knowledge. Philosophy.

1  INTRODUÇÃO

Nosso trabalho consiste em uma pesquisa descritiva sobre a curiosidade e estabelece uma tentativa de vínculo com a ambição intelectual e o conhecimento. No que tange à curiosidade, nosso método de busca foi recuperar informação em várias fontes e autores, em detrimento de utilizar poucas fontes justamente em função das múltiplas e diferentes facetas que compõem o tema. A curiosidade, como a conhecemos - vulgar ou intelectualmente -, é considerada mau hábito, vício ou virtude, e, ao longo dos tempos é avaliada e analisada de diferentes formas. Luxúria era, até então, a palavra que estava associada ao termo, muito em função das visões religiosas que consideravam que o conhecimento adquirido pelos filósofos naturalistas atingia os alicerces dos dogmas religiosos e, que, dessa forma, ser curioso era ser pecador. Houve um período, conforme observado nesse estudo, que a curiosidade era vinculada ao místico e à magia e que a queda humana, dentro dos preceitos religiosos, foi causada pela curiosidade. Parece ser coerente afirmar que existiu uma longa batalha vencida pelo bom senso, lógica, método e raciocínio para que a curiosidade fosse alçada a uma virtude ou uma boa característica no ser humano. Bem sabemos que a busca e anseio pelo conhecimento foi o que nos trouxe até aqui, se a ciência avança de forma voraz e veloz, o uso que se faz dela é um outro fator determinante, mas que não faz parte da nossa reflexão. A curiosidade e o conhecimento estão intimamente ligados, como a Natureza e os elementos, ar, água, terra e fogo. É importante pontuar que nosso estudo não objetiva ampliar a conceituação sobre a curiosidade; pretendemos tão somente utilizá-la como parte substancial e significativa da busca pelo conhecimento, o que permite, no entanto, trazer alguns detalhes que irão, ao nosso ver, tornar a curiosidade ainda mais viva. Um fato curioso é o aparecimento do sinal de interrogação ('?'). Não existia um sistema convencionado de pontuação até o fim do Renascimento; foi em 1566, com a publicação do "Interpungendi ratio", um manual de pontuação para os tipógrafos que estabelecia os sinais de conclusão de um parágrafo. O referido manual incluía o medieval "punctus interrogativus", que assinalava a frase como uma pergunta ou questão, e que, por convenção, requeria uma resposta (MANGUEL, 2015). No âmbito geral do estudo percebemos que a pergunta "Por quê?" é mais importante de ser feita do que a própria resposta, pois esse questionamento é a representação de nossa curiosidade, representando uma comunhão humana, pois somos, por natureza, questionadores. A ambição intelectual e o conhecimento integram este estudo no sentido da configuração da concepção da análise da curiosidade como a atitude que move a ambição intelectual e eleva a cognição e compreensão.

 

Curiosidade

 

"Por quê?", para Manguel (2015), é uma pergunta muito mais importante por ser feita do que pela expectativa de uma resposta, é a representação visível de nossa curiosidade. O autor afirma que a curiosidade é um meio de declarar uma aliança com a comunidade humana, "afirmações tendem a isolar; perguntas, a unir".

 

Manguel (2015), considera que a curiosidade pode ser representada pela pergunta de Michel de Montaigne (1533-1592), "Que sais-je?" ("Que sei eu?"), referindo-se aos filósofos céticos que eram incapazes de expressar suas ideias gerais em qualquer modalidade discursiva, porque, segundo Montaigne, "eles iriam precisar de uma nova língua", pois nossa língua, prossegue, "é formada de proposições afirmativas, o que é o contrário de seu modo de pensar"; e depois acrescenta "Essa fantasia é mais bem concebida com a pergunta 'Que sei eu?', que trago comigo como um lema em um escudo".

 

Abbagnano (2003, p. 229), observa que Heidegger (1889-1976), descreve que a curiosidade juntamente com a tagarelice e o equívoco é uma das características essenciais da existência cotidiana, pois simboliza o desejo contínuo e sempre renovado de ver; a curiosidade nada tem a ver com a admiração de quem inicia a busca nem com a perplexidade de quem não a compreende; caracteriza-se, sim, pela impermanência no mundo circundante e pela dispersão em possibilidades sempre novas, pelo que a curiosidade nunca está parada.

 

Loewenstein (1994, p. 76), em estudo de revisão aponta que a curiosidade está ligada com a necessidade de informação (conhecimento), na Grécia Antiga,  Aristóteles (385 a.C.- 323 a.C.), ensina que os homens estudam ciências por razões intrínsecas e não outro fim, enquanto Cícero (106 a.C.- 43 a.C.), refere-se à curiosidade como um amor inato de aprender e de conhecimento. A curiosidade era vista também como uma paixão, Cícero se referiu à curiosidade como uma paixão por aprender e argumenta que a história de Ulisses e as sereias era na realidade uma parábola sobre curiosidade; segundo Cícero, o que mantinha os homens enroscados nas pedras era a paixão pelo aprendizado. Santo Agostinho (354 d.C.- 430 d.C.) descreveu a curiosidade como um desejo vazio de conhecimento, que ele se referiu como luxúria.

 

Hume (1888 apud LOWENSTEIN, 1994, p. 76), expressou uma atitude ambivalente em relação à curiosidade, uma boa variedade, denominada "amor ao conhecimento", e a má variedade, exemplificada por uma "paixão derivada de um princípio bem diferente", em suma, a boa curiosidade está relacionada com a investigação científica, enquanto a má curiosidade refere-se ao desejo insaciável de saber das ações de outrem. Berlyne (1954a apud LOEWENSTEIN, 1994, p. 77), estudou a curiosidade em duas dimensões: a curiosidade perceptiva e epistêmica, e a curiosidade específica e adversa. Na curiosidade perceptiva os impulsos são despertados por estímulos e reduzido pela exposição contínua a esses estímulos, está relacionada ao comportamento animal; enquanto a curiosidade epistêmica refere-se a um desejo de conhecimento e é humana. A curiosidade específica é ligada ao desejo de uma determinada informação, sintetizada pela tentativa de resolver um quebra-cabeça, e finalmente a curiosidade adversa é estimulada pelo tédio. Lowenstein (1994), sustenta a teoria que a curiosidade surge de uma incongruência ou lacuna de informação, uma discrepância entre o que se sabe e o que se quer saber.

 

Kim, Haeree e Insik (2013), apresentam uma abordagem econômica sobre a curiosidade que envolve entropia. Para os autores a curiosidade é uma característica pessoal onde a intensidade pode variar entre os indivíduos significando que cada indivíduo atribua um valor diferente à informação que necessita. E a medida desse valor é explicada pela entropia. Na experiência realizada com voluntários na Kyung Hee University (Coréia do Sul), a intensidade da curiosidade foi medida pela quantia máxima de dinheiro que o agente estivesse disposto a gastar para obter informação ou, ao contrário, o quanto desinteressado o agente estivesse seria medido pela não aplicação dos recursos financeiros na aquisição da informação. Nos resultados calculados pelos autores foi identificado como mais curioso aquele indivíduo com disposição para gastar mais dinheiro para obter informação, reduzindo, dessa forma, a entropia. A entropia está contida na ausência da informação; se o indivíduo está disposto a pagar pela informação, isso significa que a obtenção de informação é um processo de redução da entropia, destacam os autores.

 

O argumento é que as pessoas, ao aprender algo que não sabiam, tornam-se úteis, e, muitas vezes gastam recursos significativos para aprender algo que querem saber. O espectro desse tipo de curiosidade é amplo, a diversão com os jogos de perguntas, a animação com notícias sobre uma estrela do cinema, o interesse pela cultura de outros países, ler e aprender história, ciências, artes, observar flores, insetos, estrelas. O esforço para a solução de um problema matemático intrigante sem qualquer recompensa, a exploração de uma terra desconhecida com risco de vida. Esses comportamentos podem ser explicados pela noção de curiosidade (KIM; HAEREE; INSIK, 2013, p. 23).

 

Marcuse (2009, p. 160), no entanto, apesar de colocar um peso econômico na produção de conhecimento dos cientistas, apregoa um valor social no trabalho científico, e, com efeito, mostra que, intencionalmente, a motivação científica é acionada pela curiosidade, a "pura" curiosidade, a busca do conhecimento pela busca do conhecimento. O resultado do trabalho científico, uma vez publicado, é inserido no mercado, torna-se mercadoria para ser avaliada pelos compradores e vendedores e tem valor social.

 

Morin (2002, p. 22), esclarece que a curiosidade é a faculdade mais comum e mais ativa na infância e adolescência possibilitando o desenvolvimento das aptidões gerais da mente e que, por sua vez, permite desenvolver as competências particulares ou generalizadas, pois, quanto mais desenvolvida é a inteligência geral, maior é a capacidade de tratar problemas gerais. Nesse sentido, a educação deve favorecer a aptidão natural da mente para colocar e resolver problemas e estimular o pleno emprego da inteligência geral.

 

É muito comum, desde sempre, chamar a atenção de crianças "curiosas demais". Elas demonstram um senso de curiosidade intenso que pode diminuir à medida em que crescem e essa tendência geralmente falha no caso dos bons cientistas (SARUKKAI, 2009, p. 131).

 

No pensamento de Eça de Queiroz ([S.d.]): “curiosidade: instinto que leva alguns a olhar pelo buraco da fechadura, e outros a descobrir a América”. Ramos (2021), apresenta uma passagem da obra de Baudelaire (1821-1867), “Sobre a modernidade” (Editora Paz e Terra, 1996), onde o ilustre autor compara a curiosidade de um “homem do mundo por ter se livrado da morte e em convalescência”, e que contempla a vida com a avidez de conhecimento de uma criança; o dito cujo tem a experiência da curiosidade quando contempla todas as coisas com grande interesse, “ávido de objetos e sensações”, deixando-se consumir por uma paixão que não possui objeto determinado: “a curiosidade transformou-se numa paixão fatal, irresistível”. De acordo com Ramos, é neste contexto que Baudelaire relaciona a figura do homem curioso, a da criança (ibid, p. 160).

 

Para Foucault (1926-1984), a curiosidade é um vício estigmatizado pelo cristianismo, pela filosofia e até mesmo pela ciência. Contudo, para ele, a curiosidade evoca preocupação, “cuidado com o que existe e que poderia existir; uma prontidão para encontrar o estranho e singular que nos rodeia; um fervor para entender o que está acontecendo e o que virá, uma relação entre a tradicional hierarquia do que é importante e essencial”.  Um encanto e sedução que a curiosidade desperta, uma fome de experiências estranhas e novas que conflita com as velhas ideias e distinções; uma força radical que na ciência é uma compulsão para a compreensão (BALL, 2012, p. 3).

 

No entanto, da concepção de vício e mau hábito, é a partir do século XVII que o Ocidente passa a mudar a concepção sobre a curiosidade. Esta transformação se dá principalmente mapeando-se o uso da palavra “curiosidade” (e seus cognatos), na literatura europeia do período. A frequência do uso varia pouco de meados do século XVI até 1650, quando atinge o pico em 1700. A transformação do pensamento nas ciências naturais no período denominado de Revolução Científica com feitos e realizações como as de Galileo, Isaac Newton, Robert Boyle, Robert Hooke, Antony van Leeuwenhoek, onde os filósofos naturalistas desenvolvem um sistema lógico passível de medição e teste em detrimento do raciocínio místico (BALL, 2012, p. 4).

 

Sarukkai (2009), considera ser a curiosidade o catalisador que cria o conhecimento. Pensamos por sermos curiosos, por insatisfação com respostas que obtemos elaboramos novas formas de pensamento e novos métodos. Nossa curiosidade, continua Sarukkai, nos encaminha a extremos: "por que a porta do vizinho está sempre trancada?", "por que o céu é azul?", "o que é esse objeto?".  A ciência baseia-se em grande parte à curiosidade, as crenças sobre a ciência e a curiosidade são numerosas e profundamente enraizadas na comunidade científica.

 

Para Albert Einstein[2], "O importante é não parar de questionar. A curiosidade tem a sua própria razão de existir. Não é possível evitar o sentimento de reverência ao contemplar os mistérios da eternidade, da vida, da admirável estrutura da realidade. Já basta alguém tentar compreender um pouco destes mistérios todos os dias. Nunca deixe passar uma curiosidade sagrada".

 

Sarukkai (2005 apud SARUKKAI, 2009), faz uma distinção entre dúvida e curiosidade; a seu ver, a dúvida é epistemológica, ela dúvida de algo básico, como a percepção, temos dúvida sobre como é algo, porque é de tal jeito, como funciona e assim por diante. A dúvida não é um traço humano de caráter tão básico quanto a curiosidade, ela se baseia em julgamentos que baseamos sobre nossas deduções e percepções. A dúvida, assim como a curiosidade, nos leva a fazer perguntas e também nos leva ao conhecimento. Já a curiosidade é uma ação psicológica e não epistemológica, ou seja, a curiosidade é biológica - o fato de umas pessoas serem mais curiosas que outras é como dizer que umas pessoas têm melhor vista do que outras. Mas todas as pessoas possuem visão e todas as pessoas têm a capacidade de sentir curiosidade (SARUKKAI, 2009, p. 132).

 

Walsh (1988, p. 82), observa que Santo Agostinho apontava como curiosidade equivocada qualquer tentativa de alcançar o conhecimento que não fosse pela tradição judaico-cristã. Até mesmo a derrocada de Adão e Eva se deve à curiosidade (SARUKKAI, 2009).

 

A curiosidade é tida como virtude, mas já foi considerada um mau hábito ou vício, como sustenta Plutarco (46 d.C.- 120 d.C.), que considerava que questionar o comportamento social era uma má prática da curiosidade como também evitar a curiosidade em hábitos sociais como se intrometer no assunto dos vizinhos. A outra forma de direcionar a curiosidade, continua Plutarco, é direcioná-la para a natureza, céu, terra e mar. A curiosidade deve ser dirigida para a intelectualidade, e não para a vulgaridade (WALSH, 1988).

 

Juntamente com a magia, as religiões pagãs, a necromancia e a astrologia, a curiosidade sofria condenação pelos teólogos medievais, da época do Renascimento até a época da Reforma Protestante, à era do puritanismo nos séculos XVI e XVII na Inglaterra (SARUKKAI, 2009).

 

A associação da curiosidade com a busca do conhecimento sem um fim específico seria como entregar-se à "curiosidade sem frutos" e tinha relação com a catástrofe ocorrida com o primeiro pecado no Éden e a queda da raça humana. Na mitologia, a caixa que, por absoluta curiosidade, a mítica Pandora abriu também desencadeou vários infortúnios. A virada nessa perspectiva que a curiosidade era um mau hábito, tem início com Francis Bacon, no século XVII, ao estabelecer  que os métodos de análise foram substituídos de vícios por virtudes no questionamento científico em função da legitimidade moral dos filósofos naturalistas. Essa reabilitação da curiosidade foi crucial na objetivação do conhecimento científico (HARRISON, 2001, p. 266).

 

No século XVII, a curiosidade passa a receber valores positivos, Thomas Hobbes (1588-1679), a relaciona com "apetite por conhecimento moralmente neutro", distinguindo humanos de animais, colocando-a junto à racionalidade (HARRISON, 2001, p. 283). O projeto cartesiano de René Descartes (1596-1650), não eliminava a curiosidade, mas tão somente a disciplinava e a dirigia. É a "curiosidade cega" que deveria ser controlada para que a mente fosse direcionada para o conhecimento (HARRISON, 2001, p. 284).

 

Entretanto, relacionar a curiosidade com a luxúria ainda teria considerável importância tanto na literatura culta quanto na popular. Associar a curiosidade com a busca do conhecimento não garantia ausência de problemas de interpretação. Contudo, para a ciência a vontade de aprender sobre fenômenos novos e desconhecidos tinha direta relação com a curiosidade (SARUKKAI, 2009).

 

Nesse sentido, a Royal Society passa a contribuir para a aceitação da curiosidade como algo positivo através de canais de divulgação da instituição, nos eventos divulgados como curiosos que envolviam temas da medicina, astrologia, entre outras, promovendo "demonstrações regulares de curiosidades naturais e artificiais nas reuniões",  pontuando, inclusive que "ser curioso era uma característica importante para ser cientista", incentivando os "Fellows" (membros da instituição), a fazerem doações de objetos curiosos (COSTA, 2002, p. 148).

 

Para Kang e colaboradores (2009), no espectro da psicologia comportamental, a curiosidade corresponde ao sentimento e a cognição que acompanham o desejo de aprender o que é desconhecido e desempenha papel fundamental na motivação da aprendizagem e descoberta. E apesar da importância da curiosidade humana, seus fundamentos psicológicos e neurais permanecem pouco compreendidos. De acordo com os autores, modelos recentes de redes neurais computacionais sugerem hipóteses sobre a memória e antecipação de recompensas.

 

Compreender a base neural da curiosidade têm importantes implicações substantivas; observa-se que a busca de informações seja evolutivamente adaptativa e as tecnologias modernas (internet etc.), ampliam a quantidade de informações disponíveis, aumentando, portanto, os efeitos potenciais da curiosidade. Entender a curiosidade torna-se importante para selecionar e motivar o conhecimento de profissionais que coletam informações (cientistas, detetives, estudantes, jornalistas etc.). O fato de a curiosidade aumentar com a incerteza pode despertar a busca por conhecimento, assim como um estímulo olfativo ou visual pode sugerir fome de comida; essa observação pode sugerir maneiras e formas para os educadores provocarem a ambição intelectual (KANG et al., 2009, p. 972).

 

A ambição intelectual

Para Marías Aguilera[3] (1996), [...] é a ambição que leva alguém a atrever-se a estabelecer as questões interessantes e sobretudo importantes, as que reclamam esclarecimentos, até o ponto de serem temas dignos de meditar e, em última instância, para viver.

 

O esforço teórico em conceituar a "ambição intelectual" através da literatura formal encontra uma barreira pela completa ausência de uma definição da expressão. Contudo, em nosso entendimento, é interessante apontar que esse ímpeto é formado pelo entusiasmo, curiosidade, sensibilidade, atração pela leitura e pesquisa, pensamento, reflexão e discussão de ideias, aprofundamento em ler em outros idiomas, paixão pelo aprendizado, dedicação, dominar métodos e técnicas de estudos, a busca da resposta para questões que só nós mesmos temos, o esforço para a compreensão de arquétipos, construtos, conceitos nos variados registros científicos, pensamento crítico, criatividade, aperfeiçoamento nos rigores da pesquisa acadêmica, a capacidade da utilização de conhecimentos adquiridos, para obter satisfação pessoal.

 

Outra possibilidade que nos aparenta o entendimento de ambição intelectual é perceber a trajetória de vida de determinados personagens, por exemplo, Machado de Assis (1839-1908), cujo acesso à educação foi muito limitado, era autodidata e construiu a carreira superando dificuldades materiais, mas não intelectuais (LÓPEZ, 2017). Adelardo de Bath (1080-1152),  tido como o primeiro cientista do Ocidente, filho pródigo, os "Pipe Rolls" (documento de registros anuais do Tesouro Britânico, listam Adelardo como beneficiário de uma pensão das receitas de Wiltshire, no sudoeste da Inglaterra), denotando ausência de limitação financeira. No contexto da ciência da Europa do século XI, Adelardo se lança ao Oriente em busca de conhecimento e traduz para o inglês textos científicos gregos e árabes (LYONS, 2011, p. 179). Boécio (480-524), a historiografia o consagra como o último dos romanos e o primeiro dos medievais, sua batalha de restaurar as bases gregas da cultura romana dá-se por conta do abandono da cultura grega pelos romanos o que ele julgava ser indispensável para um cidadão romano (STORCK, 2003, p. 12). Na busca das aspirações destes personagens não se identifica a conquista de riqueza e bens materiais e sim a determinação por um ideal transcendente, o intelecto. 

 

Com base nos estudos de Lopez (2020), a questão da falta de ambição, se relativizada, pode estar relacionada com a desigualdade social e a falta de oportunidade educacional agravadas pela ausência de políticas públicas voltadas para essa finalidade, o que, com efeito, a nosso ver, alteraria substancialmente o ânimo do indivíduo no que tange à satisfação das necessidades humanas relacionadas ao afeto, à  comunidade, aspirações  profissionais e educacionais.

 

O conhecimento

Os filósofos gregos estabeleceram princípios gerais para o conhecimento, de acordo com as fontes e as formas: sensação, percepção, imaginação, memória, linguagem, raciocínio e intuição intelectual; a distinção entre conhecimento sensível e intelectual; a diferença entre opinião e saber; a diferença entre aparência e essência; a definição dos princípios do pensamento verdadeiro; a distinção dos campos do conhecimento verdadeiro: teorético, prático e técnico. Para os gregos, o intelecto humano conhece a inteligibilidade do mundo, alcança a racionalidade do real e pode pensar a realidade porque são compostos do mesmo elemento e inteligência (CHAUÍ, 2001, p. 112-113).

Com efeito, se a curiosidade é o arco e a flecha para a satisfação pessoal do intelecto existe também uma questão que precede: “O que eu devo saber?”. Keller (2009, p. 26), afirma que do ponto de vista da história da ciência, Aristóteles, afirmava que, antes de tudo, viriam as perguntas relacionadas às necessidades vitais; depois aquelas relacionadas com o que torna a vida sustentável, depois disso, alcançada a estabilidade, viriam as questões fundamentais, ou seja, a meta de tudo, as questões filosóficas em sentido restrito, pois estas perguntas seriam superiores às outras e mais próximas da sabedoria.

De acordo com o sentido aristotélico, estamos sempre diante de perguntas, não apresentadas por nós mesmos, mas por nossas profissões, pelo planejamento do tempo livre, pelas necessidades do dia a dia, ou até mesmo por desejos de terceiros, e essas perguntas fazem parte da preocupação com a sobrevivência ou a tranquilidade da vida (KELLER, 2009, p. 26).

O espanto que se nos apresenta quando percebemos que o nosso conhecimento é limitado diante de tudo o que nos cerca e o fato de estarmos constantemente entre o limite do saber e não-saber é a condição prévia que nos motiva a perguntar e buscar o conhecimento.

Com efeito, estamos igualmente sujeitos a buscar conhecimento e este tem a sua tipologia: senso comum – é acrítico e assistemático e não possui sofisticação; religioso – acompanha a humanidade desde sempre, compreende uma verdade que já está pronta e que não permite verificação científica pois baseia-se na transcendência, por característica, sua evolução é lenta; artístico – é subjetivo e não propõe verdades, constrói representações da realidade, propositalmente inexatas e abertas, é espontâneo, dinâmico, formula enunciados abertos com diferentes interpretações; filosófico – é a forma de conhecimento que avalia as outras formas de conhecimento, estuda a natureza e limites das diversas manifestações do conhecimento humano; ideológico – é identificado na literatura como diferente dos demais, seus enunciados dizem respeito às relações de poder e seus efeitos sobre a realidade e a sociedade (ARAÚJO, 2006).

A palavra e o papel – são instrumentos que expressam o que conhecemos. Dar voz e comunicar o que sabemos, substancialmente, envolve a linguagem. Para Aristóteles, o homem é social e cívico, porque ele é dotado de linguagem. Rousseau (1712-1778), descreve a linguagem como uma profunda necessidade de comunicação. Platão (428 a.C.-347 a.C.), no diálogo ‘Fedro’, escreveu que a linguagem é um ‘pharmakon’, a palavra grega, em português é traduzida por “poção”, possui três sentidos: remédio, veneno e cosmético. Platão considerava que a linguagem pode ser medicamento ou remédio para o conhecimento – o diálogo e a comunicação -, poderia dirimir a ignorância e aprender com os outros, enquanto o veneno estaria na sedução das palavras do que vimos ou lemos, causando fascínio, sem que indaguemos se é verdadeiro ou falso, e, finalmente, cosmético, maquiagem ou máscara para dissimular ou ocultar a verdade sob as palavras (CHAUÍ, 2001, p. 137). Na mesma direção, a tecnologia do papel a partir do linho e do cânhamo, criada pelos chineses, passa a atender às iniciativas intelectuais na Ásia central e dali para os árabes, a partir da segunda metade do século XI. O insumo, relativamente barato e resistente, passa a registrar informações de todos os tipos, listas de impostos, poemas de amor, tratados filosóficos e tabelas estelares (LYONS, 2011, p. 81-82).

Quanto ao papel, ou à palavra escrita, as inferências aparecem como as operações cognitivas utilizadas para a construção de novas proposições encontradas a partir da leitura do texto. As inferências adicionam informações ao discurso impresso, nesse caso, as informações não explícitas no texto são inseridas pelo leitor e esse acréscimo é feito respeitando as indicações do texto, ou seja, a temática, e não necessariamente a vontade do leitor. Nesse sentido, as inferências se dividem em dois tipos: conectivas e elaborativas; as conectivas dão conta de estabelecer a coerência entre as diferentes partes do texto e a elaborativas são realizadas para enriquecer a informação textual (COSCARELLI, 2002).

Coscarelli (2002), sustenta que a compreensão de um texto é o resultado de duas fontes de informação: o texto e o conhecimento do leitor. Durante a construção do significado, ao conjunto de proposições e esquemas é acrescida, de forma contínua, novas proposições relacionadas e é essa conjunção de fatores que entendemos como inferência. Outras operações inferenciais são: análise, síntese, indução, dedução, analogia, solução de problemas, generalização, bem como, a leitura nas entrelinhas e a compreensão de linguagem figurada.

Estes ajustes mentais são conhecidos como sinapses. Poersch (2001, p. 404-405), aponta que o cérebro altera sinapses para adquirir conhecimento novo. Na elaboração do aprendizado, os neurônios, apesar de suas variadas funções, tamanhos, formas e relações, são constituídos pelo corpo celular (núcleo), axônio, e dendritos. Esse conjunto em evolução e dinâmica de interconexões é que permite as sinapses. À cada conexão interneuronial adquirimos conhecimento, aprendemos.

 

Considerações finais

Projetamos, com certo esforço teórico e intelectual, estudar a curiosidade e mostrar por qual motivo, razão, ou vontade somos levados a buscar saber, ou minimamente entender, esse ou aquele fenômeno, a prática ou dinâmica de um sistema ou processo, a indagação sobre um texto lido e que nos despertou ainda mais a ânsia de compreensão da complexidade e sofisticação. Que sensação é essa que toma conta de nossa mente e nos impele a divagações, questionamentos, pesquisas.

Se nossa reflexão sobre a curiosidade está baseada na Filosofia é por conta da percepção de que os progressos até hoje realizados pela humanidade resultam do desenvolvimento da inteligência e tolerância. Nossa intenção, neste estudo não conclusivo, é mostrar a curiosidade como aquela atitude que move a ambição intelectual e eleva a cognição e compreensão.

Com a curiosidade vamos resolver problemas graves como justiça social, fome, vulnerabilidades sociais, doenças negligenciadas, a paz entre as nações? Provavelmente não, é quase certo que não. A curiosidade move as pessoas, é intrínseca, é parte substancial da vivência humana, está na ânsia de equilibrar sensações cognitivas, e, no aspecto do intelecto, permite o estímulo e ímpeto para o conhecimento filosófico e científico.

 

REFERÊNCIAS

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ARAÚJO, Carlos Alberto Ávila. A ciência como forma de conhecimento. Ciências e Cognição, v. 8, p. 127-142, 2006. Disponível em: http://www.cienciasecognicao.org/revista/index.php/cec/article/view/572. Acesso em: 02 mar. 2022.

 

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CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 12.ed. São Paulo: Ática, 2001.

 

COSCARELLI, Carla Viana. Reflexões sobre as inferências. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE LINGUISTICA APLICADA. 6., Minas Gerais. [Anais]. Minas Gerais: Faculdade de Letras da UFMG, 2002. CD Rom.

 

COSTA, P. Fontes da. The culture of curiosity at the Royal Society in the first half of the eighteenth century. Notes Rec. R. Soc. Lond., v. 56, n. 2, p. 147–166, 2002. Disponível em: https://royalsocietypublishing.org/doi/abs/10.1098/rsnr.2002.0175. Acesso em: 18 fev. 2022.

 

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KANG, Min Jeong et al. The wick in the candle of learning epistemic curiosity activates reward circuitry and enhances memory. Psychological Science, v. 20, n. 8, p. 963-973, 2009. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1111/j.1467-9280.2009.02402.x. Acesso em: 04 mar. 2022.

 

KELLER, Albert. Teoria geral do conhecimento. São Paulo: Edições Loyola, 2009.

 

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[1] Mestre em Ciência da informação. Bibliotecário referencista em ciências da saúde.

[2] Ver https://www.inc.com/annabel-acton/10-einstein-quotes-to-fire-up-your-creativity.html#:~:text=%22Imagination%20is%20more%20important%20than,and%20the%20limitations%20of%20knowledge. Acesso em: 09 mar. 2022

[3] Julián Marías Aguilera foi um filósofo espanhol, considerado o principal discípulo de José Ortega y Gasset. Foi diretor do "Semanário de Estudos de Humanidades", membro da Real Academia Espanhola e da Real Academia de Belas-Artes e doutor honoris causa em Teologia pela Universidade Pontifícia de Salamanca. Ver: https://pt.scribd.com/document/423550050/Julian-Marias-Elogio-da-ambicao-intelectual. Acesso em: 16 mar. 2022.