INFORMAÇÃO NO ‘MUNDO 3’ DE POPPER:
Epistemologia do conhecimento objetivo e ciência da informação
José Claudio Matos[1]
Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC
jose.matos@udesc.br
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Resumo
Este estudo reflete sobre fundamentos epistemológicos da ciência da informação. Segue métodos compatíveis com a reflexão epistemológica, baseia-se numa pesquisa bibliográfica de autores e temáticas relevantes à construção do argumento. Analisa os trabalhos recuperados mediante a interpretação crítica de suas teses. A hipótese que mobiliza a discussão é a de que a teoria objetiva do conhecimento, da qual resulta a noção de ‘mundo 3’ de Karl Popper, tem consequências relevantes para uma concepção epistemológica da informação e, consequentemente, da ciência da informação. Apresenta uma interpretação do ‘mundo 3’, em sintonia com os fundamentos da ciência da informação, com base no exame das evidências encontradas nas obras do próprio Popper. Trabalhos de autores da ciência da informação que se referem às teorias de Popper são discutidos, a fim de fundamentar a linha interpretativa do argumento. Conclui-se por uma identificação entre o ‘mundo 3’ de Popper e a cultura humana. Disto resulta a noção de um processo evolutivo da informação, no qual a ciência da informação desempenha um papel relevante. Nesta imagem, a ciência da informação teria a função de moldar o ambiente, substituindo a informação desordenada pela informação cultivada e criada para interesses produtivos humanos.
Palavras-chave: Ciência da Informação. Popper. Conhecimento objetivo. Evolução.
INFORMATION IN POPPER’S 'WORLD 3':
EPISTEMOLOGY OF OBJECTIVE KNOWLEDGE AND INFORMATION SCIENCE
Abstract
This study reflects on epistemological foundations of information science. It follows methods compatible with epistemological reflection, based on a bibliographic research of authors and themes relevant to the construction of the argument. It analyzes theworks recovered through the critical interpretation of their theses. The hypothesis that mobilizes the discussion is that the objective theory of knowledge, from which karl popper's notion of 'world 3' results, has relevant consequences for an epistemological conception of information and, consequently, of information science. It presents an interpretation of 'world 3', in line with the foundations of information science, based on the examination of the evidence found in Popper's own works. Works by authors of information science who refer to Popper's theories are discussed in order to substantiate the interpretative line of the argument. It concludes by an identification between Popper's 'world 3' and the human culture.This results in the notion of an evolutionary process of information, in which information science plays a relevant role. In this image, information science would have the function of shaping the environment, replacing disordered information with information cultivated and created for human productive interests.
Keywords: Information Science. Popper. Objective knowledge. Evolution.
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho é uma tentativa de discutir algumas questões epistemológicas que possuem relevância para os fundamentos da ciência da informação. Para conduzir esta discussão, o ponto de partida é a teoria do conhecimento objetivo de Karl Popper, especialmente a sua proposição da cosmologia dos três mundos, em que o chamado ‘mundo 3’ é composto pelo conhecimento em sentido objetivo.
A hipótese que mobiliza a discussão é a de que a teoria objetiva do conhecimento, da qual resulta a afirmação do mundo 3 de Popper, tem consequências relevantes para a ciência da informação. Algumas destas consequências já vêm sendo discutidas por estudiosos interessados na relação entre epistemologia e ciência da informação. Contudo, pelo que a análise desta produção pode revelar, ainda restam aspectos da teoria de Popper que tem passado despercebidos pelo debate corrente sobre o tema. Interessa especialmente aqui a perspectiva evolutiva e ambiental que a admissão das ideias de Popper introduz no campo da informação.
Na presente discussão, portanto, será apresentada uma interpretação do mundo 3, em sintonia com as linhas gerais da pesquisa na ciência da informação, com base no exame das evidências encontradas nas obras do próprio Popper. Além disso, a relação entre a teoria do mundo 3 e a ciência da informação será aprofundada a partir do exame dos argumentos de alguns de seus representantes, que reconhecem a relevância da epistemologia de Popper para o campo da ciência da informação. Finalmente, se espera defender a ideia de que um dos aspectos desta teoria epistemológica – a suposição de que a cultura e o conhecimento são partes de um grande processo evolutivo – tem grande importância na compreensão do significado dado à informação, nos moldes de tal teoria. Formulando de maneira concisa, oque se pretende afirmar é que a teoria do conhecimento objetivo de Popper pode ser interpretada em termos informacionais - a ponto de se poder sustentar uma identidade entre o mundo 3 e a chamada infosfera(FLORIDI, 2014) – na medida em que, para Popper, o mundo 3 goza de relativa autonomia, embora sua existência tenha sido causada pela comunicação humana.Se considerarmos o mundo 3 como idêntico à infosfera, isto equivale a dizer que “conhecimento objetivo”, assim como os demais documentos que caracterizam a cultura humana, é tradutível como “informação” no sentido de conteúdos semânticos registrados em algum tipo de suporte. Muitos dos artefatos ou documentos habitantes do mundo 3 são entidades físicas, mas sua natureza mais própria não é física e sim intencional, semântica ou informacional.
Se isso faz sentido, então a ciência da informação é um campo que visa a organização, o aperfeiçoamento e a melhor interação humana com o mundo 3. Os sistemas de organização do conhecimento, ou os de recuperação da informação, por exemplo, são realizações que visam o controle racional das entidades do mundo 3. Primeiro visando seu crescimento, ou seja, o crescimento do próprio conhecimento objetivo, que envolve a ciência em seus diversos campos, mas também visando a promoção de valores como a liberdade, a ampliação da discussão crítica, a justiça e a igualdade. Aqui está uma abordagem epistemológica das ciências, que toca de maneira bastante especial a ciência da informação no que esta tem de mais fundamental: sua relação de fomento, suporte e assessoria para todas as demais áreas do conhecimento que é discutido e disseminado publicamente.
2 EPISTEMOLOGIA, CONHECIMENTO OBJETIVO E A TESE DOS TRÊS MUNDOS DE POPPER
A principal referência para a interpretação do pensamento de Popper é o livro Conhecimento Objetivo (Popper, 1975). Sua tese evolucionista acerca do conhecimento está desenvolvida, na sua forma completa, ao longo dos nove capítulos desta obra. Particularmente aqui, interessam as ideias desenvolvidas nos capítulos três e quatro de Conhecimento Objetivo, respectivamente “Epistemologia sem um sujeito conhecedor” e “A teoria da mente objetiva”.
Além desta fonte, é oportuno examinar mais atentamente a obra O conhecimento e o problema corpo-mente (2002) cujos argumentos, segundo Popper, “baseiam-se em lições dadas em 1969 na Universidade de Emory acerca do problema corpo-mente” (POPPER, 2002, p. 11). Nestas conferências, Popper afirma que se desviou do plano original das aulas a partir do grande interesse dos participantes pela teoria do mundo 3. Em vista da interrelação entreestas duas obras, serão apresentadas citações de ambas como fundamento textual da linha interpretativa aqui desenvolvida.
Sobre a obra Conhecimento Objetivo, ainda no seu prefácio Popper caracteriza a corrente subjetivista tradicional, para a qual sua teoria do conhecimento objetivo é uma resposta. Diz ele:
Desde Descartes, Hobbes, Locke, e sua escola, que inclui não só David Hume mas também Thomas Reid, a teoria do conhecimento humano tem sido amplamente subjetivista: o conhecimento tem sido encarado como um tipo especialmente seguro de crença humana, e o conhecimento científico como um tipo especialmente seguro de conhecimento humano (POPPER, 1975, p. 7).
Assim, para Popper, a abordagem epistemológica que presta tributo aos estados mentais individuais, especialmente o estado de crença subjetiva, é inadequada para explicar o crescimento do conhecimento e sua validade pública, especialmente no caso do conhecimento científico. No impulso dado pela polêmica entre a epistemologia individualista ou subjetivista e a epistemologia objetivista, o ponto central de toda a discussão presente, conforme já anunciado, é a teoria dos três mundos, em que se destaca o mundo 3, habitado pelas formulações objetivas de conhecimento. Em suas palavras,
podemos distinguir os três mundos ou universos seguintes: primeiro, o mundo dos objetos físicos ou de estados materiais; segundo, o mundo de estados de consciência ou estados mentais; e, terceiro, o mundo de conteúdos objetivos de pensamento, especialmente de pensamentos científicos e poéticos e de obras de arte” (POPPER, 1975, p. 108).
Esta é uma formulação da teoria popperiana dos três mundos. O cenário de questões epistemológicas e informacionais que a envolve, especialmente a cosmologia do mundo 3, que aqui está em discussão, serão debatidos a seguir.
A expressão “mundo” não deve enganar o leitor, pela ideia de um espaço estruturado fisicamente. Popper não utiliza este termo para falar de um lugar, um espaço físico: esta noção fisicalista só se aplicaria ao mundo 1, que é para o autor o mundo dos objetos e fenômeno físicos. Popper fala dos três mundos se referindo a três domínios de entidades existentes e ao seu modo de existência. Uma ideia, quando é formulada e registrada em linguagem, é conhecimento objetivo. Nesta teoria todo o conhecimento está sempre sujeito ao exame e à crítica. A certeza absoluta ao estilo do dogma é, por fortes razões lógicas e epistemológicas, colocada sob forte suspeita. Carvalho, em seu artigo “Não sabemos: só podemos conjecturar” (CARVALHO, 1995) assim se posiciona quanto a este tema na obra popperiana:
Trata-se de uma filosofia que nos encoraja na busca da verdade, mas desestimula o recuo para a certeza, ensinando-nos a ser audazes na formulação de conjecturas, mas a renunciar à presunção descabida de quem se julga possuidor da verdade (CARVALHO, 1995, p. 49).
Então, nem crença nem justificação seriam necessárias para haver conhecimento de mundo 3.
É possível reconhecer que Popper recorre a “níveis de abstração epistemológica” (FLORIDI, 2010, p. 78), correspondentes aos três mundos por ele propostos, a fim de preparar as condições para a defesa de sua teoria conjectural do conhecimento objetivo. O ‘nivelismo epistemológico’ adotado por Popper, poderia ser interpretado, com certa liberdade, como correspondendo a três níveis de abstração: o nível físico ou material, o nível mental e o nível objetivo. Dennett, em sua obra Brainstorms (DENNETT, 2006), fala de diferentes abordagens ou posturas (stances) pelas quais se pode tomar os eventos e objetos a fim de constituir sistemas explicativos. Dennett fala da postura física, na qual “predições são baseadas no estado físico real do objeto particular” (DENNETT, 2006, p. 35); da postura de projeto, que envolve “suposições sobre a constituição funcional do sistema” (DENNETT, 2006, p. 35) e da postura intencional, na qual as explicações são formuladas “atribuindo ao sistema a posse de determinada informação” (DENNETT, 2006, p. 37). Aqui se apresenta outro exemplo de uma estratégia filosófica em que a explicação da questão mais ampla é obtida recorrendo a uma divisão em níveis, posturas ou abordagens, conforme propriedades dos objetos envolvidos na questão.
Considerando essa divisão em níveis de abstração na discussão do mundo 3 de Popper, é preciso especificar melhor quais são os habitantes, ou seja, as entidades que o compõem. Segundo ele:
Argumentarei que os moradores mais importantes desse mundo são argumentos críticos e o que pode ser chamado – em analogia com um estado material ou um estado de consciência – o estado de uma discussão ou o estado de um argumento crítico; e, naturalmente, os conteúdos de revistas, livros e bibliotecas (POPPER, 1975, p. 109).
Ora, o conteúdo de ‘revistas, livros e bibliotecas’ corresponde segundo muitos pontos de vista confluentes, ao ambiente da cultura humana, tornada objetiva pelo registro em linguagem e pela materialização de artefatos de diversos tipos, como ferramentas, obras de arquitetura, e toda a tecnologia que vem sendo desenvolvida e empregada ao longo da história. Mas mais importante, este conteúdo é considerado informação, em um sentido muito relevante do termo, caro como é ao campo da ciência da informação.
Para comentadores como Barros (1995), em seu artigo “Karl Popper: a busca inacabada”, o advento e crescimento do mundo 3 tem a ver com a linguagem humana, especialmente na forma do registro de argumentos e problemas:
Com a invenção da linguagem humana, que acrescenta às suas funções expressivas e comunicativas, comuns ao animal, as funções representativa, no dizer de Bühler, ou descritiva, na de Popper, e argumentativa, dá-se, porventura, a autêntica gênese do homem, que é o criador, em face do ‘mundo 1’, do ‘mundo 3’, isto é, o mundo da cultura, composto de objetos fabricados, técnicas, livros, obras de arte, cidades, instituições, etc. (BARROS, 1995, p. 14).
O que é especialmente relevante no mundo 3 assim concebido é que ele “é amplamente autônomo, mesmo embora constantemente atuemos sobre ele e sejamos atuados por ele: é autônomo apesar do fato de ser produto nosso e de ter um forte efeito sobre nós” (POPPER, 1975, p. 114). A tese da autonomia do mundo 3 é fundamental para que seja possível propor que este corresponde ao mundo da informação. Boa parte do trabalho argumentativo do restante deste estudo envolve defender esta autonomia. Portanto, que o mundo 3 de Popper é habitado pela informação, tal como é encontrada à disposição das pessoas em livros, programas de computador, obras de arte e demais artefatos presentes na cultura.
Um argumento em favor da autonomia do mundo 3 e seus habitantes pode ser observado na seguinte passagem de O conhecimento e o problema corpo-mente. Popper afirma: “Não creio que Shakespeare pudesse elaborar a obra Hamlet sem a escrever primeiro” (POPPER, 2002, p. 35). Isto deve ser entendido no sentido de que a formulação em linguagem, e a transformação do pensamento em artefato, ou seja, em informação registrada e veiculada em um suporte, permite a sua manipulação.
Por isso, dificilmente se poderia dizer que a peça Hamlet existiu na mente de Shakespeare antes de ter sido criada, antes de passar para o papel – é possível, mas dificilmente poderemos ter certeza (POPPER, 2002, p. 35).
Esta manipulação de coisas como objetos ou representações objetivas do pensamento é, inevitavelmente, a mais adequada descrição do processo que em geral se denomina criação.
A caracterização do mundo 3 e o delineamento de seus aspectos principais vem chamando atenção de estudiosos da ciência da informação. Tanto para uma discussão epistemológica da informação em linhas gerais, como para campos específicos como o da Organização do Conhecimento, a teoria do mundo 3 tem sido mencionada e debatida com maior ou menor profundidade. O que, talvez, ainda falte ressaltar são algumas consequênciasda aceitação desta teoria, que talvez passem despercebidas aos leitores em geral, que não estejam interessados especificamente na interpretação profunda do pensamento popperiano. A consequência mais controversa é que a teoria do mundo 3 e de sua relativa autonomia, conforme Popper, faz sentido somente no horizonte de uma abordagem evolutiva da vida e especialmente do conhecimento humano. Uma epistemologia evolutiva parece ser um resultado inseparável de se falar, em termos popperianos, de um mundo do conhecimento objetivo.
3 EPISTEMOLOGIA DO MUNDO 3 E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO
Para destacar os aspectos importantes da relação entre a epistemologia do mundo 3 de Popper e o campo da ciência da informação, é relevante considerar a disputa entre o subjetivismo e o objetivismo. Popper sempre defendeu a possibilidade e a vantagem teórica de que as discussões epistemológicas fossem conduzidas independentemente do que ocorre, subjetivamente, na mente de qualquer pessoa. A este vício Popper denominou de subjetivismo, ou psicologismo, atitude que combateu tão enfaticamente que sua obra Conhecimento Objetivo (1975) pode ser considerada uma crítica da abordagem subjetivista em teoria do conhecimento.
Hjorland, no artigo Epistemology and the Socio-Cognitive Perspective in Information Science (2002) trata desta mesma polêmica defendendo, por sua vez, a perspectiva sócio-cognitiva, a fim de ultrapassar as limitações de uma visão subjetivista do conhecimento. Segundo Hjorland:
Um ponto central na minha abordagem é a alegação de que ferramentas, conceitos, significado, estruturas de informação, necessidades de informação e critérios de relevância são moldados nas comunidades de discurso, por exemplo, em disciplinas científicas, que são partes da divisão do trabalho em uma sociedade. Uma comunidade de discurso sendo uma comunidade em que um processo de comunicação ordenado e delimitado tem lugar (HJORLAND, p. 258).
Sua proposta é denominada de “análise de domínio” ou abordagem “sócio-cognitiva”.
Hjorland tem razão quanto a limitações da psicologia em oferecer um modelo do conhecimento que seja viável e fundamental para a CI. Sua reivindicação da epistemologia como discurso ou método de análise do conhecimento capaz de fundamentar ou dialogar com a CI faz todo o sentido. Contudo, embora sua concepção sócio-cognitiva se proponha a superar o individualismo da psicologia, ainda há resíduos da ideia segundo a qual o conhecimento corresponde aos estados mentais na mente de um sujeito particular.
Seria interessante contar com uma concepção mais radical e, portanto, menos confusa do aspecto público, comunitário, e objetivamente autônomo do conhecimento. Uma candidata bastante favorável para esta demanda é a concepção de Karl Popper, em sua teoria do conhecimento objetivo, ou, como formula em seus próprios termos, da “epistemologia sem um sujeito conhecedor” (POPPER, 1975). Popper foi tão enfático em reivindicar o caráter objetivo, público e autônomo do objeto de estudo da epistemologia, que recebeu críticas por desconsiderar aspectos essencialmente mentais, subjetivos e pessoais em seu estudo.
Miranda, em um trabalho intitulado “A ciência da informação e a teoria do conhecimento objetivo: Um relacionamento necessário” (2002), defende a ideia de que a ciência da informação pratica uma abordagem objetiva de seu objeto de estudo, compatível com a teoria popperiana do mundo 3. Partindo da definição proposta por Le Coadic, Miranda defende a autonomia relativa dos documentos em que se inscrevem as informações. Ele situa a ciência da informação na tarefa de investigar as formas de organização e recuperação dos documentos. Conforme suas palavras:
Os documentos inscrevem informações mas eles são, ao mesmo tempo, objetos autônomos. O conteúdo informacional dos documentos seria objeto de análise de cada ciência a ele relacionada, mas – queremos afirmar e defender aqui - o documento em si, enquanto registro, requer abordagens próprias das novas ciências popperianas (do Mundo 3 de Karl Popper), dentre elas a Ciência da Informação (MIRANDA, 2002, p. 10).
A ciência da informação, para Miranda, é uma “ciência popperiana” porque estuda o mundo 3. Esta forma de compreender a situação da ciência da informação em relação ao seu objeto resulta da admissão de autonomia para entidades do mundo 3: os registros de conhecimento e demais aspectos objetivos da cultura humana, como obras de arte e monumentos.
Contudo, Miranda parece confundir os elementos da cosmologia popperiana quando descreve sua teoria de três mundos, como se pode perceber pela citação seguinte:
Mundo 1 é constituído pelos conhecimentos relacionados ao mundo físico – a geologia, a biologia, etc. (“o mundo dos estados materiais”) – enquanto que o Mundo 2 compreende os conhecimentos relativos ao mundo metafísico ou dos estados mentais e da subjetividade – a psicologia, entre outras ciências (MIRANDA, 2002, p. 11).
O problema com esta representação é que ela é simplesmente falsa. A divisão em três mundos de Popper não é entre espécies distintas de conhecimento conforme seus objetos, não é uma divisão das ciências ou áreas do saber. A divisão em três mundos de Popper é umadivisão cosmológica e não epistemológica. Nela, todo objeto ou fenômeno físico, como o sol, ou uma pedra, são habitantes do mundo 1, sentimentos e crenças de um indivíduo fazem parte do mundo 2 e todo conhecimento registrado, inscrito e representado em documentos ou artefatos é habitante do mundo 3. Não há conhecimentos no mundo 1, por exemplo, como a equivocada colocação de Miranda pode levar alguém a crer.
Fora esta confusão, a abordagem de Miranda tem a interessante característica de defender a objetividade daquilo que é estudado pela ciência da informação, com base na teoria do mundo 3 de Popper. Segundo este autor:
O conhecimento objetivo, assim concebido, seria uma “coisificação” ou a autonomia da informação de seu criador. Uma vez produzido, o texto é público, sujeito a críticas, apropriações, reformulações até mesmo pelo seu criador (MIRANDA, 2002, p. 13).
Esta passagem incorpora uma das mais férteis e interessantes propriedades dos habitantes do mundo 3: como artefatos que são, os habitantes deste mundo possuem relativa autonomia em relação aos sentimentos, crenças e intenções individuais de seus criadores. E esta reivindicação de autonomia, chamada por Miranda de “coisificação”, é justamente a propriedade que garante a objetividade do conhecimento registrado e tornado acessível na cultura humana.
Essa noção de ‘coisificação’ aludida por Miranda traz à memória a distinção operada por Buckland (1991) entre distintos sentidos do termo “informação”. Em seu conhecido artigo que tem o sugestivo título de “Information as Thing” (BUCKLAND, 1991), ele diferencia informação como processo, informação como conhecimento e informação como coisa. Em torno desta última caracterização Buckland constrói sua argumentação, pretendendo tornar clara ao leitor a distinção entre aquilo que é tangível e aquilo que é intangível no domínio da informação. Buckland defende que o tipo de informação que interessa à ciência da informação é esta entendida como coisa: os documentos, os registros, os artefatos de conhecimento objetivo. Ele afirma:
O termo ‘informação’ é também usado como sendo atribuído a objetos, como dados e documentos, que são referidos como ‘informação’ porque são considerados informativos (BUCKLAND, 1991, P. 352).
Veja-se que a palavra “coisa” não deve confundir o intérprete, como se aludisse à mera materialidade ou aspecto físico de alguma entidade. Informação como coisa, para Buckland, é a informação como ‘evidência’: documentada, registrada em algum suporte, mas ainda assim, é aquilo que pode ser interpretado e cujo significado pode ser reconhecido. A‘coisificação’, neste sentido, não faria retroceder o nível de abstração às coisas físicas em si mesmas e sua muda materialidade, mas apenas alude à objetividade dos artefatos e registros de conhecimento. O aspecto físico de um livro, por exemplo: o papel de que é feito, o tipo de tinta com que foi impresso, tamanho, peso, e outras qualidades desta ordem, são todas qualidades pertencentes ao mundo 1. A existência, contudo, do livro como um arranjo simbólico e significativo, acessível publicamente, e que pode ser criticado, aceito ou rejeitado como um componente da cultura, esta sim é uma qualidade inerente ao mundo 3, do conhecimento objetivo.
Miranda finaliza seu argumento afirmando que:
Na acepção popperiana proposta na presente análise, a Ciência da Informação é uma área de pesquisa típica do Mundo 3, ou seja, de metaciência como atividade que estuda o fenômeno dos registros de conhecimentos e trabalha pelo aperfeiçoamento das formas de produção, armazenamento e uso (ou seja, de todo o ciclo informacional) do conhecimento registrado (MIRANDA, 2002, p. 21).
Esta parece ser uma demarcação adequada para a ciência da informação, que emana da admissão da autonomia do mundo 3, tão enfatizada por Popper. Sua formulação condiz com a ideia de que aquilo que Popper denomina “conhecimento” em sentido objetivo, ou seja, o conhecimento registrado ou corporificado em artefatos, seja equivalente ao que o cientista da informação quer dizer quando emprega o termo “informação”, que se define como “conhecimento comunicado”, ou seja, tornado comum, publicamente acessível e, portanto, autônomo em relação aos eventos internos das mentes individuais.
É preciso aludir também a Fujita; Pinheiro no trabalho Epistemology as a Philosophical Basis for Knowledge organization(2016). Este estudo possui um título genérico sobre epistemologia, mas revela na leitura uma posição explícita de defesa do racionalismo crítico de Popper, especialmente quanto a sua concepção de conhecimento objetivo, ou mundo 3. Seu objetivo é analisar as ideias de Popper acerca de sistemas de organização do conhecimento, com ênfase nos fundamentos da epistemologia racionalista-crítica, particularmente o “conhecimento objetivo e a relação entre conceitos e formulação de teorias” (FUJITA; PINHEIRO, 2016, p. 30).
O artigo alude a sistemas de organização do conhecimento em três categorias: listas de termos, esquemas de classificação e vocabulários relacionais. Acerca de tais categorias, interpreta que sua função seja a representação de conceitos: “Esta função de organização e representação de conceitos é a característica mais importante destes sistemas que os relaciona com a teoria popperiana do conhecimento objetivo” (FUJITA; PINHEIRO, 2016, p. 31). Oque parece ser um problema é que Popper prefere falar de afirmações e proposições ao invés de conceitos. A ideia de conceitos, para Popper, está ligada à questão do significado, que Popper rejeita devido a seu forte resíduo psicologista. Conceitos, que viram palavras, que adquirem significado, são todos termos subjetivistas e, portanto, estariam fora do mundo 3 do conhecimento objetivo. As proposições e suas relações lógicas, estas sim seriam habitantes do mundo 3, algo que parece ter escapado ao olhar das autoras.
As autoras parecem reconhecer que Popper está delimitando o terreno do conhecimento objetivo, mas, no trecho seguinte, fazem uma alegação que negligencia esta delimitação, porque parecem incorporar terminologia e elementos subjetivistas novamente, ao falar dos sistemas de organização do conhecimento. A consequência disso é que se perde a noção da diferença entre assumir a epistemologia objetivista de Popper ou assumir a epistemologia subjetivista do conhecimento como crença e possessão individual do sujeito.
Mais adiante as autoras repetem o que havia sido acima afirmado:
Contudo, como representam conceitos do conhecimento científico em várias áreas específicas, eles são transitórios e passíveis de mudanças. Pode-se concluir que a pesquisa baseada na aplicação do conhecimento objetivo de Popper (POPPER, 1975) e Epistemologia em geral pode contribuir para posterior desenvolvimento de realizações teóricas (FUJITA; PINHEIRO, 2016, p. 35).
Ao mesmo tempo em que parece ser uma defesa da formulação objetivista do conhecimento, em termos da autonomia do mundo 3, o artigo também se apresenta como uma crítica desta mesma formulação, em termos de que conceitos subjetivos são imprescindíveis para os sistemas da Organização do Conhecimento, como afirmam no parágrafo final de seu trabalho.
É especificamente no artigo de “Knowledge organization: An epistemological perspective” (ZINS, 2002), que se estabelece claramente a distinção entre conhecimento subjetivo e conhecimento objetivo. Já deve ter ficado claro que esta é a distinção fundamental para toda a discussão aqui empreendida. Do ponto de vista da fundamentação epistemológica buscada aqui o conhecimento objetivo, no sentido proposto por Popper pode, em grande medida, ser identificado com a noção de ‘informação’ mantida pela ciência da informação paradigmática.
Como comentário aos trabalhos aqui mencionados, é possível afirmar acerca deste ponto que a distinção entre conhecimento objetivo e subjetivo, embora de certa forma esteja anunciada nos trabalhos de Miranda (2002) e Fujita & Pinheiro (2016), não é explorada criticamente nestas produções. A confusão conceitual entre estas duas dimensões doconhecimento pode resultar em mal-entendidos no campo conceitual, e também no campo instrumental, dando a falsa impressão de que a ciência da informação tivesse que dar conta de aspetos individuais ou subjetivos do conhecimento, o que não é o caso.
Zins escreve em defesa da epistemologia, como uma aliada da organização do conhecimento e de todos os ramos da ciência da informação. Sua estratégia de argumentação parte da distinção entre dois sentidos do conhecimento: objetivo e subjetivo. Diz ele:
Note que ‘conhecimento subjetivo’ é equivalente aqui ao conhecimento do sujeito ou do indivíduo cognoscente, e ‘conhecimento objetivo’ é equivalente ao conhecimento como um objeto ou uma coisa (ZINS, 2002, p. 2).
Esta é justamente a mesma distinção a que Popper alude em Conhecimento Objetivo e outras obras. Conforme Zins reconhece:
O leitor familiarizado com a filosofia de Karl Poper provavelmente encontrará uma semelhança entre as duas abordagens para definir ‘conhecimento’ e os conceitos de ‘mundo 2’ e ‘mundo 3’ (ZINS, 2002, p. 4).
A partir deste ponto de seu argumento, Zins segue relacionando o conhecimento objetivo com os habitantes do mundo 3 de Popper. Ele concorda com Popper sobre a relativa autonomia do mundo 3 e sobre a identificação deste domínio com a esfera da cultura humana corporificada nos registros da linguagem e demais artefatos.
Contudo, na sua interpretação da questão, Zins acaba por reivindicar uma participação do aspecto subjetivo nos processos de apropriação da informaçao.
Seguido Popper, alguém pode dizer que o conhecimento objetivo (a saber ‘mundo 3’) é documentado, salvo e transmitido por meios de objetos físicos, como livros, papel e CDs (a saber ‘mundo 1’), e se torna real para cada um de nós apenas na medida em que cada um de nós vem a conhece-lo através de sua própria mente (a saber ‘mundo 2’) (ZINS, 2002, p. 4-5).
Ora, o próprio Popper assume a importância da vida mental dos indivíduos no processo de crescimento e de disseminação da cultura (conhecimento). Radicalizar a proposta de consideração do mundo 3 autônomo, a ponto de desprezar a vida mental das pessoas, afirmar que o que ocorre na mente dos indivíduos não importa para a compreensão dos problemas relativos ao conhecimento, a informação, a cultura e a comunicação, seria como assumir um reducionismo semelhante àquele tão criticado nos behavioristas do começo do século XX.
Mas a relação entre o mundo mental e o mundo da cultura não pode gerar confusões infundadas. O mundo 3 é autônomo justamente por causa da objetividade observada em seu domínio. O problema com a interpretação de Zins acerca do mundo 3 de Popper é que em certo ponto, Zins parece recusar a autonomia do mundo 3. Diz ele: “As abordagens diversas subjetiva e objetiva são paradoxalmente complementares, desde que conhecimento que ninguém conhece é sem sentido” (ZINS, 2002, p. 5). Aqui parece que Zins perdeu o ponto. Não há paradoxo algum na complementaridade e profunda interação entre o mundo 2 e o mundo 3, e Popper dedicou grande esforço em explorar essa complementaridade a fim de solucionar questões em epistemologia e outros campos, como foi o caso de sua discussão do problema corpo e mente.
Pouco antes da publicação do estudo de Zins, Gómez parece compartilhar deste dilema no artigo “Para uma reflexão epistemológica acerca daCiência da Informação” (GÓMEZ, 2001), quando se refere a que, “por uma espécie de paradoxo, se fala do conhecimento de duas maneiras contrapostas” (GÓMEZ, 2001, p. 12), que descreve como as esferas objetiva e subjetiva do conhecimento. A nota de rodapé explicativa desta afirmação alude precisamente a Popper e sua noção de conhecimento objetivo, mas parece não reconhecer a autonomia do mundo 3 e nem as razões de sua proposição.
O mundo do conhecimento objetivo é habitado por artefatos carregados de significado, ou seja, coisas que são ‘relativas a’, coisas que são ‘sobre’ outras coisas. Um exemplo disso seria, por exemplo, um livro que está em uma biblioteca e que nenhuma pessoa viva no mundo leu. Se este livro possui a formulação de uma teoria, ou especialmente de um problema de conhecimento objetivo de coisas reais, mas não existe atualmente um ser humano vivo que pensou, leu ou conheceu seu significado (porque, por exemplo, todos os que leram o livro já morreram), ele é conhecimento que ninguém conhece. Mas o livro está ali na estante de uma biblioteca, então este livro conta como informação, e mesmo informação disponível. Este parece ser o mais firme e o mais interessante modo de interpretar o mundo 3 de Popper. Este livro é um habitante do mundo 3 sem ser ao mesmo tampo habitante do mundo 2. Prova de que o mundo 3 é relativamente autônomo.
Zins afirma que conhecimento sem sujeito conhecedor ‘makes no sense’ (não faz sentido): É possível recusar esta posição por um contra-argumento baseado no argumento de que o mundo 3 é a memóriadinâmica do conhecimento. O exemplo da teoria de Mendel ilustra isso muito bem: Embora tenha sido praticamente esquecida, a teoria de Mendel foi retomada anos depois pelos geneticistas, resultando nos fundamentos da síntese moderna da biologia. O conhecimento sobre a teoria da hereditariedade de Mendel existiu, depois deixoude existir, para voltar a existir novamente. Permaneceu potencialmente válido, mesmo que esquecido dos cientistas, por cerca de uma geração. Popper diria que “podemos imaginar, que depois de haver perecido a raça humana, alguns livros ou bibliotecas possam ser encontrados por alguns sucessores nossos civilizados [...] Esses livros podem ser decifrados” (POPPER, 1975, p. 117). Segundo Popper, admitindo a possibilidade presente no próprio artefato informacional, de ser interpretado e seu significado conhecido, este argumento seria suficiente para os propósitosda autonomia relativa do mundo 3.
Contudo, Zins parece insistir nesta preservação da subjetividade como uma característica inextricável do conhecimento relevante. Entenda-se que, para o mundo 3 ser autônomo e habitado pela informação é preciso que se possa conceber conhecimento objetivo sem depender dos estados mentais de qualquer sujeito individual. Zins lança seu último argumento em defesa de certa subjetividade incontornável do conhecimento, propondo sair do campo da especulação epistemológica em direção ao que ele chama ‘abordagem prática’. Ora, esta é justamente a direção seguida pela ciência da informação: partir da fundamentação teórica na direção de solucionar demandas práticas em relação à informação e ao conhecimento registrado.
Tudo se passaria como se, para Zins, a prática dos procedimentos inerentes à ciência da informação não pudesse prescindir de certa dose de subjetividade, o que falsificaria, ou no mínimo enfraqueceria, a hipótese mantida no presente trabalho. Segundo ele:
Além disso, se alguém se volta à abordagem prática, ao invés de ir a uma abordagem religiosa ou metafísica, deve-se admitir que o conhecimento objetivo é um produto da externalização do conhecimento subjetivo. De fato, o conhecimento objetivo pode ser caracterizado como conhecimento subjetivo registrado ou documentado” (ZINS, 2002, p. 6).
A resposta que se poderia fornecer a este desafio de Zins quanto à abordagem prática reivindicada por ele é de que, justamente por isso, talvez seja mais interessante falar do mundo 3 como um ‘nível de abstração’ (FLORIDI, 2010) ou um tipo de ‘abordagem’ ou ‘postura’ (DENNETT, 2006), do que propriamente como um ‘mundo’.
A operação argumentativa que visa ajustar esse argumento a uma forma mais compreensível sem enfraquecer a exigência de objetividade pode ser formulada assim: o mundo 3, da cultura, ou do ‘conhecimento objetivo’, é equivalente ao mundo da informação (no mesmo sentido do termo já amplamente usado na CI), ou seja, de ‘conhecimento comunicado’ ou de ‘registros de conhecimento em um suporte material ou virtual’. Este mundo é relativamente, mas não totalmente autônomo, e tem suas próprias regularidadesinerentes a formas de validação, modificação e especialmente de replicação ou propagação de artefatos ou itens que habitam este mundo 3. A ciência da informação estuda tais entidades justamente abordando-as como entidades objetivas, documentadas, inscritas em suportes, organizáveis, recuperáveis, reprodutíveis, e utilizáveis segundo propósitos e intenções individuais e sociais.
O mundo 3 de Popper, preservada sua relativa autonomia, corresponde ao mundo da informação em uma medida suficiente para prover a ciência da informação de um fundamento teórico. Este fundamento preserva a objetividade do conhecimento disponível na cultura (visto do ponto de vista informacional). Tal fundamentação reivindica que as regras da lógica, da argumentação crítica e do exame das evidências se sobreponham a qualquer predileção intuitiva ou pessoal. Mesmo que haja fatores sociais e psicológicos envolvidos nos processos de informação e conhecimento comunicado, a logicidade, a crítica racional e a validade objetiva preservam a prioridade. Além disso, tal abordagem incorpora um elemento ambiental, ecológico e evolutivo da própria cultura, que não pode ser negligenciado.
Popper se declara um humanista, preocupado com o progresso social e cultural, e com a solução dos problemas humanos. A sessão 9 do capítulo 3 de Conhecimento objetivo se intitula “Descoberta, Humanismo e Autotranscendência”, e ali Popper explora o tema do desenvolvimento e crescimento social e cultural em sua relação do mundo 3. Ele afirma que:
Para um humanista, nossa abordagem pode ser importante porque sugere um novo modo de encarar a relação entre nós mesmos – os sujeitos – e o objeto de nossos esforços: o conhecimento objetivo crescente, o mundo 3 crescente (POPPER, 1975, p. 144).
Repare como esta citação poderia ser transcrita com pequena modificação em termos informacionais, mundo 3 significando algo como: “a informação crescente”. Esta seria uma maneira de se expressar, condizente com as aspirações do chamado “paradigma social” ou “paradigma humanístico” atualmente vigente na ciência da informação. Este paradigma, conforme Capurro (2003) e outros estudiosos, se fundamenta na orientação desta ciência para que a informação seja considerada como instrumento de solução dos problemas humanos.
Capurro; Hjorland (2007), mencionam o “conceito moderno de informação como comunicação do conhecimento” (CAPURRO; HJORLAND, 2007, p. 173), que não poderia ser mais bem representado do que como conhecimento objetivo e, portanto, conhecimento no sentido do mundo 3. Popper, ao introduzir sua divisão em três mundos, situa o mundo 3 na função de mediação entre a mente individual e a realidade das coisas. Diz ele:
Deve-se admitir que o terceiro mundo, o mundo do conhecimento objetivo (ou mais geralmente, do espírito objetivo) é de feiturahumana. Mas deve-se acentuar que esse mundo existe em ampla extensão autonomamente (POPPER, 1975, p. 145).
Na medida em que se considera a autonomia e a constante interação do mundo da informação (conhecimento objetivo), com o mundo das coisas e dos estados da mente individual, o fundamento epistemológico que resulta daqui tem as propriedades necessárias para solucionar os dilemas epistemológicos com que se defronta a ciência da informação na base de seu paradigma social.
4 MUNDO 3 E A ABORDAGEM EVOLUTIVA
Na presente discussão foi analisada a teoria do mundo 3 de Popper, do ponto de vista de sua interpretação em termos informacionais. Mas isso já parece ter sido anunciado por outros estudiosos. Se este trabalho pode pretender contribuir de forma inovadora com o debate, tal contribuição consiste em argumentar em favor de que a teoria do mundo 3 acarreta, de forma inseparável, uma concepção evolutiva abrangente. Dizemos abrangente porque, se a teoria de Popper faz sentido, o modelo evolutivo da seleção natural se aplica ao ser humano e seus produtos, especialmente aqui os artefatos, a linguagem e a racionalidade. Assim, a cultura humana, que forma o mundo 3, é ela mesma a manifestação de certo estágio do processo evolutivo. De fato, o subtítulo da obra Conhecimento Objetivo (POPPER, 1975), não por acaso é “Uma abordagem evolucionária”.
Para os objetivos da presente discussão, importa propor como possibilidade de futura reflexão e pesquisas sistemáticas, algumas consequências decorrentes da abordagem evolutiva do mundo 3, reconhecida sua interpretação em termos de informação: Informação é algo que um ser humano criou (e comunicou). Sob o horizonte do mecanismo de evolução pela variação e retenção seletiva pode-se pensar na inversão de perspectiva: Um ser humano é algo que a informação criou. Isto é mais que uma alegoria, pois de fato a informação é a forma como um ser humano pode influenciar outro, distante no espaço ou mesmo através do tempo.
Reitere-se que o processo evolutivo não deve ser pensado ingenuamente como um melhoramento ou progresso. Especialmente, jamais deveria ser interpretado como um progresso em vista de interesses e objetivos das pessoas. O modelo evolutivo de variação e retenção seletiva explica a mudança como efeito cumulativo de mínimas variações ao longo de etapas suficientes de tempo. Do ponto de vista obtido pela adoção da perspectiva evolutiva, conforme autores como Dawkins (2007),e Dennett (1998), um ser humano pode muito bem ser explicado como algo que a informação cria para poder fazer cópias de si mesma.Traduzido em linguagem mais acessível, o mundo 3 molda os seres humanos, naquilo que há neles de característico: a cultura. Uma cultura é, então, um conjunto conexo de informações comunicadas, mais suas dinâmicas no espaço e no tempo. Uma vez que a evolução da cultura atingiu certa proporção no mundo, passou a alimentar a si mesma e a se beneficiar de qualquer oportunidade de replicação, selecionando as variantes mais bem adaptadas, e as que tenham maior poder de elas mesmas adaptarem o ambiente, reforçando este processo.
Já que esta característica se acelerou e complexificou imensamente com o advento da linguagem conceitual e de seus múltiplos artefatos, tem-se o mundo humano, distinto cada vez mais do mundo natural, não por seu modelo básico de replicação com variação e adaptação seletiva, mas pelo tipo de replicador que agora está em avanço: a informação, corporificada nos diversos artefatos que são seus suportes. Esta diferenciação ou emergência da cultura é descritível como a formação e as dinâmicas, características do que Popper chama de ‘mundo 3’. Popper é evolucionista em relação ao mundo 3, e propôs uma ‘epistemologia evolutiva’ de seleção natural, antes até de Dawkins e Dennett e, em muitos aspectos, independente do pensamento destes últimos. Por tudo isso, uma abordagem evolutiva da informação não é somente compatível com os fundamentos das ciências da informação, mas é uma consequência destes mesmos fundamentos:
Recordemos que Popper (1975) fala de “Epistemologia sem um sujeito conhecedor” (Popper, 1975). Floridi (2011) incorpora este aspecto da objetividade como existência independente, ao afirmar que a neutralidade dos dados “sustenta a possibilidade de informação sem um sujeito informado, para adaptar uma frase popperiana” (Floridi, 2011, p. 91, grifo do autor). Informação, na forma de livros, documentos, arquivos de som e imagem, obras de caráter estético, acervos de dados coletados conforme metodologias de investigação empírica, são criações humanas, decorrentes do propósito humano. Seus suportes também são. Mas isso não tira a validade do fato de que no conjunto, este mundo (o ‘mundo 3’ de Popper), emergiu do mundo natural, intermediado pela mente humana, e esta mente por sua vez é criada, viabilizada, formatada por este próprio mundo da informação.
5 CONCLUSÃO
O processo de comunicação e criação de informação recebe tratamento científico por parte de diversos campos do conhecimento. A ciência da informação, por sua vez,tem como missão auxiliar nas dinâmicas da informação no interesse de objetivos sociais como o progresso da ciência, ou a viabilização de recursos para atividades produtivas. Mas esta autoimagem não é incompatível, ao contrário, é decorrente, de uma imagem mais ampla, doplano geral da natureza que inclui a cultura e, no decorrer de vastos períodos de tempo, processos evolutivos. Nesta imagem, a ciência da informação tem a função de moldar o ambiente, trocando a informação selvagem pela informação cultivada e criada para interesses produtivos humanos. Da mesma forma que se troca a vegetação selvagem pelas lavouras e pomares, assim é o efeito da ciência da informação no ambiente da culturaem constante mudança.
Restam ser feitos dois comentários:
1. A ciência da informação pode interferir na dinâmica da informação, mas deve seguir o mesmo princípio básico a que toda informação está sujeita: replicação, variação e adaptação seletiva nos suportes artificiais e especialmente nas mentes humanas. A ciência da informação, quanto mais puder interferir na dinâmica da informação, mais irá interferir na cultura, e por via indireta, no tipo de ser humano que a informação irá criar.
2. Se ainda restar motivo de polêmica, então facilmente se pode recuar da denominação de ‘conhecimento’ para a de ‘informação’. Reparo que se faz a Popper, e com o qual ele possivelmente concordaria: O mundo 3 é habitado por informação semântica. Aí acaba-se obtendo o mesmo efeito desejado por Popper desde o início, que é o de restringir o avanço do subjetivismo. O resultado final é que toda a ciência da informação não organiza, nem recupera, nem busca ter algum efeito sobre itens da vida mental de sujeitos individuais. A ciência da informação não se inscreve como uma parte da psicologia do conhecimento, e sim da epistemologia, ou teoria objetiva da validade do conhecimento.
REFERÊNCIAS
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[1] Doutor em Filosofia pela USP (2004) e em Ciência da Informação pela UFSC (2021). Professor do Programa de Pós-Graduação em Gestão da Informação e do Departamento de Biblioteconomia da UDESC. Desenvolve pesquisas nos temas de Epistemologia, Ética, Leitura Crítica, Lógica e suas aplicações na CI e Combate à Desinformação.