Pontos (perdidos) para tecer a memória institucional dos anos 60 no
Tribunal de Justiça Militar do Rio Grande do Sul
Mariângela Nascimento Pagliarini[1]
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
mnpagli@gmail.com
Marcia Heloisa Tavares de Figueredo Lima[2]
Universidade
Federal do Rio Grande do Sul
marciahelolima@gmail.com
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Resumo
Estudo bibliográfico, teórico-exploratório sobre memória institucional e sua complexa relação com a memória histórica nacional. Teve por objetivo geral contribuir para a reflexão acerca do modo como abiblioteca do Tribunal de Justiça Militar do Rio Grande do Sul poderia analisar documentos sensíveis para organizar, preservar e disseminar as informações contidas nos processos judiciais históricos atinentes a fatos ocorridos de 1964 a 1985 de forma a torná-las disponíveis para pesquisas futuras. Apresenta breve reflexão sobre memória institucional e sua tensão frente à memória/história. Mostra, como exemplos de processos judiciais sensíveis relevantes, os que foram instaurados durante o regime de exceção de 1964, e alcançaram os chamados grupos “Os Onze da Brigada”, utilizando a metáfora dos “homens infames” de Michel Foucault. Por fim, postula a pertinência de manutenção deste tipo de processo para evitar o apagamento das informações e proporcionar futuras pesquisas. Reconhece lacunas não respondidas acerca da organização propriamente dita deste acervo, motivadas pelo período de fechamento das instituições no contexto da COVID-19, pandemia mundial, e aponta para a conveniência de prosseguimento da pesquisa ou novas pesquisas no rico acervo.
Palavras-chave: Memória institucional. Tribunal de Justiça Militar.Memória/história. Grupo dos Onze.
A CASE OF “INFAMOUS MEN”:
(Lost) points to weave the institutional memory of the 60s in the
Military Court of Justice of Rio Grande do Sul
Abstract
Bibliographic, theoretical-exploratory study on institutional memory and its complex relationship with the national historical memory. Its general objective was to contribute to the reflection on how the library of the Military Court of Rio Grande do Sul could analyze sensitive documents to organize, preserve and disseminate the information contained in the historical judicial processes related to facts that occurred from 1964 to 1985 to make them available for future research. It presents a brief reflection on institutional memory and its tension in relation to memory/history. It shows, as examples of relevant sensitive judicial processes, those that were instituted during the 1964 exception regime, and reached the so-called groups “Os Eleven da Brigada”, using the metaphor of Michel Foucault’s “infamous men”. Finally, it postulates the pertinence of maintaining this type of process to avoid erasing information and to provide future research. It recognizes unanswered gaps about the organization of this collection itself, motivated by the period of closure of institutions in the context of COVID-19, a global pandemic, and points to the convenience of continuing research or new research in the rich collection.
Keywords: Institutional memory. Military Court of Justice. Memory/history. Group of Eleven.
1 INTRODUÇÃO
A Constituição Federal recepcionou a estrutura de tribunais militares existentes antes de 5 de outubro de 1988 no Brasil. Nesta, a Justiça Militar do Brasil é constituída comoum foro especial exclusivopara crimes militares,excluídos os delitos civis dos militares, nos estados brasileiros com efetivo militar superior a 20 mil integrantes. Deste modo, há apenas três justiças especializadas militares em atividade no país: a Justiça Militar do Rio Grande do Sul, a Justiça Militar de Minas Gerais e a Justiça Militar de São Paulo. A Justiça Militar do Rio Grande do Sul, a mais antiga, anterior à Justiça Comum, datada de 1808. O Tribunal de Justiça Militar (TJMRS) foi criado em 1918. Em 2018, comemorou-se o centenário do Tribunal de Justiça Militar do Estado.
A memória do TJMRS é formada pelo efeito do conjunto de ações administrativas diversas que, no cotidiano da Instituição, convoca servidores e demandantes (advogados, partes envolvidas, juízes e público) a re-lembrar. A memória oficialdo TJMRS está alicerçada sobre sua importância como justiça especializada militar, sua antiguidade e sobre as figuras dos magistrados que ali atuaram. Na instituição é dada alta relevância aos antigos juízes, sobretudo àqueles magistrados que exerceram a presidência do Tribunal. Observa-se a preocupação com a manutenção da comemoração - comemorar significa lembrar junto - daqueles homens dignos de serem lembrados na instituição, o que pode ser observado nos corredores utilizados como galerias de retratos dos ex-presidentes, nos nomes dados aos plenários e na exposição em vitrines, dos objetos e documentos que lhes pertenceram.
No manuseio do acervo histórico do Projeto Memória, incorporado à Coordenadoria de Biblioteca e Memória do Tribunal (TJM/RS) foi possível observar que este conjunto de documentos não é visível como memória compartilhada ou afetiva, o que seria a “verdadeira” memória da instituição, apesar das informações históricas que possui. Desse conjunto documental, formado por processos judiciais históricos e habeas corpus, é possível extrair informações para incorporar e formar uma memória institucional mais abrangente e completa do que a atualmente visível e identificadora da instituição.
Seguimos a compreensão de Nora (1993), segundo a qual, a memória necessita de laços com o concreto para marcar fatos que queremos lembrar, e, nos lugares de memória contemporâneos, lugares híbridos de história e memória, de memórias próteses, são guardados vestígios, documentos e depoimentos, dentre outros, sempre relíquias preciosas que são, mais do que restos de felizes achados arqueológicos, escolhas institucionais e seleção(GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 1999).Partimos de uma impressão segundo a qual, a memória institucional oficial do Tribunal não está se valendo da memória prótese proporcionada pelo acervo documental histórico. Esse acervo pode ser convocado como um lugar de memória que unisse o grupo, pois embora seja alusivo, ali o passado estará evocado.
A memória oficial comemorativa “colonizada” pela história, é vulnerável a manipulações e utilizações. Recortada para manutenção e enaltecimento de estruturas de poder, não é mais verdadeira memória afetiva. Dessa maneira, os fatos contidos nos processos judiciais históricos possibilitam o enraizamento em um passado perdido, onde pode ser buscado o entendimento do “que era” em comparação ao “que é”, através das diferenças e singularidades com o presente.
No âmbito do TJMRS,ao examinar o acervo documental, destacam-se dentre os processos judiciais, alguns ligados a fatos históricos importantes, como a ditadura militar instituída em 1964: o caso do “Homem errado”, o caso do “Relógio dos 500 anos”, o caso do “Roubo das lojas”, além de outros que podem ser usados como fontes documentais primáriaspara a validação ou reconstrução da história do período, assim como observação metódica de mudanças sociais - a micro-história da vida cotidiana. Com base especializada poderia alicerçar, doravante, a reflexão institucional sobre a importância de preservar o passado no presente tendo em vista o futuro.
Esta reflexão teve por inspiração e foi feita sobre um grupo de pessoas processadas e, através da transcrição da fala de um dos protagonistas dos chamados “Grupo dos Onze da Brigada”, que foi encontrada em uma fonte secundária e que será apresentada no corpo deste relato. O nome “Grupo dos Onze” foi dado pelo número de participantes que formavam cada um dos grupos. Tais grupos foram criados durante a Campanha da Legalidade em 1961, por influência de Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul; pretendiam através de pressão popular que João Goulart assumisse como presidente da República, pois como vice-presidente eleito e, diante da renúncia do então presidente Jânio Quadros, este seria o caminho previsto na Constituição Federal de 1946, então vigente. Estes grupos pretendiam alcançar a reforma agrária no país e, também, a conscientização dos trabalhadores.
Estes processos podem ser considerados documentos/monumentos, pois de acordo com Le Goff (1990) são aqueles que podem iluminar, instruir e dar sinais. Para o autor: “Atendendo às suas origens filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação, por exemplo, os atos escritos.” (LE GOFF, 1990, p. 535).Os estudos relativos à memória das instituições datam do início dos anos setenta e continuam em amplo crescimento. Desta forma, é relevante a formação dessa memória institucional que representa a instituição. Através do aporte teórico necessário para o desenvolvimento desta pesquisa, do contato com as informações históricas dos documentos e da memória institucional denotada na instituição, esta pesquisa poderá contribuir no sentido de averiguar como estas informações jurídicas poderão somar na construção da memória institucional do TJMRS.
Esta pesquisa pretende, como contribuição social, tornar visível o conjunto documental de processos judiciais que foram destacados à sua época, seja por comoção social, por ineditismo ou por período de exceção política; através de um processo judicial histórico exemplar similar àqueles existentes no arquivo mantido pelo Projeto Memória, processo este recuperado em uma fonte secundária. Entende-se que as demandas judiciais envolvendo questões políticas do período 64/85 de membros da força policial militar estadual fazem parte do rol coberto pelo TJMRS[3]neste tribunal especializado e, hoje, dizem respeito à sociedade brasileira, quer sejam atuais ou históricas. No trato dos documentos buscou-se a autenticidade dos documentos e através da confiabilidade do teor documental se fez a análise do conteúdo informacional contido naqueles suportes. Observe-se que, em razão de vedação expressa no Código de Processo Civil vigente à época (assim como no atual), não podem existir dois processos iguais com a mesma causa de pedir, mesmo réu, o que configura litispendência[4] e implica na extinção de um dos processos. Por consequência deste instituto, os processos judiciais constituintes do acervo são originalmente únicos e sempre estiveram sob a guarda da instituição.
A relevância desta pesquisa para a área da Ciência da Informação está na consciência de que toda organização das informações visa facilitar o acesso aos documentos por pessoas, considerando-se arquivos e bibliotecas como espaços mantenedores de informações revestidos pela aura da memória, “lugares de memória” (NORA, 1993). Todo projeto de organização de acervos, qualquer seja sua natureza, deve ser construído sobre alicerces teóricos que busquem preencher as lacunas existentes de estudos nesta temática, contribuindo com informações vindas de um espaço raramente focalizado como os tribunais militares.
De início, já foi possível vislumbrar a singularidade do conjunto documental, no qual se conseguiu observar, inclusive, os processos judiciais do período de exceção política, historicamente muito relevantes, e que não são destacados pela instituição quando de suas manifestações sobre a história e memória institucional.
Na seção seguinte, traçamos o apoio da literatura especializada, usada para mostrar os conceitos de memória coletiva, social e memória das instituições, e, também, a tensão existente entre memória e história e a necessidade estabelecer políticas de informação.
2 MEMÓRIA INSTITUCIONAL: ARTICULAÇÕES TEÓRICAS
Optamos por um recorte seletivo de leituras sobre memória coletiva, memória institucional, documentos judiciais, organização e visibilidade de documentos históricos e da biblioteca como mantenedora de memórias para compreensão do porquê a biblioteca é o setor responsável por este tipo de documentos aqui tratados - documentos históricos de natureza arquivística. Mostra-se o que é, para a literatura das áreas de Ciência da Informação e Arquivologia, bem como de Biblioteconomia, a organização, a preservação e a disseminação de documentos e como podem ser aplicados ao conjunto documental histórico de processos judiciais, no espaço mantenedor de memórias, a biblioteca, e também, a legislação existente para preservação de acervos judiciais históricos.
Para finalizar, apresentamos nossa leitura pessoal acerca da noção dos “homens infames” do texto A Vida dos Homens Infames (1992), de Michel Foucault, e os relacionamos aos personagens interpelados nos processos judiciais em rastros deixados nos arquivos e bibliotecas, lugares que são de memória e história.
2.1 MEMÓRIA INSTITUCIONAL: TENSÃO ENTRE HISTÓRIA E MEMÓRIA
A memória sempre está em construção e essa composição é dependente da memória coletiva. Dessa maneira, precisamos dos grupos em que estejamos inseridos. Assim, os fatos e eventos ocorridos que são importantes, individual ou coletivamente, dependem dessa reconstrução coletiva da memória (HALBWACHS, 2006).
Lowenthal afirma que tomamos conhecimento do passado porque nos lembramos das coisas. Para aquele autor, a consciência do passado existe quando repetimos e recordamos acontecimentos e pessoas. Segundo o autor (1998, p. 75): “Toda a consciência do passado está fundada na memória. Através das lembranças recuperamos consciência de acontecimentos anteriores, distinguimos ontem de hoje, e confirmamos que já vivemos um passado”.
Ao falar de memória, Pimenta
afirma que “a memória faz parte, portanto, do imaginário partilhado
entre indivíduos e coletivos que na dinâmica do tempo produz, enuncia e significa
o que chamaremos de informação.” (PIMENTA, 2013, p. 151). Seguindo a visão
desse autor, o imaginário comum entre os indivíduos, do qual a memória faz
parte, permite a informação a qual é necessária para todas as nossas
realizações. Prosseguindo em sua proposição, Pimenta (2013, p. 155) afirma que
a memória necessita do acesso à informação para sua produção e preservação:
[...]sem memória não somos capazes de reconhecer determinada informação, da mesma maneira que não poderemos constituir conhecimento. [...] sem o acesso à informação, seja ela qual for para determinado fim, torna-se impraticável a produção e preservação da memória. Em ambas as perspectivas a memória pode, e deve, ser entendida como uma espécie de conhecimento. Seja ele sensível e individual, seja ele coletivo, científico ou político. (PIMENTA, 2013, p. 155).
Nora (1993, p. 9), ao definir a memória, enfatiza a memória e seu caráter dialético como “solda” que une os homens nos grupos vivos. No seu dizer, a memória é vívida e atual e aflora de grupos unidos em função desta memória viva. Para aquele autor: “A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas [...]” Conforme afirma Halbwachs (2006, p. 35) nossa memória está relacionada aos grupos que pertencemos, já que é feita de dados comuns que estão sempre em deslocamento entre de nós e os outros mutuamente. Seguindo a visão do autor (2006, p. 73) a memória social é aquela que é externa, uma memória histórica que apresentaria o passado como um esquema, portanto, a memória coletiva e a memória histórica/social são diferentes já que a primeira “[...] é uma corrente de pensamento contínuo, de uma continuidade que nada tem de artificial, pois não retém do passado senão o que ainda está vivo ou ainda é capaz de viver na consciência do grupo que a mantém”, enquanto a história produz divisões por períodos e não por grupos (HALBWACHS, 2006, p. 102).
Le Goff (1990, p. 475),desconsiderando a dialética entre memória verdadeira e memória prótese apresentadas por Nora(1993, p. 16),ao falar de memória coletiva defende que “a memória coletiva é um dos elementos mais importantes das sociedades desenvolvidas e das sociedades em vias de desenvolvimento, das classes dominantes e das classes dominadas, lutando todas pelo poder ou pela vida, por sobreviver ou por progredir”. Reconhece o caráter classista na luta pela memória, pois,conforme o autor, a memória serve de instrumento de poder das classes na sociedade.
A memória institucional é parte da luta para criar ou consolidaruma memória coletiva e é construída através da história das instituições, usando as informações internas através de registros feitos. Para que esta memória institucional se consolide, [e, talvez, “colonize” a memória social na busca da hegemonia] uma gestão documental nesta entidade é mais do que fundamental, éestratégica na luta pela memória, como veremos mais adiante no texto. O movimento de valorização da memória institucional começou a partir dos anos setenta e vem se fortalecendo, sendo prioritário que as empresas, organizações ou instituições reúnam suas informações.
Conforme Costa a memória é fundamental para no funcionamento das instituições:
[...]. É através da memória que as instituições se reproduzem no seio da sociedade, retendo apenas as informações que interessam ao seu funcionamento. Há um processo seletivo que se desenvolve segundo as regras instituídas e que variam de instituição para instituição. Tendo em vista que as instituições funcionam em rede no campo social, o limite de uma instituição é outra instituição. [...]. (COSTA, 1997, p.145).
Na opinião de Cellard são necessárias fontes, para resgate ou reconstrução da memória:
Por possibilitar alguns tipos de reconstrução, o documento escrito constitui, portanto, uma fonte extremamente preciosa [...]. Ele é, evidentemente, insubstituível em qualquer reconstituição referente ao passado relativamente distante, pois não é raro que ele represente a quase totalidade dos vestígios da atividade humana em determinadas épocas. Além disso, muito frequentemente, ele permanece como único testemunho de atividades particulares ocorridas num passado recente. (CELLARD, 2008, p. 295).
Em outras palavras, para o autor os documentos escritos são agentes de fatos passados, sendo por vezes apenas o que temos de registro de épocas e acontecimentos, sua constituição permite algumas vezes a recomposição de situações e períodos históricos, consistindo em fonte de caráter imprescindível. Sobre a necessidade de reunir as informações, dizem Rueda, Freitas e Valls:
Essas informações, encontradas em diversos suportes, devem ser reunidas, fazendo-se mais do que necessário a concentração destes acervos, armazenados e organizados corretamente com a finalidade de estarem disponíveis para consulta porque retratam não só as atividades de uma instituição, mas a época em que está inserida, o tempo e o espaço que ocupa na sociedade, facilitando-se assim o entendimento da instituição como um todo. (RUEDA; FREITAS; VALLS, 2011, p. 78).
Assim, conformeas autoras, “com a conscientização da importância estratégica da preservação da Memória Institucional as entidades perceberam que era preciso promover as mudanças organizacionais necessárias sem perder a sua identidade, e isto se reflete até hoje nos Centros de Memória.” (RUEDA; FREITAS; VALLS, 2011, p. 86, meu grifo). Mas Maury (2011, p. 50) considera que por isso é imprescindível uma política de registro da memória nas instituições, juntamente com a atuação dos agentes públicos na recuperação da história da instituição em que estão, para que assim haja um processo de preservação da memória do local. Quando a importância da existência de uma instituição é reconhecida, segundo Mendonça e Pinho (2016, p. 94), tal reconhecimento manifesta-se na preservação da história, dos valores e da identidade deste local. Na visão de Silva e Godoy (2017, p. 2276) “[...] é perceptível a importância da guarda e gestão dos documentos para conseguir acessar a informação, assim como recontar a memória institucional.” Os documentos, nesta visão, são mais do que suportes para a informação ali registrada, são verdadeiros documentos/monumentos(LE GOFF, 1990).
Para González de Gómez (1999, p. 9), os “testemunhos” ou “valores de informação atribuídos a cada artefato informacional tratado em um ambiente de informação realizam-se sob uma “indecidibilidade estrutural” sobre “qual é o caso em que a informação é o caso” para cada usuário ou leitor. Assim, nos lugares de informação (de guarda da memória e da história) são realizadas ações de informação que incidem sobre informações perceptuais, textuais ou documentárias e que sempre antecipam ou supõem as perguntas dirigidas ao sistema de informação ou aos documentos contidos. Seriam todos aqueles processos que conhecemos como seleção, registro, indexação, todas chamadasde ações de informação “àquelas que estipulam ‘qual é o caso em que a informação é o caso’”, sempre supondo e antecipando questões de informação (dirigidas aos serviços de referência presenciais ou virtuais).
Destacando o caráter de decisão e escolha que todas as ações de informação envolvem, existe, portanto, relação entre política e informação. Toda ação de informação é, ao fim e ao cabo, política:
Do ponto de vista da relação entre política e informação, não se poderia falar de um momento a posteriori no qual, já dada a informação, estabelece-se seu valor, prioridade ou finalidade de acordo com estruturas ou posições de poder; enquanto “informação” implique seletividade e escolha, a “politicidade” estaria presente no âmago da emergência de conteúdos, ações, tecnologias, produtos e serviços de informação. (GONZÁLEZ DE GÓMEZ,1999, p. 9).
Assim, entende-se o relacionamento entre informação e política quando é dado à informação já existente no mundo, valor, prioridade e importância pela sua guarda, preservação em uma estrutura onde será inserida, o que implica em perceber sua potência para informar, reconhecida pelo poder da seletividade realizada. Dizendo de outra maneira: a seleção está na raiz e no cerne de todas as ações de informação. E, seleção é escolha: na entrada do documento (ou não) no acervo, da escolha de um descritor que pode reunir ou afastar um documento de possíveis buscas, da separação de coleções em acervos “antigos” (com data de publicação até 1980, por exemplo), de permitir acesso livre ou reservado (ou sigiloso, no caso de documentos de arquivo), de permitir o empréstimo de um livro ou restringi-lo para consulta local ou, cada vez mais, digitalizar um documento antigo e disponibilizá-lo na rede, ou incinerá-lo... Seguindo a proposição da autora, vale anotar, nas instituições, as ações são frutos de acordos ou coercitivas:
As instituições, [...] se constituem como variáveis com diversos graus de valor, de modo que pode estender-se de uma ação instituinte, com um mínimo de acordo entre os participantes a uma ordem instituída e formalizada que pode ser coercitiva e de pretensões totalizadoras em seu domínio de intervenção. Os atores continuamente constituem e reconstituem as instituições através de suas ações e decisões. (GONZÁLEZ DE GÓMEZ,1999, p. 26, grifos da autora).
Mas, o caráter seletivo nas ações de informação não só se realiza na biblioteca como órgão ou setor, mas na totalidade das instituições. Para Frohmann é necessária a criação de políticas de informação. O autor diz, também, que a Biblioteconomia e a Ciência de Informação reconhecem que há limites para dar acesso amplo e irrestrito a todos, uma vez o poder institucional e a informação estão relacionados. Na visão do autor:
[...] a limitação mais importante imposta pela Biblioteconomia e a Ciência da informação em estudos de políticas de informação é a oclusão[silenciamento quanto às/ cerceamento] de questões relativas às relações entre informação e poder. O foco em problemas instrumentais e questões epistemológicas e preocupada em estabelecer e policiar fronteiras entre disciplinas desvia a atenção de questões de como o poder é exercido em e por meio das relações sociais mediadas pela informação, como o domínio sobre a informação é alcançado e mantido por grupos específicos, e como formas específicas de dominação especialmente aqueles de raça, classe, sexo e gênero estão implicadas no exercício de poder sobre a informação. (FROHMANN, 1995, online, tradução nossa).
O exercício do poder nas relações sociais através da informação é feito por grupos particulares e para obter dominação. Examinar os regimes de informação, através de pesquisa de política de informação, proporciona saber como iniciam, se fixam e exercem o poder. Segundo González de Gomez (1999, p. 27): “Em síntese, um regime de informação se caracteriza por sua complexidade e sua não transparência imediata, por ocorrerem conflitos, vontades plurais e efeitos não desejados.” Entende-se, através da proposição da autora, um regime de informação como um campo de multiplicidades.
Por meio da reflexão cruzada das posições dos autores até aqui discutidos, a reconstrução da verdade histórica (através de uma “memória histórica”) pode ser alcançada através da reconstrução de um regime da verdade, o qual é importante do ponto de vista teórico, que se reconheça a tensão existente entre este híbrido de história e memória que é a memória institucional com a vontade de verdade identificada por Michel Foucault em A Ordem do Discurso, publicado em 1970. Para o autor: “a vontade de verdade apóia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas, como a pedagogia, é claro como o sistema de livros, da edição, da biblioteca [...]” (FOUCAULT, 1996, p. 17). Assim, na vontade de verdade se sustenta a memória institucional, ela é história e “acreditação” - uma crença intelectualmente construída-, mas julga que é formada por pura história. A memória paira sobre a pirâmide institucional do poder como uma “aura” (Nora, 1993, p. 14), uma vontade, uma necessidade de memória, apenas. Esta “vontade”, ou esta crença de que a memória da sociedade ocidental está atendida pela guarda nos lugares de memória é sentida como “medo da perda”, reivindicada como “direito à memória” por parte de uns e uma consciência do “dever de memória” por parte de outros. Mas, como tema da Filosofia da Informação, este tema pode não estar aqui intuído e não aprofundado.
A memória das instituições públicas, conta sua história como organização e a história das pessoas que por ali passaram, sendo essa memória parte da memória coletiva daquelegrupo. De acordo com esta ideia, as instituições ao terem uma política de registro e recuperação de fatos, para construção de suas memórias, abandonam o caráter eletivo da comemoração do passado para torná-lo de caráter determinante da obrigação moderna e contemporânea de guardar para lembrar (NORA, 1993).
2.2 PROCESSOS SENSÍVEIS
Todos os acervos históricos necessitam de organização e preservação, a sua existência e conteúdo precisam ser disseminados para conhecimento histórico ou cultural da sociedade. Neste sentido, sua guarda e disponibilização, portanto são necessárias, importantes, fundamentais, pois garantem a permanência dos vestígios histórico-memoriais. Nesta perspectiva, as ações de informação são fundamentais, pois são parcelas do trabalho humano que constroem maneiras de auxiliar o acesso às informações para diferentes interessados seja para fins de reconstrução histórica ou alegação de direitos. Nesse sentido, lembramos que a Arquivologia, hoje autônoma, foi por muito tempo pensada como ciência auxiliar da História.
Os ambientes institucionais, especialmente os judiciais, vicejam através da documentação gerada ou agregada, o registro destas informações e o tratamento deste volume informacional necessitam de organização.
Os documentos históricos destas instituições, sua parte constituinte e sua responsabilidade na compreensão do “dever de memória” (NORA, 1993), também, necessitam de tratamento para garantirem a facilitação do acesso e para que a busca - indecidível a priori(GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 1999) - do historiador, usuário da informação, seja realizada.
Na visão de Louzada, o acervo documental preservado, organizado e disseminado possibilita que:
A preservação do acervo documental, suas formas de organização e disseminação, além de permitir o exercício imediato da cidadania, possibilita a construção e o resgate da memória coletiva, social, nos diversos níveis e leituras possíveis: ela será sempre uma construção e, na maior parte do tempo, são os registros dos discursos oficiais. (LOUZADA, 2012, p. 66).
Louzada defende que a preservação, organização e disseminação dos registros documentais permitem a construção e o resgate da memória e a prática da cidadania. De acordo com Vieira (2017, p. 7) a preservação e a conservação dos acervos exigem medidas e planos que não estão disponíveis nas instituições, muitas vezes apenas por fixação de prioridades. Para a autora o bibliotecário deve fazer o que puder para manter as obras preservadas até mesmo através de medidas simples como instrução dos usuários para manuseio correto, também defende a importância da incorporação destas medidas:
A preservação e o acesso a documentos históricos são de suma importância para o resgate e valorização da memória das instituições históricas e científicas. Para isso é necessário incorporar medidas que visem à preservação, recuperação e disponibilização dessas informações. (VIEIRA, 2017, p. 8).
Na defesa de Vieira, quanto a medidas de preservação e de acesso aos documentos históricos, enfatiza o reconhecimento e a importância da memória institucional. Já para os tribunais, conforme Macedo e Tolfo, a tarefa na administração de documentos é árdua, sobretudo quando já estão no terceiro ciclo vital[5]- a fase dos arquivos permanentes. Dizem os autores que:
Os Tribunais de todo país passam por uma tarefa árdua na administração de seus documentos pela dificílima demanda que representam no desiderato de sua preservação, quando já encontrados em seu terceiro ciclo vital. Na atualidade é crescente a existência de arquivos judiciais lotados por autos de processos produzidos em papel, ao longo do tempo, que deveriam servir de fonte de pesquisa ou efetivação do acesso à informação. É bem verdade que estão sofrendo os efeitos de sua guarda, na maioria das vezes precária, e mostrando-se por muito inutilizáveis, a ponto que se questiona: que acesso à informação se dá com folhas que mal podem ser tocadas, sob pena de se desconstituírem? (MACEDO; TOLFO, 2017, p. 712).
Para aqueles autores os tribunais do país estão abarrotados com processos em papel, e a guarda realizada não promove realmente o acesso à informação contida, motivo pelo qual deixam de ser fonte preciosa de pesquisas. Seguindo sua proposição, é prioritária a preservação dos documentos judiciais, pois:
Cumpre salientar que fatos ocorridos e que marcaram nossa sociedade estão registrados em documentos judiciais arquivísticos, museológicos e biblioteconômicos. É inexorável a necessidade de tal preservação, eis que, por meio da resolução de conflitos individuais e coletivos, o Poder Judiciário é coadjuvante - quando não protagonista - de transformações emblemáticas, como políticas, econômicas, científicas ou culturais que envolvem a sociedade. Cada processo traz em si uma história, história da vida privada, história da vida pública. (MACEDO; TOLFO, 2017, p. 714).
Os documentos judiciais trazem as marcas de transformações da nossa sociedade, através da resolução dos conflitos frente à lei, em outras palavras para Macedo e Tolfo trazem “em si” a história. Portanto, a proteção e o acesso aos documentos judiciaishistóricos possuem vital importância para valorizar e visibilizar a memória das instituições, desse modo medidas devem ser tomadas em relação à organização, à preservação e à disseminação do conteúdo destes documentos.
Por determinação do Conselho Nacional de Justiça através da Recomendação n. 37 de 15 de agosto de 2011 cuja ementa diz: Recomenda aos Tribunais a observância das normas de funcionamento do Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do Poder Judiciário - Proname[6] e de seus instrumentos, e da alteração na redação desta recomendação com a Recomendação n. 46 de 17 de dezembro de 2013 foram oficializados todos os pontos para classificação dos documentos judiciais. A Recomendação n. 37 traz em sua ementa:
Considerando a necessidade de assegurar a autenticidade, a integridade, a segurança, a preservação e o acesso de longo prazo dos documentos e processos em face das ameaças de degradação física e de rápida obsolescência tecnológica de hardware, software e formatos; CONSIDERANDO a necessidade de fomentar as atividades de preservação, pesquisa e divulgação da história do Poder Judiciário, bem como das informações de caráter histórico contidas nos acervos judiciais. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2011, grifo nosso).
Através destas Recomendações foi estabelecido, pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul - TJRS, o ano de 1950 como corte cronológico para guarda dos documentos judiciais. Também, a partir disto houve a criação de uma comissão para execução e avaliação para o descarte no acervo de processos, que foi denominada de Comissão Interdisciplinar de Preservação de Processos Judiciais Aptos a Descarte – COMINTER[7].
Para Carvalhêdo e Medleg (2008, p. 4) a documentação mostra a essência das atividades das instituições “apesar do descaso (intencional ou não) do Estado no gerenciamento de suas informações ou tendo realizado uma “limpeza” na documentação” e, também, “sua estrutura organizacional, suas relações com outras instituições, a sociedade, seus trâmites e interesses registram as transações”. Portanto, a manutenção do acervo histórico documental do que foi julgado dentro do Tribunal, que trata majoritariamente com a força policial militar do Estado, não deveria ser alvo de possível destruição, além do fato de não possuir um arquivista por formação para avaliação e organização do acervo.
Dentro do conjunto documental, formado por arquivos de processos judiciais e habeas corpus, existem os chamadosdocumentos sensíveis, pois alguns estão ligados à repressão do Estado no período da ditadura militar imposta em 1964.
2.3 OS HOMENS INFAMES
Após refletir-se sobre os problemas ligados à preservação de documentos sensíveis, nesta subseção apresentaremos nossa leitura sobre os “homens infames”, texto de Michel Foucault.
Michel Foucault, ao analisar registros do século XVIII na Biblioteca Nacional francesa (Bibliothèque Nationale de France ou BNF, localizada à época na Richelieu, número 58, em Paris)encontrou documentos/fragmentos do passado, que eram processos judiciais, cartas de prisioneiros, diários de apenados e teve a ideia de publicá-los quase sem retoques, disse que essas leituras trouxeram mais emoção que a literatura. Viu nesses registros antigos uma dupla referência por terem uma narrativa fácil e pela realidade dos acontecimentos relatados, encontrou nestes documentos ao mesmo tempo a beleza do estilo clássico e os excessos das frases dadas aos miseráveis. Durante a leitura, refletiu sobre existências, que chamou de “vidas ínfimas”, transformadas em cinzas em poucas frases, e decidiu restituir a sua dignidade através da publicação de textos pela intensidade que pareciam ter, procurando preservar o efeito contemporâneo de cada voz registrada no início da Modernidade.
Para recolher as informações nos registros impôs-se regras segundo as quais selecionou para publicar documentos produzidos por
“personagens realmente existentes, existências obscuras e desafortunadas, contadas brevemente em algumas frases, que não fossem relatos de anedotas ou patéticos e que tivessem feito parte da história daquelas existências (da infelicidade, da raiva e da duvidosa loucura) e que o choque das palavras e vidas ainda tivessem algum efeito.” (FOUCAULT, 1992, p. 94). “Era necessário que fossem existências reais, com lugares e datas e com homens em seus sofrimentos, ciúmes, clamores, que fossem atravessados pela realidade, onde as vidas reais foram representadas e onde o destino delas foi emparte decidido.” (FOUCAULT, 1992, p. 95).
Com isso, os personagens para o seu livro necessitavam ser obscuros e sem notoriedade, fadados a uma existência que não deixasse rastros; mas que tiveram um choque, um encontro com o poder, talvez “na vilania,” “na baixeza”, “no infortúnio.” (FOUCAULT, 1992).
Foucault entendia que essas vidas não podiam ser recuperadas em seu “estado livre”, pois estavam fixadas através das mentiras e relações do jogo do poder, no refúgio frágil das palavras, apenas uma “existência verbal” e manifestada através das palavras delas e para elas. É o poder que quer destruí-las que vai, também, lhes dar o clarão para que cheguem até nós. Selecionou de discursos registrados que sobreviveram a séculos de deterioração documental, verdadeiras lendas dos homens obscuros e os discursos que tiveram com o poder (FOUCAULT, 1992).
Desde o início a coincidência ou o acaso fez com que essas existências fossem vistas, o olhar do poder sobre um indivíduo obscuro, o acaso de um registro ter sido encontrado e lido e não outro, a sorte faz com que, entre tantos, pudesse agora manifestarpor escrito sua ira, aflição e vingança pelo choque com o poder que quis destruí-lo. Como são “vidas longe da fama” são, aparentemente, infames, “já não existem senão por via das poucas palavras terríveis que estavam destinadas a torná-los indignos, para sempre, na memória dos homens” (FOUCAULT, 1992, p. 103) e são estas palavras que o acaso preservou que lhes darão o retorno ao real deixando o sufocamento que lhes foi forçado.
Os textos colhidos revelaram nas frases uma violência e uma crueza, uma mesquinhez nas intenções; um teatro do cotidiano, já que com o nascimento do registro e seu acúmulo apareceu a memória crescente dos males do mundo, refletiram uma maneira de reger e formular o poder, o discurso e o cotidiano. No discurso do cotidiano são colocadas todas as vergonhas, variações pessoais e segredos, nos documentos apenas os gestos dos grandes não tinham escárnio, para os humildes o discurso diferia, por vezes com palavras rudes e violentas, de raiva, cólera paixão e rancor. Na sociedade ocidental a vida cotidiana estava presente no discurso apenas para narrar o “fabuloso”, o heroísmo e a aventura, até o nascimento de uma arte da linguagem no século XVII onde é buscado o que não tem glória, o infame, o mais oculto, comprometendo-se a produzir efeitos de verdade, estratégias do verdadeiro; “um discurso de poder” (FOUCAULT, 1992).
Para Foucault, A Vida dos Homens Infames pode se estender para outros tempos e outros lugares (FOUCAULT, 1992, p. 105).
2.4 RASTROS DOS HOMENS INFAMES NOS ARQUIVOS E BIBLIOTECAS
A biblioteca, um espaço informacional, um lugar de memória/história (NORA, 1993) pode agregar ao seu perfil a característica de guardiã de documentos históricos das instituições, e de modo consequente, de memórias institucionais; através do tratamento, manutenção e disseminação do conteúdo de acervos históricos. Dependendo das instituições em que as unidades informacionais estejam inseridas, podem ser visibilizadas como mantenedoras das memórias da organização.
Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que não há memória espontânea, de que é preciso criar arquivos, museus,bibliotecas, coleções, santuários, monumentos, de que é preciso manter aniversários, organizar celebrações públicas e pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais e são estes lugares que secretam, vestem, estabelecem, constroem, decretam, mantêm, pelo artifício e pela vontade, uma coletividade fundamentalmente envolvida em sua transformação e sua renovação (NORA, 1993, p. 13, grifo nosso).
As bibliotecas, dentre outras instituições e atividades, se constituem em lugares para reforço da identidade coletiva e preservação da memória. Sobre a legitimidade das bibliotecas na guarda de memórias, Verri defende a sua importância na tutela dos conhecimentos e dos saberes, de acordo com a autora:
As informações registradas em diferentes suportes, selecionadas, agrupadas e organizadas em bibliotecas, arquivos e museus, formam os lastros do conhecimento, dos saberes estruturadores da memória de indivíduos e de coletividades. Esses espaços ou lugares de memória, que demarcam, preservam, e que permitem a circulação da produção intelectual, científica e cultural da sociedade, têm nos documentos aí contidos o tempo e a duração de informações a serem interpretadas, apropriadas e memoriadas ou até expropriadas. (VERRI, 2012, p. 3, grifo nosso).
Infere-se que, dentro das instituições, as bibliotecas podem conservar os documentos históricos gerados pela entidade em suas atividades pregressas. Não basta a reunião, guarda, preservação e a conservação de papéis e livros. Para que bibliotecas se transformem em lugares de memória, deve existir um dever e um direito de memória mesmo não sendo fácil, uma intenção,uma consciência quase sagrada, uma obrigação de guardar, compartilhada pelos seres humanos que atuam e espalhada nos demais membros da organização, e não somente a intenção burocrática de guarda dos papéis para registro e futuras pesquisas históricas. Pode-se afirmarque memória não se cria por decreto ou uma assinatura em um gabinete.
A preservação dos processos judiciais históricos permite que a memória institucional confronte a história documentalmente. Neste sentido, a memória institucional é anárquica. É importante guardar processos exemplares para pesquisas futuras, pois através do seu uso será possível a reconstrução do regime da verdade para a reconstrução da verdade histórica.
O espaço da biblioteca não pode ser visto apenas como um lugar com premência de atualização para novas tecnologias, mas um lugar onde a organização, a conservação e a disseminação de registros históricos levam ao conhecimento e a reverberação das memórias coletivas.
Na próxima seção estão apresentados os métodos e as técnicas que foramusados na pesquisa, segundo sua natureza, sua abordagem, seu objetivo e seu procedimento, incluindo os recortes para exame neste trabalho.
3 METODOLOGIA
Esta fase da pesquisa realizou um estudo teórico através da análise bibliográfica visando construir um arcabouço teórico acerca da importância de preservação de alguns processos judiciais históricos sensíveisconsiderados fundamentais para a preservação de algumas narrativas de vidas que passaram pelo TJMRS.
Esta pesquisa é de natureza básica de cunho exploratório objetivando aumentar o conhecimento sobre arelação entre processos judiciais do período 1964-1985, documentos sensíveis e memória institucional, através da análise e identificação de informações históricas relevantes não só para a instituição, mas para toda a sociedade. Nós a consideramos básica também porque não há um compromisso formal do TJMRS no intuitode aplicar as considerações teóricas aqui feitas para sustentar as práticas de preservação do acervo arquivístico histórico do período sensível discutido.
A abordagem foiqualitativa e, em certo sentido, analítica, porque apresenta os fatos da investigação, através dos dados colhidos, procurado mostrar a importância dos processos judiciais históricos do TJMRS.
Quanto ao objetivo, a pesquisa foi de cunho exploratório para averiguação ou verificação de fatos para melhor entendimento e ampliação do conhecimento,
Pode-se afirmar que esta pesquisa foi feita no contexto social onde se insere e onde os fatos ocorreram, o TJMRS. O propósito, assim, foi construir uma argumentação reflexiva para mostrar a importância dos processos judiciais históricos do TJMRS como constituintes da memória institucional e a importância de sua visibilidade tanto para os sujeitos internos quanto para a sociedade na sua totalidade.
Quanto aos procedimentos, esta pesquisa desenhou-se como uma preparação teórico metodológica com vistas a uma pesquisa documental aprofundada, com análise dos documentos jurídicos públicosprimários de fontes originais. Para a pesquisa documental o procedimento preliminar do manuseio e leituras dos processos judiciais e o registro de informações a partir da observação e seleção dos dados já foi feita, assim como anotações às quais pretendia retornar em exames mais profundos que não ocorreram devido às regras institucionais de distanciamento social durante a pandemia de Sars-CoV-2.
Esta pesquisa foi iniciada com uma leitura (pré-análise) doschamados registros institucionais escritos, principalmente em processos judiciais e seus respectivos inquéritos policiais militares (IPM)[8]. Durante a mesma não houve envolvimento com os sujeitos da instituição, a não ser pela autorização de manuseio das mesmas com fins de pesquisa. O uso dos dados coletados foi autorizado mediante a assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
O locus do estudo desta pesquisa foi a Biblioteca Fernando da Silva Bastos do Tribunal de Justiça Militar do Rio Grande do Sul. A biblioteca foi fundada em 1972, e regulamentada a partir da resolução nº 58 de 2008; sua função é o atendimento prioritário das necessidades da Justiça Militar do Estado, no exercício de suas atividades jurisdicionais e administrativas. O Projeto Memória da instituição, com acervo histórico de livros e outros, está anexado ao setor formando a Coordenadoria de Biblioteca e Memória.
4 UM CASO DE HOMENS INFAMES: O GRUPO DOS ONZE
Os “Grupos de Onze” ou “Grupos dos Onze” como eram popularmente conhecidos, foram criados em anos anteriores ao golpe militar no Brasil, eram inspirados por Leonel Brizola, tiveram origem na chamada Campanha da Legalidade de agosto de 1961. O Movimento da Legalidade iniciou em 25 de agosto de 1961, pelo governador do Estado, Leonel Brizola e este é um dos fatos mais emblemáticos da história do Rio Grande do Sul.
Com a renúncia do Presidente Jânio Quadros em 25 de agosto de 1961, o vice-presidente João Goulart tomou posse em 7 de setembro de 1961, como era previsto na Constituição de 1946. Segundo verbete do Centro de Pesquisas e Documentação de História Contemporânea da Fundação Getúlio Vargas (2020): “os três ministros militares manifestaram-se contra a posse de João Goulart devido a suas posições políticas, consideradas de esquerda”. A posse só ocorreu após a adoção provisória do sistema parlamentar, pois a cisão militar já ocorrera logo após a renúncia e persistiu durante todo o governo de Jango.
Leonel Brizola apoiado pelo comandante do III Exército, José Machado Lopes, posição apoiado por vários oficiais-generais que serviam em outros pontos do país, dispôs-se a lutar pela posse do vice-presidente. Para tanto, manteve a chamada “Cadeia da Legalidade” do Palácio Piratini, com a multidão apoiando e tomando a Praça da Matriz e tendo a Assembleia Legislativa do Estado permanecido em sessão permanente (MEMORIAL DO LEGISLATIVO DO RIO GRANDE DO SUL, 2011).
Para Righi a motivação de Leonel Brizola ao criar os grupos era tecer uma pressão popular:
Brizola sentia que as reformas não passariam pelo Congresso que estava a representar os interesses dos grandes latifundiários e da elite brasileira, dessa forma decide forçar o presidente a implantar as medidas através da pressão popular, os Grupos de Onze protagonizaram essa pressão. Visavam também resistir caso houvesse um golpe, algo já anunciado por Brizola antes mesmo da concretização do fato em abril de 1964. No entanto, isto não foi possível, pois os Grupos foram tardiamente organizados e, portanto, não tiveram tempo para reagir como o esperado. Ao final, o que realmente aconteceu foi uma forte perseguição aos brizolistas adeptos e simpatizantes dos Grupos. (RIGHI, 2014, p. 2).
Estes grupos foram atingidos brutalmente pela repressão militar, pois eram formados rapidamente e estavam ligados inicialmente à reforma agrária, mas procuravam chegar a todos os trabalhadores visando à mobilização da classe. Os grupos foram vistos como um meio para uma revolução comunista no país, fato que motivou a perseguição implacável aos seus membros. Os grupos contaram com uma cartilha fundadora com o nome de “Organização dos Grupos de Onze Companheiros”, divulgada pelo jornal Panfleto e pela rádio Mayrink Veiga, que possuía maior alcance nacional e ouvintes da classe baixa. Esta cartilha pode ser vista no sítio do Arquivo Público do Rio Grande do Sul em: Resistência em Arquivo - Memória e História da Ditadura.
De acordo com Baldissera, a constituição dos grupos foi vista e declarada como ameaça:
A formação de Grupos de Onze, em sua maioria em regiões do interior do estado e nas proximidades de áreas com histórico de mobilizações de agricultores sem-terra, foi vista e divulgada como estratégia da guerra revolucionária e prova do avanço do comunismo no país, imaginário vigente na sociedade brasileira desde a Intentona Comunista de 1935 e exacerbado pela ocorrência da Revolução Cubana em 1959. A capacidade de Brizola de mobilizar multidões, demonstrada quando liderou a Legalidade, movimento pela posse de João Goulart, e suas ameaças de um levante popular caso as reformas de base não fossem aprovadas, concorria para o caráter de revolucionários subversivos imputado aos tais Comandos Nacionalistas e também para a forte repressão desfechada sobre eles a partir de 31 de março de 1964. (BALDISSERA, 2019, p. 478).
A formação dos grupos esteve ligada à capacidade de mobilização de Leonel Brizola, à vontade popular existente de participação na política e à força do brizolismo[9] no Rio Grande do Sul. A partir do golpe militar de 31 de março 1964 começou a perseguição aos chamados Comandos Nacionalistas - organizações populares de participação e engajamento político formados para influenciar as políticas de Estado.
Para Szatkoski, os Grupos dos Onze eram preparados para combates em um processo revolucionário. Segundo o autor os grupos:
[..] tiveram respaldo dos militantes do PTB nas mais longínquas comunidades, principalmente do interior do Rio Grande do Sul. Esses grupos seriam compostos por dez homens e um líder, treinados para a luta de guerrilhas. Caso fosse deflagrada a guerra civil, os seus chefes comunicar-se-iam, formando núcleos combatentes mais amplos, de acordo com a necessidade. Os grupos, além do potencial guerrilheiro, desempenhariam o papel de conscientizadores políticos de um processo revolucionário. (SZATKOSKI, 2003, p. 102).
A formação destes grupos alcançou o interior do estado, e era pretendido, se fosse necessário, um treinamento posterior para lutas de guerrilhas, em caso de guerra civil no país; seriam usados como uma força para a conscientização do povo. Ainda sobre a composição dos grupos. Szatkoski afirma:
Para compor esses grupos era necessário registrar em ata a organização do grupo, a qual era padrão, já vindo impressa no documento, onde eram registrados os nomes do comandante e também do subcomandante [...]. A sede do Comando seria a residência de qualquer um dos seus membros; posteriormente, far-se-ia a formação do grupo registrado, dos nomes e endereços dos componentes. O registro do comando em ata deveria ser comunicado ao deputado Leonel Brizola, a cargo da Rádio Mayrink Veiga, localizada na rua Mayrink Veiga, nº 15, no Rio de Janeiro, estado da Guanabara. (SZATKOSKI, 2003, p. 103).
Como visto aconstituição dos grupos era feita de maneira simples e a formação deveria ser comunicada ao gaúcho Leonel de Moura Brizola, que após o término do mandato de governador do Rio Grande do Sul em 1963 transferiu seu domicílio eleitoral para o então estado da Guanabara onde exerceu mandato de deputado federal até 1964, quando fugiu para o Uruguai devido à instalação do regime militar no país. A constituição dos Grupos de Onze devia ficar registrada em ata e a sede de cada um dos grupos sempre seria a casa de um dos membros.
A Brigada Militar do Rio Grande do Sul - BMRS teve presença ativa na perseguição aos grupos, de acordo com Baldissera:
O Rio Grande do Sul estava alinhado aos golpistas e responsabilidade de desbaratar os Grupos de Onze no interior do estado ficou por conta dos Destacamentos Especiais Volantes da Brigada Militar. [...]. O contingente da Brigada tinha, ainda, a missão de esclarecer as populações interioranas a respeito dos verdadeiros motivos do movimento de 1964. (BALDISSERA, 2019, p. 480).
Na caçada aos Grupos de Onze houve a constituição de destacamentos especiais para atuação no interior do Estado. Segundo aquela autora (2019 p. 480), para os destacamentos volantes foram treinados mil homens combatentes e enviados ao interior, chegando primeiramente nos lugares onde tinha havido apoio ao movimento da Legalidade.Na perseguição aos Grupos de Onze, policiais militares da BMRS foram acusados de pertencer ou incentivar a criação destes grupos dentro da organização militar, ficaram conhecidos como os Onze da Brigada, foram presos e acusados de subversão.
Quantos aos instrumentos utilizados na perseguição aos militares, Szatkoski (2003, p. 109) afirma que: “os inquéritos policiais militares fizeram parte do grupo de forças repressivas criado pelos governos militares na implantação da ditadura militar”. A autora enfatiza que:
Os IPMs tornaram-se uma fonte de poder de fato para o grupo de coronéis designados para coordenar ou chefiar as investigações. Configuravam o primeiro núcleo de um Aparelho Repressivo (AR) em germinação e o início de um grupo de pressão de oficiais linha dura dentro do Estado de Segurança Nacional. (SZATKOSKI, 2003, p. 110).
Os Inquéritos Policiais Militares foram alguns dos dispositivos utilizados para a perseguição e repressão feita por militares a militares dentro da BMRS. Para Silva (2019, p. 65): “Buscava-se com isso ‘legalizar’ a perseguição política, principalmente através dos IPMs, que eram coordenados por militares interessados na construção da legitimidade da existência de crime”. Deste modo, o acossamento aos militares suspeitos foi regular e desempenhado dentro da força policial militar estadual, gerando processos judiciais, habeas corpus e posteriores pedidos de indenização pelos atingidos pela violência da repressão do aparato estatalimposta pelo golpe militar de 1964.
A Comissão Estadual da Verdade do Rio Grande do Sul - CEV/RS, criada pelo decreto 49.380 de 17 de julho de 2012, em seu relatório final de 4 de dezembro de 2014 mostra que: “Dentre as principais ocorrências apuradas, destacam-se, em ordem cronológica: a brutal repressão aos militares legalistas, e aos integrantes dos chamados Grupos de Onze, logo nos primeiros dias após o golpe de estado de 1964[...]” (RELATÓRIO AZUL, 2014, p. 13). Consta no relatório também:
[...] desembocando a disputa política na quartelada que, em 1º de abril de 1964, instalou os golpistas no poder, já nos primeiros dias que se seguiram, começaram as prisões dos militares – das Três Forças e da Brigada Militar – leais ao governo trabalhista então derrubado. (RELATÓRIO AZUL, 2014, p. 20, grifo nosso).
Conforme o relatório final da CEV/RS, houve perseguição, e foi feita aos militares legalistas que eram fiéis a Leonel Brizola e pertencentes à BMRS. Quantos aos que foram perseguidos na ocasião, pelo regime militar, está colocado que: “[...] nos anos que se seguiram, eles e seus familiares foram vítimas de graves violações, que a Comissão Estadual da Verdade, em conjunto com a Comissão Nacional da Verdade, buscou resgatar [...]” (RELATÓRIO AZUL, 2014, p. 21).
O Relatório final da CEV/RS não aborda particularmente os processos judiciais sofridos pelos militares legalistas dentro da própria corporação BMRS, mas foi descrita a atuação dos brigadianos[10] na perseguição brutal aos cidadãos vinculados aos Grupos dos Onze em todo o Estado, em cooperação ao Comando do 3º Exército. Para a Comissão da Verdade foram feitas audiências, uma em Três Passos, RS, onde foram ouvidos policiais militares entre outros, que sofreram repressão por acusação de subversão e por pertencer ao Grupo dos Onze.
Na audiência de Três Passos em 11 de julho de 2014, prestou depoimento o soldado da BMRS Boaventura Nunes da Silva[11] fazendo o seguinte relato:
[...] Eu como servia com o chefe desse movimento o Sargento Alberi, servi junto com ele, eu fui convidado a acompanhar, ele era meu superior eu era soldado, mas eu lá não sabia o que era, no início, depois eu comecei e eu acompanhei. No fim me prenderam estive um ano preso em Passo Fundo no quartel, eu tinha recém casado fazia uns 5 meses abandonei minha família, minha família ficou abandonada, tinha um neném. Eles não me deixaram mais retornar em hipótese nenhuma, tive que ficar esse tempo todo lá sem me comunicar com a família e terminou a minha esposa me abandonando por causa disso, disseram que eu não voltava mais e ela era uma pessoa nova. Perdi minha família, sofri perseguições, servi. A proposta foi o seguinte, foi o meu sogro, o vigário e o prefeito para me trazer de volta. Aí o coronel disse: não ele não vai, não é assim, ele tem duas coisas que vai ter que fazer, se submeter, ele vai direto para a cadeia por 25 anos ou então vai servir vigiado, ele que escolha. Então eu achei melhor servir vigiado, vigiado não sei o porquê naquela época, mas fui vigiado porque não tive sossego durante 30 anos. Não tive sossego, foi perseguição e tudo o que era ruim dentro do nosso quadro militar, nossa empresa, aquilo era comigo mesmo, eu sofri muito, bastante, adoeci, trabalhei doente e não aceitavam baixar o hospital. Sofria muito do estômago, gastrite e hoje tenho o resultado disso, que foi eu ter de fazer uma ponte de safena e me deu esse AVC, tudo coisas que eu colhi naquela época, sofrendo. Sem ter direito a nada, reivindicar coisa alguma e perdi a minha família.
Tendo em vista essas colocações, é possível constatar o rigor da perseguição sofrida por esse soldado e os demais acusados e, também, o abalo que houve em suas existências. Foucault era frequentador assíduo do Arquivo Nacional francês, onde ia disciplinadamente, todos os dias (DIDIER, Foucault e seus contemporâneos, 1994), mas ao vasculhar registros antigosna Biblioteca Nacional da França ou Antiga Biblioteca Real Foucault encontrou “fragmentos de existências”.Destacou, na introdução da série de que foi editor, que resgatou rastros documentais daquelas vidas ínfimas e reais, de homens que viveram e morreram com os seus sofrimentos. Sua procura foi sobre o que atravessava os textos, representações das vidas dehomens obscuros e sem notoriedade cujas existências eram destinadas a não deixar rastros, mas que citassem lugares e datas no registro. Esses homens haviam recebido uma “lamentável grandeza” e foram atingidos pelo infortúnio, quando uma luz exterior os iluminou no seu encontro com o poder. Para o filósofo: o poder vigiou e perseguiu aquelas vidas e também gerou as palavras que restaram delas, não sendo mais possível encontrá-las em seu estado livre já que foram fixadas (FOUCAULT, 1992).
O acaso fez com que essas vidas fossem alcançadas pelo poder, mas também que fossem encontradas e lidas, podendo assim manifestar sua ira pelo sofrimento que o poder lhe causou, uma espécie de vingança. São “vidas infames a todo rigor” por existirem por meio da infâmia escrita e por poucas palavras que pretendiam torná-las indignas para sempre. O autor diz no texto sobre a Vida dos Homens Infames que aquelas vidas podem se expandir para outros lugares e tempos (FOUCAULT, 1992). Sabemos que esta prática de prestar atenção no miúdo das práticas sociais, a chamada micro-história tem também uma história.
Com a mudança da confissão e perdão oral elaborados pelo cristianismo, para um mecanismo administrativo de registro e acúmulo, sobrevêm as relações entre poder, discurso e o dia-a-dia das pessoas, para tanto foram criados instrumentos como petições e decisões da polícia entre outros. Estava criado o “discurso do cotidiano” com linguagem adornada e reforçando o heroísmo, a façanha, a aventura, mas também a perversidade; mais tarde se transforma e impõe a “evidência o que não é evidente” buscando o que não tem glória, o difícil de dizer, o proibido e perigoso: um discurso da infâmia (FOUCAULT, 1992).
A escolha pelo “Grupo dos Onze” foi feita sob o mesmo prisma de Foucault considerando a familiaridade como o período de tempo, o tipo de texto e por se pressupor “um acontecimento importante em que se cruzaram mecanismos políticos e efeitos de discurso.” (FOUCAULT, 1992, p. 107).
No acervo documental histórico do TJMRS, incorporado à Biblioteca Fernando da Silva Bastos, foi manuseado um processo judicial de 1964, contra militares por acusação de atividade subversiva, e dez habeas corpus, dentre os vários que indicam prisões feitas sobre a Lei de Segurança Nacional, solicitados para policiais militares investigados e presos dentro da corporação.Em tais processos Leonel Brizola e o Grupo dos Onze são citados.
Na impossibilidade de pesquisa local, por razão do fechamento por tempo indeterminado dos prédios públicos pela pandemia do Sars-CoV-2, está sendo usado para comparação o processo judicial digitalizado de n. 38.521 de 1964, que tem por pacientes policiais militares acusados de pertencer aos Grupos dos Onze Companheiros, podendo ser consultado no site Brasil Nunca Mais Digital sob nº 284, onde estão depositadas as imagens de suas 2020 páginas
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao término da pesquisa, existem vários aspectos a debater e refletir, no entanto a importância da preservação, dos acervos jurídicos históricos, ficou evidenciada neste estudo. Mostrou-se que nas instituições os acervos históricos por vezes vão para as bibliotecas e é quando se tornam possíveis mantenedoras da memória e reforço da identidade coletiva do local, através da organização, preservação e disseminação das informações históricas. Observando que os acervos judiciais brasileiros não são bem cuidados e a gestão documental do Rio Grande do Sul não é bem estabelecida, assim como a digitalização não promove o mesmo tipo de acesso que o papel permite através do manuseio do documento em sua constituição original e as características que o material assume pelo seu tempo.
De início observou-se os conceitos de memória e história e o seu caráter híbrido, e como agem sobre a constituição das chamadas memórias institucionais. No embasamento do quea memória institucional émemória/história e a tensão existente, foram usados principalmente os conceitos de Nora, sobre as memórias prótese e a construção e desconstrução constante que sofre e também a necessidade de laços com o concreto para firmá-la, sejam por vestígios, documentos ou depoimentos; estes conceitos foram inseridos na pesquisa ao pensarmos o Tribunal de Justiça Militar como um lugar de memória, e refletindo sobre a (re)construção da sua memória institucional através dos sinais de seus documentos históricos, atualmente relegados, como demonstram as fotos, e aindapassíveis de destruição. Tratar com memória institucional implica em lidar com o fato de que a memória institucional é muito mais história do que memória e que na luta por memória há embutida uma luta anterior, a luta pelo direito de dizer (o direito ao discurso). Aqui neste trabalho, destacamos muito mais da luta pelo direito de guardar e preservar processos judiciais que contam lutas de homens infames, apagados pela história oficial, o que se constitui em uma luta árdua.
Os documentos judiciais são uma das fontes mais usadas em pesquisa, pois oportunizam visibilizar indivíduos no seu cotidiano, as relações sociais, as condutas, as manifestações culturais, é, também, através da sua utilização podemos comparar realidades e épocas. Dentre esses documentos existem os processos sensíveis que devem ser mantidos para a prática da cidadania, para os quais existem procedimentos estabelecidos para conservação e gestão documental.
Mas, principalmente, nos dedicamos a dar fundamentação teórica para respaldar o trabalho da biblioteca com o acervo: espera-se ter obtido êxito no intento.
Também refleti sobre o poder de seleção dos bibliotecários e arquivistas e sobre estes homens que passaram de obscuros a infames pelo encontro ou contato momentâneo (choque) com o poder que lhes destroçou as vidas e, cujo registro documentário pode jogar-lhes um feixe de luz (FOUCAULT, 1992). Por consequência, tive intenção de fazer um estudo teórico para ajudar a construir projetos de memória em que estes homens não sejam mortos pelo poder mais uma vez. Durante o estudo foi encontrada a transformação da existência de homens obscuros para homens infames. Isso aconteceu quando o poder os iluminou com um clarão, ou, talvez, lhes deitou sua sombra, vigiou, perseguiu e puniu e também gerou as palavras que lhes restam. Ao acaso esses indivíduos foram alcançados pelo poder, assim como ao acaso foram encontrados nesta pesquisa, mostrando que o parcial registro judicial de vidas de homens infames pode-se constituir em uma categoria de reflexão analíticaestendida a outro lugar e tempo. Foram usados como símbolos destes homens infames, aqueles que pertenceram ou foram acusados de pertencer ao “Grupo de Onze”, homens que tiveram seu trajeto de vida anônimo cruzado pelos mecanismos de poder e discurso. Estes homens, policiais militares, não estão inseridos na história/memória do TJMRS, onde é dada prioridade aosvencedores, aos gloriosos, na figura de seus magistrados e longevidade, relegando toda a história que liga à contravenção criminal contida nos processos judiciais; mesmo sendo a razão de seu funcionamento os julgamentos e respectivos processos judiciais.
Nós aqui apenas tangenciamos as noções de direito e dever de memória e, também, reconhecemos lacunas não respondidas, o que atribuímos à impossibilidade de retornar fisicamente à biblioteca e realizar uma pesquisa empírica que permitisse a recuperação de diversos processos similares àquele aqui narrado pelo inesperado fechamento do local em março do presente ano por força do distanciamento social imposto pela necessidade de priorizarmos os cuidados em nome da vida durante a pandemia de Sars-CoV-2, mas acreditamos que esse projeto de pesquisa abre a oportunidade de aprofundamento de estudo pela relevância do tema e a oportunidade da reflexão sobre o apagamento de registros históricos. Analisando o presente projeto e seu tempo de duração, quer seja pelas leituras ou pela bibliografia, podemos dizer que abre a possibilidade de trabalhos futuros dentro do acervo documental permanente que ainda não está completamente tratado ou explorado para pesquisas, assim como, o estudo sobre o direito e dever de memória nas instituições.
Encerramos este trabalho com a certeza de, ao abrirmos a cortina do passado, preparamos trabalhos de memória/história para o futuro. De que outra forma conheceríamos a história destes homens humildes ‘infames”, que desgracadamente tocados pelo poder, dormiram para sempre? Homens obscuros que o poder marcou como indignos, e com crueza lhes legou as mais duras e aviltantes palavras. Escrevemos especialmente fazendo distinção aos militares participantes de Grupos dos Onze, que por acreditarem e pretenderem uma forma mais igualitária de sociedade foram perseguidos pela corporação da qual faziam parte, marcados desse modo pelo infortúnio.
Com o depoimento colhido da Audiência da Comissão da Verdade, reconhecemos a tristeza e os castigos impostos pelo poder àqueles que ele encontra, sendo que a isso devemos somar as palavras nos registros escritos em processos que os tornaram “infames” para sempre na memória dos homens.
O Sr. Boaventura Nunes da Silva, um soldado humilde, destinado a não ter fama alguma, a ser um homem infame,desgraçadamente marcado pelo choque que teve com o poder através da perseguição que sofreu dentro da BMRS, faleceu e adormeceu para sempre em 29 de março de 2017.
REFERÊNCIAS
BALDISSERA, M. A. Terrorismo
de Estado e os Grupos de Onze companheiros
no Rio Grande do Sul. História Debates e Tendências, Passo
Fundo, v. 19, n. 3, p. 477-493, set/dez 2019. Disponível em:
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[1]Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestranda em Ciência da Informação.
[2]Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutora em Ciência da Informação.
[3] Um convênio firmado entre a União e os Estados, em 24 de maio de 1917, em virtude do qual as Brigadas Estaduais foram consideradas forças auxiliares do Exército, abriu caminho para a Lei Federal nº 3.351, de 3 de outubro de 1917, que autorizou o julgamento dos oficiais e das praças das polícias por elementos das suas corporações, nos crimes propriamente militares. Em conseqüência, o Decreto nº 2.347-A, de 28 de maio de 1918, estabeleceu os Conselhos de Disciplina, organizados extraordinariamente, um Conselho Militar permanente para o primeiro grau e, como instância revisora, o Conselho de Apelação, que iniciou os trabalhos quando da assinatura da primeira ata, em 19 de junho de 1918. A Lei Federal nº 192, de 17 de janeiro de 1936, reorganizou as polícias militares dos Estados, concentrando-as na manutenção da segurança pública, esvaziando-lhes competências militares e considerando-as reservas do Exército Nacional. A Lei determinou que cada Estado organizasse a sua Justiça Militar, o que foi executado apenas por São Paulo (1937) e Minas Gerais (1946) – o Rio Grande do Sul já possuía seu Conselho de Apelação. (TJMRS , 2019).
[4] Através do princípio constitucional da segurança jurídica foi criado o instrumento da litispendência. A litispendência evita que duas ações idênticas sejam analisadas por visões diferentes, ocasiona menos custos públicos e, também, não permite que uma pessoa seja processada duas vezes pelo mesmo fato.
[5]Documentos produzidos há mais de 25 anos.
[6] A Gestão Documental no Poder Judiciário é o conjunto de procedimentos e operações técnicas referentes à produção, tramitação, uso, avaliação e arquivamento de documentos institucionais produzidos e recebidos pelas instituições do Judiciário no exercício das suas atividades, independentemente do suporte em que a informação encontra-se registrada.
[7] A COMINTER foi instituída pelo Ato n. 021/11-P e tem como atribuições receber e analisar sugestões e proposições relativas à preservação de processos passíveis de descarte, bem como definir critérios e procedimentos para a seleção e preservação de documentos e processos judiciais que, conforme a Tabela de Temporalidade, se encontram aptos a descarte. Foi criada para complementar a atuação da Comissão Permanente de Avaliação e Gestão de Documentos, e ambas, junto com o Memorial do Judiciário do Rio Grande do Sul e os Serviços de Arquivos Judicial e Administrativo, fazem parte do Projeto de Gerenciamento do Acervo Arquivístico no âmbito do Planejamento Estratégico do Poder Judiciário do Estado.
[8]Pode ser definido como procedimento sumário destinado a reunir os elementos necessários à apuração de uma infração penal - no caso, um crime militar - e de sua autoria.
[9] Ideologia que se solidificou com a figura carismática de Leonel Brizola.
[10] Como são conhecidos os soldados militares da força militar estadual do Rio Grande do Sul.
[11]Nome completo divulgado pelo Relatório da Comissão Nacional da Verdade (p. 600) em audiência de caráter público disponível para visualização na Web.