REGIME DE INFORMAÇÃO POLIFÔNICO:

Por um contraponto a noção de desinformação em ciência da informação

 

Gerson Moreira Ramos Junior[1]

Universidade Federal do Espírito Santo

g.ramosjunior@gmail.com

 

Patrícia Veronesi Batista[2]

Universidade Federal do Espírito Santo

veronesi.pb@gmail.com

 

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Resumo

 

O intuito do presente trabalho é discutir o uso do termo desinformação pelo campo da Ciência da Informação (CI). A palavra, desinformação, passou a ser utilizada nos últimos anos – mais notadamente após a eleição de Donald Trump a presidência dos Estados Unidos da América, cargo que ocupou entre os anos de 2016 a 2020 - para caracterizar um comportamento pautado no compartilhamento de notícias falsas via redes sociais digitais, majoritariamente, e, por meio de técnicas de comunicação que almejam fazer usuários de determinada ferramenta de comunicação, acreditar em uma notícia falsa.  No entanto, julgamos que o emprego do termo não consegue explicar de forma clara como ocorre ou, se é possível, determinarmos via estudos do campo da CI (informação como dimensão física, informação como dimensão cognitiva, informação como dimensão intersubjetiva social) que exista um fenômeno ou um processo que desinforme sujeitos expostos a determinada informação. Julgamos haver uma contradição no termo, que pode contribuir para uma tábula rasa explicativa sobre como se processa a validação de determinados conteúdos informativos, ou seja, sob quais fundamentos éticos, marcos regulatório e práticas consuetudinárias os sujeitos nesta arena digital produzem, se apropriam e disseminam informação.

 

Palavras-chave: Desinformação. Regime de informação polifônico. Neoliberalismo. Redes sociais digitais.


POLYPHONE INFORMATION REGIME:

As a counterpoint to the notion of disinformation in information science

 

Abstract

 

The purpose of the present work is to discuss the use of the term disinformation by the field of Information Science (CI). The word, disinformation, has been used in recent years - most notably after the election of Donald Trump to the presidency of the United States of America, a position he held between the years 2016 to 2020 - to characterize a behavior based on the sharing of fake news via digital social networks, mostly, and, through communication techniques that aim to make users of a certain communication tool, believe in fake news. However, we believe that the use of the term cannot clearly explain how it occurs or, if possible, determine via studies in the field of IS (information as a physical dimension, information as a cognitive dimension, information as a social intersubjective dimension) that there is a phenomenon or a process that misinforms subjects exposed to certain information. We believe that there is a contradiction in the term, which can contribute to an explanatory tabula rasa on how the validation of certain information content is processed, that is, under which ethical foundations, regulatory frameworks and customary practices the subjects in this digital arena produce, appropriate and disseminate information.

 

Keywords: Disinformation. Polyphonic information regime. Neoliberalism. Digital social networks.

 

 

1 INTRODUÇÃO

 

Nós chegamos a esse problema após incursionamos no campo via os trabalhos indexados na Base de Dados em Ciência da Informação - BRAPCI e revocarmos 164 artigos no intervalo dos anos 2016 a 2022, esse levantamento foi realizada entre os dias 30 de junho de 2022 a 20 de julho de 2022. Analisamos os campos título, resumo e palavras-chave para identificarmos, na seleção de materiais que se propuseram a buscar uma definição para o termo desinformação, como esse termoé utilizado. Identificamos que com maior recorrência o termo desinformação é usado como sinônimo de informações mentirosas. Podemos afirmar, portanto, o uso do termo desinformação “como sendo uma informação falsa, enganosa e/ou imprecisa, que pode ser criada propositalmente com vistas a prejudicar a alguém ou ser uma informação repassada erroneamente” Moura; Furtado; Belluzzo, (2019). Essa definição de Moura; Furtado; Belluzzo, (2019) no artigo intitulado, desinformação e competência em informação: discussões e possibilidades na arquivologia, condensa bem a forma como o campo de forma geral vem utilizando a noção de desinformação, como uma ação proposital ou não proposital, porém danosa.

Outra definição muito utilizada, por expandir o escopo do conceito para a ambiência web e as redes sociais digitais, toma o termo desinformação como o compartilhamento de notícias falsas via redes sociais digitais majoritariamente, por meio, de técnicas de comunicação que almejam fazer usuários de determinada ferramenta de comunicação, acreditar em uma notícia falsa. Heller; Jacobi; Borges, (2021).

No entanto, quer seja com dados verdadeiros quer seja com dados falsos, fato é que há um processo informativo em que se identifica umemissor, um destinatário e um meio pelo qual um conjunto de dados é enviado e decodificado, se aproximando da definição proposta por Shannon; Weaver, (1975) na Teoria Matemática da Comunicação (TMC) que no campo da CI ficou conhecida também como, Teoria da Informação (TI).

Para os autores da TMC, a questão central do processo comunicativo mediado por aparelhos é garantir a reprodução mais exata possível da mensagem originada pelo emissor ao destinatário. Na concepção daTMC, portanto, “[...] a palavra informação é utilizada com um sentido especial, que de maneira alguma deverá ser confundido com o seu uso generalizado. Especificamente informação não deve por equivoco, ser compreendida como significado” (SHANNON; WEAVER, 1975 p. 9).

Podemos compreender a afirmação dos autores como uma não atribuição prévia de sentido para a informação comunicada que, dependerá, da seleção e da capacidade decodificadora do indivíduo a quem se destina a informação. Deste modo, concebe-se o homem como um sujeito sócio-histórico, formado dialogicamente pela interação com os outros e com o meio que o circunda.

Outra abordagem trata da dimensão cognitiva da informação inspirada na Teoria do Conhecimento Objetivo de Popper, (1975) que inspirou pesquisadores da CI a desenvolverem uma abordagem cognitiva da informação, conforme nos apresenta Araújo, (2010)

 

A equação de definição da informação, que também se tornou “clássica”, como a medida da alteração do estado de conhecimento de um sujeito, elaborada por Brookes, insere a informação numa dimensão bastante diferente do modelo anterior. Para se definir informação, portanto, é preciso se considerar o estado de conhecimento (o que se conhece, o que se sabe): a informação não é apenas a sua manifestação física, o registro material do conhecimento – é preciso ver, também, o que está na mente dos usuários. (ARAÚJO, 2010 p. 96).

 

O que se compreende por informação, sob o ponto de vista da dimensão cognitivista, é como o indivíduo que recebe determinada informação a correlaciona com uma série de conhecimentos prévios que o ajudará a elaborar a informação recebida e fazer as inferências que julgar pertinente e relevante. Submetendo a noção que se atribui ao termo desinformação em CI na contemporaneidade - um comportamento pautado no compartilhamento de notícias falsas via redes sociais digitais, majoritariamente, por meio de técnicas de comunicação que almejam fazer usuários de determinada ferramenta de comunicação acreditar em uma notícia falsa - à dimensão cognitiva da informação, nos parece que a equação que define desinformação supõe que uma informação recebida por um indivíduo ao ser confrontada com o arcabouço de conhecimentos prévios deste indivíduogerará um processo de desinformação sobre o fenômeno abordado.

Por fim, tratando da dimensão intersubjetiva social da informação que Araújo, (2010) identifica a partir de meados dos anos 1990 com os avanços tecnológicos e a entrada da internet no cotidiano das pessoas, conduziram a CI a compreender a dimensão colaborativa dos processos de representação da informação. Esse processo foi teoricamente absorvido pelo campo à luz do desenvolvimento da teoria da análise de domínio por Hjorland e Albrechtsen, (1995), que permitiu ao campo da CI avançar conceitualmente, a partir, da noção de comunidades discursivas para melhor compreender como grupos distintos estabelecem seus critérios de organização e representação da informação.

Pensando, a partir, da dimensão intersubjetiva da informação, portanto, é possível estabelecer critérios de como a desinformação se organiza e é representada? Acreditamos, nos limites deste trabalho, que tais critérios só podem ser estabelecidos se extrapolarmos os limites da CI e passarmos a realizar uma espécie de análise dos conteúdos, ao invés, de análise sobre as áreas e grandes áreas do conhecimento que podem, adequadamente, representar o conteúdo informado, sob o risco de incorrermos em atribuições morais sobre o conteúdo das informações disseminadas.

Nossa proposta é problematizar o uso do termo desinformação, pois, compreendemos que o seu emprego corrente não explica o fenômeno de disseminação e amplo consumo de notícias falsas via redes sociais digitais e no ambiente web. Considerando que fomos tomados por uma avalanche tecnológica que acelerou as práticas comunicacionais e informacionais, por vezes, absorvidas acriticamente como avanço natural da caminhada humana na linha da história.

A esfera virtual opera para que nos comuniquemos por um conjunto de signos que promovem um processo de fetichização da vida, apresentando-a como uma atração a ser compartilhada numa busca hedonista falseada, e potencializada pela contínua disseminação de dados a uma velocidade de circulação que acelera nossa percepção do tempo, e nos encerra numa espécie de presente contínuo. Estimulado pela criação de pautas de engajamento pelas mídias, compreende-se mídias como, as diversas instituições que se valem das tecnologias específicas para realizar a comunicação humana Moretzsohn, (2017).

Tendo tal cenário em perspectiva o entendimento sobre como a informação é reconhecida e disseminada no mundo digital e, principalmente, nas redes sociais digitais, passa pela compreensão das novas ambiências informativas que as tecnologias digitais e internet possibilitaram, pela compreensão de comoos agentes políticos, econômicos e sociais atuam nessa ambiência, sob quais regras e regulações recebem, decodificam e se apropriam das informações que trafegam nesse ambiente polifônico, hipertextual e imagético.

 

2 A EMERGÊNCIA DE UM REGIME DE INFORMAÇÃO POLIFÔNICO

 

Retomando a ideia de Regime da Informação consagrada em Gonzáles de Gomes, (2012) como

 

[...] um regime de informação seria o modo informacional dominante em uma formação social, o qual define quem são os sujeitos, as organizações, as regras e as autoridades informacionais e quais os meios e os recursos preferenciais de informação, os padrões de excelência e os modelos de sua organização, interação e distribuição, enquanto vigentes em certo tempo, lugar e circunstância. Como um plexo de relações e agências, um regime de informação está exposto a certas possibilidades e condições culturais, políticas e econômicas, que nele se expressam e nele se constituem (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2012, p. 43)

 

Podemos afirmar que estamos presenciando uma mudança no Regime de Informação vigente no mundo Ocidental, considerando que “cada nova configuração de um regime de informação resulta e condiciona diferentes modos de configuração de uma ordem sociocultural e política” (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2012, p. 31). A dinâmica das redes sociais digitais possibilitou que a caraterística polifônica da sociedade se libertasse dos grilhões estamentais, permitindo uma equipolência de vozes. Por certo há fragilidades nessa ruptura, uma vez, que está instada em base capitalista neoliberal, todavia, é inequívoco que as redes sociais digitais trouxeram à baila a possibilidade de um mesmo evento ser informado sob óticas e vieses opostos de forma simultânea, uma novidade na interação informativa e comunicativa que alterou os modos como a sociedade se relaciona com a informação.

Ao aproximarmos o que diz Gonzáles de Gómes, (2012) e Bakhtin (2003, 2006) sob a síntese Regime de Informação Polifônico o que intentamos é propor um caminho interpretativo para o momento informativo e comunicacional do tempo presente, em que, a palavra (signo social) não é exclusividade de poucas vozes selecionadas dos estratos sociais dominantes.

A perspectiva bakhtiniana nos aponta que as palavras, os enunciados e os diálogos que compõe as variadas cadeias comunicativas, emergem dos fenômenos sociais, das específicas (e únicas) situações comunicativas e dos sujeitos concretos em suas múltiplas interações, sofrendo influências constantes de inúmeras vozes equipolentes, que, diante da palavra (concebida como signo social) e dos enunciados polifônicos (dotados de vozes autônomas, plenas de valor), formam-se e transformam-se as consciências individuais Bakhtin (2003, 2006).

Por essa razão, defendemos a possibilidade de estarmos sob um regime de informação polifônico, com potencial de apresentar um fato sob os mais variados aspectos, numa perspectiva de representação facetada de determinado fenômeno, esgarçando os diferentes aspectos nele contido e dotandode informaçõessuficientemente adequadas à esfera pública, para que seus sujeitos constituintes possam formar juízos e produzirem conhecimentos e consensos válidos, desde que estejam sob uma base ética informacional, para tanto, faz-se necessário compreender as maquinações que colonizam e racionalizam o mundo da vida. Nesse sentido, o uso do termo desinformação reduz as possibilidades interpretativas dos problemas postos e desconsidera a potencialidade informativa de se ter um fenômeno sendo interpretado e informado por múltiplas vozes.

Compreendemos assim que a ideia de um regime de informação polifônico, abarca estudos sobre racionalidade à imposta pelos meios, dinheiro e poder, sobre o mundo da vidaHabermas (1989) com vistas à reorientação da esfera pública para uma racionalidade comunicativa, possibilitando consenso entre os atores sociais, por meio de um conjunto de regramentos da informação disseminada no ambiente digital e pelo estabelecimento de uma ética informacional que se contraponha ao poder econômico, que macula as ações comunicativas da vida humana, tornando-a uma prática meramente utilitária no processo de acumulação do capital.

Nesse cenário, podemos afirmar que novos modos de interação social (as redes sociais digitais)estão predominantemente alinhados aos interesses da elite do atraso que “fazem é o jogo de um capitalismo financeiro internacional e nacional ávido por ‘privatizar’ a riqueza social em seu bolso”(SOUZA, 2017, p.13). Por essa razão, importa a CI discutir a ética da informação circulante em ambiente web para conseguir discernir os vieses ideológicos que se manifestam nas trocas informativas e comunicativas e conseguir desvelar suas intencionalidades.

O diálogo com enunciados existentes mostra-se fundamental, pois a partir deles, outros passam a compor a cadeia comunicativa da área em questão, podendo contribuir com novos enunciados, que estão ainda por serem construídos, de modo que todos surgem em resposta àqueles que os precederam. Esse processo só se concretiza mediante a compreensão dialógica, ativa e responsiva da palavra, do signo ideológico inserido em seu contexto de produção, exigindo do indivíduo a sua contrapalavra em relação ao que foi dito, isto é, exigindo posicionamentos a partir dos quais se lançam novas camadas enunciativas, que orientam e são orientadas por esse ininterrupto encadeamento e alternância de vozes equipolentes que se somam no decorrer da história humana.

Desta forma, o alcance da compreensão depende da capacidade de tomada de posição, de emissão de contrapalavras (respostas em forma de réplicas) diante dos enunciados dos outros, diante das convergências e das divergências ideológicas que desestabilizam as concepções de mundo autocentradas Bakhtin (2003, 2010). Logo, a adjetivação do conteúdo informado pelo outro como uma não informação ou uma desinformação, reduz a possiblidade de desestabilização desses mundos autocentrados via a ação comunicativa.

 

3 O CONSERVADORISMO DA DESINFORMAÇÃO

 

Os indivíduos se constituem na relação com o que lhes é exterior, ou seja, com outros indivíduos, com outras perspectivas informativas, tendo em vista discursos dialógicos (no sentido da troca informativa) e polifônicos (polifônico aqui pensado como sendo vozes implícitas e explicitas nos discursos), cabe ressaltar, estabelecidos sob uma situação ideal de discurso, instado, portanto, na sinceridade, veracidade, inteligibilidade e justificabilidade, tal como situa Habermas, (1989). Sendo assim, argumentam Bezerra, Schneider eCapurro, (2022) no recente artigo, O arco teleológico da ética da desinformação: dos pomadistas de Machado de Assis aos negacionistas da pandemia, sobre o uso do termo desinformação em oposição ao termo informação.

 

“[...] o entendimento de “informação” como “dar uma forma (substancial) à matéria para comunicar alguma coisa a alguém” (CAPURRO; HJORLAND, 2007, p. 158), que caracteriza a transição do uso do conceito de informação do medievo para a modernidade, isso nos autoriza a compreender que toda in-formação significa um risco de des-informação, bem como uma possibilidade explícita de deformar algo com o objetivo de prejudicar alguém. Logo, a ‘desinformação também informa’, no sentido de dar forma a algo, ainda que esse algo seja uma ‘deformação’ da verdade – em outras palavras, uma mentira. Neste sentido, o debate ético sobre a desinformação deve perscrutar a mentira e analisar as condições e contextos em que seu uso pode ser justificado sob um ponto de vista moral, como momento necessário de qualquer ética da informação concebível (BEZERRA, SCHNEIDER e CAPURRO, p. 326, 2022).

 

Nesse sentido, compreendemos que a CI pode contribuir para a explicação do fenômeno de disseminação e amplo consumo de notícias falsas via redes sociais digitais e no ambiente web, através de estudos que desvendem como é o modo informacional dominante nesse regime de informação, que a internet e as tecnologias digitais inauguram no fim do século XX e como a carência de regramento, marcos legais e definição de seus aspectos éticos informacionais podem contribuir para que, neste ambiente, e sob um regime de informação maculado pelo capital, haja uma desvirtuação do sentido de informação, como elemento potencial para a transformação de estados anômalos do conhecimento Radamés Linares, (2005).

As demandas consumistas e predatórias são vastamente reproduzidas nos conglomerados midiáticos e nas redes sociais digitais, orientando a interação informativa e comunicativa dos usuários numa produção contínua de estímulos de consumo. Lima, (2012) alerta para a necessidade do capital de impedir que o indivíduo produza a si mesmo, ao apropriarem-se do tempo liberado pelas economias do tempo de trabalho para explorarem os sentidos e vontades do sujeito, sendo as redes sociais digitais uma via pela qual a fetichização[3]do indivíduo é efetivada. Assim sendo, as estratégias informacionais que pretendem atingir uma comunicação de massa, se darão no intuito de incutir desejos, medos e preconceitos, bem como, reforçar sentimentos já presentes em alguma medida nos indivíduos impactados por uma notícia falsa que circule no ambiente web. É sob essas bases que se afirma o avanço do uso de mentiras, sobretudo, em relação a temas políticos partidários.

Na perspectiva de Lynch, Cassimiro (2022) a questão da desinformação utilizada para caracterizar um comportamento pautado no compartilhamento de notícias falsas via redes sociais digitais majoritariamente, por meio, de técnicas de comunicação que almejam fazer usuários de determinada ferramenta de comunicação, acreditar em uma notícia falsa, foi introduzida no Brasil a partir de 2015, sob forte influência da experiência realizada por Steve Bannon[4] durante o processo eleitoral estadunidense.

A fórmula de manipulação dos sentimentos dos herdeiros de grupos sociais, outrora dominantes política e economicamente, prescreve aglutiná-los em um contingente reacionário que, impactado pelas mudanças sociais e sentindo-se ameaçado com os avanços progressistas sobre a ordem patriarcal, religiosa e racista estaria pré-disposto a endossar conteúdos, mesmo que falsos, que reforcem seus anseios nostálgicos de retorno a um tempo em que havia autoridades naturais (a igreja, o patriarca, a família nobre) numa clara preocupação de manterem suas condições de privilégios. 

Ainda na trilha de Lynch, Cassimiro (2022) o sucesso da disseminação de mensagens baseadas em dados falsos se deve ao uso de técnicas fascistas de propaganda em massa e por um exímio uso das tecnologias digitais de comunicação, assim como fizeram os fascistas na década de 1930 com o rádio e o cinema, por exemplo. Assim os estudos sobre desinformação devem assimilar quea mentira é empregada como recurso para a manipulação ideológica, no intuito de perpetuar a opressão de classe, de gênero, étnica, racial.

Por outro lado, o uso que se mostrou corrente e comumente dado pela CI ao termo desinformação não explica adequadamente as táticas usadas na guerra narrativa contemporânea que usa informação, incluindo informação mentirosa ou manipulada, na disputa por consciências e reduz as possibilidades interpretativas dos problemas reais do que chamamos neste artigo de regime de informação polifônico, pois desconsidera a potencialidade de um momento de alargamento da instância informativa, no qual, temos o mesmo fenômeno sendo interpretado e informado por múltiplas vozes e numa velocidade torrencial.

A rede social digital amplifica a possibilidade de grupos minoritários se organizarem em coletivos e passarem à arena informativa também como comunicadores e não como objetos dos grandes conglomerados ligados à elite que pautam o que é relevante ser informado e comunicado. À medida que isso acontece, temos grupos de diversas orientações produzindo conteúdo e buscando estabelecer relações dialógicas com a sociedade que os validam e os refutam sistematicamente, o risco é estarem, quase que exclusivamente, sob efeitos da racionalidade imposta pelos meios, dinheiro e poder, sobre o mundo da vida e como essa racionalidade capitalista neoliberal impulsiona práticas informativas antiéticas, servindo como o mola propulsora do negacionismo, dos movimentos antivacina, antidemocrático e

 

[...] convertendo a sadia popularização da desconfiança nas autoridades, característica do pensamento moderno, numa mistura indigesta de ceticismo ignorante, presunçoso e preguiçoso em relação às autoridades modernas – estado de direito, ciência, imprensa – com dogmatismo apaixonado em relação àquelas do tipo pós-moderno – políticos midiáticos fanfarrões, pseudointelectuais de internet [...] (BEZERRA, SCHNEIDER e CAPURRO, p. 328, 2022)

 

Desta forma, nos parece que as soluções para os problemas da desinformação, enquanto comportamento pautado no compartilhamento de notícias falsas via redes sociais digitais majoritariamente, por meio, de técnicas de comunicação que almejam fazer usuários de determinada ferramenta de comunicação, acreditar em uma notícia falsa, não será dado pela infraestrutura capitalista neoliberal, através de ferramentas de checagem de fatos, limitações do alcance e do impulsionamento de notícias pelas plataformas, o antídoto contra a onda reacionária antidemocrática, pode vir a ser o veneno para frear um progressismo futuro. Portanto, insistimos na urgência estudarmos as causas evidentes deste problema, o capitalismo e sua aversão a diversidade.   

 

4 CONCLUSÃO

 

Propomos neste artigo discutir a noção de desinformação mais abordada na CI que a trata como, um comportamento pautado no compartilhamento de notícias falsas via redes sociais digitais majoritariamente, por meio, de técnicas de comunicação que almejam fazer usuários de determinada ferramenta de comunicação, acreditar em uma notícia falsa. Argumentamos que a luz dos estudos do campo da CI (informação como dimensão física, informação como dimensão cognitiva, informação como dimensão intersubjetiva social) não se pode afirmar haver uma diferenciação entre desinformação e informação, no que se refere a sua forma de transmissão, recepção e processamos cógnitos e intersubjetivos sociais. 

Em oposição a essa noção de desinformação, discutimos a ideia de estarmos sob regime de informação polifônico pelo qual um fato, sobretudo os noticiados no ambiente das redes sociais digitais, tem possibilidade de ser comunicado sob múltiplas perspectivas, por diferentes atores sociais que apresentam uma equipolência de vozes, possibilitando o esgarçamento dos diferentes aspectos contidos nessa informação e abastecendoà esfera públicapara que seus sujeitos constituintes possam formar juízos e produzirem conhecimentos e consensos validados. Todavia, é preciso que se garanta que as ações comunicativas dessa esfera pública estejam sob uma base ética informacional, para tanto, é necessário compreender como as estruturas colonizantes do capital neoliberal se relacionam com o mundo da vida.

Sendo assim, é preciso compreender que a pressão das pautas progressistas dos grupos maioritários que foram minorizados pela estrutura colonizadora gera uma onda reacionária por parte daqueles que sempre tiveram privilégios do Estado e o usam como apêndice para manutenção de privilégios.

A discussão precisa caminhar para o estabelecimento ético informacional no qual se garante a manutenção da polifonia (um avanço decorrente das lutas sociais), mas que corrija a intervenção dos meios, dinheiro e poder sobre essa esfera pública, permitindo a construção de uma sociabilidade não subordinada ao capital exclusivamente, desvelando o impacto da narrativa neoliberal sobre o Estado e atuando para manter vivo o debate político e o direito ao contraditório.

 

REFERÊNCIAS

 

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[1]Universidade Federal do Espírito Santo. Mestre em Ciência da Informação, licenciado pleno em história e graduando em biblioteconômia.

[2]Universidade Federal do Espírito Santo. Mestra em Educação, licenciada plena em letras e bibliotecária.

[3]“O fetichismo é o exemplo mais simples e universal do modo pelo qual as formas econômicas do capitalismo ocultam as relações sociais a elas subjacentes, como, por exemplo, quando o capital, como quer ser entendido, e não a mais-valia é tida como a fonte de lucro” (BOTTOMORE, 2001, p. 150).

[4]Ideólogo da nova direita radical populista e foi o principal estrategista de Donald Trump, na campanha presidencial estadunidense de 2015.