O LUGAR DA DESINFORMAÇÃO NA COGNIÇÃO SOCIAL

OU COMO LIDAR COM PROPRIEDADES DA COGNIÇÃO QUE ABREM ESPAÇO PARA A FALSEABILIDADE

 

Suely Mara Ribeiro Figueiredo[1]

Universidade Federal do Tocantins

suelyfigueiredo@uft.edu.br

 

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Resumo

 

Segundo o neurocientista Miguel Nicolelis (2020), responsável por exoesqueletos movidos a partir de comandos mentais, os processos de desinformação fazem parte da cognição social. A delegação do processamento de conteúdos mentais a outras cognições ou redes cognitivas consideradas mecanismos confiáveis de produção de crença e a atração da espécie humana por informações simbólicas, que só existem entre cérebros com linguagem, são compulsões intrínsecas ao sistema informacional complexo que nos origina e, por suas teleodinâmicas, sempre oferecem brechas para articulações informacionais incoerentes e até mesmo prejudiciais. Frente a tal constatação, interessa-nos focar na elaboração de narrativas que, por conhecerem a origem cognitiva da desinformação, melhor possam interromper e rearranjar tais processos de falsificação. Há interesse em investir nessa compreensão pois, por sua cientificidade e atualidade, ela pode alavancar esforços no combate à desinformação, dar subsídios para a desarticulação de mecanismos tidos como confiáveis e evidenciar características da cognição enquanto processo social que inclui a divisão de tarefas cognitivas e a corresponsabilidade. É objetivo desta pesquisa analisar as citadas compulsões e embasar intervenções compromissadas com interesse social. A filosofia da informação como nos apresentam Floridi (2011) e Deacon (2012), oferece um panorama teórico afinado aos objetivos visados. Nesse viés, indivíduos são subsistemas especializados na modelagem linguística (racional, semiótica) de conteúdos mentais, originados na percepção e na aprendizagem, a fim de torná-los acessíveis e úteis ao sistema a que pertencemos.

 

Palavras-chave: Cognição. Desinformação. Filosofia. Linguagem.

 

Abstract

 

According to neuroscientist Miguel Nicolelis (2020), responsible for exoskeletons powered by mental commands, disinformation processes are part of social cognition. The delegation of mental content processing to other cognitions or cognitive networks considered reliable mechanisms of belief production and the attraction of the human species for symbolic information, which only exist between brains with language, are intrinsic compulsions to the complex informational system that originates us and, because of its teleodynamics, it always offers gaps for incoherent and even harmful informational articulations. Faced with this observation, we are interested in focusing on the elaboration of narratives that, by knowing the cognitive origin of disinformation, can better interrupt and rearrange such processes of falsification. There is interest in investing in this understanding because, due to its scientificity and relevance, it can leverage efforts to combat disinformation, provide subsidies for the disarticulation of mechanisms considered reliable and highlight characteristics of cognition as a social process that includes the division of cognitive tasks and the co-responsibility. The objective of this research is to analyze the aforementioned compulsions and support interventions committed to social interest. The philosophy of information as presented to us by Floridi (2011) and Deacon (2012), offers a theoretical overview attuned to the objectives pursued. In this bias, individuals are subsystems specialized in linguistic (rational, semiotic) modeling of mental contents, originated in perception and learning, in order to make them accessible and useful to the system to which they belong.

 

Keywords: Cognition. Misinformation. Philosophy. Language.

 

 

 

1 INTRODUÇÃO

 

Segundo o neurocientista Miguel Nicolelis, responsável por exoesqueletos movidos a partir de comandos mentais, os processos de desinformação fazem parte da cognição social. A delegação do processamento de conteúdos a outras cognições ou redes cognitivas, consideradas mecanismos confiáveis de produção de crença, e a atração da espécie humana por informações simbólicas, que só existem entre cérebros com linguagem, são compulsões intrínsecas ao sistema informacional complexo que nos origina e que, por sua teleodinâmica, abrem espaço para articulações informacionais incoerentes e até mesmo prejudiciais.

Buscamos aqui, a partir desse cenário, modelos de intervenções que possam dificultar a desinformação, pois a percebemos como uma erosão das relações comunicativas, como a entropia inexorável a todo sistema complexo que, não podendo ser de todo evitada, deve ter seus efeitos minimizados ao máximo e suas consequências retardadas a todo custo, já que apontam para a degenerescência homeostática da humanidade.

Examinamos o conceito de cognição social como a entendem a neurociência e a filosofia da informação, detendo a análise nas propriedades que deixam lacunas para a falseabilidade. A seguir, tentamos nos colocar filosoficamente frente a este contexto na tentativa de vislumbrar argumentos que possam trazer mais robustez, e com isso mais eficiência, às tentativas de desmantelar as redes de desinformação.

Entendemos a desinformação como todo processamento de informação que, por engano ou intenção, se afasta das exigências da modelagem cognitivamente constituídas. O processo de modelagem é uma função sistêmica da cognição. Elaboramos modelos do máximo possível das relações de nosso organismo com outros e com o ambiente. Tal modelagem se consolida em reações, imagens, memórias e certezas. E é com base em tal consolidação que cada mente orienta seu agir no mundo.

Há interesse em investir nessa compreensão pois, por sua cientificidade e atualidade, ela pode alavancar esforços no combate à desinformação, dar subsídios para a desarticulação de falsos mecanismos tidos como confiáveis e evidenciar características da cognição enquanto processo social que inclui a divisão de tarefas cognitivas e a corresponsabilidade. É objetivo deste artigo analisar as citadas compulsões e embasar intervenções compromissadas com interesse social.

Por fim, tentaremos construir sentidos, a partir deste panorama, que colaborem com as modelagens informacionais que interessam aos humanos e ao ecossistema a que pertencemos.

 

2 PROPRIEDADES DA COGNIÇÃO QUE ABREM ESPAÇO PARA A FALSEABILIDADE

 

Nas palavras de Nicolelis (2020, pág. 10)

 

no princípio havia apenas um cérebro primata. E de suas profundezas, graças às misteriosas tempestades eletromagnéticas – originárias de um emaranhado de dezenas de bilhões de neurônios moldado por uma tão inédita quanto única caminhada evolucionária -, a mente humana surgiu.

 

A cognição humana é um sistema complexo que envolve, necessariamente, todas as mentes e o ambiente em que vivem. Não há manifestação de um “eu” nem consciência de uma subjetividade em casos de humanos que sobreviveram sem serem socializados, ou seja, sem aprenderem uma linguagem na primeira infância. Os registros destas chamadas “crianças ferais” deixam claro que, sem uma linguagem, não entramos na cognição humana.

Isso porque a cognição humana, além de necessitar de configurações moldadas pelas relações com o mundo, promove um processamento de informações para além dos dados dos sentidos e das disposições genéticas, informações que temos que aprender com outros falantes obrigatoriamente. A cognição humana é a única que processa signos simbólicos. Signos simbólicos são os que só existem entre mentes humanas. São os clássicos exemplos da professora do fundamental ao explicar os substantivos abstratos: todos que desapareceriam do planeta caso o homem não existisse.

Conceitos como beleza, justiça, verdade, possibilidade, esperança, filosofia e informação só existem enquanto ideias entre humanos. Inclusive os significados de conceito e ideias. E de significado.

Uma das distinções entre a cognição humana e as praticadas por cérebros de outras espécies é a exclusiva, quase ilimitada, atraente e poderosa capacidade de processar informações que só existem entre mentes, mas que trazem um enorme ganho na tarefa de perceber antecipadamente as intempéries que ameaçam a sobrevivência. O processamento simbólico mostrou-se um ganho evolutivo que só em nós emergiu.

Cientes de que o que chamamos de cognição é uma condição social, podemos então partir para a análise de propriedades que, dadas as características dos sistemas complexos, interferem na percepção, construção e comunicação do que identificamos como desinformação.

 

 

 

2.1 MECANISMOS CONFIÁVEIS DE PRODUÇÃO DE CRENÇA E BRAINETS

 

 No modelo mental desenvolvido por Nicolelis, os cérebros humanos foram evolutivamente configurados para modelarem o entorno de forma compartilhada. Afinado à bioantropologia do cientista cognitivo Terrence Deacon (2011), o neurocientista reconhece que a cognição humana começa a se configurar geneticamente durante a gestação mas nasce incompleta, continuando a ser esculpida pelo menos até a adolescência, com indícios de que tal configuração possa se estender à vida adulta, quiçá até a morte.

É a linguagem que nos habilita a participar da cognição social. Organicamente isso significa que nos tornamos não só capazes, mas também compulsivos na função de captar, processar e disponibilizar informações para o sistema social. A linguagem e sua racionalidade embutida formatam e preparam o compartilhamento dos resultados individuais e nossas disposições mentais agem para que isso aconteça.

A humanidade ser o único sistema de processamento simbólico funda nosso tipo de cognição distribuída que, diferente da praticada pelos animais, não se restringe às imposições físicas do mundo, sendo delineada também por estruturas linguísticas de signos cujos referentes só existem enquanto recortes semânticos que fazem sentido para nós. Só cérebros humanos podem associar a sentença “a justiça é importante”, por exemplo, a seu significado.

Mentes processam muito pouco isoladamente, ou seja, sem precisar ou contar com o que está na cabeça de outras pessoas, de outras redes de conhecimento ou descarregado no mundo. Limitam-se ao gerenciamento de funções orgânicas, como respiração e digestão, e de ações que dispensam o ambiente e a linguagem, como espirrar e coçar. Para todo o resto pensamos linguisticamente, processamos culturalmente e agimos a partir de um ambiente modelado pelas gerações anteriores que nos restringe e orienta.

A divisão do trabalho que caracteriza a formação das primeiras sociedades hominídeas engloba a cognição distribuída que se estende a signos simbólicos. Mentes humanas se articularam para agir no mundo de uma forma inédita até então, a simbólica. A neurociência hoje detecta que uma das consequências dessa concertação foi a configuração de mecanismos confiáveis de produção de crença.

Por limitações neurológicas e de tempo, o processamento em cada mente não pode se dedicar à modelagem de todo o entorno, do universo por completo e seus detalhes. Isso esgotaria os recursos materiais e energéticos do organismo. Então, a mente instrui o cérebro a delegar parte do processamento, ou seja, da cognição, para um mecanismo confiável de produção de crença, podendo ser este mecanismo outra pessoa, alguma rede, instituição ou similar. E será a experiência sensório-simbólica individual que levará cada mente a eleger seus mecanismos confiáveis.

Imagine que precisemos de um conhecimento técnico sobre eletricidade para resolver um problema. Não seria uma opção estudar a física da eletricidade, se aprofundar na prática do assunto e resolver o problema? Até seria, mas é bem mais funcional – sistêmico, orgânico - chamar alguém que já detenha tal conhecimento, delegando a ele o papel de mecanismo confiável para solucionar a questão.

O perigo aparece quando, uma vez delegada parte de nossa cognição a esses mecanismos, paramos de averiguá-los, de testá-los na experiência, nos acomodando a confiar no mecanismo escolhido. No exemplo acima, caso o eletricista fosse incompetente, não teríamos como saber e correríamos risco por isso. Está aí aberta a brecha para a desinformação.

Uma forma grave dessa acomodação cognitiva é a eleição de brainets como mecanismo confiável de produção de crença. Brainets são um recurso característico da cognição de compartilhamento. Nicolelis demonstra que cérebros articulados para a realização de uma tarefa começam a disparar suas sinapses sintonizadamente por um efeito chamado de espelhamento neuronal.

Simplesmente cérebros, quando submetidos a uma tarefa em grupo como cercar uma presa ou evitar um ataque, sintonizam suas ações com uma dose surpreendente de utilização de informações que estão distribuídas entre as mentes, uma capacidade de antecipar a ação do outro e com isso melhor articular as ações para atingir a meta comum.

 

Uma vez que uma nova ideia sobre como construir uma ferramenta é gerada por um indivíduo ou pequeno time de colaboradores, [...] a ressonância e o contágio motor garantirão que essa nova visão se espalhe e contamine (quase como um vírus) um número elevado de outros indivíduos do grupo social. Esse verdadeiro recrutamento mental é responsável, então, pela criação de uma brainet coesa voltada à confecção de um utensílio que melhora os métodos empregados tanto no processo de manufatura como no acúmulo de conhecimento e da experiência obtidos por todo um grupo social humano, bem como a distribuição desse patrimônio intelectual para as futuras gerações. (NICOLELIS, 2020, p. 48)

 

No caso humano, somos capazes de criar brainets pelo disparo de símbolos. Nossos cérebros se sintonizam em torno de uma abstração, uma ideologia ou algo desta natureza. Identificamos brainets duradouras, como religiões e ciência, e brainets passageiras, como um jogo ou a leitura de um texto.

A ameaça da desinformação se fortalece quando elegemos brainets como mecanismos confiáveis de produção de crença. A fragilidade configuracional dos signos simbólicos, que se travestem de verdade apenas por uma reconhecida coerência entre mentes, dão a algumas brainets exatamente a falta de compromisso com as restrições ambientais que caracterizam as informações confiáveis. Dar a uma ideia que parece verdadeira a apenas um subconjunto de mentes o status de mecanismo confiável de conhecimento é empoderar uma fonte perigosa de desinformação.

Como agravante, dado que brainets são sistemas informacionais de inúmeros elementos, há uma grande possibilidade de tal rede apresentar o que a neurociência chama de vírus informacional: uma disfunção do fluxo informacional da própria brainet que gera informações completamente distorcidas da realidade. A mente aprisionada a esta brainet torna-se incapaz de perceber contradições e irracionalidades, uma vez que já a elegeu como mecanismo confiável.

Essas características da cognição social devem ser levadas em conta em nossos esforços para identificar e combater a desinformação. Os mecanismos de produção de crença, se não reavaliados ciclicamente, podem se afastar da confiabilidade em direção à falseabilidade sem que se perceba.

Não é raro mentes defenderem pontos de vistas irracionais, incoerentes e até mesmo absurdos sem ter a capacidade de ver a contradição ou de ouvir qualquer explicação contrária. A delegação cognitiva, quando se realiza plenamente, deixa a mente que delegou surda, cega e inatingível pela argumentação. A desinformação, então, se instala. Principalmente quando o mecanismo confiável são brainets duradouras cujas nuvens de informações, pela incomensurabilidade, estão condenadas ao erro probabilístico.

 

2.2 A ATRAÇÃO PELO SIMBÓLICO

 

O processamento de informações realizado pelo cérebro humano é, como já citado, o único capaz de modelar signos simbólicos. Deacon chama a atenção para uma redefinição de signo simbólico, uma vez que a arbitrariedade entre signo e referente não o define completamente, como sugere a semiótica peirceana ao classificar os signos em icônicos, indiciais e simbólicos.

Para Peirce, a relação entre signo e referente, quando estabelecida por semelhança, caracteriza o ícone. Quando advinda de uma indicação, como no caso da fumaça significando fogo, define o índice. E quando não é possível estabelecer uma relação e o signo parece ter sido aleatoriamente criado, Peirce o denomina símbolo.

A sintonia fina que Deacon acrescenta a essa taxonomia não diz respeito à relação entre signo e significado e sim ao descolamento do referente da materialidade percebida pelos sentidos. O signo genuinamente simbólico, além da relação aleatória com seu significado, tem sua existência apenas no mundo da linguagem, no fluxo de pensamentos compartilhados, sem nunca chegar à fisicalidade do mundo.

Essa possibilidade de viver numa esfera cultural além da esfera material nos fascina completamente. Não é possível para nós uma relação com o mundo sem a interferência da nuvem simbólica. Somos uma espécie “descolada”, pelo menos linguisticamente, do mundo. Não há linguagem natural sem símbolos. Como afirma a antropologia, abstrações sempre moveram as sociedades. O próprio Nicolelis, que já observou que matamos mais por motivos simbólicos do que por qualquer outro, alerta

 

Existe sempre bastante perigo associado em valer-se de abstrações mentais extremamente rebuscadas como guia da existência humana. [...] Muitas civilizações antigas transformaram as suas crenças em questão de vida ou morte, não importando quanto abstratas e irreais fossem. Em alguns casos, crenças intangíveis conspiraram para a completa aniquilação de culturas inteiras. (NICOLELIS, 2020, p. 333)

 

Deacon teoriza sobre o insight simbólico, um incremento evolutivo que inaugurou uma nova relação entre o eu, o outro e o meio. O insight simbólico é o aparecimento da capacidade de usar símbolos cujos referentes não se encontram no mundo, mas numa relação de sentido entre a nossa racionalidade, a racionalidade do outro e as condições do mundo. A simbolização permite que o comportamento social seja orgânico e adaptativo. Até o aparecimento das primeiras sociedades hominídeas, há aproximadamente 2,8 milhões de anos, sistemas cognitivos coletivos tinham comportamentos caracterizados por muito determinismo genético e pouca adaptação via aprendizado.

 

Ela (a linguagem) é a autora de um complexo de adaptações que coevoluíram em torno de um singular núcleo de inovação semiótica [um insight simbólico] a princípio extremamente difícil de adquirir. A evolução subsequente do cérebro foi uma resposta a essa pressão seletiva e progressivamente tornou esse limite simbólico mais fácil de ser ultrapassado. [...] Apesar de suas limitações cognitivas, nossos ancestrais acharam um jeito de criar e reproduzir um simples sistema de símbolos que, uma vez disponíveis, tais ferramentas simbólicas rapidamente se tornaram indispensáveis. Isso insinua uma nova forma de transmissão de informações do processo evolucionário pela primeira vez em bilhões de anos desde que processamentos vivos foram codificados em sequências de DNA. (DEACON, 1997, p. 44-45)

 

O insight simbólico permite uma plasticidade inédita do tecido social e potencializa a capacidade de adaptação e evolução do grupo. Uma das garantias evolutivas de que as sociedades irão investir na habilidade de adaptar o mundo a suas necessidades, ao invés de suas necessidades ao mundo, como fazem as outras espécies sociais cerebrais, é o fascínio que essa habilidade nos provoca. Valorizamos descobertas, eficiência, harmonias e histórias. Desenvolvemos ciência, arte e muitas outras instituições de múltiplas naturezas. Somos, definitivamente, fascinados por nossa própria capacidade simbólica.

Porém, devemos nos atentar que a única forma de verificarmos a veracidade de uma afirmação simbólica é pelo teor de coerência que tal afirmação for capaz de imprimir à cognição social. O símbolo nos enriquece por seu universo quase ilimitado de possibilidades, o que abre um leque de projeções futuras muito caras a nossa organização e sobrevivência, mas, por outro lado, ele se fragiliza enquanto portador de verdade, dado que não pode ser testado como podem as afirmações que dizem respeito à materialidade do mundo.

E nessa fragilidade, associada ao fascínio que narrativas simbólicas exercem sobre nós, se disfarça a desinformação, fluem narrativas que negam as evidências da razão, da certeza, da justiça, do equilíbrio e do bom senso e, mesmo assim, alcançam aderência em algum subsistema da cognição social.

Essas narrativas vêm contaminadas de aspectos emocionais que ofuscam as barreiras racionais daqueles que as processam. Possuem efeito estético. São como lágrimas que não conseguimos conter mesmo sabendo que se trata de um filme, ou livro, ou cena que existe apenas na ficção. O fruir estético é mais rápido, mais contagiante e mais arrebatador que o apego à razão. Resistir a ele tem certo custo pois exige maturidade, controle e determinação.

Neste cenário, a desinformação, em modo de narrativa emocional, encontra fluxo contínuo no processamento cognitivo do tecido social.

Vale ressaltar que, segundo Deacon, a relação primordial de todo organismo com seu entorno é emocional. A emoção aqui não se trata de amor, ódio ou sentimentos, e sim da tensão existencial que marca a presença de todo ser vivo que, para continuar vivo, precisa saber aprender com os arredores, tirar recursos do meio e se relacionar com outros organismos.

 

A emoção é a característica dinâmica a qual corresponde nossa experiência fenomênica. [...] É o que constitui “o que se sente” da experiência subjetiva. Emoção não está confinada a tais estados de alta excitação como medo, raiva, atração sexual, amor, desejo e tantos mais. Ela está presente em toda experiência, mesmo que às vezes fortemente atenuada, pois é a expressão da infraestrutura dinâmica necessária a toda atividade mental. Ela é a tensão que separa self de não-self; o modo de ser das coisas e o modo que poderiam; a ampla incorporação da incompletude da experiência subjetiva que constitui seu tornar-se perceptual. Ela é a tensão que nasce, inevitavelmente, da incessante mudança de rumo das teleodinâmicas mentais ao se depararem com a resistência do corpo a responder, com necessidades corporais e direcionamentos que inviabilizam os pensamentos, assim como com a resistência do mundo a moldar a expectativa. (DEACON, 2012, p. 512)

 

O gatilho desta tensão existencial é a emoção. Não há como a emoção não ser o fator mais importante para a sobrevivência. A resposta emocional de um organismo às restrições informacionais do ambiente é contínua, moldada pela evolução, marcada por instintos, disposições mentais e outras heranças genéticas.

A dimensão estética é a dimensão pela qual todo organismo é introduzido em seu ambiente ao nascer. Sentir e perceber é a primeira tarefa cognitiva e é basicamente emocional. Toda a dimensão linguística, racional e social do ser humano é posterior à sua relação estética com o mundo. Não há como não considerar a emoção um componente orgânico de alta relevância. Emoções e signos simbólicos constroem nossas nuvens culturais fora das quais não há nenhum sentido, narrativa ou inteligência.

A neurociência complementa tal compreensão ao definir e diferenciar as G-info, informações analógicas processadas pelo organismo, e as S-info, informações que podem ser postas em linguagens, digitais, algoritmizáveis. Segundo Nicolelis, organismos processam informações não algoritmizáveis que são incorporadas, ou melhor, corporificadas em troca de energia. É o caso das informações embutidas nas camadas dos troncos das árvores que, sob análise, contam a trajetória das condições ambientais. É também o caso de informações absorvidas por nosso corpo sem que possamos pô-las em palavras.

 

Enquanto a S-info trata principalmente da sintaxe de uma mensagem, a G-info está envolvida com a nossa capacidade de conferir significado a eventos externos e objetos e expressar a semântica ou a ambiguidade das mensagens que recebemos e transmitimos. Diferente da S-info, que pode ser expressa independentemente do meio em que é transmitida, [...] a G-info depende de maneira integral da sua incorporação física na matéria orgânica para exercer o efeito de eficiência causal em um organismo. (NICOLELIS, 2020, pos. ebook 1090)

 

As emoções são exemplos primários. Os sinais de velhice, as rotinas que incorporamos ao dirigir, dançar, jogar etc., quando nosso corpo responde sem nos consultar, são também bons exemplos. Sabemos que, depois que aprendemos algo teoricamente, devemos “praticar”, pois há informações que não puderam se arrumadas em signos linguísticos e que só poderemos acessar via organismo-em-ação.

Todos esses passos do processamento cognitivo que dispensam a intervenção da racionalidade são terrenos férteis para fluxos desinformacionais. E, dado que não os podemos negar nem dispensar, só nos resta tentar administrá-los. O reconhecimento conceitual que a filosofia da informação nos fornece parece uma boa contribuição.

 

 

 

 

3 CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO

 

Retomando Floridi, indivíduos, ou melhor, inforgs são subsistemas especializados na modelagem semântica (racional, linguística) de conteúdos mentais originados na percepção e na aprendizagem a fim de torná-los acessíveis e úteis ao sistema a que pertencemos.

 

Lenta mas seguramente, (o indivíduo) transformou-se de um agente sujeito à natureza e órfão de seu deus em um demiurgo (inforg), progressivamente mais responsável por suas atividades epistêmicas e ônticas, com deveres e responsabilidades morais de zelar pela preservação e evolução das realidades presentes e futuras, naturais e artificiais. (FLORIDI, 2011, p. 22)

 

Embora saibamos que a percepção individual é capaz de processar informações não-racionais, expressas pelas emoções, a causa final de toda cognição, que chamamos de inteligência, é captar, processar e disponibilizar, mais e cada vez mais rápido, informações que otimizem a resistência do próprio sistema à degenerescência, incluso seus subsistemas, e retardem a trajetória espontânea da natureza rumo à homeostase. Resgatamos aqui o neurocientista António Damásio ao afirmar que “a obediência ao imperativo homeostático é rigorosa”. (2017, pos. e-book 293)

Compreendida a função ecoexistencial dos organismos, podemos olhar de forma mais crítica a concepção floridiana de que todo fluxo informacional que se configura tem valor ôntico. Ter valor ôntico é ter valor por si mesmo. É o valor que algo possui simplesmente por existir enquanto ente, por compor o cosmo complexo do que há com sua individualidade específica.

Podemos aceitar tal valor, pois existir é muito mais interessante e influente do que não existir. Mas, enquanto organismos, cumprimos o papel de auto-organizadores do sistema a que pertencemos. Na tríade da epistemologia que entende o universo como uma complexidade integrada por desordem, ordem e auto-organização, percebemos com certa facilidade a função de auto-organizadores que, enquanto subsistemas desta mesma complexidade, é delegada à espécie humana por ser ela inteligente e simbólica. Só nós podemos conceber o que é cosmo, ordem e desordem.

Na qualidade de auto-organizadores, atribuímos valores a cada fluxo informacional, categorizando-o numa escala que vai do que mais vale ao que menos vale para nossa tarefa existencial. Feito isso, agimos no mundo para amplificar os fluxos percebidos como favoráveis e inibir os desfavoráveis, embora cientes de possíveis enganos na percepção, na modelização ou na semantização.

Esse entendimento justifica, ao menos parcialmente, o agir contrário à desinformação. Toda desinformação, seja enquanto conhecimento falso, negacionismo, indução ao erro ou exploração mal-intencionada de componentes emocionais em detrimento dos racionais, deve se submeter à ação auto-organizadora.

A dificuldade que nos afeta tem a ver com a correta identificação dos fluxos que devem ser amplificados e dos que devem ser inibidos. Tendemos a estabelecer critérios, como na ciência, mas, em se tratando de afirmações simbólicas, o equívoco é sempre possível.

O aperfeiçoamento de parâmetros racionais, a intensificação da vigilância sobre o processamento cognitivo e a contínua revisão e correção das modelizações simbólicas são processos que a reflexão filosófica nos ajuda a realizar contra as incorreções. As atualizações epistemológicas, ontológicas e éticas propostas pela filosofia da informação de Floridi estão na base dessas realizações.

Floridi trata com muito rigor a relação entre informação e verdade. No cerne da informação habita a exigência de ser verdadeira. Só podemos considerar informação algo que porte adequação, satisfação de condições ou correspondência com o que consideramos real. Se atentarmos para o critério, amplificamos as chances de identificar os fluxos desinformacionais.

A valorização ou não de equilíbrios, processos e fluxos ecossistêmicos nos exige uma ética da informação tal como nos apresenta Floridi.

 

Nosso agente moral abstrato, interessado em perseguir o que considera seu melhor curso de ação, vê-se num dilema. Assumimos que suas avaliações e interações têm algum valor moral, mas nenhum valor específico precisa ser introduzido nessa fase. Intuitivamente ele pode se aproveitar de alguma informação (informação enquanto recurso) para gerar alguma outra informação (informação como produto) que afeta seu ambiente informacional (informação enquanto alvo). Esse simples modelo nos ajudará a ter alguma orientação inicial na multiplicidade de questões pertinentes à ética da informação. [...] A vida moral é altamente informativa. (FLORIDI, 2013, pos. ebook 1006)

 

A dificuldade em reconhecer a ética informacional como fundamento é a mesma em reconhecer a informação como elemento primordial do que existe. A filosofia da informação floresce sobre a compreensão, consolidada apenas neste século, de que fomos capazes de encontrar um elemento de alta relevância que independe da materialidade ou dos componentes energéticos envolvidos: a informação.

Informação é uma relação entre suportes de naturezas variadas e dinâmicas de matrizes energéticas que permite uma apreensão cognitiva. Seja material orgânico, inorgânico, semiótico, simbólico ou de qualquer outra natureza, somos capazes de modelar, a partir dele, uma informação que acrescente sentido a nossa visão de mundo.

Percebendo-se a informação como elemento fundamental da fenomenologia em que nos inserimos, um fundamento ontológico, na visão de Floridi, revela-se a primordialidade da ética da informação como “uma ética ambiental, cuja principal preocupação é a gestão ecológica e o bem-estar de toda a infosfera”. (FLORIDI, 2013, pos. ebook 1027)

Nosso cosmo ecossistêmico, seus ritmos, equilíbrios e entes de funções específicas, enquanto abstração de maior amplitude que podemos simbolizar, é o panorama que a filosofia da informação oferece no reforço à construção de narrativas, de sentidos que orientem a melhor performance da espécie.

 

4 LIDANDO COM A FALSEABILIDADE

 

Posto isso, interessa-nos focar na elaboração de narrativas que, por conhecerem os espaços da desinformação na cognição social, melhor possam interromper ou rearranjar tais processos de falsificação. Vislumbramos, a princípio, três possibilidades de intervenção a partir das reflexões suscitadas. Citamos brevemente as três, cientes de que cada uma merece, na futura continuidade desta pesquisa, um olhar mais específico e aprofundado.

 

4.1 A DISPUTA PELA ATENÇÃO E A VANTAGEM DAS BIG TECHS

 

Mencionamos como propriedades cognitivas a eleição de mecanismos confiáveis de produção de crenças, o estabelecimento de brainets, que podem se tornar tais mecanismos, e a atração irresistível dos humanos por signos simbólicos. Também sabemos que o primeiro passo para que qualquer narrativa seja processada por uma mente é ser percebida, ou seja, ter a atenção da mente em questão. É sabido que uma das maiores dificuldades da inteligência artificial é saber no que prestar atenção.

Para Floridi, a atenção não é dirigida por um “eu” ou consciência, ou ponto de vista do cérebro, como a neurociência prefere chamar o que a filosofia chama de subjetividade. A atenção é um aspecto orgânico que envolve todos os padrões e memórias adquiridos até então. O gerenciamento da atenção não pertence ao “eu”, mas ao encontro de um contexto com o nível de abstração em que se encontra o projetista conceitual, o designer semântico, ou seja, o inforg.

Dada a capacidade de semantização do inforg, emersa da confluência de conhecimento, experiência, maturidade, disposições etc. que forem o caso, a atenção responderá de acordo. Por exemplo, se imaginarmos um adulto e uma criança numa mesma situação, podemos supor que o que atrai a atenção de um difere muito do que atrai a atenção do outro.

Estratégias que tenham como prerrogativa chamar a atenção só costumam ser bem-sucedidas de forma sistêmica. Podemos avaliar o que atrai a atenção de um conjunto de pessoas via probabilidade, mas não podemos garantir a atenção de indivíduos.

Consegue-se ampliar a chance de atrair a atenção de indivíduos a partir de um escrutínio de suas ações e decisões, o que é possível para os algoritmos das grandes plataformas digitais. Essa é uma nova situação que merece investigação. Atentarmo-nos para como procedem esses algoritmos é a primeira tarefa para produzir narrativas que desarticulem a desinformação. Cientes das estratégias de comunicação direcionada, personalização, monetização e tantas outras montadas sobre conjuntos de informações a nosso respeito, percebemos um aumento na capacidade de manipular nossa atenção de forma singular.

Não podemos permitir que big techs saibam tudo sobre nós, comercializem essas informações, obtenham lucros gigantescos enquanto sequer conhecemos o gradiente de seus algoritmos. Tudo que diz respeito à atração das atenções diz respeito aos interesses sociais. Desconhecermos as formas como essas empresas coletam, organizam e usam nossos passos e rastros pelo mundo online.

Esse desconhecimento é uma ferramenta poderosa da desinformação. Filtrar os acessos dos usuários é ter o poder de manter cada um numa bolha informacional, com um conhecimento sempre parcial. Nossos interesses, para os algoritmos, são evidenciados por um processamento que desconhecemos.

Essa situação não favorece nosso cotejamento contínuo com o ambiente atrás da verdade pois restringe o que percebemos como ambiente principalmente no universo virtual, que hoje divide com o real (o atual, no dizer filosófico) as condições de estar-no-mundo. Eis uma disparidade que põe em alerta a ética da informação.

 

4.2 SENSO CRÍTICO E SIMBOLIZAÇÃO

 

Que sejamos atraídos pelo universo simbólico é inevitável, mas nada nos impede de sermos críticos em relação a esta atração. É, inclusive, uma característica da maturidade desenvolver uma melhor gerência dos estados emocionais. Sem desvalorizar o efeito estético expresso em sentimentos e vivências, pois temos uma cultura artística a alimentar, a apreciação racional da produção cultural tem se revelado, ao longo da história, uma protagonista do amadurecimento epistemológico da humanidade. Amadurecimento epistemológico é a trajetória de uma espécie simbólica que inventa a cultura, resgata e aprende com a história, administra a emoção e refaz narrativas do passado para perceber infantilidades do presente.

O efeito catártico do símbolo tem raízes na dimensão estética, ou seja, no estado de estesia que liga o organismo ao ambiente e o mantém continuamente permeável a sensações e afetos, e no projeto cérebro-mental evolutivamente programado para superdramatizar as situações, ampliando, por exagero, a possibilidade de resistir caso tudo dê errado.

Nosso organismo responde à intensidade de elementos emocionais, a princípio, sem que possamos evitar. Estamos sempre aprendendo a lidar com os teores enzimáticos desencadeados pelo arrebatamento e a alta tensão. O exercício da racionalização sobre as causas, efeitos e consequências dessa intensidade só aumenta a consciência do quanto capitulamos aos turbilhões emocionais e do quanto conseguimos controlar. Logo, deve ser realizado e recomendado.

Esse exercício crítico é um excelente aliado na construção de uma visão equilibrada, inteligente e profunda em relação às próprias decisões e reações. A crítica, inclusa a autocrítica, é muito válida para a prática de transformar experiências passadas em aprendizado.

Vale muito investir na capacidade de avaliação crítica de cada geração. A crítica lúcida é a melhor ferramenta para imprimir maturidade ao legado geracional. Todas as gerações nascem com a incumbência de reorganizar a cultura e, durante esse eterno e contínuo processo de reorganização, ir denunciando e eliminando conteúdos desinformacionais.

 

4.3 MICRORREVOLUÇÕES NA EDUCAÇÃO E NA ARTE

 

As indicações acima perpassam obrigatoriamente pela educação e pela arte. São áreas fundamentais para o processo e direcionamento da maturidade social. A educação formal tem como missão manter as gerações atualizadas a respeito do conhecimento científico e dos aspectos socioculturais que nos envolvem. A decisão sobre o que e como será ensinado precisa ser coletiva. Para tal, o senso crítico tem se mostrado o melhor ingrediente para decisões inteligentes.

Já a arte nos afeta de forma não tão institucional, mas, por sua natureza, se infiltra em todos os recantos da cultura. A arte é a produção compulsiva de nossa dimensão estética (assim como a ciência é a produção compulsiva de nossa dimensão lógica e a busca por justiça, através de leis e valores, de nossa dimensão ética).

Como manifestações estéticas não se comunicam através da linguagem, pois processam G-info tais como sensações, estados emocionais e afins, diz-se que a arte expressa. Expressar significa comunicar diretamente aos sentidos, sem passar pelo crivo da razão. Por isso podemos dizer que a desinformação é da esfera estética enquanto a informação é da esfera racional.

Por esses breves comentários já é possível vislumbrar o quanto a educação e a arte podem impactar na elaboração e disseminação de fluxos desinformacionais. Embora seja quase impossível agirmos de forma rápida e global para minimizar a desinformação em grande escala, dada a complexidade das comunicações, uma ação é sempre possível em caráter local, individual e microrrevolucionário.

Vivemos no cosmo ao mesmo tempo que em um local específico. Fazemos coisas porque somos humanos, porque somos brasileiros, porque nascemos em nossa cidade e porque moramos e circulamos em torno da moradia. E isso no mundo online e no offline. Cumprimos uma variedade de papeis sociais: indivíduos, brasileiros, cidadãos do mundo, parentes, profissionais, clientes, usuários etc. Em alguma esfera sempre podemos desarticular uma desinformação, evidenciar uma verdade, trazer uma narrativa mais comprometida com o ser-no-mundo, agir pelo funcionamento da complexidade de nosso organismo e do universo, passando por todas as instâncias intermediárias.

Se não podemos reformar o planeta que façamos, ao menos, uma revolução molecular. Afinal, segundo a epistemologia da complexidade, nunca se sabe se uma ação pontual, como o bater de asas de uma borboleta, irá causar um vendaval em outro continente. Que batamos nossas asas contra a desinformação.

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

O aprofundamento na compreensão das dinâmicas de desinformação, sistemicamente emersas da própria dinâmica dos processos informacionais, fornece ferramentas teóricas que nos aprimoram na tarefa de identificar e desarticular redes que, acintosamente, contrariam os interesses da sociedade humana.

Esse artigo expôs sobre propriedades da cognição social que facilitam a falseabilidade e resgatou conceitos da filosofia da informação para dar estrutura às reflexões e considerações apresentadas.

Evidenciou-se que há uma parcela neuronal na produção, divulgação e recepção de fluxos desinformacionais. A natureza social da cognição estabelece mecanismos confiáveis de produção de crenças ao mesmo tempo otimizadores da circulação de informações entre mentes, garantia da sistêmica complexa que articula o eu, o outro e o meio, e ambíguos no que se referem às condições de verdade.

Como vimos, uma vez que delegamos passos cognitivos para outros subsistemas, nos afastamos dos processos de verificação em relação aos conteúdos delegados. Isso permite que, caso a fonte de conhecimento não seja tão confiável quanto um dia nossa mente considerou, nos será difícil perceber.

Considerando que é, também, parte do funcionamento da cognição distribuída a criação de brainets em torno de narrativas simbólicas, o risco de capitularmos à desinformação amplifica-se quando delegamos às brainets o papel de produtoras de verdades. Em brainets muito poderosas e duradouras infestações por vírus informacionais são muito prováveis. Um vírus informacional distorce as referências simbólicas de forma invisível, e os aprisionados às brainets ficam cegos para as irracionalidades circulantes.

Outra propriedade cognitiva comentada foi a atração que o universo simbólico, os objetos abstratos da cultura, exercem sobre nós. Por constituir uma infosfera exclusiva, sentimo-nos organicamente envolvidos, emocionalmente afetados e psicologicamente provocados por seus conteúdos, pelas narrativas que somos capazes de produzir, pelo conhecimento que nos deslumbra, pelas histórias irresistíveis.

Para contribuir com as análises deste artigo, um olhar filosófico foi requisitado. A filosofia da informação de Floridi e o insight simbólico de Deacon trouxeram rigor à percepção de que agimos no mundo, enquanto humanidade, como elementos de auto-organização dentro da complexidade ecossistêmica. Isso nos obriga a atribuir valores a todos os processos informacionais que identificamos, justamente para avaliar a forma como os administraremos: como amplificaremos alguns e interromperemos outros.

Acrescentando clareza aos critérios utilizados nesta administração, a filosofia nos auxilia a sermos críticos com a concepção de verdade e a termos consciência de que atuamos como projetista informacional e não como subjetividade em si. Somos inforgs, com níveis de abstração diferenciados e cientes de que, para atuar na infosfera, guiamo-nos pela atenção, uma função orgânica que não pertence à consciência e sim à cognição estendida.

Por fim, observamos que nos interessa construir narrativas que

                   I.               denunciem as possibilidades desinformacionais advindas das relações algorítmicas que as plataformas mantêm com os usuários,

                II.               incentivem o repasse de toda herança cultural pelo crivo da crítica racional,

             III.               promovam microrrevoluções que contribuam para o amadurecimento epistemológico das sociedades.

Atentos às brechas cognitivas mais frágeis, podemos contribuir com mais solidez na construção de sentidos, na elaboração de critérios de validação informacional, na aproximação, a maior possível, das modelagens dos parâmetros ambientais e na vigilância crítica dos efeitos estéticos a que todos estamos à mercê.

REFERÊNCIAS

 

DAMÁSIO, António. Aestranha ordem das coisas. Lisboa: Círculo de Leitores, 2017.

 

DEACON, Terrence. The symbolic species. Theco-evolution of language and the Brain. NY/London: W.W. Norton & Company, 1997.

 

DEACON, Terrence. Incomplete nature how mind emerged from matter. NY/London: W.W. Norton & Company, 2012.

 

FLORIDI, Luciano. The philosophy of information. Oxford: Oxford, 2011.

 

FLORIDI, Luciano. The ethics of information. Oxford: Oxford, 2013.

 

NICOLELIS, Miguel. O verdadeiro criador de tudo. São Paulo: Planeta, 2020.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                                                                    



[1]Doutora em Filosofia pela UFSC. Professora da Universidade Federal do Tocantins.