A ORDEM COMO VONTADE E AS POSSIBILIDADES DO CAOS:

As ameaças reais e potenciais do extremismo político à ordem social

 

Marcelo Pereira de Mello[1]

Universidade Federal Fluminense

marcelopereirademello@gmail.com

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Resumo

 

Este trabalho pretende confrontar as concepções teóricas das análises sociológicas tradicionais sobre a “ordem social”, as quais chamaremos de “sensualistas” - por pressuporem uma ordem social naturalizada, com as teorias cognitivistas que veem a “ordem social” como construção teórico-intelectiva dos indivíduos. Nossa expectativa é que essa discussão nos auxilie a entender o contexto atual da emergência de movimentos políticos radicalizados, não importa por qual matiz ideológico, e o risco real e a ameaça potencial que eles representam para a estabilidade dos consensos tácitos assumidos pelos agentes na ordem social, tais como as noções de justo e injusto, certo e errado, bem e mal. Esperamos que a discussão sobre os fundamentos da ordem social, na forma colocada pelos cientistas sociais, se apodícticos e factuais ou cognitivos e racionais, ajude-nos a esclarecer até que ponto o radicalismo político, e os radicalismos de maneira geral, seja religioso, moral, bem como as ameaças de diáspora que os acompanham, têm o potencial de impor revezes ao que alguns analistas costumam chamar de “marcos civilizatórios”. Até que ponto, o extremismo político tem condições de impor perturbações de natureza moral aos pactos sociais ameaçando-os real e massivamente.

 

Palavras-chave: Ordem social. Cognição. Ordem política.

 

ORDER AS WILL AND THE POSSIBILITIES OF CHAOS:

The real and potential threats of political extremism to the social order

 

Abstract

 

This work intends to confront the theoretical conceptions of traditional sociological analyzes about the “social order”, which we will call “sensualist” - for assuming a naturalized social order, with the cognitive theories that see the “social order” as a theoretical-intellectual construction of individuals. Our expectation is that this discussion will help us to understand the current context of the emergence of radicalized political movements, regardless of their ideological hue, and the real risk and potential threat they represent to the stability of the tacit consensus assumed by agents in the social order. , such as the notions of fair and unfair, right and wrong, good and evil. We hope that the discussion about the foundations of the social order, as posed by social scientists, whether apodictic and factual or cognitive and rational, will help us to clarify the extent to which political radicalism, and radicalisms in general, is religious, moral , as well as the threats of diaspora that accompany them, have the potential to impose setbacks to what some analysts tend to call “civilizing milestones”. To what extent is political extremism able to impose disturbances of a moral nature on social pacts, threatening them really and massively?


Keywords: Social order. Cognition. Political order.

 

 

1 INTRODUÇÃO

 

Ordem natural, ordem social e caos Para levarmos a cabo nossa missão, qual seja, a de discutir os fundamentos da ordem social, conforme as teorias dos cientistas sociais, partiremos da ideia de que os primeiros conceitos de sociedade, surgidos no bojo da filosofia política predominante na Europa ocidental, a partir do século XVIII, foram inspirados na concepção da física sobre o comportamento de corpos quando sujeitos, ou não, por forças externas, conforme a influente teoria mecânica de Isaac Newton. A ascendência da física sobre as emergentes ciências sociais conduziu os primeiros sociólogos a concepção de ordem social naturalizada, e a teorias sociológicas preocupadas com a descoberta de padrões e regularidades das ações coletivas, i. e., uma ciência preocupada em emular a física e as ciências naturais na descoberta de padrões e regularidades dos fenômenos da natureza. Essas perspectivas sociológicas que chamaremos de “sensualistas” 1 consideram que as relações sociais, da mesma maneira que os fenômenos naturais, estão organizadas em padrões, i. e., estão estabilizadas em “estruturas” e “instituições” que se movem em processos lentos no tempo, longos na duração, além de regulares (cíclicos), e têm papel determinante nas decisões individuais. A ordem social concebida deste modo, regulada em ciclos naturais, tem como principal característica a estabilidade. Nesta perspectiva, a desordem é fenômeno histórico destacado e excepcional. Essa vertente de pensamento que se tornou paradigmática nas Ciências Sociais se desenvolveu em senda epistemológica diversa da original contribuição teórica de Thomas Hobbes, contemporâneo de Isaac Newton, cuja noção de ordem social era em tudo diferente dessa perspectiva sensualista. Para Hobbes, e para as teorias contra hegemônicas das ciências sociais que a sua filosofia viria a inspirar, a ordem social é produto da vontade e do entendimento. A concepção hipotética que ele desenvolveu sobre um estado de nãosociedade, isto é, a postulação lógica de um marco zero das relações sociais inspirou o desenvolvimento de correntes de pensamento que pensam a ordem social como um construto frágil e como espécie de resultado de acordos tácitos sobre o mundo “real” instituídos pelo entendimento. Devido a esta essência frágil, essas teorias consideram que as ameaças à “ordem social” são mais comezinhas e cotidianas. As mudanças de “padrões”, de igual modo, são mais frequentes que o admitido nas teses naturalistas sobre a ordem. Assim como, diferentemente das teorias sensualistas, o caos é visto como um resultado frequente e comum nas interações humanas.

As concepções sensualistas da sociedade inspiradas na concepção newtoniana de uma ordem natural possível (na verdade, passível) de ser capturada em padrões, consolidaram uma forte tradição nas ciências sociais de pensar a sociedade como um objeto empírico, algo como um ente com um corpo físico particular, “sui generis”, com uma ontologia particular. Com perdas, ao nosso ver, para o entendimento dos fundamentos da ordem social. Senão vejamos.

Nos modelos teóricos clássicos da sociologia, tais como em Karl Marx e Émile Durkheim, a despeito das diferenças de suas influências filosóficas, a sociedade é concebida como um ente natural, auto evidente, apodíctico. A sociedade existe e sua existência se impõe aos sentidos. A teoria social captura os padrões do convívio social. Como a mecânica captura os padrões do comportamento da matéria.

Nas perspectivas cognitivistas, inspiradas em sua origem na modelagem teórica hobbesiana de um estado de não-sociedade, ou “estado de natureza”, as especulações sobre os fundamentos da ordem se deslocam para seu caráter intelectivo. Para elas, o que chamamos de ordem social se referem a ações interindividuais contextualizadas, rigorosamente empíricas, que são estabilizadas por sentidos compartilhados e consistentes com as representações de um universo moral comum. A ideia de que a ordem social é construção intelectiva de cunho “racional-moral”, resultante de uma deliberação consciente de indivíduos, propiciou a compreensão de como a noção de sociedade dos sociólogos passou a operar tanto como um conceito teórico-investigativo, desenvolvido pelos cientistas sociais, quanto permitiu seu uso pelas pessoas comuns (“leigos”) – como um instrumento “prático-operativo”, posto nas suas interações cotidianas.

Para as teorias sensualistas, ou naturalistas, a sociedade existe como realidade empírica e seus ciclos de mudança e transição obedecem a padrões duradouros expressos por “estruturas” que submetem os indivíduos aos seus comandos. Uma vez internalizadas no processo de adaptação e submissão às regras sociais, ao qual chamam de “socialização” e/ou “institucionalização”, essas “estruturas” produzem estabilidade e, portanto, previsibilidade das ações. Nas perspectivas cognitivistas, ao contrário, a sociedade não é um dado sensível ou primário da realidade, ela é, na verdade, proposição reflexiva e analítica. A ordem social não existe em si, sua existência é condicionada aos esforços de deliberação dos indivíduos. Requer intenção e interpretação daqueles que interagem.

A implicação fundamental da concepção cognitivista sobre a ordem é de que pactos fundacionais podem ser rompidos e aquilo que consideramos comumente como resultado de uma ordem social apodíctica e auto evidente, à qual chamamos de “sociedade”, é, na verdade, fruto de um contrato cujos garantes dependem da proatividade interpretativa e da dinâmica comunicativa dos agentes da interação. Jürgen Habermas é dos autores contemporâneos que assume com radicalidade essa ideia de que a ordem nas sociedades complexas se assenta na capacidade de comunicação entre agentes equipados com recursos cognitivo-expressivos semelhantes e mutuamente reconhecidos e legitimados.

 Baseados em Jürgen Habermas e invocando a Etnometodología de Harold Garfunkel, podemos dizer que a ordem social entendida deste modo, i. e., como construção baseada nos esforços recíprocos de entendimento e de esclarecimento, é forte e fraca. Nos termos colocados por Habermas uma ordem que é construída no processo comunicação de subjetivações e está baseada no esclarecimento (interpretação compartilhada) é forte porque se assenta no crescimento integrado de informações organizadas em códigos legitimados pela comunidade de intérpretes e que são possíveis de serem conferidos e checados por profissionais e especialistas. Além disso as múltiplas proposições de acordos cognitivos podem ser expostas, defendidas e legitimadas de modo racional. Deste ponto de vista é possível avançar indefinidamente com as potencialidades discursivas, recursivas e reflexivas da argumentação para fixar marcos do entendimento em permanente renovação. No ocidente, o avanço dessa “razão comunicativa” teria resultado, segundo o autor, na criação de um ordenamento jurídico comum e de uma ordem política universalizada.

Contudo, regressões da ordem são também possíveis quando se esgarçam a confiança e a legitimidade nos meios de expressão e de checagem das proposições de entendimento. Conforme ressaltam os etnometodólogos, Garfinkel à frente, a fragilidade dessa ordem construída cognitivamente resulta desta sua natureza mesma, i. e., por ser comunicativa, racionalizadora, numa expressão, “moral”, suas bases podem ser removidas com a deslegitimação pelos agentes dos marcos de confiança e do desejo de esclarecimento desinteressado. Nestes casos, as possibilidades de erosão de consensos são também potentes e desconhecem limites de destruição. Além disso, o colapso do entendimento e, consequentemente, da ordem são ocorrências comezinhas nas relações interpessoais muito mais comuns que o leigo imagina.

Nesse trabalho discutiremos o contexto atual do radicalismo político e o seu potencial de produzir “erosão” e “declínio” das democracias ocidentais. Destaco o atual crescimento dos movimentos políticos extremistas de direita em diversos países, Brasil, incluso, e que têm sido vistos como ameaças à democracia. Seja porque contestam alguns de seus princípios básicos, tais como, a representação política baseada na eleição direta, a separação dos poderes, o império da lei seja porque rejeitam algumas afirmações sobre a vida e a natureza conforme as definições da ciência. O que se pretende neste artigo é discutir em que medida essa contestação da ordem política é a expressão legítima de divergência situada nos cânones dos pactos fundacionais da ordem social e em que medida seus questionamentos extrapolam e representam ameaça direta a estes pactos.

Tradicionalmente, os movimentos políticos auto identificados como de direita – conservadores -, sempre enfatizaram a manutenção da “ordem” (pública, moral, social, política) como princípio e justificativa de sua existência e missão. Mesmo quando promoveram “golpes”, “rebeliões” e “revoluções” ao longo da história sempre invocaram a necessidade de combater a desordem como justificativa para a sua ação. Uma vez instalados no poder colocaram limites à contestação da “ordem política” como condição para combater o “caos”. Sempre viram nos movimentos políticos em torno de causas identificadas com o pensamento de esquerda uma ameaça à ordem não só política como social. Nesse sentido, a ascensão da direita nos EUA e em alguns países da Europa, assim como no Brasil, rompendo a estabilidade política construída por democratas e liberais, construída em consensos tácitos sobre os limites da crítica à ordem, e seu ataque direto aos fundamentos dos pactos políticos do processo democrático, nos colocam uma questão: _ estamos diante de uma contestação política legítima, situada nos cânones da disputa política tradicional ou, ao invés, temos uma ameaça real às regras de convívio social, ao “pacto” social?

 

2 DESENVOLVIMENTO

 

Para avançarmos em nossa argumentação iremos problematizar a distinção convencionada pelas teorias dos cientistas sociais entre ordem política e ordem social. Desde as primeiras críticas dos liberais aos fundamentos políticos do regime aristocrático, seja em John Locke ou Jean Jacques Rousseau, a ordem social é pensada como ordem natural. As sociedades humanas, nessa perspectiva, resultam das “instituições” forjadas pelos indivíduos no confronto direto e objetivo entre, de um lado, uma “natureza humana” e suas necessidades, potencialidades e limitações, e, de outro, o meio físico, o ambiente natural. Cultura e economia seriam, assim, as manifestações mais evidentes dessa relação entre esse homem e mulher “naturais” com o meio ambiente. No pensamento liberal, portanto, que permanece na perspectiva sociológica tradicional, ordem social e ordem política são diferenciadas segundo a concepção de que as instituições políticas têm por base os valores e as regras compartilhadas cotidianamente pelos membros das comunidades desenvolvidas em decorrência de necessidades comuns relacionadas à exploração da natureza. Essa visão implica uma hierarquização lógica na argumentação: a ação política se ergue e tem por base os laços sociais “naturais”. Dependendo da interpretação que se dê a este pressuposto, as organizações políticas podem ser vistas como o reflexo direto ou indireto (“imagem invertida”) das relações naturais - “materiais” - de indivíduos concretos.

A assunção de que sociedades humanas são iguais na sua natureza essencial está na raiz das epistemologias hegemônicas nas ciências sociais. Nas perspectivas sociológicas historicistas e evolucionistas do século XIX, como as de Karl Marx e Émile Durkheim, a pressuposição comum é que as relações interindividuais necessárias para a reprodução social resultam numa “ordem social objetiva” que pode ser percebida pelos sentidos. Trata-se, supõem, de uma realidade objetiva e ela pode ser acompanhada como se acompanha a evolução de uma viagem programada com início, meio e fim.

Diferentes são as possibilidades analíticas que se abrem a partir da concepção radical de ordem social de Thomas Hobbes cujos desdobramentos podemos acompanhar em autores como Max Weber, por exemplo. Ordem, nesta concepção, é construção cognitiva (“sentidos compartilhados”) e esforço interpretativo. O que é propriamente humano se destaca da natureza como esforço comum para a construção de sentidos para o agir, e que são desenvolvidos pelos indivíduos que interagem, por sua capacidade de subjetivação. O “contrato”, nestes termos, representa o agregado dos consensos explicitados em termos estabilizados nas relações sociais, nas relações políticas e na cultura, tudo ao mesmo tempo. Daí que ordem política, ordem social e cultura sejam expressões de uma mesma dimensão ontológica. Separáveis apenas em moldura analítica, como afirma Weber. Nas perspectivas teóricas que se abrem desde Thomas Hobbes, a sociedade não é um dado, é uma hipótese. Sociedade e não sociedade são condições inerentes a toda situação concreta e existencial.

Do radicalismo teórico de Hobbes é que Jürgen Habermas pode extrair, por exemplo, sua a ideia de que o direito é o fenômeno social estruturador da ordem social. A “guinada cognitiva” proposta por Habermas o coloca em linha com a proposição hobbesiana. Ambos consideram que somente estão em sociedade aqueles que têm consciência disso, que deliberaram sobre isso. Nesta perspectiva não há um sentimento e/ou uma determinação genética dos indivíduos que os coloquem autonomamente em “sociedade” desde o seu nascimento, e tampouco existe “sociedade” como ente natural, sui generis, tal como depreendemos da clássica formulação de Durkheim de que a sociedade precede os indivíduos. Para se considerar em sociedade os indivíduos devem aderir explicitamente a acordos, i. e., devem deliberar sobre os termos da ordem e explicitar seus liames em regras sobre as quais sabem a origem e os limites, ainda quando creiam que alguns constrangimentos a serem enfrentados resultam de desígnio supranatural. Não importa se a conexão entre meios e fins realizada nas ações individuais pode ser explicitada por demonstrações lógicas e racionalizadas, ou se são guiadas por sentimentos imprecisos; os indivíduos, para se considerarem em estado de sociedade uns com os outros têm que explicitar para si próprios, “consentirem”, com um sistema de provas para avaliar a correção de suas ações orientadas para o outro-igual da relação; os “outros-eu”, na expressão de Alfred Schutz. Esses indivíduos sabem, também, que que há um conjunto de penalidades e reprimendas para os erros de interpretação, e que resultam basicamente na desordem na interação.

Embora Thomas Hobbes e Jürgen Habermas concordem acerca de que a “ordem” social tem um caráter autoral e intersubjetivo rejeitam que a ideia de que a ordem construída nestes termos tenha um caráter precário. Ao contrário. Há um poderoso amálgama nessa construção: a Razão. A despeito da natureza aparentemente etérea e frágil dos acordos cognitivos, especialmente por meio de sua expressão linguística, e da sua legitimidade problemática, a ordem que emerge desses consensos cognitivos, é considerada forte e suficiente para se manter estável. O potencial da desordem nas relações humanas é menosprezado nesta tradição. Cada um ao seu modo, ambos os autores estão alinhados à ideia de que a Razão é o meio/método seguro para garantir a univocidade de sentidos para a ação e para a construção institucional/cultural fundada no diálogo. Em Hobbes, a razão é tida como inata aos indivíduos e compõe uma espécie de atributo “natural” dos seres humanos, um pré-requisito, enfim, para a participação no “contrato”. Na perspectiva de Jürgen Habermas, um pouco à moda de Immanuel Kant, a Razão é reserva cognitiva universal e funciona como espécie de a priori para as possibilidades de entendimento para os indivíduos preparados e bemintencionados. Em ambas as perspectivas, a sociedade humana não é natural, mas a racionalidade (Razão) o é. Habermas e Hobbes são muito confiantes a respeito das possibilidades do entendimento racional porque acreditam que havendo um sincero propósito das partes que interagem a racionalidade comum dos indivíduos se encarregará de chegar aos melhores termos.

Para as perspectivas fenomenológicas, no entanto, para a Etnometodología de Harold Garfinkel, em especial, a racionalidade é faculdade desenvolvida na ação, ela (razão) é sempre contextual. Não há razão pura, portanto, assim como não há consciência pura. A ação esclarecedora e comunicativa dos indivíduos, no sentido de explicitarem e justificarem suas escolhas, envolve simultâneo esforço de convencimento e esclarecimento dos termos em uso e exposição dos motivos. Neste sentido, toda ação social “racional” é intrinsecamente “moral”. Radicaliza-se, desse modo, a ideia de que sociedade é construção voluntária e intencional de indivíduos. A ordem é frágil e precária no conjunto das relações sociais e a aplicação de fórmulas e receitas para a construção de consensos estão sujeitas ao exercício permanente das habilidades e competências dos indivíduos em interação que podem sempre falhar. Sociedade integrada (simples, complexa, primitiva, desenvolvida), e auto evidente, é, na verdade, uma abstração de sociólogos. Para a fenomenologia sociedades são culminâncias do processo de estabilização de sentidos comuns para a ação interindividual.

Essa perspectiva coloca incerteza e dúvida na equação da ordem social, porquanto se não é a Razão a controlar o rigor semântico das comunicações e as boas intenções a evitar as perturbações dos juízos sintéticos das pessoas, a desordem é a contraface necessária e inseparável da ordem. A ordem é discursiva e racionalizadora, conforme Habermas, mas o processo de entendimento é moral. Como afirma Garfinkel, nenhuma situação concreta vivida pelos indivíduos é tão estruturada que não admita sua negação, i. e., que não possa desconstruída com o rompimento dos laços de confiança constituídos num ajuste negociado de sentidos – “expectativas” - entre eles.

Voltando à questão central desta comunicação – creio que a questão a responder é se movimentos políticos extremistas têm a capacidade de irem para além dos seus programas políticos radicais e representarem suplementarmente uma ameaça aos fundamentos básicos do pacto social. A partir das teorias apresentadas, acreditamos ter condições de responder e a nossa resposta é sim!

Em reflexão sobre os fundamentos da ordem, Ralph Dahrendorf especula se no momento de extrema radicalidade no processo de rompimento das regras de convívio, ao final da segunda guerra mundial, nos escombros das cidades destruídas da Alemanha, na Berlim ocupada pelos Russos, se haveria ali algum sentido de ordem. Sua posição, inspirada no conceito de Durkheim sobre a anomia, é que a falta da autoridade para explicitar as normas para a sociedade teria levado a um estado de total confusão a respeito até mesmo dos sentimentos que seriam então os mais comuns e difundidos: raiva, solidariedade, perversidade, compaixão. Como afirma “a guerra de todos contra todos era também um estado de compaixão espontânea”. 2 Dahrendorf pensa o estado de desordem como o resultado do colapso das instituições, especialmente da lei. A desordem, em seus termos, estaria nos momentos entre a destruição do sistema de normas antigo e a emergência de um novo. Dahrendorf é um representante empedernido da sociologia “sensualista” tradicional.

Os modelos sobre a ordem social das teorias sensualistas projetam nos grandes e destacados movimentos históricos de transformação política as evidências daquilo que entendem como colapso das sociedades. Imaginam os períodos de desordem como resultado de ocorrências épicas às quais chamam pomposamente de mudanças e/ou colapsos civilizacionais.

Utilizando as lentes da Etnometodología de Garfinkel podemos afirmar que a ordem é o produto instável dos acordos cotidianos, embora os dispositivos cognitivos da comunicação social que utilizam para constituir e explicitar o mundo moral, as suas regras, enfim, sejam fortes. Ao invés dos sólidos rochedos da Razão, que os defensores da perspectiva de uma ordem social naturalizada supõem, a “ordem” é construção intersubjetiva, interpretação conquistada na interação, i. e., na negociação e administração permanentes dos sentidos empregados pelos indivíduos nas suas ações concretas. O rompimento das bases de confiança nas quais se assentam o processo compartilhado de interpretação do “mundo comum” pode provocar abalos consideráveis nas bases da ordem. Neste processo de construção da ordem da relação, os intérpretes não contam com algum lastro lógico-formal ou matemático para justificar suas escolhas. Não há uma Razão universal para balizar os acordos. Os acertos cognitivos necessários para que a “ordem” aconteça não são definidos em premissas e silogismos perfeitos, mas segundo sua “lógica” no plano moral. O “fazer sentido” numa comunicação/interação não está necessariamente associado a qualquer espécie de demonstração matemática. A interação “social” é feita sobre bases movediças, embora pareçam sólidas na superfície. A estabilidade das interações, a intersubjetividade, enfim, pode ser rompida e frequentemente é. Como afirmam Peter Berger e Thomas Luckman (1986) a institucionalização não é um processo irreversível. Os ruídos e conflitos constantes da comunicação cotidiana, na forma de desavenças, desentendimentos, os destemperos verbais, as vias de fato ilustram os caminhos que a comunicação social pode tomar. Passamos todo o tempo de nossas relações adotando medidas preventivas, procurando entender e explicitar simultaneamente os termos da situação imediata na qual estamos inseridos a fim de que a comunicação adequada aponte para o um curso “normal”, i. e. desejado pelas partes. Não é esforço trivial, embora seja cotidiano e permanente. Símbolos, expressões corporais e a linguagem escrita devem estar alinhados na argumentação que quer explicitar e convencer. A ordem da relação é laboriosamente construída por aqueles que interagem.

Voltando à nossa questão inicial, ou seja, se e em que medida movimentos políticos radicalizados podem ameaçar pactos fundacionais da sociedade abrangente, as teorias cognitivistas afirma que a desinstitucionalização pode ocorrer e frequentemente ocorre em vastas áreas do convívio social e podemos exemplificar o fenômeno com a difusão da cultura e da economia na era digital. Desde uma perspectiva estritamente cognitivista a radicalização e a agressão às regras tácitas do pacto social podem ocorrer de fato quando os agentes portadores das mensagens com caráter disruptivo manipulam conscientemente os termos da confiança e da empatia que são os fundamentos básicos da comunicação. Uma vez identificada a fragilidade dos mores sobre os quais está baseado o entendimento a produção da desordem pode ser deliberada. A comunicação política simplifica o mundo em imagens e figuras de linguagem, a “linguagem política” conforme Edelman, próprias de uma grande narrativa que é mais fácil confundir e mistificar. O caos político pode ser o objetivo deliberados da ação política.

Deste ponto de vista é compreensível que os movimentos extremistas políticos, mas também aqueles que propõem mudanças comportamentais igualmente radicais, tais como os movimentos messiânicos de todo tipo, alcancem maior impacto quando se dirigem intencionalmente, i. e., com conhecimento de causa, a abalar metodicamente a crença na confiança que está na base dos fundamentos da comunicação. A falsa informação e a propaganda eficazes, aquelas que produzem a confusão e o desentendimento, são métodos recorrentes para reverter a ordem ao confundir as conexões de causa e efeito usuais para aquela situação determinada, substituindo a confiança na regra pela autoridade moral do interlocutor. A linguagem política, portanto, não é efetiva apenas quando representantes e representados estabelecem uma comunicação baseada em afirmações deduzidas de procedimentos verificáveis lógico-racionalmente. Muitas vezes é o contrário. As pessoas acabam se convencendo mais, na comunicação política, especialmente nela, mas não apenas, da seriedade daqueles que acenam com o imponderável e o irracional.

 

3 CONCLUSÃO

 

Neste trabalho apresentamos uma perspectiva analítica que separa em duas as concepções sobre a ordem social historicamente predominantes nos estudos dos cientistas sociais. A primeira, vinculada à tradição racionalista da teoria mecânica de Isaac Newton, propõe a existência de um mundo social naturalizado, i. e., fixado em bases permanentes ou padrões muito estáveis de repetição que definem regularidades que refletem um comportamento condicionado dos indivíduos. A segunda, a concepção que chamamos genericamente de cognitivista abarca as diversas perspectivas que têm em comum a ideia de que a ordem social não é ordem natural e que, portanto, a reflexão sobre as relações sociais deve começar pela questão de como a ordem social é “explicitada” em consensos cognitivos permanentemente negociados pelos indivíduos nas interações sociais.

Estabelecemos essa classificação para avaliar se o extremismo político emergente nas sociedades democráticas liberais do ocidente configura uma ameaça aos princípios básicos – “civilizatórios” do convívio social, algo muitas vezes colocado nos termos “barbárie” X “civilização". As perspectivas teóricas sensualistas, como as chamamos, por considerarem que os padrões da ordem social são relativamente longos, refletindo a estabilidade da relação dos indivíduos entre si e com a natureza, dramatizam as mudanças políticas e transformações sociais como momentos e ocorrências excepcionais da história. Elas tendem a menosprezar os impactos de mudanças políticas que são consideradas “conjunturais”, i.e., ocorrem na superfície da ordem social sem abalar seus fundamentos. As teorias cognitivistas, por seu turno, percebem as mudanças nas relações sociais como processos mais dinâmicos e mais fluídos que conduzem as interações interindividuais. A ordem social para os cognitivistas é movimento permanente, negociação de sentidos, interpretação e expectativas de conformidade e compartilhamento de uma “cultura” comum. A tendência dessas teorias é abordar com mais gravidade os efeitos disruptivos dos movimentos extremistas, especialmente quando adquirem consciência sobre a fragilidade dos acordos cognitivos e de interpretação em torno dos quais está assentada a “ordem”. Indivíduos que dominam os rudimentos da comunicação estandardizada e institucionalizada podem, para atingir diversos objetivos, manipular deliberadamente as conexões de sentido pacificadas nos esquemas negociados de interpretação. Usualmente, fazem carreira como embusteiros, estelionatários, assassinos seriais e políticos, por exemplo. Sem qualquer consideração de caráter ético ou moral todos estes representam e apresentam desafios à pacificação de sentidos.

Embora convirjam quanto a este aspecto, os cognitivistas, entretanto, não são homogêneos e consideram que existem diferenças entre as perspectivas racionalistas e as teorias fenomenológicas. Entre as perspectivas racionalistas a teoria da ação social de Jürgen Habermas é das mais influentes. Seguindo a tradição de pensar a ordem social como construção intelectiva, de acordo com Habermas a ordem é alcançada – “legitimada” - quando a comunicação produz um nível ótimo de compreensão pelas partes em interação. A ordem é construção intersubjetiva, mas requer alguns pré-requisitos. São indivíduos de carne e osso que com suas limitações e potencialidades que tecem os caminhos possíveis e razoáveis para as situações concretas de interação. Seguindo a tradição inaugurada por Kant, as proposições das comunicações interindividuais, de acordo com Habermas, são lastreadas por uma ponderação racional. Entre tantas possibilidades e contingências que poderiam orientar/desorientar a ação coletiva, a Razão surge como uma espécie de instância recursiva à qual todos podem e devem recorrer para sanar divergências sobre as situações instauradas de boa-fé. Essa perspectiva torna a intersubjetividade mais estável e a ordem pode ser entendida como estabilidade das relações sociais que são orientadas por um fim: o esclarecimento em bases racionais. Para efeito da compreensão do potencial da ameaça do extremismo político às bases dos pactos fundamentais do convívio social, diríamos que a perspectiva de Habermas vê a gravidade da situação e entende os processos de construção do dissenso cognitivo patrocinado por grupos radicais. Tende a menosprezar, talvez, as possibilidades do caos por acreditar que a Razão ao fim e ao cabo irá se manifestar e se impor no processo de esclarecimento e convencimento.

A vertente mais radical surgida da tradição hobbesiana é representada em nosso trabalho pelas perspectivas fenomenológicas e pela Etnometodología. Essas perspectivas radicalizaram, como sintetizamos, a ideia de que ordem social, diferentemente de ordem natural, é matéria de fino e frágil acabamento e produto escasso e não certo da interação dos indivíduos. À questão formulada sobre se grupos políticos extremistas colocam em perigo os marcos da civilização e os pactos fundantes da ordem social, a resposta da fenomenologia será, creio, que afirmativa. Quando estes grupos atuam conscientemente na desestruturação de sentidos comuns, e alteram expectativas cognitivas estabilizadas, propõem interpretações alternativas para eventos e conexões de sentido pacificados nas interações regulares e recorrentes, eles deliberadamente semeiam o caos. Ao introduzirem uma dúvida radical às conexões de sentido estabilizados pela confiança, eles são eficazes de produzir uma espécie de caos controlado e dirigido aos propósitos das suas ambições políticas imediatas. É como se a proposta fosse a de desorganizar a situação, mas não toda a construção. Ou produzir uma explosão controlada dos sentidos, um caos controlado e com objetivos específicos.

Segundo nossa própria convicção, alinhada com as perspectivas cognitivistas, não podemos subestimar o caos potencialmente produzido pelo extremismo político. Especialmente, por sua capacidade de desorganizar ambientes institucionalizados. As ações políticas extremistas, quando dominam conscientemente as frágeis regras dos consensos sobre a ordem, têm poder de descer mais fundo que a superfície devido à sua capacidade consciente de desmontar a ordem moral do mundo.

 

REFERÊNCIAS

 

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CAPRA, Fritjof. O Ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1982.

 

DAHRENDORF, Ralf. A lei e a ordem. Brasília: Fundação Tancredo Neves, Bonn, Fundação Friedrich Naumann, 1987.

 

HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. vol. I e II. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 2003.

 

HABERMAS, Jurgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.

 

HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2012.

MELLO, Marcelo Pereira de. Sociologia do Direito de Max Weber: o método caleidoscópio. Cadernos de Direito FESO, ano v, número 7, 2004.

 

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[1] Professor Titular Universidade Federal Fluminense. Doutor.