USUÁRIO E RECUPERAÇÃO DA INFORMAÇÃO:

Hiato ou ditongo?

 

Oswaldo Francisco de Almeida Junior[1]

Universidade Estadual de Londrina

ofaj@ofaj.com.br

 

Rodrigo Rabello[2]

 Faculdade de Ciência da Informação da Universidade de Brasília

rdgrabello@gmail.com

______________________________

Resumo

 

No âmbito da Biblioteconomia e da Ciência da Informação o usuário é visto, emteoria, como a direção, como o norteador de todas as ações desenvolvidaspelos equipamentos informacionais. Esse é apenas um discurso, destoante daprática do profissional bibliotecário em seu trabalho com a informação. Ousuário, a partir dessa concepção, é entendido como o sujeito principal doprocesso não só de referência, mas abrangendo todas as ações das bibliotecasou, ampliando, dos equipamentos informacionais. Um pretenso encobrimentodas interferências, tanto do espaço como dos que nele atuam, tende adefender uma impossível neutralidade. Tal neutralidade, a partir do olhar daárea da Biblioteconomia e da Ciência da Informação, ficaria evidenciada sob aescolha do usuário como o fim último do fazer das bibliotecas e dosbibliotecários. Com esse olhar em perspectiva, precisamos apontar e discutir,mais pormenorizadamente, alguns itens:- O primeiro deles, e não necessariamente em ordem de importância, é a ideiade que tudo é feito para o sujeito informacional (ou qualquer outradenominação presente na literatura da área e empregada pelos que nela atuame os que a pesquisam formalmente) e a organização inteira da biblioteca estávoltada para satisfazer as necessidades, desejos e interesses informacionaisapresentados pelo usuário. Não é isso o que de fato ocorre e essa é uma daspropostas a serem abordadas no presente texto.

 

Palavras-chave: Ciência da informação. Bibliotecas. Bibliotecários.

 

Abstract

 

In the scope of Librarianship and Information Science, the user is seen, in theory, as the direction, as the guide of all actions developed by informational equipment. This is just a speech, contrary to the practice of professional librarians in their work with information. The user, from this conception, is understood as the main subject of the process, not only of reference, but encompassing all actions of libraries or, expanding, of informational equipment. An alleged concealment of interference, both from space and from those who work in it, tends to defend an impossible neutrality. Such neutrality, from the point of view of Librarianship and Information Science, would be evidenced by choosing the user as the ultimate purpose of what libraries and librarians do. With this look in perspective, we need to point out and discuss, in more detail, some items: - The first of them, and not necessarily in order of importance, is the idea that everything is done for the informational subject (or any other denomination present in the literature of the area and employed by those who work in it and those who formally research it) and the entire organization of the library is aimed at satisfying the informational needs, desires and interests presented by the user. This is not what actually happens and this is one of the proposals to be addressed in this text.

 

Keywords: Information science. Libraries. Librarians.

 

 

1 INTRODUÇÃO

 

Ao contrário do início tradicional dos textos de caráter acadêmico, iniciamos este trabalho apresentando o que entendemos ser a tese nele defendida:

Seguindo as concepções hegemônicas sobre a recuperação da informação, esta impede o protagonismo do usuário, na medida em que o idealiza e o transforma em um mero objeto, igualando-o ao acervo, às técnicas, à administração do sistema informacional e aos serviços oferecidos.

Posto isso, é necessário a exposição e o desenvolvimento das ideias que geraram a construção dessa afirmação.

 

2 UM POUCO DA HISTÓRIA

 

Historicamente, a existência das bibliotecas e da Biblioteconomia vincula-se à própria criação e implantação de técnicas que viabilizaram – e ainda viabilizam – a organização dos documentos coletados e armazenados em acervos. O surgimento de documentos em formatos eletrônicos e virtuais, com bibliotecas consideradas e denominadas como híbridas, não mudou essa relação histórica das bibliotecas, prioritariamente, com as técnicas. O acesso a esses documentos eletrônicos, na maioria dos casos, não altera a estrutura e organização dos documentos físicos. As revistas especializadas e de caráter acadêmico possuem a mesma estrutura, com algumas poucas exceções, das que são veiculadas no formato em papel. Quando muito, há links que remetem de algo que o autor de um texto deseja ou possibilita ao leitor um maior aprofundamento, para um local específico. Da mesma forma, os “robôs de busca” ainda são referenciais, como o eram os indexes, abstracts etc.

Apesar dessa relação próxima, historicamente, das bibliotecas e da Biblioteconomia com as técnicas bibliotecárias, a área esquece que o nascimento delas tem como origem demandas, necessidades e interesses. A catalogação e a classificação não foram empregadas sem que houvesse, antes, uma “exigência” de organização, oriunda da necessidade de acesso ou de conservação. A ideia da recuperação da informação, como veremos posteriormente, tem seu nascedouro a partir dessa exigência. Assim, as demandas são anteriores às técnicas, mas acabaram por se descolarem, ou serem descoladas delas. As técnicas deveriam seguir as demandas do público, mas passaram a, quase, determinar aquelas ou ao menos, ditar formas e regras para que o conteúdo do acervo pudesse ser acessado.

 

A preocupação com o usuário apenas se apresenta formalmente nas bibliotecas, com o surgimento do Serviço de Referência, no final do século XIX, partindo de uma experiência específica, concretizada na Biblioteca de Boston, nos Estados Unidos. É interessante notar que a proposta, defendida por Samuel Sweet Green, criava um local específico na biblioteca para o atendimento do usuário, mas, inicialmente, durante meio período (ALMEIDA JUNIOR, 2003).

No Brasil, a formação do bibliotecário tem início na primeira década, anos 1910, do século XX com um curso promovido pela Biblioteca Nacional, voltado para a preparação de funcionários com conhecimentos mais específicos sobre Biblioteconomia. O currículo ou as matérias escolhidas para compor o curso e o entendimento do fazer bibliotecário acompanhavam as ideias e as bases conceituais europeias sobre o tema (SOUZA, 1993).

Em meados dos anos da década de 1930, em especial no seu final, surge, por iniciativa de Rubens Borba de Moraes, um curso para formação de bibliotecários. Aberto para todos os interessados, recebeu alunos de várias partes do Brasil. Voltando para seus estados de origem, tais alunos promoveram a disseminação e multiplicação dos ensinamentos recebidos. Rubens Borba de Moraes insere um olhar estadunidense da Biblioteconomia. A criação do curso coincide com o retorno de sua visita aos Estados Unidos, onde conheceu o que havia lá de mais recente na área. Rubens possuía uma formação clássica, erudita, obtida em escolas da Europa. Quando o convite para visitar os Estados Unidos foi formulado pela bibliotecária do Instituto Mackenzie de São Paulo, ele acreditou que a viagem não traria muitos frutos para seus conhecimentos de Biblioteconomia, mas ficou surpreso com o que viu e resolveu trazer as ideias observadas para as bibliotecas brasileiras e, em especial, para o curso que estava propondo (MORAES, 2011).

A formação do bibliotecário no Brasil teve duas bases, embora uma delas, a estadunidense, se sobressaiu e foi amplamente aceita.

Com um caráter mais pragmático, as concepções, a visão, o olhar, o entendimento da Biblioteconomia professado nos Estados Unidos, envolveu o fazer e a formação do bibliotecário. No entanto, desde sua introdução, a área não possuía materiais, teóricos ou não, publicados em português. Poucos foram os livros ou materiais didáticos editados e veiculados no Brasil após o início da oferta de cursos. A aquisição de materiais provenientes de outros países era cara e demorada. Isso determinou a construção do currículo em matérias mais gerais – atendendo a ideia de que o bibliotecário teria que ser um erudito, um intelectual, alguém com uma enorme bagagem cultural – com ênfase em aspectos sociais, culturais, artísticos etc., assim como voltadas para as técnicas de organização do acervo. Muitos alunos dos cursos de Biblioteconomia das décadas de 1960, 1970 e 1980, estudaram as disciplinas de classificação e catalogação dividindo códigos (pois poucos estavam disponíveis, muito aquém do necessário) ou se utilizando de péssimas reproduções e, algumas, apenas de forma parcial.

As discussões mais teóricas eram iniciativas de professores de outras áreas, professores esses que tinham dificuldade em compreender a Biblioteconomia e, por isso, não tinham como criar relações entre suas especialidades, via disciplinas que ministravam, e os interesses da área do curso.

O baixo número de publicações em português, específicas sobre a área da Biblioteconomia, redundou em um fazer moldado nas ações técnicas, uma vez que estas estavam baseadas em uma aplicação que não dependia de discussões teóricas muito profundas. Os poucos livros publicados em português, naquele período, quase não contemplavam e focavam o Serviço de Referência.

Na década dos anos 1980, os periódicos que se mantinham eram praticamente os mesmos que tinham surgido no início dos anos 1970, ou seja, a RBBD – Revista Brasileira de Biblioteconomia e Documentação, publicada pela FEBAB, a RBB – Revista de Biblioteconomia de Brasília, publicada pela ABDF (Associação dos Bibliotecários do Distrito Federal) –, a Revista da Escola de Biblioteconomia da UFMG, que alterou o nome, posteriormente, para Perspectivas em Ciência da informação e a Ciência da Informação, publicada pelo IBICT. Alguns outros periódicos, infelizmente, tiveram vida curta.

Em relação aos livros, pode-se observar que

 

“Em âmbito geral, alguns autores eram lidos, citados e tinham suas ideias reproduzidas. Entre eles, Bradford, Pierce Butler (este da Escola de Chicago), Jesse Shera, Ranganathan e suas 5 leis da Biblioteconomia (embora seu livro tenha sido traduzido para o português apenas em 2009), Fosket, além, claro, de Dewey e Paul Otlet. Na área do serviço de Referência, o texto de autor estrangeiro de mais fácil acesso no Brasil era o “Introduction to Reference Work”, de Katz e Katz (que chegou a ser publicado em 4 volumes e nunca foi traduzido para o português). Outros autores, com obras traduzidas: Margareth Hutchings, que foi muito bem aceita pelos que estudavam a área e Xavier Placer. Entre os brasileiros, destacam-se Myriam Gusmão de Martins e, principalmente, Neusa Dias de Macedo e Nice Meneses de Figueiredo. Estas duas últimas buscaram discutir o Serviço de Referência. (ALMEIDA JÚNIOR, 2016).

 

A apresentação desse momento histórico teve o intuito de defender a ideia de que a formação do bibliotecário teve uma forte conotação técnica, principalmente pela quase impossibilidade de os professores terem acesso a materiais e/ou eventos que priorizassem as discussões mais teóricas. A ênfase nas técnicas, como resultado, também, do que foi apontado acima, tornou secundário os trabalhos voltados para o atendimento ao público, chegando até mesmo à defesa de muitos bibliotecários de que o Serviço de Referência poderia ser exercido por qualquer pessoa, não necessitando de uma formação específica.

 

3 SERVIÇO DE REFERÊNCIA E INFORMAÇÃO

 

Tendo surgido formalmente no final dos anos 1890, como dito anteriormente, o Serviço de Referência, até mesmo pela dificuldade na disseminação de ideias novas pelo mundo, demorou muito para chegar a maioria dos lugares do mundo. No Brasil, que acompanhava o movimento bibliotecário da Europa, as propostas de um atendimento específico aos usuários eram conhecidas por poucos, mesmo após a implantação de um modelo estadunidense de formação desse profissional, iniciado nos anos de 1930.

A exemplo das técnicas bibliotecárias, o serviço de referência também foi idealizado e construído para a organização dos documentos e direcionado para um espaço específico do acervo, o de “obras de referência”. Os primeiros livros publicados no Brasil – e muitos editados no exterior, dos quais tivemos acesso – apresentavam o serviço de referência com a preocupação voltada para esse tipo de documento. Há uma lógica – embora distorcida – nesse pensamento: serviço de referência – obras de referência.

Vale um parêntese neste momento. O termo utilizado nos Estados Unidos quando da proposta de um espaço exclusivo para atendimento ao público foi “Reference Work”. Chegando ao Brasil, foi ele simplesmente traduzido para “Serviço de Referência”, sem a preocupação em adaptar o termo original para que fosse adequadamente entendido pelos usuários. Até hoje o termo dá nome a espaços nas bibliotecas e continua sem compreendido pelos que frequentam as bibliotecas. Assumiu-se o termo, mas não necessariamente, o que ele de fato representa. Para amenizar essa falta de entendimento por parte do usuário, acresceu-se “Informação” após Serviço de Referência, passando a ser conhecido como Serviço de Referência e Informação. Uma nova sugestão troca os termos finais: Serviço de Informação e Referência. Qual o motivo para que os bibliotecários continuem ferrenhamente agarrados ao termo?

Além do vínculo do serviço de referência com obras de referência, uma outra relação pode ser aqui evidenciada: a de que esse serviço é construído, estudado e pensado sob bases apenas metodológicas. Não há teorias, mas tão somente maneiras de atendimento, passos, etapas e, no bojo dessa visão, a procura por barreiras e formas que obstaculizam o “bom” atendimento. Assim que cada barreira é descoberta, surgem respostas pontuais para resolvê-las.

A não existência de teorias no serviço de referência e informação faz com que seu ensino também se faça a partir e com base em ações, em práticas. Os professores se valem das metodologias existentes e veiculadas pelos livros especializados e esse caráter prático é assimilado e reproduzido.

O controle existente em outros segmentos do fazer bibliotecário, entretanto, é de difícil implantação no serviço de referência e informação, uma vez que é ali que o contato com o usuário de fato se concretiza e todas as ações que envolvem o ser humano traz problemas quase intransponíveis. Não é possível controlar o usuário fora do ambiente da biblioteca, mas é possível, sim, determinar e orientar as formas de uso dos espaços aos quais tem ele acesso; é possível, sim, exigir que o usuário se molde à estrutura organizacional e de acesso aos materiais; é possível, sim, determinar como se dá o processo de recuperação da informação, focado nos documentos e não em seus conteúdos ou na apropriação por parte do usuário. 

O bibliotecário busca maneiras práticas para atender, de forma adequada, eficiente e eficaz o usuário que, por sua vez, deve sair satisfeito com as respostas que conseguiu. Esse é o objetivo dos que atuam no serviço de atendimento ao público. O nosso entendimento é completamente diferente desse. Acreditamos que a biblioteca organiza os documentos, preparando-os, sob um olhar coletivo, para a posterior recuperação. A base do fazer bibliotecário na organização volta-se para uma compreensão das necessidades, interesses e desejos dos usuários de maneira geral, coletiva. No atendimento, o bibliotecário – e não outro profissional –, a partir do seu conhecimento da organização do sistema da biblioteca, da linguagem artificial implantada, dos estudos de usuários realizados e que lhe dão um conhecimento sobre eles, procura relacionar a construção coletiva com demandas individuais.

A formação do bibliotecário enfatizou – e em muitos casos ainda enfatiza – a relação do serviço de referência e informação com as obras de referência e com seu não verdadeiro caráter prático.

A falta de teorias junto ao serviço de referência e informação propiciou que emergisse a mediação da informação. Esta perspectiva aborda reflexões e discussões que ocupam lacunas presentes nos estudos, pesquisas e discussões sobre aquele serviço. Vale ressaltar, no entanto, que essa foi a origem da mediação da informação e que, na sequência, assume ela proporções que abarcam todo o fazer do profissional da informação, tornando-se base da Biblioteconomia e da Ciência da Informação e, para alguns autores, até mesmo considerada como o objeto dessas áreas.

 

 

4 USUÁRIO

 

No âmbito da Biblioteconomia e da Ciência da Informação o usuário é visto, em teoria, como a direção, como o norteador de todas as ações desenvolvidas pelos equipamentos informacionais. Esse é apenas um discurso, destoante da prática do profissional bibliotecário em seu trabalho com a informação. O usuário, a partir dessa concepção, é entendido como o sujeito principal do processo não só de referência, mas abrangendo todas as ações das bibliotecas ou, ampliando, dos equipamentos informacionais. Um pretenso encobrimento das interferências, tanto do espaço como dos que nele atuam, tende a defender uma impossível neutralidade. Tal neutralidade, a partir do olhar da área da Biblioteconomia e da Ciência da Informação ficaria evidenciada sob a escolha do usuário como o fim último do fazer das bibliotecas e dos bibliotecários. Com esse olhar em perspectiva, podemos discutir melhor vários pontos, mas nos ateremos aqui apenas a apontamentos sobre alguns deles.

A área trabalha com a ideia de que tudo é feito para o sujeito informacional (ou qualquer outra denominação presente na literatura da área e empregada pelos que nela atuam e os que a pesquisam formalmente) e a organização inteira da biblioteca está voltada para satisfazer as necessidades, desejos e interesses informacionais apresentados pelo usuário. Não é isso o que de fato ocorre.

O importante a salientar aqui é que se o usuário é, de fato, o principal objeto das bibliotecas qualquer ação técnica deve partir de estudos previamente aplicados para compreender e entender o usuário – e não apenas com o objetivo de conhecer a satisfação dele no uso do que lhe é oferecido e oportunizado acessar. Outro ponto a ser incluído nesta reflexão, e já indicado anteriormente, é que a construção do acervo se dá com base em um entendimento médio dos interesses, necessidades e desejos dos usuários que vivem no entorno da biblioteca e esse entendimento médio é sustentado, na maioria das vezes, por suposições provindas de visões empíricas realizadas pelos bibliotecários.

É preciso também reconhecer que o interesse maior da biblioteca não é o usuário, mas a preservação do conhecimento, é a memória histórica de um determinado grupo, mais especificamente, a elite. A biblioteca existe e é mantida com a finalidade de reproduzir e validar a explicação de mundo de um determinado grupo, assim, o que é preservado tem uma conotação classista. Esse conhecimento, que se dá através do próprio enaltecimento da ciência como único saber válido, é classista, uma vez que cria a propriedade do saber, da ciência, da cultura, das artes etc. A biblioteca exige do usuário que ele se adapte a ela e aceite seu acervo como aquele que representa o verdadeiro conhecimento. Atender às necessidades, interesses e desejos do usuário – mesmo que não “puros” – significa considerar seus saberes e conhecimentos. Se o usuário não se adapta à biblioteca, esta não o atende, não tem como atendê-lo.

A ideia de se entender o usuário como a principal direção da biblioteca, a despeito, como dissemos, de tal conceito existir apenas no plano do discurso, também acontece em relação ao próprio bibliotecário. O bibliotecário também acredita ingenuamente que todo o seu trabalho é voltado para satisfazer o usuário? Qual é o conteúdo das informações que são fornecidas e que são acessadas pelo usuário? Basta o acesso ao material físico? Além disso, o usuário não é uma coisa o que implica em afirmar que o que importa para o atendimento, para o processo de referência é o que ele consegue emitir como sendo a sua necessidade, o seu interesse, o seu desejo. Mas, a biblioteca e os bibliotecários se esquecem que o usuário é um todo e essa necessidade, interesse ou desejo não é um item excluído do todo do usuário, ao contrário, ela reflete apenas um aspecto dentro desse todo usuário.

Rodrigo Rabello e Almeida Junior (2020) defendem a existência, além do usuário real e do usuário potencial, do não-usuário

 

Acima foi afirmado que os estudos de usuários entendem estes em dois grandes segmentos: o usuário efetivo (ou usuário real) – o que faz uso, o que está presente nos espaços e ações da biblioteca –  e  o  usuário  potencial  –  aquele  que  não  faz  uso  dos  espaços  e  serviços  oferecidos  pela  biblioteca,  mas, desejando e sendo incentivado, pode se transformar em um usuário efetivo (real). O terceiro tipo de usuário simplesmente não é mencionado pela literatura, não está presente nas pesquisas sobre o tema, ou seja, em não sendo mencionado, esse segmento não existe, e, em não existindo, não deve ser motivo de preocupação. (p. 13).

 

O não-usuário é aquele que não pode fazer uso da biblioteca, pois ela é constituída de tal forma que impede esse uso, independente da vontade ou do desejo desse tipo de usuário.

 As ideias de educação de usuário querem afirmar, ou deixar transparecer, que existe uma preocupação das bibliotecas em tornar o usuário mais independente e criar a ilusão de que ele faz e dirige a recuperação da informação que necessita, quando isso não ocorre, pois o usuário está preso a toda a estrutura administrativa e técnica da biblioteca.

 

5 RECUPERAÇÃO DA INFORMAÇÃO

 

Há o entendimento de que toda a ação, todo o objetivo maior das bibliotecas é a recuperação da informação e tudo é feito em função dela.  No entanto, a ideia de recuperação da informação carrega, intrinsecamente, inúmeros entendimentos e que não são, ao menos claramente, explicitados. A recuperação da informação, por exemplo, parte da ideia de que há formas de identificar as necessidades, interesses e desejos do usuário a partir de um processo de referência bem desenvolvido. Assim, bastaria um adequado – e, nessa ótica, possível – entendimento da questão de referência para que se possa localizar informações que a atendam e a satisfaçam. Há que se atentar que a recuperação da informação, apesar de todas as ferramentas digitais e virtuais, tende a focar e ser dependente do acervo físico (ou que, mesmo digitais, estejam armazenados nos repositórios da instituição) presente no espaço das bibliotecas. Assim, ela se concretiza – e essa afirmação é outro questionamento que nós, da área, precisamos ampliar nossas reflexões – sob o acervo e este, com base nas ações técnicas desenvolvidas pela biblioteca, possibilita que o interesse, necessidade e desejo do usuário seja plenamente satisfeito.

A biblioteca atua com o entendimento de que há um acervo e esse acervo é passível de recuperação. Dessa forma, ela trabalha com um determinado acervo e é só esse acervo que possibilita a recuperação da informação por parte do usuário. O que é importante afirmar e salientar aqui é que em uma época em que a informação está presente e pode ser acessada em qualquer âmbito, inclusive o virtual, a biblioteca só recupera aquilo que ela possui de fato em seu acervo. E isso é esquecido, é deixado de lado um grande espaço de informação. Essa é uma ideia que precisa ser repensada. Se o usuário é, de fato, o principal objeto, o principal norte das bibliotecas, então o acervo deve ser construído em seu interesse, a partir do seu interesse e não é isso o que ocorre na recuperação da informação. Deveria ela acontecer a partir do interesse do usuário, mas, contrariamente, ela ocorre em cima do acervo que a biblioteca possui. Como já aventado, é preciso também reconhecer que o interesse maior da biblioteca não é o usuário, é a preservação do conhecimento, é a memória histórica de um determinado grupo, ou seja, a elite.

 

6 PROTAGONISMO

 

Devemos acrescentar a tudo o que foi dito em relação ao usuário, que é ele, mesmo que de maneira não consciente, visto como uma coisa. O que importa para o atendimento, para o processo de referência é o que ele consegue emitir como sendo a sua necessidade, o seu interesse, o seu desejo. Mas, a biblioteca se esquece, e os bibliotecários também, que o usuário é um todo e essa necessidade não é um item excluído do todo do usuário, ao contrário, ela reflete apenas um aspecto dentro do todo do usuário. Então, o que tem que se buscar é sim, o que ele procura, o que ele quer, mas integrando ao todo do usuário, integrando nele inteiro.

A partir do olhar de alguns autores, muitos entendem a informação como coisa, passível de ser manipulada, de ser controlada. De maneira semelhante, o usuário, se entendido como coisa, também pode ser manipulado e controlado. A ideia de “controle” não se aplica apenas aos fazeres do profissional bibliotecário, mas seu propagado norte, ao propagado objetivo maior da biblioteca, o usuário.

O usuário como coisa tende a se perder entre o mobiliário, o prédio, os códigos, as ferramentas de trabalho, os documentos administrativos, o acervo, as sisudas, intransigentes e imutáveis políticas de desenvolvimento de acervo, assim como inúmeros outros itens que são controláveis pelos bibliotecários.

Idealizado, o usuário deve se ater ao que se espera dele e todo desvio do que foi previamente traçado, deve ser punido com sanções presentes nos regulamentos da biblioteca. Fora dos regulamentos, o usuário é apenas uma coisa, sem direito de fala ou de participação. Quando muito, de maneira a presentear o usuário, a biblioteca oferece a oportunidade dele se fazer ouvir, apondo uma caixa no balcão de empréstimo para receber sugestões. Claro que essas sugestões passam pelo crivo dos bibliotecários, sendo analisadas e avaliadas, submetendo-as às normas da biblioteca e ao que se espera de adequados usuários.

O próprio termo “usuário” já traz uma conotação sustentada pelo entendimento de que os que procuram a biblioteca deve fazer uso dela – mas faz uso do que é permitido. A palavra dá um entendimento de passividade e não de protagonismo. Vários termos que foram empregados para designar o que predominantemente é chamado de usuário, também traziam essa ideia de passividade, como “consulente” e “cliente”. Outro termo, utilizado anteriormente e que hoje ressurge com outra conotação, é “leitor”. A postura e a ação do leitor não são passivas, ao contrário, a leitura exige uma ação de interferência no texto. Entendemos hoje o leitor como um coautor, como um com-autor. Além disso, a concepção de leitor hoje traz a ideia de leitura em um sentido “lato”, ou seja, não apenas a leitura da palavra escrita, mas a ela estão incluídas a imagem fixa, da imagem em movimento (com a leitura do outro, a leitura do mundo) e do som (com a leitura da oralidade).

Nós somos, hoje, objeto das máquinas, o homem é objeto das máquinas, como nos diz Robert Kurz (2002). Da mesma forma, os usuários foram, e continuam sendo, objeto das bibliotecas, coisa das bibliotecas.

Marilena Chauí (2014) defende que a dominação se dá, atualmente, pela “tecnociência”. As bibliotecas enfatizam o emprego das tecnologias como forma de organizar seus acervos e, mais importantes, controlar as informações que podem ser geradas por eles. Da mesma forma, o discurso considerado válido nas bibliotecas é apenas aquele proveniente das ciências, como se elas abarcassem todos os segmentos e campos do conhecimento humano.

Um livro juvenil chamado “Alcatraz contra os bibliotecários do mal”, de Brandon Sanderson (2010), apresenta um menino que, por circunstâncias do destino, deve lutar contra uma seita de bibliotecários que domina o mundo.

 

- Todo mundo tem uma razão para fazer o que faz. Os Bibliotecários foram criados por um homem chamado Biblioden. A maioria das pessoas o chama simplesmente de O Escrivão. Ele ensinou que o mundo é um lugar estranho demais, um lugar que precisa ser posto em ordem, organizado e controlado. [...] Controladas.

- Controladas por aqueles que supostamente sabem mais – acrescentou Bastilla. – Bibliotecários.

- Então – disse eu -, toda essa ocultação...

- É para criar o mundo que O Escriba idealizou – explicou Sing. – Para criar um lugar em que a informação seja cuidadosamente controlada por poucos eleitos, e em que o poder esteja nas mãos de seus seguidores. Um mundo onde não existe nada de estranho ou anormal. Onde a magia é ridicularizada e tudo pode ser ditosamente comum. (SANDERSON, 2010, p.139)

 

A relação de poder no fazer profissional também pode ser observada no ensaio de Rabello (2021) por meio do qual associa o profissional de informação ou o bibliotecário tradicional a um “usurário”, ou seja, a um penhorista que realiza a prática da “usura”. Para tanto, o autor propõe uma comparação, tomando como referência o personagem “usurário” do conto fantástico “A dócil”, escrito em 1876 pelo romancista russo Fiódor Dostoiévski (2011).

 

Nos paradigmas da posse/guarda e do acesso pode ser observado o poder do profissional responsável por intermediar recursos bibliográficos. Tais paradigmas ainda hoje representam uma concepção tradicional de bibliotecas. Em analogia, se o penhorista decide a quem emprestar o dinheiro, o bibliotecário decidirá quem terá acesso ao conhecimento. Se aquele acumula poder econômico e simbólico em tais escolhas, este o faz, simbolicamente, ao saber que detém a chave que permite o acesso ao conhecimento. Ambos, cada qual a sua maneira, definem destinos. O poder da posse e da guarda, bem como o poder do acesso a recursos informacionais leva a uma reflexão ética sobre a figura dos profissionais “usurários” de informação. Assim como o penhorista do conto “A dócil” define se aceitará o objeto [a ser penhorado], qual o seu preço e qual o juro incidente, os profissionais de informação definem qual será o público, isto é, quem serão os usuários de informação efetivos e potenciais. Em ambas as escolhas, consideram-se ou desconsideram-se sujeitos, guardam-se ou compartilham-se recursos materiais e simbólicos. Eis aqui uma observação a ser ponderada. O narrador penhorista, no conto de Dostoiévski, aparentemente tinha consciência da violência simbólica por ele exercida; já os profissionais “usurários” de informação nem sempre a tem. (RABELLO, 2021).

 

De imediato – a despeito da figura do bibliotecário que quer “dominar o mundo” ou da postura centralizadora do profissional “usurário” –, tendemos a responder que o protagonista da biblioteca é o usuário da informação. Essa é uma resposta automática e não se fundamenta em grandes reflexões, mas em quase slogans divulgados na área, boa parte das vezes dissociados do que realmente ocorre. Ao observarmos, no entanto, as ações desenvolvidas pelas bibliotecas, é fácil entender que o verdadeiro protagonista não é o usuário, mas o bibliotecário. Pensando melhor, o protagonista, de fato, é o sistema da biblioteca. Aparentemente, o sistema é algo impalpável, subjetivo, concretizado pelos que atuam no ambiente da biblioteca, mas, mesmo assim, é ele, sistema, que determina e dita regras e normas. A Biblioteconomia tem entre seus objetivos o controle. Essa ideia faz parte do “ideário” biblioteconômico, tanto em concepções basilares da área, como até mesmo denominando ações dela, como o CBU – Controle Bibliográfico Universal. A concepção de “controle” impede a participação de estranhos aos seus “intestinos”. Dessa forma, o usuário, mesmo sendo alardeado como o protagonista da biblioteca, não pode ser considerado como tal. O sistema, apesar de existir concretamente, passa a ideia de algo não presente, de algo cujo controle é exercido pelos que dele fazem parte. Essa expressão – “dele fazem parte”, evidencia o poder escamoteado do sistema, uma vez que, na aparência, os que atuam nos espaços das bibliotecas é que o constroem. Assim, o sistema determina normas, dita regras, impõe olhares, cria impedimentos e forja, no microcosmo aquilo que é prescrito no macrocosmo. Sem os usuários, a biblioteca é mera reprodutora de um sistema bibliotecário que se alimenta em sistemas maiores.

Mesmo, talvez, não sendo conscientemente do mal, os bibliotecários têm comportamento e ações como se o fossem.

Controlar documentos, controlar informações, controlar conhecimentos impede, na maioria das vezes e dos locais, que o diferente surja, que novas ideias e concepções, novas visões de mundo, novas explicações do mundo possam se apresentar.

 

7 CONCLUINDO O QUE AINDA ESTÁ POR SE CONCLUIR

 

Seguindo as concepções hegemônicas sobre a recuperação da informação, esta impede o protagonismo do usuário, na medida em que o idealiza e o transforma em um mero objeto, igualando-o ao acervo, às técnicas, à administração do sistema informacional e aos serviços oferecidos.

O que pretendemos defender, como explicitado no início do texto, é que, acompanhando as ideias mais aceitas e dominantes na área, o entendimento sobre a recuperação da informação deve ser revisado e rediscutido. Dentro dos olhares sobre ela e sobre o usuário, não há possibilidade deste último assumir o papel de protagonista no ambiente e na ambiência da biblioteca. 

Aceitando que a biblioteca, na recuperação, atende as necessidades informacionais do usuário, passa ele a ser o objetivo do fazer das bibliotecas. Mas, não é isso o que ocorre. As necessidades dele, já antecipadamente moldadas, são satisfeitas com base no acervo e nas políticas criadas e implantadas, além dos serviços oferecidos. O usuário sempre foi compreendido pela biblioteca como coisa, como objeto, apesar de os bibliotecários ingenuamente acreditarem no oposto.

Os estudos de usuários, em sua maioria, estão preocupados em analisar a relação deles com o sistema, mas não buscando formas de alterar a estrutura da biblioteca para atender às necessidades, interesses e desejos deles. A procura é por tentar formas que melhorem o que já está posto, que levem os usuários a serem autônomos no processo de recuperação da informação, embora seguindo os instrumentos e ferramentas utilizados pela biblioteca. A relação entre usuário e biblioteca sempre pende para esta.

De maneira próxima ao que ocorre com os estudos de usuários, a educação de usuários também visa dar ênfase à estrutura do sistema e treinar os usuários no uso e emprego do que é oferecido para que eles possam recuperar a informação desejada. Parte-se, tanto nos estudos como na educação de usuários que eles – os usuários – sabem o que precisam e basta oferecer produtos documentários que permitem o acesso a necessidades previamente constatada.  

Como muitos entendem a informação como coisa, o usuário também é entendido da mesma maneira. A coisa nunca será protagonista.

 

REFERÊNCIAS

 

ALMEIDA, M. A. de. Oswaldo Francisco de Almeida Júnior. InCID: Revista de Ciência da Informação e Documentação, [S. l.], v. 7, n. 1, p. 201-217, 2016. DOI: 10.11606/issn.2178-2075.v7i1p201-217. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/incid/article/view/113824. Acesso em: 17 out. 2022.

               

ALMEIDA JUNIOR, Oswaldo Francisco de. Biblioteca pública: avaliação de serviços. Londrina: Eduel, 2003.

 

CHAUÍ, Marilena. A ideologia da competência. In: CHAUÍ, Marilena. A ideologia da competência. Belo Horizonte: Autêntica; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2014 (Escritos de Marilena Chauí, 3).

 

DOSTOIÉVSKI, F. Duas narrativas fantásticas: A dócil e O sonho de um homem ridículo. 3. ed. Trad. Vadim Nikitin. São Paulo: Ed.34, 2011.

 

KURZ, Robert. A ignorância da sociedade do conhecimento. Folha de São Paulo, Caderno Mais, p.14-15, 13 de janeiro de 2002.

 

MORAES, Rubens Borba de. Testemunha ocular (Recordações). Organização e notas de Antonio Agenor Briquet de Lemos. Brasília: Briquet de Lemos, 2011.

 

RABELLO, Rodrigo. “Usurários” de informação: notas quase ficcionais. INFOhome, abr. 2021. Disponível em: https://www.ofaj.com.br/colunas_conteudo.php?cod=1296 Acesso em: 21 out. 2022.

 

RABELLO, Rodrigo; ALMEIDA JUNIOR, Oswaldo Francisco. Usuário de informação e ralé estrutural como não público: reflexões sobre desigualdade e invisibilidade social em unidades de informação. Informação & Sociedade: Estudos, João Pessoa, v.30, n.4, p. 1-24, out./dez. 2020.

 

SANDERSON, Brandon. Alcatraz contra os bibliotecários do mal. São Paulo: Benvirá, 2010.

 

SOUZA, Francisco das Chagas de. O ensino da Biblioteconomia no contexto brasileiro. Florianópolis: Editora da UFSC, 1993.   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1]Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo.

[2]Doutorado em Ciência da Informação pela Faculdade de Filosofia e Ciências.