O valor da desinformação no contexto do capital informação

André Januário da Silva [1]

IBICT/UFRJ

andrejanuario.silva@gmail.com

Valéria Cristina Lopes Wilke 2[2]

UNIRIO

valeria.wilke@unirio.br

___________________________                                                                  

Resumo

O fenômeno da desinformação tem tomado centralidade no debate público nos últimos tempos. As discussões e ações de combate a conteúdos desinformativos têm sido impulsionadas pelos mais diversos setores da sociedade, motivadas, sobretudo, pela massificação da produção, circulação e consumo de fakenews. Entretanto, a desinformação não se restringe apenas ao ambiente da circulação de notícias falsas por pseudo mídias jornalísticas, nem tampouco se caracteriza como um fenômeno novo. É possível remontar outros contextos históricos onde o viés desinformativo tem sido utilizado como política de Estado, estratégia de guerra e produção de consenso em torno de verdades anunciadas. Nesse sentido, o que torna a desinformação um problema tão urgente e atual? Buscando responder essa questão nossa proposta parte de uma discussão teórico-analítica ancorada em uma perspectiva marxiana de economia política. Para tanto, iremos operar com duas noções que consideramos essenciais para elucidar essa questão, sendo elas: a lógica do Capital Informação e a noção de valor no ambiente de uma economia política das plataformas sócio-digitais.

Palavras-chave: Desinformação. Valor da desinformação. Capital informação. Economia política das plataformas sócio-digitais.

THE VALUE OF DISINFORMATION IN THE CONTEXT OF CAPITAL INFORMATION

Abstract

The phenomenon of disinformation has taken center stage in public debate in recent times. The discussions and actions to combat uninformative content have been driven by the most diverse sectors of society, motivated mainly by the massification of the production, circulation and consumption of fake news. However, disinformation is not restricted only to the environment of the circulation of fake news by pseudo journalistic media, nor is it characterized as a new phenomenon. It is possible to reassemble other historical contexts where uninformative bias has been used as state policy, war strategy and consensus production around announced truths. In this sense, what makes misinformation such an urgent and current problem? Seeking to answer this question, our proposal is based on a theoretical-analytical discussion anchored in a Marxian perspective of political economy. To this end, we will operate with two notions that we consider essential to elucidate this issue, which are: the logic of Capital Information and the notion of value in the environment of a political economy of socio-digital platforms.

Keywords: Disinformation. Valueofdisinformation. Capital information. Politicaleconomyofsocio-digital platforms

 

1 INTRODUÇÃO 

Informação é a diferença que faz a diferença

(Gregory Bateson)

A epígrafe acima remete à máxima proferida por Gregory Bateson (1987) em que o autor identificava o caráter dinâmico da informação. Diferentemente da tradição epistemológica que tinha por base as considerações de Shannon e Weaver (1975) a respeito da conceituação de informação, Bateson (1987) destacou que ela é essencialmente relativa, ou seja, tem relação direta com o seu significado. Em outras palavras seria o mesmo que dizer que a informação está intrinsecamente ligada aos quadros de referências e ao contexto no qual ela é utilizada. Sendo assim, a informação estaria diretamente ligada aos efeitos que ela produz. Essa relação traz consigo um direcionamento semântico relativo ao caráter de produção, circulação e consumo da informação, não sendo possível concebê-la como algo invariante. Ao contrário, ela é variável e suscetível aos modos de interpretação e produção de sentidos em seu consumo. 

Desse modo, buscamos discutir o problema da desinformação no cenário contemporâneo, destacando como esse modelo tem sido alimentado pelo modus operandi do atual estágio do capitalismo vigente, considerado a partir da proposta conceitual de Marcos Dantas (1996) e que o designou como capitalinformação.   

Embora a desinformação não seja um fenômeno atual, sendo possível constatar sua presença em diversos outros contextos históricos em que o viés desinformativoinclusive foi utilizado como política de Estado, ou estratégia de guerra, ou de produção de consenso em torno de verdades anunciadas, é na atualidade que elaadquiriu contornos estratosféricos muito em função da massificação da produção, circulação e consumo de notícias falsas, as chamadas fakenews, no espaço da grande rede (internet), em plataformas de mídias infocomunicacionais e aplicativos de mensagens instantâneas. Com isso uma pergunta torna-se fundamental em nossa perspectiva: O que torna a desinformação um problema tão urgente e atual?

Ao examinar a desinformação enquantoproblema que adquire relevância no tempo presente, chamamos a atenção para as condições de produção e reprodução da vida na atualidade,as quais associam, por sua vez, o fenômeno da desinformação à nova faceta do desenvolvimento econômico em vigência. Por conseguinte, o objetivo é abordar a noção de valor no ambiente de uma economia política das plataformas sócio-digitais, em diálogo com a proposta analítica de Dantas (2019)e que incide em uma nova produção de valores, seres e saberes sobre o mundo.

 

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A (DES) INFORMAÇÃO

Faz pouco mais de vinte anos que Pedro Demo (2000) publicou o artigo Ambivalências da Sociedade da Informação onde,com base nas críticas ao modelo de produção de notícias e informações pelas grandes mídias corporativas, destacava o viés ou a tendência da produção de consenso em torno de verdades. Em suas reflexões o autor abordou a desinformação como componente inerente à comunicação humana tanto quanto a informação o é, destacando o caráter semântico da informação como propriedade elementar da dinâmica comunicacional. Com isso, chamou a atenção para a desinformação ponderando os seguintes aspectos: a manipulação da mídia, o excesso de informação, a informação residual (dada em partes) e a desinformação como capital do mundo globalizado. O autor situou a desinformação no mesmo patamar da informação, pois para ele “Desinformar faz parte da informação, assim como a sombra faz parte da luz” (DEMO, 2000, p. 39). Sob esta ótica, a informação em si teria caráter naturalmente ambíguo, uma vez quea ambiguidade seria intrínseco ao fenômeno comunicativo. Desse modo ampliou o caráter da desinformação a praticamente quase todos os tipos de processos comunicativos existentes.

 

Em certo sentido todo processo informativo é manipulador, porque seleciona a informação disponível, além de ainterpretar hermeneuticamente. Esta é a marca do conhecimento como tal: à medida que conhece a realidade, destaca nela o que o método pode captar, além de impingir interpretações orientadas pelo interesse, por vezes escuso. (DEMO, 2000, p, 40). 

                                                                                           

                                                                                              E completou direcionando sua crítica de forma contundente à informação noticiada pela mídia jornalística, sobretudo a televisiva.

A seletividade manipulativa da informação aparece na ênfase sobre notícias favoráveis ao statusquo, bem como na maneira de arrumar as notícias e na retórica e estética que as cercam [...] No quadro social, a “informação” nunca aparece apenas como algo informativo, mas como tática de influência privilegiada.  (DEMO, 2000, p, 40). 

 

Deste modo, as apreciaçõesde Demo (2020) acerca da dinâmica de informar/desinformar remetem ao caráter semântico presente no processo comunicativo, ou seja, a relação de significado que se dará via sujeitos que estão culturalmente contextualizados em determinadas circunstâncias, grupos sociais e que tem como parâmetro determinados quadros de referência. Dito de outra maneira, os quadros sociais que compõem as identidades individuais e coletivas dos grupos sociais são essenciais para a as considerações do que é ou não informação. Por conseguinte, seriam assim a informação e a desinformação fenômenos originados do mesmo processo, embora com sinais inversos.      

A informação é em si ambivalente, tanto em quem a pronuncia quanto em quem a recebe. Em todos os momentos passa pelo filtro da subjetividade, além de sua dimensão estar limitada pelo aparato perceptor e conceitualizador. Mas é esta ambivalência que resgata sempre a possibilidade de criar, inventar. Se tudo fosse apenas lógico, seria apenas repetitivo. O mundo da informação é agitado, conturbado, porque é, ao mesmo tempo, intrinsecamente manipulado e impossível de ser totalmente manipulado (DEMO, 2000, p, 40). 

                                                                                                     

A emergência do problema da desinformação materializado na contemporaneidade de forma maciça por meio defakenews, negacionismo científico, teorias conspiratórias, dentre outras formas, trouxe ao debate público a preocupação acerca dos seus efeitos e custos sociais. Se por um lado a informação agregaria valores de verdade, realidade e conhecimento, por outro a desinformação buscaria se constituir da mesma forma, mas por vias diferentes.                                                                           Don Fallis (2015) argumentou que conceituar a desinformação não é uma tarefa fácil, uma vez que sua definiçãodepende do que entendemos por informação. O autor examinou a desinformação, assim como Demo (2000), como um tipo de informação, mas em sentido contrário, observando que a desinformação buscaria estabelecer-se pelos mesmos caminhos que a informação, embora utilizando critérios diferentes que geralmente são avaliados como negativos. Diante da abrangência do que pode vir a ser determinado como desinformação, Fallis (2015) apoiou-se em alguns pesquisadores do campo da Ciência da Informação (CI) e da Filosofia, sobretudo Luciano Floridi e o subcampo da Filosofia da Informação, para estabelecer três características que julga elementares para determiná-la:

a)    A desinformação é um tipo de informação: consiste em algo representativo do mundo, algo que possui conteúdo semântico. Sob este aspecto a ponderação de Fallis converge com o que nos aponta Demo (2000). 

b)    A desinformação consiste em um tipo de informação enganosa e provavelmente criará falsas crenças. O autor enfatizou esta característica como a mais perigosa e digna de preocupação.

c)    A terceira e última característica importante é que ela não é criada por acidente. A desinformação tem a intencionalidade de enganar[3]

O modelo apresentado por Fallis (2015) reúne alguns elementos importantes para o entendimento da desinformação, sobretudo se ilustramos como pano de fundo as condições de produção atuais, aonde a desinformação encontra um ambiente favorável a sua disseminação, principalmente em sua materialidade mais aparente as fakenews, hiperdimensionadas via aparatos infocomunicacionais. Entretanto, acreditamos que considerar o modelo conceitual desinformativo unicamente pela forma intencional do engano sugere uma redução da desinformação a uma de suas faces. Como vimos em Demo (2000), a desinformação tem um caráter muito mais abrangente, pois ela está associada à ação comunicativa que é em si mesma ambivalente. Sendo assim, a desinformação não se restringe apenas a conteúdos falaciosos disseminados por pseudo mídias jornalísticas, estando presente em diferentes níveis do tecido social e constituindo-se como elemento cultural, político, governamental, econômico, e, sobretudo, estratégico.                                                                                         

Ainda no campo da CI, a reflexão de Rafael Capurro (1992) adotou princípios da Hermenêutica, da Retórica e da Ontologia para estabelecer os domínios de construção do objeto do campo: a informação como materialidade. Em seu já clássico artigo What is information science for? A philosophical reflection apontou, a partir de Schrader, cerca de 180 noções presentes em nossa área na busca por uma delimitação conceitual do termo informação. Para o autor, a busca pela especificação demonstraria uma infiltração inflacionária em torno da informação, uma prática que também poderia ser observada em outros campos do conhecimento dada à centralidade da informação no universo social humano nas últimas décadas.

O autor sublinhou que, com o advento da ciência moderna, o termo informação ganhou um escopo substancial que o definiu em seu sentido contemporâneo, na perspectiva de instruir e fornecer conhecimento sobre algo, embora Capurro (1992) indicasse o fato de que paradoxalmente tanto a CI quanto outras ciências tenham sido influenciadas em sentido epistemológico pelas formalizações de Shannon e Weaver (1975), no desenvolvimento da teoria matemática da comunicação. Esta última desconsiderou as conotações semânticas e pragmáticas da informação, enfatizando o processo de dar forma a algo. “A informação parecia perder sua conexão com o mundo humano, e passou a ser aplicada, como uma metáfora mais ou menos adequada, a todo tipo de processo através do qual algo está sendo mudado ou em forma” (CAPURRO, 1992, p. 83, tradução nossa, destaques do autor).

Ainda naquele contexto, o autor esclareceu que o contínuo desejo do campo da CI em buscar definições acerca da informação contrastaria com a escassez de definições e estudos a respeito da desinformação. Capurro (1992) notou a desinformação como algo negativo em diferentes variantese ratificou a proposta deSchreder: “mentiras, propaganda, deturpação, fofoca, ilusão, alucinação, erro, ocultação, distorção, embelezamento, insinuação, engano” (SCHRADER apud CAPURRO, 1992, p. 82, tradução nossa).

Por fim, o autor entendeu que o valor semântico da informação é o fator preponderante para determinar o que é ou não informação e, por conseguinte também a desinformação. Sustentando-se numa abordagem hermenêutica destacou o papel da interpretação na compreensão dos fenômenos e processos de informação, onde o contexto de formação dos indivíduos e seus espaços de inserção nos grupos sociais dos quais fazem parte, bem como seus quadros de referência seriam fundamentais para a produção de significado do mundo. Desse modo, informação e desinformação seriam antes de tudo, diferentes dimensões do modo humano de partilhar com os outros as suas cosmovisões de mundo e realidade.

À nossa argumentação sobre o fenômeno desinformativosomamos a compreensão de Bateson (1987), para quem a informação seria um produto relativo e dependente do seu significado e contexto. Diferentemente da perspectiva clássica de Shannon e Weaver (1975),que estabeleciam que “Especificamente, informação não deve, por equívoco ser compreendida como significado” (1975, p. 9, destaque do autor), Bateson (1987) trouxeà luz o conceito de diferença como propriedade elementar da informação.

Em sua argumentação Bateson (1987) compreendeu a diferença como sinônimo de mudança, sendo, portanto a informação a diferença que produz diferença, e com isso indicou que é o significado da informação que faz a diferença, em outras palavras, aquilo que produz mudança.                  

Mas o que é uma diferença? Uma diferença é um conceito muito peculiar e obscuro. Certamente não é uma coisa ou um evento. Este pedaço de papel é diferente deste atril de madeira. Há muitas diferenças entre eles – de cor, textura, forma, etc. [...] Obviamente, a diferença entre o papel e a madeira não está no papel; e obviamente não está na madeira; obviamente não está no espaço entre eles, e obviamente não está no tempo entre eles. (A diferença que ocorre ao longo do tempo é o que chamamos de “mudança”) (BATESON, 1987, p. 458, tradução nossa).   

 

E referindo-se à dinâmica da informação destacou que:                                         

Sugiro a você, agora, que a palavra “ideia”, em seu sentido mais elementar, é sinônimo de ‘diferença’. Kant, na Crítica do Juízo -  se eu o entendo corretamente – afirma que o ato estético mais elementar é a seleção de um fato. Ele argumenta que em um pedaço de giz há um número infinito de fatos potenciais. O pedaço de giz, nunca pode entrar em comunicação ou processo mental por causa dessa infinitude. Os receptores sensoriais não podem aceitá-lo, eles filtram. O que eles fazem é selecionar certos fatos fora do pedaço de giz, que então se tornam, em terminologia moderna, informação (BATESON, 1987, p. 459, tradução nossa).     

 

Logo, em desacordo com a materialidade estática da informação, as considerações do autor revestem sua estrutura de um caráter dinâmico, contextual e eminentemente relativo. E sob este ponto de vista,adquire sentido compreender a desinformação como um tipo de informação, porque na dinâmica de compreensão do que é ou não informação persiste a relação de relatividade de seu significado, que nos é contextualizada pelos quadros de referência que compõem nossas identidades sociais. Em outras palavras,é possível afirmar que aquilo que é informação para muitos pode parecer desinformação para outros, e vice versa, dados os quadros que compõem determinadas realidades e cosmovisão de mundo.     

Nossa abordagem até aqui permitiu favorecer um modelo de informação cujas estruturas apontam para um caráter dinâmico, ambivalente e relativo em sua materialidade. Outrossim, vimos que a informação está diretamente ligada ao seu valor semântico, ou seja, aos modos como produz significado. Nessa circunstância, tanto a informação como a desinformação seriam dimensões do modo humano de compreender a realidade. Com isso, em nossa próxima seção discutiremos como a desinformação vem tomando contornos cada vez mais centrais em nossa realidade justificando esse fenômeno a partir da compreensão de um modelo econômico alicerçado na lógica do capitalinformação.

 

3 A DESINFORMAÇÃO NA LÓGICA DO CAPITAL INFORMAÇÃO

 Atualmente o debate acerca da desinformação vem ganhando escala e visibilidade maiores para parte da opinião pública. Alguns eventos ocorridos nos últimos anos tornaram-se relevantes para incendiar as discussões sobre as práticas e custos da desinformação ao redor do mundo. No campo político tivemos a eleição do ex-presidente norte-americano Donald Trump em 2016, a eleição do ex-presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro e a saída do Reino Unido da União Europeia em 2020, sob o comando do primeiro ministro Boris Johnson, reconhecidos fatos políticos marcados pela disseminação de conteúdo desinformativos. Eles são alguns exemplos de como essa nova ordem mundial desinformativa tem se mostrado elementar na atualidade. Em comum, esses três exemplos trazem consigo o fato de terem se constituído a partir de campanhas maciças no espaço das infovias, ou seja, por meio das redes infocomunicacionais, e por se arregimentarem através de campanhas que tinham como principal elemento o uso indiscriminado da desinformação, através de fakenews disseminadas em plataformas sócio-digitais como Twitter e Facebook e aplicativos de troca de mensagens instantâneas como o Whatsaap e Telegram (CARVALHO, 2020).

Desse modo, podemos salientar que a prática antiquíssima de desinformar adquiriu nova roupagem no panorama atual muito devido à difusão de um novo modelo social de existência que se configura substancialmente pela organização em redes, pelas transformações sócio-culturais engendradas pelo paradigma tecnológico oriundo das tecnologias da comunicação e informação e pelo protagonismo da informação como dispositivo elementar do atual estágio do capitalismo. Sob este último aspecto repousa nossa hipótese de que a desinformação tem se constituído como valor de mercado na atual fase do capitalismo, aqui apreciado desde o modelo de capitalinformação, postulado por Marcos Dantas (1996). 

Ao traçar um panorama do desenvolvimento das telecomunicações e das tecnologias como um todo em relação aos processos sócio-culturais e econômicos ao longo do século XX, Dantas (1996; 1999) registrou que há uma importante convergência das tecnologias da comunicação e informação com uma nova formatação econômica que toma a informação como base para a expansão de mercados, acumulação de riquezas e novas relações de exploração do trabalho que culminarão na atmosfera que vivemos nos dias atuais.    

O potencial infocomunicacional das tecnologias atreladoàs mais diversas relações sociais do cotidiano tenderiam a constituir a percepção de um modelo progressista e desenvolvimentista desse novo ambiente na vida humana. O aparente caráter democratizador das infovias, que permite a comunicação direta entre um ou mais usuários por diferentes canais midiáticos, se dissolveu, entretanto, em uma lógica reprodutiva marcada pela espetacularização da realidade e por uma lógica de exploração do usuário consumidor dentro de um sistema incessante de retroalimentação de dados, com a finalidade de perfilar tendências e agrupamentos, e que tem gerado lucros estratosféricos para as grandes corporações que exploram esse mercado.      

 

[...] na medida em que as redes, crescentemente interativas, sirvam fundamentalmente ao transporte da informação que interesse à acumulação capitalista. A interatividade, então, longe de vir a ser uma prática real da democracia, não passará de um ato de escolha plebiscitária entre as opções oferecidas pelo “mercado”, ou seja, valorizadas pelo capital. O mais grave é que este “mercado” tende a ser cada vez mais um mercado de idéias, vistas não como exercício de racionalidade autônoma destinado à construção de um homem livre e senhor de seu mundo, mais como “produtos” que se compram e vendem em função das estratégias de acumulação dos produtores culturais, sejam estes industriais do cinema ou do disco, produtores de programas de computador, ou projetistas e fabricantes de automóveis, peças de vestuário e etc. (DANTAS, 1996, p. 123).

                                                                                           

As circunstâncias apontadas por Dantas (1996) notadamente nos apresentam um sólido terreno para a ambiência das sociedades em redes, sendo, portanto, um possível caminho para o entendimento de como a desinformação se tornou uma prática elementar na chamadaera da informação e do conhecimentopresentificada no horizonte da sociedade em rede. Dessa sociedade interligada em redes emergiu um novo modelo de comunicação, baseado nas mídias digitais, as quais possibilitaram a ampliação da capacidade dos meios de comunicação mediados por máquinas tradicionaise promoveram um modelo de comunicação Todos-todos, aonde é possível a todos aqueles que estão conectados produzir, enviar e receber informações em qualquer lugar do mundo de modo quase instantâneo. Igualmente, esse mesmo aparato tecnológico promoveu a conversão de sons, textos e imagens em algoritmos responsáveis pela modulação do ciberespaço que favoreceu um modelo comunicacional que, ao romper com a maneira como a informação era produzida e disseminada pelas mídias tradicionais (rádio, cinema, TV), ensejou novo modelo de interatividade descentralizada. Nesse cenário, cada sujeito conectado torna-se ao mesmo tempo um agente receptor, produtor e disseminador de conteúdos informacionais, embora nessa lógica o espaço da web continue nas mãos de poucas corporações proprietárias que detêm os monopólios globais, como veremos mais adiante. 

 

Novos modos de existência no mundo do capital informação

 

Wilke (2019) argumenta que no atual estado das coisas no universo contemporâneo, associado por redes de informação, os seres estariam enfeixados pelas infovias, pelos instantâneos fluxos informacionais e pelos monopólios das grandes corporações. Para ela, há na configuração da desinformação uma clara crise do ambiente democrático, pavimentado por esses três elementos o que tem possibilitado a proliferação do viés desinformativo em diferentes campos sócio-culturais e econômicos. Dentre os elementos identificados estão:

1.     A desestruturação e a reestruturação das instituições políticas e dos mecanismos ligados as relações e formas de exercício do poder.

2.     O surgimento de novos atores políticos, onde inclui também os atores digitais como os robots ou bots (Aqui ampliaríamos esse leque para o surgimento de digital influencers e youtubers).

3.     O questionamento dos direitos à informação pelos indivíduos conectados, fato que expôs o embate entre capital e cidadãos.

4.     Mudanças no escopo do trabalho (nas formas, nas relações, na regulamentação e na teorização), uma vez que o caráter informacional presente nele tem se tornado mais evidente, assim como a informação tem tomado papel central na valorização do capital.

5.     O fato de que com o aumento do trânsito informacional também nota-se o aumento do trânsito desinformativo, através de informações falsas ou fraudulentas.

6.     As infovias tornaram-se também espaços de intolerância, do arbítrio e da violência, o que põe em xeque o status democrático de sociedade da informação e o sentido de cidadania digital.                    

Muitos desses elementos apontados convergem diretamente com o entendimento da noção de capitalinformação. Dantas (2016) considera como características inerentes a essa nova fase do capital a valoração do poder da marca e a do espetáculo como modos de conceber a realidade e a existência dos seres no mundo. Por conseguinte, enfatizou a formação de corporações-rede como um fenômeno de organização do modusoperandi de produção industrial nosfins do século XX, e que se tornou cada vez mais consolidada nos dias atuais. As corporações-rede surgiram por sua vez, em um cenário onde as indústrias financeiras passaram a contratar firmas autônomas em países periféricos ou/e em regiões em desenvolvimento para a execução de atividades de montagem e fabricação de sua produção, caracterizando assim essa nova etapa de organização e produção industrial. Daí, estas corporações redesenharam a divisão internacional do trabalho e apresentaram uma nova face de acumulação flexível em oposição à outrora rigidez do padrão fordista. Em um exercício de identificação desse novo modelo, Dantas utilizou como exemplo a produção da grife multinacional de moda italiana Diesel, onde observou que esse novo universo estariacaracterizado pela precarização e fragmentação do mundo do trabalho, pela concentração unilateral do lucro no ambiente dessas corporações e pela fetichização da marca. Buscando indagar porque alguém pagaria tão caro por produtos que possuem valor de custo muito menor do que é cobrado, Dantas (2016) concluiu que a motivação se dá pela marca, aqui caracterizada como objeto de distração. Assim, a marca se torna signo de pertencimento social.

De modo análogo, as grandes corporações da internet tais como Facebook, Twitter, Youtube, dentre outras, direcionam a própria rede em si para uma lógica que se constitui através de atores/usuários midiáticos, engajados no trabalho gratuito e propagandista de suas plataformas de mídias sóciointeracionais.  

 

O valor da informação realiza-se na ‘comunicação’ tornara comum. Como a ação é constitutivamente interativa; como o agente está em relação ativa com outros agentes também ativos e com os eventos em um ambiente comum; o valor será o produto das seleções e resultados desse conjunto de forças [...] Não sendo ‘coisa’, mas ‘relação’, a informação é ‘indivisível’ e ‘aditiva’: comunica-se a ação, para isto não sendo necessário intercambiarem-se os objetos ou instrumentos dessa ação (DANTAS, 2016, p. 69).

 

Tomando por base analítica um modelo semiótico para suas considerações Dantas (2016), explicou que o signo é essencialmente revestido de uma materialidade e é por meio dela que o indivíduo se relaciona com seu ambiente, o que no modelo informacional permite dizer que “O material sígnico é a forma que a informação assume para espécie humana, cuja relação neguentrópica com a natureza é constitutivamente medida pela cultura, daí pelos sistemas de signos que expressam a cultura, a começar pela língua” (DANTAS, 2016, p. 71-72). Com isso, o autor defendeu a ideia de que nós seres humanos estamos imersos nos signos, do mesmo modo que estamos imersos na atmosfera, pois a humanidade não vive sem estar num sistema de signos.   

Tendo por base esse raciocínio semiótico, estaríamos trabalhando sempre que falamos, ouvimos, escrevemos, fato que implicaria trabalho nas mais diferentes formas de inserção social, até mesmo quando nos divertimos. Assim, “o trabalho humano é antes um trabalho material sígnico que será impresso, moldado, pelo trabalhador, em outro objeto que ele submete a algum processo de transformação” (DANTAS, 2016, p. 77). Valendo-se da ideia de Robert Heilbroner, que considerava que no capitalismo tardio a busca pelo sucesso nos obrigaria a trabalhar, o autor adicionou a esse caráter o componente de valor associado ao trabalho, o que motivaria e mobilizaria as sociedades, no horizonte contemporâneo, sobretudo, nos espaços das infovias.  

A esta discussão podemos acrescentar a contribuição de Jeanneret (2015) que ao problematizar de forma crítica as chamadas “redes sociais” como dispositivos infocomunicacionais, assinalou a incompatibilidade do termo, uma categoria sociológica, na definição das mesmas. Para o autor, essas mídias se constituem como um evento com um projeto de transfigurar nosso ambiente cultural; como um estado definido da relação entre mídia e texto; como um novo momento na economia política da circulação de saberes sobre as coisas. Outro ponto destacado por ele estaria na lógica de apresentação dessas mídias infocomunicacionais a partir da concepção de que elas seriam o verdadeiro lugar da comunicação no universo contemporâneo, através do apelo social que implica na fabricação de cidadãos consumidores necessitados de ‘estarem ali’, como forma de se sentirem como sujeitos que agem na realidade social. Esse desejo angustiante de pertencimento estaria revestido de uma nova lógica de modelo intelectual de referência e também de consumo. Jeanneret (2015) chamou atenção para a indispensabilidade dessas mídias no cotidiano, destacando que sob diferentes espectros elas se apresentam como único lugar possível de interação social, atribuindo a toda uma geração o aspecto de nativos digitais. Com isso, eleconcebeu essas mídias como “um composto que liga universos de discurso, propriedades pragmáticas dos dispositivos, imaginários da visibilidade social, envolvimento dos atores e dinâmica de trocas comunicacionais (JEANNERET, 2015, p. 13). Partindo do princípio de que essas mídias se constituem como ferramentas de uso, Jeanneret (2015) propôs enxergá-las a partir da noção de ferramentas-marca, pois em seus domínios se apresentam como ferramentas que possuem marcas identitárias muito fortes na sociedade e na vida cotidiana dos indivíduos. Desse modo, dois fenômenos são imprescindíveis para o entendimento de suas dinâmicas. Em primeiro lugar, a posição hegemônica desses dispositivos, algo que segundo ele não é usual levando em conta um mundo onde o uso é comumente garantia de imprevisto e diferença. Em segundo lugar, os usuários são promovidos a atores voluntários com a tarefa de fortalecer essas ferramentas-marca, ou seja, estimular e disseminar seu uso através do trabalho voluntário por meio do engajamento de utilização das mesmas.

Em relação à segunda proposição presente na lógica do capitalinformação,o espetáculo como modo de vivência da realidade, Dantas (2016) a apresentou como uma das principais características de um processo de produção que visa constituir consumidores compulsivos em torno de bens com durabilidade prevista. Nessa perspectiva incluem-se não somente os aparatos infocomunicacionais como smartphones, smartvs, games dentre outros dispositivos, imprescindíveis para a manutenção do mercado da navegação, mas também as próprias plataformas sócio-digitais e seus aplicativos de consumo diário, que ditam as regras do jogo da vida em torno da massificação de comportamentos e modos de ser e estar no mundo. Amparado pelas considerações de Guy Débord (1997), o teórico enfatizou que esse sistema info-comunicacional, surgido em fins do século XX e cada vez mais consolidado nos dias atuais, tem como premissa a construção de uma mentalidade que busca a felicidade por meio do sucesso medido pelo consumo, algo que viria sendo pavimentado ao longo do século XX, como já apontava o pensador francês.        

Para Débord (1997), parte da realidade é considerada como sua unidade, um pseudo-mundo, objeto de pura contemplação. É nesse contexto que ele apontou para um mundo onde reinaria a espetacularização como uma inversão concreta da vida. O espetáculo foi considerado como parte da sociedade e também como seu instrumento de unificação.  O espetáculo teria sido transformado em uma relação social entre pessoas, midiatizado por imagens, constituindo-se assim como um modo de cristalização do mundo. Esse modelo de produção seria simultaneamente resultado e projeto desse modo de produção, que se constituiu como modelo dominante. Nesse sentido, a realidade passaria a ser atravessada pela espetacularização da vida e “a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo no real. Esta alienação recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente” (DÉBORD, 1997, p. 16).

O conceito de espetáculo unificaria e explicaria uma soma de fenômenos diversos e aparentes. Se por um lado o espetáculo é a afirmação da aparência em relação à realidade humana, por outro, a crítica debordiana o concebeu como a negação do visível da vida. Por conseguinte, nesse cenário persistiria a sociedade superficial e passiva fundamentada na espetacularização. Em decorrência, vislumbramos que o princípio da sociedade atual esteja baseado no modelo econômico de produção de imagens-objetos, que refletem diretamente esse espírito de espetacularização da realidade. Nesse panorama, omundo realpassa a vigorar enquanto conjuntos de imagens espetacularizadas que se tornam motivações eficientes para atrair os humanos para uma espécie de estado hipnótico sobre a própria realidade em si,transmutando a conjuntura a vida em uma crescente acumulação de resultados econômicos, em queaquilo que caracteriza o ser é redimensionado para a “essencialidade” do ter. Tenho, logo existo. Ter e parecer tornam-se os elementos mais importantes que a própria funcionalidade do objeto obtido (DÉBORD, 1997).

A aparência fetichista de pura objetividade nas relações espetaculares esconde seu caráter de relação entre homens e entre classes: uma segunda natureza parece dominar o nosso meio ambiente com as suas leis fatais. Mas o espetáculo não é necessariamente um produto do desenvolvimento técnico do ponto de vista do desenvolvimento natural. A sociedade do espetáculo é, pelo contrário, uma formulação que escolhe o seu próprio conteúdo técnico (DÉBORD, 1997, p. 21).

                                                      

Por conseguinte a administração dessa sociedade e o contato e relações entre seres humanos passam a ser exercidos por meio deste poder de comunicação instantâneo, tornando-se desse modo um meio de comunicação unilateral, concentrado e acumulado nas mãos de quem exerce a administração do sistema existente. O crescimento econômico volta-se para si mesmo e a humanidade é alienada no universo da produção e do trabalho e no seu momento de consumo dos bens selecionados pelo sistema espetacular, que reforçaria as condições de isolamento das “multidões solitárias”. “O espetáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se toma imagem” (DÉBORD, 1997, p. 27).

O interesse das corporações redes como Facebook, Instagram, Twitter, Whatsaap, Telegram, Spotfy, dentre outras estaria em constituir uma nova lógica de audiência, que consome, produz e dissemina informações, com a finalidade de acumular riquezas e garantir a manutenção dos mercados dessas grandes empresas.

As redes sócio técnicas nos fornecem um novo espaço, muito mais direto e universal, de participação no espetáculo, de busca de fama, ainda que instantânea e volátil numa sociedade, aliás, onde o sucesso (de produtos, de músicas, de pessoas) deve ser veloz e descartável (DANTAS, 2016, p. 103).

4 A ECONOMIA DAS PLATAFORMAS SÓCIODIGITAIS E O VALOR DA DESINFORMAÇÃO

No artigoThe financial logicof internet platforms, Marcos Dantas (2019) apresentou apontamentos e dados que sustentam nossa ideia de conceber a desinformação como um fenômeno social fortemente atrelado a uma economia das plataformassócio-digitais. O autor destacou uma virada do capital em torno de uma economia que possui como atributos a constante coleta de dados de usuários e a programação de sistemas de informação segundo a lógica de hiper-consumo. Ao apontar para a economia de plataformas sócio-digitais, Dantas (2019) sublinhou que empresas como Alphabet/Google, Amazon, Facebook e outras Big Techs similares, possuem em comum o fato de se constituírem como infra-estruturas físicas e lógicas para o processamento e a comunicação de dados e informações que permitem que dois ou mais usuários interajam entre si (DANTAS, 2019). Essas interações ocorrem em um tripé de ações em rede que se enquadra em ações recreativas, profissionais e comercias. Os atores envolvidos nessas redes infocomunicacionais podem ser compradores ou vendedores de bens e serviços, anunciantes de marketing, desenvolvedores de softwares, ou em sua maioria apenas usuários consumidores trocando mensagens com outros usuários comuns sobre questões cotidianas ou se engajando em atividades de lazer para ocupação de seu tempo livre. 

Apesar de suas aparentes diferenças, as ‘redes sociais’ ou ‘mídias sociais’ como o YouTube e o Facebook, mecanismos de busca como Google, serviços audiovisuais como a Netflix ou grandes lojas ‘virtuais’ como Amazon, Alibaba ou e-Bay são todos semelhantes em substância: funcionam como grandes marketplaces, ‘um lugar’ onde compradores e vendedores de bens e serviços se reúnem para negociações diretas sobre suas condições de oferta e demandas. Essas PSDs (Plataformas Sócio-Digitais) obtém suas receitas e lucros principalmente com a monetização de dados extraídos de seus usuários, sendo esses usuários ‘consumidores’, ‘anunciantes’, bens ou serviços, ‘vendedores’ e assim por diante (DANTAS, 2019, p. 132, tradução nossa). 

                                                                                      

Ainda de acordo com Dantas (2019), em 2017, o mercado de plataformas da internet gerou cerca de US$ 223 bilhões somente em publicidades. Um terço do total dessa soma foi capturado pela Alphabet, holding que controla o Google. Considerando as ações nas bolsas de valores, o valor de mercado das 20 maiores empresas que controlam essas plataformas baseadas em dados de usuários, atingiu US$ 3,8 trilhões no mesmo ano de 2017. Essas empresas mantêm um vínculo estreito com o capital financeiro, algumas sendo diretamente controladas por investidores e especuladores nos mercados de ações e derivativos. No Facebook, 1.435 instituições financeiras, fundos mútuos ou outros investidores institucionais ou individuais detêm 68% do capital social (DANTAS, 2019).

Soma-se a esses dados a lógica de alimentação de dados dos usuários, substancial para a manutenção do mercado dessas Big Techs, uma vez que é a lógica de inserção permanente de dados que constitui a fonte de lucro da economia das plataformas sócio-digitais. Cabe aqui ressaltar que um dos maiores escândalos dos últimos tempos, nessa seara, deu-se em torno do mercado de venda de dados, após descobrirem o negócio envolvendo a venda de dados sensíveis de usuários do Facebookpara a Cambridge Analytic, de Steve Bannon, empresário pertencenteà extrema-direita dos EUA, no contexto das eleições norte-americanas de 2016. Aquelas eleições acabaram sendo vencida pelo então candidato republicando Donald Trump, ligado a setores da ultra-direita norte-americana. 

Bannon também esteve presente na formatação da campanha eleitoral de Jair Bolsonaro, para as eleições presidenciais de 2018. Assim como na eleição de Trump, a campanha do então candidato Bolsonaro foi marcada por diversas denúncias de registros de compra e manipulação de dados de usuários e disparo em massas de fakenews por aplicativos de mensagens instantâneas como o Whatsaap, tendo como alvo principal o candidato Fernando Haddad e seu partido o Partido dos Trabalhadores (PT), principal adversário naquele pleito (MELLO, 2020).   

No cenário brasileiro, em particular, a prática dos monopólios das redes de telecomunicações oferecem sólido esteio de favorecimento a prática da desinformação. Embora os números apresentem que mais de 70% dos brasileiros tenham acesso à internet, um número muito reduzido de usuários de fato possui uma navegação de alta qualidade. São poucos aqueles que detêm em casa, rede de banda larga e acesso irrestrito de navegação. A prática da maioria das redes de telefonia e internet móvel consiste em dar acesso irrestrito de navegação a alguns aplicativos de mensagens, sobretudo aqueles ligados a empresa Meta, detentora do Facebook, Instagram e Whatsaap, que tem no Brasil um dos países com maior número de usuários no mundo. Entretanto, os mesmos usuários não têm acesso irrestrito para dados de navegação em outros sites e páginas da internet. Em tese isso significa que eles podem receber e encaminhar notícias, correntes de mensagens e informações irrestritamente, sem, contudo verificarem o teor verídico das mesmas.    

De modo similar a Dantas (2019), Wilke (2019) apontou para o fato de que o ambiente da desinformação apoia-se num paradigma comunicacional relacionado a todos-todos, ou seja, onde cada cidadão se torna indivíduo em potencial com capacidade para criar opiniões, conteúdos e notícias acerca de qualquer fator social. Além disso, esse mesmo indivíduo interconectado pode editar e divulgar conteúdos em massa devido à capacidade técnica proporcionada pelas tecnologias de informação digital. Com isso, teria surgido uma nova classe de legitimadores da informação e formadores de opiniões que põe em xeque a competência epistêmica na produção de conteúdos e especialidades informacionais, sendo estes: youtubers, blogueiros, digital influencers, dentre outros que se tornaram personalidades instantâneas dadas às possibilidades de interação imediata proporcionada por esse novo paradigma de comunicação, e por uma economia alicerçada nas plataformas sócio-digitais.     

Outra problemática ressaltada pela filósofa diz respeito ao controle e poder exercido na internet. Ou seja, no universo conectado e controlado por essas grandes empresas de plataformas sócio-digitais, o poder de formação do pensamento de cidadãos conectados à chamada aldeia global, muitas vezes é maior que seus próprios estados-nação. “Esse componente gera dificuldades tremendas, pois essas gigantes empresas de informação estão, no mais das vezes, para além do controle público e social de suas responsabilidades como, por exemplo, as relacionadas às causas e efeitos das fakenews” (WILKE, 2019, p. 387). De modo análogo, Dantas (2019) chamou a atenção para o imenso poder de influênciaque estas empresas possuem em seu cerne constituidor. Nesse sentido, as políticas de acúmulo de capital não estariam preocupadas em pautar valores morais ou éticos na lógica dos conteúdos por elas disseminados. Pesquisas realizadas desde o ano de 2016 apontam que notícias fraudulentas geram muito mais lucro e repercussão que em períodos anteriores, em decorrência da velocidade pelo qual são disseminadas e pelo alcance em larga escala (WILKE, 2019).

Dantas (2019) ponderoutambém que a economia das plataformas sócio-digitais atuam de acordo com a lógica prevista por Karl Marx emO Capital, ou seja,quando reduzem a circulação e o tempo do capital ao limite de zero, fato que tem gerado lucros estratosféricos ao capital financeiro. Se considerarmos a desinformação como um tipo de informação em sentido invertido ela, tal qual a informação, se constitui como a principal fonte de lucro dessas plataformas. Assim, temos no trabalho informativo e desinformativo realizado por milhões de usuários em todo mundo, o modus operandi que arregimenta a manutenção desse modelo econômico, tornando assim usuários/produtores/consumidores de (des) informação peças fundamentais na geração de lucro dessas Big Techs.  

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho buscamos problematizar a desinformação à luz do que percebemos na atualidade destacando como ela tem tomado centralidade em diversos eventos sociais no mundo contemporâneo. Embora reconheçamos tratar-se de um fenômeno antigo que pode ser observado em outros contextos históricos através de políticas de Estado, estratégias de guerra e produção de consenso em torno de verdades disseminadas, ressaltamos que este fenômeno vem tomando proporcionalidade preocupante muito em parte a massificação da produção, circulação e consumo de notícias falsas, ou seja, das fakenews.

Compreendendo informação como ambivalente, dinâmica e contextual (DEMO, 2000; BATESON, 1987) em sua materialidade e em face ao caráter comunicativo, consideramos a desinformação como um tipo de informação que busca se constituir no mesmo modelo da informação, embora em sentido inverso (CAPURRO, 1992; FALLIS, 2015), o que incide diretamente na relativização do que compreendemos por verdade, realidade e factualidade, princípios elementares para a formatação das identidades, pertencimentos e constituição dos grupos sociais.         

Tendo como horizonte a questão da desinformação como um problema urgente e atual, nossa hipótese volta-se ao modusoperandi do capitalismo em sua face contemporânea, aqui compreendido a partir das considerações de Marcos Dantas (1996; 2016; 2019) em torno da noção de capitalinformação. Dentre os muitos elementos destacados nessa nova perspectiva de produção do sistema capitalista destacam-se o fetichismo da marca e a espetacularização da realidade como dois conceitos oriundos de uma crítica marxiana, que buscam compreender os quadros sociais constitutivos de cidadãos e sociedade em nosso universo de existência.  

Assim, temos na lógica do capitalinformação um processo de acumulação de riquezas que se dá via trânsito informacional, através dos processos infocomunicacionais no espaço das infovias. Isso implica dizer que o processo de produção, circulação e consumo de informação torna-se a principal fonte de lucro das grandes corporações que controlam a grande rede (internet) ao redor do mundo. Nesse sentido, produzem-se cidadãos consumidores que para além de mantenedores do mercado das Big Techs, atuam como fontes de riqueza, uma vez que fornecem dados continuamente, estes são elaborados e comercializados pelas grandes corporações de modo a gerar lucro e expandir o mercado bilionário das infovias. Podemos assim dizer que é a lógica desse mercado e as contradições do próprio capitalinformação, que tem pavimentado o ambiente para a prática da desinformação.

 

 

REFERÊNCIAS

BATESON, G. Stepstoanecologyofmind: collectedessays in anthropology, psychiatry, evolutionandepistemology. Northvale, London: Jason Aronson Inc, 1987.

CAPURRO, R. Whatisinformationsciencefor? A philosophicalreflection. In: VAKKARI P.; CRONIN, B. (ed). Conceptionsoflibraryandinformationscience; historical, empiricalandtheoreticalperspectives. In: INTERNATIONAL CONFERENCE FOR THE CELEBRATION OF THE 20TH ANNIVERSARY OF DEPARTMENT OF INFORMATION STUDIES, UNIVERSITY OF TAMPERE, FINLAND. 1991. Proceedings... London, Los Angeles: Taylor Graham, 1992.p. 82-96. 

CARVALHO, P. R. Conexão informacional entre campanhas eleitorais: análise de estratégias e postagens no Facebook. 2020. 163 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação). Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Rio de Janeiro, 2020. 

DANTAS, M. A lógica do capital informação. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

DANTAS, M. Capitalismo na era das redes: Trabalho, informação e valor no ciclo da comunicação produtiva. In: LASTRES. H. M. M.; ALBAGLI, S. (org.). Informação eglobalização na era do conhecimento. Rio de Janeiro: Campus, 1999.

DANTAS, M. The Financial Logicof Internet Platforms: theTurnover Time of Money attheLimitof Zero, TripleC, v. 17, n. 1, 2019. Disponível em: https://www.triplec.at/index.php/tripleC/article/view/1088. Acesso em: 05 mar. 2022. 

DANTAS, M.Trabalho material sígnico e mais-valia 2.0 nas condições do capital-informação. In:SIERRA CABALLERO, Francisco (Coord.). Capitalismo cognitivo y Economia Social del Conocimiento – La lucha por el Código, Quito (ECU): CIESPAL, 2016. Disponível em: httpp://marcosdantas.com.br/conteudos/2018/08/11/trabalho-material-signico-e-mais-valia-2-0-pp-58-112-do-livro/. Acesso em 08. Abr. 2022.

DÉBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.     

DEMO, P. Ambivalências da sociedade da informação. Ciência da Informação. Brasília, v. 29, n.2, p. 37-42, maio/ago. 2000. Disponível em: revista.ibict.br/clinf/article/view/885 Acessoem: 08 abr. 2022.

FALLIS. D. Whatisdisinformation? Library Trends. v. 63, n. 3, p. 401-426, 2015.  Disponível em: https://www.ideals.illinois.edu/bitstream/handle/2142/89818/63.3.fallis.pdf. Acesso em: 03 jan. 2022.

JEANNERET, Y. Analisar as ‘redes sociais’ como dispositivos   infocomunicacionais: uma problemática. In: TOMAÉL, M. I; MARTELETO, R. M. (orgs). Informação e RedesSociais: interfaces de teorias, métodos e objetos. Londrina: Eduel, 2015, p. 11-31.

           

MELLO, P. C. A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fakenews e violência digital. São Paulo: Cia das Letras, 2020.

SHANNON, C.; WEAVER W. Teoria matemática da comunicação. São Paulo: Difel, 1975.

WILKE, V. C. l. No tempo das fakenews e da pós-verdade: política, democracia e literacia midiática. In: CONGRESSO LITERACIA, MEDIA E CIDADANIA, 5., 2019. Rio de Janeiro, RJ. Anais eletrônicos [...] Rio de Janeiro, RJ, Centro de Ciências Humanas e Sociais da UFRJ. p. 381-398, 2019. Disponível em: http://www.lasics.uminho.pt/ojs/index.php/cecs_ebooks/article/view/3250/3144. Acesso em: 04 abr. 2022.

 

           

 



[1]André Januário da Silva: doutorando em Ciência da informação pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação, membro do grupo de pesquisa CoMarx, coordenado e orientado pelo Prof. Dr. Marcos Dantas. Possui mestrado em Memória Social e graduações em Arquivologia e Museologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).       

[2]Valéria Cristina Lopes Wilke: docente do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Doutora em Ciência da Informação (IBICT/UFF).Mestre em Filosofia (UFRJ). Graduação em Filosofia (UFRJ) e em Comunicação Social (UFMG).

[3]Aqui cabe ressaltar que desinformação no contexto da língua inglesa possui dois termos abrangentes para determinar seu significado.  O primeiro é misinformation, que é definida como informação falsa ou má informação, sem intencionalidade de enganar, o que poderia ser traduzido para a língua portuguesa como uma informação equivocada que induz ao erro, sem intencionalidade. O segundo termo é disinformation, que é aquela informação criada com a intencionalidade de enganar.