O CONCEITO DE JUSTIÇA PÓS-CONVENCIONAL

dilemas entre Israel e Atenas, a aliança e o contrato[1]

 

Jovino Pizzi[2]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

1 INTRODUÇÃO

O título do texto parece, evidentemente, um tanto atípico. No entanto, trata-se de salientar um aspecto importante, principalmente relacionado a textos de Habermas publicados nos últimos anos, dos quais se pode destacar Israel ou Atenas. Ensaios sobre religião, teologia e racionalidade e, ainda, os diversos textos da ob ra Entre naturalismo e religião. Na verdade, alguém teria dito que Habermas tinha pouco a dizer sobre religião, mas esses textos indicam o contrário (Pizzi, 2001). Nesse horizonte de discussões, parece que se evidencia uma questão importante, não apenas em relação ao lugar da religião e de seus conteúdos cognitivos, mas também ao tema da justiça. No fundo, a interrogação investiga saber por que Habermas diz que a justiça é a outra face da solidariedade (1991, p. 199); todavia, quando é chamado a definir justiça, ele a relaciona com o nível seis do juízo moral e, por isso, passa a localizá-la na esfera política, isto é, no âmbito do contrato – ou, como alguns preferem, nos limites do constitucionalismo.

Essa questão ganha novos contornos com o giro ético da filosofia. Nesse processo, ele vai ampliando suas considerações a respeito da ética. O ethical turn, ou seja, a mudança ética salienta outra direção para a filosofia e, ao mesmo tempo, uma reconfiguração no âmbito moral. Essa preocupação promoveu uma transformação na filosofia e, conseqüentemente, da própria ética. Essa modificação significa um novo impulso para a filosofia prática, ou seja, ela representa um novo saber dentro da filosofia prática, mais especificamente, no campo da ética e da filosofia moral. No Brasil, o debate obteve maior receptividade fora do âmbito acadêmico.

Sem dúvida, o próprio Habermas é um dos protagonistas dessa mudança. As primeiras obras de Habermas – Ciências e técnica enquanto ideologia e Conhecimento e interesse – evidenciam uma forte crítica ao reducionismo cientificista. Com a Teoria do Agir Comunicativo, há um profundo exame à teoria do sistema, que coloniza o mundo da vida e reduz o agir ao modelo instrumental. A essa altura, é saliente também o questionamento não apenas em relação ao monopólio das ciências e da burocratização das relações, especialmente da institucionalização do direito positivo. Além disso, começa a evidenciar-se outro aspecto, o reducionismo racional, isto é, à delimitação de todas as esferas da vida humana ao âmbito eminentemente laico. Os processos de entendimento estão vinculados ao procedimento comunicativo entre sujeitos-agentes. Esse entendimento ocorre diante do desencantamento religioso do mundo. Nessa configuração, o discurso religioso permaneceria ausente. Todavia, a obra Zwischen Naturalismus und Religion (2005) trata de reconsiderar a “abertura da filosofia para com os possíveis conteúdos da religião” (Habermas, 2006, p. 251); não apenas à religião, senão também à razão anamnésica, entre outros âmbitos.

Sem dúvidas, essa proposta não está isenta de altercações, nem é tão simples como pareceria. No entanto, há nisso uma plausibilidade inegável e, portanto, exige um tratamento filosófico. Como motivação inicial, salienta-se a nova configuração à questão da racionalidade, aspecto inerente ao giro ético e constitutivo da teoria do agir comunicativo (2.0). Em seguida, pretende-se abordar o novo status da justiça a partir de tradições diferentes, especialmente através da denominação aliança e contrato (3.0). O último aspecto busca delinear alguns aspectos que essa configuração exige do âmbito moral (4.0).

 

2 O GIRO ÉTICO E A QUESTÃO DA “RACIONALIDADE”

 

A introdução da obra Teoria do Agir Comunicativo começa com uma frase relativamente difusa. Refiro-me à segunda frase de Habermas: “o tema fundamental da filosofia é a razão” (TAC I, 1987, p. 15). Mas adiante, quando procura definir o conceito de razão, o faz de forma um tanto introdutória e todos sabemos que, ao final, seu conceito pode ser denominado como racionalidade ético-comunicativa (Cf. Pizzi, 1994).

Aprofundando a leitura do texto introdutório do primeiro volume da referida obra, visualizamos uma contextualização mais detalhada de Habermas a respeito dessa assertiva: “pensamento filosófico nasce da reflexividade da razão encarnada no conhecimento, na fala e nas ações” (TAC I, 1987, p. 15). Na verdade, o telos da pragmática universal é o acordo. Todavia, além da estrutura metodológica desse procedimento, o desempenho do sujeito pressupõe a capacidade de comunicação. E, por isso, o entendimento presume uma compreensão dos diferentes “discursos”, por assim dizer. Para Habermas, os atos de fala têm a presunção de indicar pretensões universais de validade e supor que tais pretensões possam ser colocadas em prática (Habermas, 1989, p. 300). A bem da verdade, essa idéia apresenta um aspecto essencial, pois os sujeitos-participantes necessitam entender os diferentes “discursos”, ou seja, a distintas referências ao mundo, no qual encontramos, entre outros aspectos, o horizonte científico e, inclusive, o âmbito religioso.

Para tentar explicar essas distintas esferas ou “discursos”, creio que há um elemento importante. Por certo, a reflexividade da razão encarnada está presente – como Habermas indica acima – no conhecimento, na fala e nas ações. Essa é a porta de entrada para a discussão em torno da racionalidade e dos diferentes usos da razão, de modo especial no que tange à aos distintos discursos. Por isso, compreender uma emissão significa também ter presente as diferentes referências ao mundo (inclusive o âmbito religioso, embora, para alguns, esse assunto se limita ao campo cultural).

Na discussão com McCarthy, em 2005, Habermas dá continuidade ao tema da razão, quando reforça a necessidade da concepção pragmático-formal, no sentido de poder “dar e exigir razões” as proposições válidas. Trata-se de reconhecer a “autoridade” da razão. Por isso, ela é uma razão pública e, portanto, em nenhuma circunstância um procedimento individualizado ou privado, pois as pretensões de validez estão submetidas ao reconhecimento intersubjetivo. Nesse procedimento, os sujeitos utilizam argumentos com o fim de conseguir um acordo reconhecido como válido, sem perder de vista o horizonte do mundo da vida.

Em sua obra An Examination of the Place of Reason in Ethics (1960), S. Toulmin salienta as limitações e as dificuldades de determinados argumentos, o que exige ampliar o processo de razoamento para tornar possível, então, encontrar argumentos capazes de enfrentar o problema relacionado aos diferentes usos da razão (Toulmin, 1979, p. 17 ss). Em certa medida, os usos da razão indicam uma versatilidade da própria razão, uma vez que ela não se restringe à unilateralidade dos fatos ou da própria fundamentação. Não se trata de uma inconstância, algo próximo à instabilidade, mas de uma capacidade de ser diverso nas suas habilidades, saberes, empregos e aproveitamento. O atributo de versatilidade à razão não significa seu esfacelamento, mas a variabilidade das qualidades ou habilidades, podendo aprender ou realizar diferentes coisas, ou seja, em conseguir suscitar respostas aos diferentes âmbitos da vida prática. Nesse sentido, a razão necessita refletir sobre si mesma e na compreensão de seu próprio status enquanto razão.

Em sua obra, Toulmin analisa os enfoques tradicionais que tratam de conferir razoabilidade aos diferentes argumentos. Trata-se de enfocar o problema modificando a metodologia, utilizando, para tanto, as diferentes “maneiras de usar a linguagem” (1979, p. 102). Na verdade, ele insiste que o uso da razão não se resume a um processo de inferência ou a um simples jogo de palavras, mas em estabelecer critérios para compreender os diversos usos da linguagem, quer seja na “matemática, na ciência, ao expressar nossas reações diante dos fatos, ao explicar nossos motivos, etc” (Toulmin, 1979, p. 102).

Na continuação, o autor diz que o perigo das tentativas dogmáticas do uso da razão está em buscar um único caminho para razoar, desprezando, portanto, outras alternativas ou outras esferas do agir. Ele afirma que Hume, por exemplo, restringe o razoamento à matemática e à ciência. Além disso, há, ainda, os que

 

Estigmatizam, como pseudoconceitos, todos os conceitos que não se referem a objetos particulares ou a processos físicos. Outros ficam obsessivos com facetas limitadas e singulares da verdade. E outros ainda recusam qualquer proferimento que não expresse proposições fácticas, baseando-se no fato de não poder se estabelecer a maneira em que se demonstra a hipótese fáctica (1979, p. 102).

 

Como é possível perceber, Toulmin pretende destacar as diferentes formas dos usos da linguagem e, ainda, que ela não possui uma única finalidade. Nesse sentido, ele salienta a função da linguagem como abridora de “sentido”, ou seja, um mecanismo a descerrar a diversidade de razoamentos a respeito das situações e atividades humanas, na sua pluralidade. O autor salienta as restrições conceituais das explicações científicas e os limites do âmbito científico, ou seja, da “realidade física” para, então, poder perceber a “diferença crucial entre ciência e ética.” No fundo, trata-se de definir não só os limites das diferentes linguagens – científica, jurídica, moral ou religiosa – e compreender o modo como cada uma delas cumpre sua função específica, isto é, o papel de cada esfera normativa. Em todas elas, a peculiaridade encontra-se nas “perguntas limites” sobre seus domínios, cujo sentido é diferente em cada uma delas. Trata-se, pois de identificar e compreender os horizontes discursivos específicos, a comunicação e a interação entre sujeitos-participantes podem fazer suas proposições e serem colocadas em discussão.

Os desdobramentos desse ponto de vista apresentam uma envergadura muito extensa. Todavia, o fato de salientar os diferentes modos de razoar reafirma a versatilidade da razão diante da diversidade de mundos ou de horizontes, aspecto que supera o modelo homogeneizador de racionalidade, tão desconcertante hoje em dia e muito presente em qualquer tipo de fundamentalismo. Em Toulmin, há significativos indícios que incitam romper com uma tradição monolítica e omniabarcante de conhecimento.

Deste modo, a razão deveria explicar e permitir a compreensão, não apenas das questões relacionadas ao conhecimento, seus limites e possibilidades, e da linguagem como tal, mas também das ações inerentes ao horizonte experiencial do sujeito, no qual interagem diferentes relatos, como frisa Adela Cortina (2001). Então, o problema não é apenas a experiência comunicativa isolada, mas no entrelaçamento de tradições discursivas diferenciadas. Diante disso, a filosofia deve também explicitar a crise inerente às diferentes tradições, seja em relação à anencefalia, à manipulação genética, a preservação do meio ambiente, a preocupação com as gerações futuras, etc.

Sem dúvidas, é fácil entender que o tratamento e o consumo de animais podem ser analisados a partir de óticas distintas. Como exemplo dessa disparidade, lembro o caso de jovens arrastando uma cadela pelas ruas da cidade de Pelotas e o caso de alimentar-se com cães, como fazem algumas culturas. Diante desses fatos, é fácil distinguir formas racionais de atitudes que podem ser qualificadas de irracionais. Mas não é essa a questão fundamental, nem pode ser esse o caminho preferencial.

Na verdade, o debate filosófico continua assediado pelas tradições – no caso, aqui, das tradições de fé – e o objetivo é encontrar uma resposta satisfatória para o pluralismo da sociedade atual. Como sabemos, Habermas critica sistematicamente o reducionismo cientificista

– e aqui poderíamos citar vários de seus textos e inúmeros comentadores. Essa crítica ganha, hoje, novos terrenos e nos apresenta o desafio de justificar procedimentos científicos, jurídicos, éticos e, inclusive, religiosos (ou relacionados com o sagrado). Daí, então, a interpelação no sentido de que a filosofia não se ausente do debate a respeito dos limites entre fé e saber (Habermas, 2006, p. 217 ss).

 

3 DUAS TRADIÇÕES DIFERENTES E O NOVO STATUS DA JUSTIÇA

 

As exigências de justiça não se limitam ao status do contrato. Na verdade, a tese ressalta o fato de que as exigências de justiça apresentam um aspecto anterior ao contrato e, por isso, é importante sublinhar também as limitações do constitucionalismo formal. O reducionismo moral ao âmbito do contrato remete à questão da aliança e do contrato. Nesse sentido, vou apresentar alguns aspectos da obra Aliança e Contrato, na qual Adela Cortina as considera como duas esferas distintas ou, então, dimensões irrenunciáveis e, por isso, são imprescindíveis para a compreensão dos vínculos humanos (Cortina, 2001, p. 11). A dimensão da justiça apresenta, pois, um aspecto concernente à dimensão política do agir comunicativo, presente nesse contrato moral. O contrato representaria o aspecto formal do compromisso moral, qual seja, o acordo em torno a interesses particulares, grupais e institucionais, conquanto a aliança indicaria uma obrigação advinda do reconhecimento recíproco, isto é, o nível pós-convencional do âmbito moral.

Atualmente, o contrato dá a impressão de haver colonizado todas as esferas da vida social. Em outras palavras, o contrato ampliou sua interferência, a ponto de abarcar todos os âmbitos legais e legítimos, colonizando não apenas o próprio contrato, mas, e em decorrência disso, acabou desalojando a aliança do seu lugar específico. Todavia, o discurso do contrato e da constitucionalidade pressupõe “o relato da aliança e das obrigações oriundas do reconhecimento recíproco” (Cortina, 2001, p. 26). Como dois âmbitos distintos do fenômeno moral, o contrato representa a base político-jurídica da sociedade, oferecendo os mecanismos institucionalizados (governabilidade, sistemas políticos de participação, constitucionalidade, etc.). A aliança, por sua vez, serve de base para a “sociedade civil, ou seja, para as famílias, as comunidades e as associações voluntárias” (Cortina, 2001, p. 27). A esse respeito, é mister frisar três pontos.

Em primeiro lugar, essas categorias conceituais representam duas tradições históricas sobre os laços que unem os seres humanos, determinando um conceito de justiça que não se limita ao jurídico- constitucional. Não se trata, pois, de “negar uma delas e permanecer somente com uma única narrativa, porque as duas devem ser dadas a conhecer” (Cortina, 2001, p. 20). O não reconhecimento de uma delas pressupõe um prejuízo para qualquer razoamento, isto é, a recusa de laços e da possibilidade de diálogo entre aqueles que se identificam com esses distintos relatos.

Em segundo lugar, a análise dessas duas tradições salienta que as duas histórias não foram contadas por igual. No parecer de Cortina, a parábola da aliança foi sendo relegada a um segundo plano, até, praticamente, cair no esquecimento, conquanto a idéia “do contrato foi sendo utilizada não apenas para interpretar a formação do Estado e o funcionamento do mercado, mas também para configurar o conjunto das instituições sociais” (Cortina, 2001, p. 21). Pouco a pouco, o discurso do contrato foi ampliando seu espaço até assumir o protagonismo não apenas no mundo político, mas também na vida social, estendendo cada vez mais sua intervenção nas relações familiares e civis. Agora, há inclusive uma insistência em, simplesmente, universalizar o contrato, como se isso fosse a bola da vez. Assim, as relações e, inclusive, as decisões submeteram-se cada vez mais ao arbítrio de pactos, direitos e deveres juridicamente constituídos formalmente.

Em terceiro lugar, o aspecto religioso sempre esteve presente, de um modo ou de outro, mesmo com o avanço da ciência e nesse processo de juridicialização da sociedade. O processo de racionalização moderno supôs uma simplificação do mundo da vida, reduzindo os vínculos humanos ao domínio técnico e ao mercado, normatizados apenas pelo direito positivo. Esse pensar técnico-cientificista foi encurralando o relato religioso, a ponto de afastá-lo de qualquer análise, inclusive, da filosofia. Apesar de tudo, os dois relatos seguem vigentes. Por isso, alguns ficaram pasmos quando, por exemplo, Habermas retoma o tema, provocando inclusive inquietações no meio acadêmico. Na verdade, por mais que alguns insistam, o relato da aliança não desapareceu, nem pode ser silenciado. A aliança representa a possibilidade de ir além dos limites do contrato, como é possível perceber na continuação.

De modo general, o contrato se vincula às instituições da sociedade política, aos estados, aos governos e aos sistemas políticos (Cortina, 2001, p. 15). É, todavia, arriscado propor um período provável de tal surgimento. Entretanto, seu nascimento se vincula ao Estado moderno e à separação entre política e religião. Maquiavel define os primeiros passos de uma política laica, independente da religião. Hobbes configura um ordenamento à comunidade política a partir de um pacto entre todos, um instrumento convencional, mediante o qual os homens consentem manterem-se unidos.

Na teoria de Hobbes, o contrato social “cria um Estado, não uma sociedade” (Cohen e Arato, 2000, p. 116). Todavia, é problemático reduzir o contrato ao papel do Estado, pois consente também um conjunto de instituições sociais, de sistemas de governo, de direitos e deveres dos cidadãos, de grupos de interesse, de tendências ou facções e, inclusive, dos partidos políticos. Assim, a racionalidade do contrato “foi infiltrando-se também na vida social e a conquistou, de modo que as famílias e as associações civis vão entendendo-se a si mesmas em termos de pactos, direitos e deveres” (Cortina, 2001, p. 21).

Deste modo, a filosofia moral e política da modernidade passam a concentrar suas atenções sobre a idéia de pacto social entre indivíduos, “dotados de alguns direitos racionais e com capacidade para contratar” (Cortina, 2001, p. 45). Os Estados de Direito modernos utilizam o instrumento do contrato, pois, diante do egoísmo dos homens e da razão calculadora, o aconselhável é um “contrato auto-interessado entre aqueles que estão, de igual modo, interessados em si mesmos e a formar uma comunidade política” (Cortina, 2001, p. 16).. As leis são legítimas se preocupadas em assegurar a felicidade dos cidadãos, todavia como instrumento para garantir a constitucionalidade jurídica. A tradição contratualista procura apoiar-se no “critério de utilidade que, por sua força de convicção racional, é interiorizado por todas as pessoas, permitindo, assim, alcançar uma maior estabilidade social” (Vallespín, 1998, p. 11). A final de contas, nada mais promissor que o império da lei.

Assim configurado, o contrato deixa em aberto uma série de questões, pois não passa de um “instrumento de direito privado, especialmente adequado na organização do mundo mercantil, sob a lógica do toma lá e dá aqui” (Cortina, 2001, p. 18). Contudo, o contrato a respeito dos bens ou mercadorias salienta apenas um âmbito do contrato, conquanto sua vinculação com a vida política deva ser tratada de modo bem distinto. No que se refere ao aspecto político, é lícito insinuar que as relações não podem delimitar-se ao marco jurídico. Nesse caso, é imprescindível alimentar condutas dignas de confiança, no horizonte da res publica, ou seja, promover e exigir convicções e hábitos éticos, tanto com relação ao estado democrático, como em função da economia, das relações sociais cotidianas, atividades profissionais, das organizações e instituições sociais etc. Por isso, as obrigações recíprocas se aplicam também à sociedade civil, “cuja meta deveria consistir em formar realmente esse ethos, ou seja, o caráter de quem aspira à verdade e ao bem, numa comunidade, sem qualquer tipo de prejuízo” (Cortina, 2001, p. 25).

Na verdade, estão aqui delineados os contornos iniciais de uma longa discussão. Trata-se do papel e do status da sociedade civil, temática que ocupa, hoje em dia, um espaço significativo na reflexão filosófica. A pertinência desse tema está no fato de admitir a relação entre sociedade civil e interculturalidade, entre diferentes tradições, laços de solidariedades e identidades culturais, entre o Estado de direito, legitimidade jurídica e fundamentação moral. Segundo Cohen e Arato, a reconstrução dessas relações envolve a “diversidade de instituições, sem igualar-se ao conhecimento dos antecedentes culturais, no qual se apóiam, muito menos com os mecanismos normatizadores da ação, restritos à economia (dinheiro) ou às organizações formais, estruturadas burocraticamente (poder)” (2000, p. 483). Neste último caso, o contrato entre indivíduos dar-se-ia desde mecanismos sistêmicos e, portanto, instituído unilateralmente a partir das regras de uma economia despolitizada e de um estado monopolista. O contrato assumiria, então, a força imperativa mediante um soberano artificial, ou seja, a lealdade ao estado recebe, como moeda de troca, a proteção dos direitos positivos (Cortina, 2001, p. 45).

Habermas também compartilha do status obrigatório do contrato, “em virtude da legitimidade das regulamentações legais subjacentes; e estas só podem ser reputadas como legítimas, enquanto expressões de um interesse geral” (Habermas, 1988, II, p. 116). Essa obrigatoriedade nem sempre representa uma conciliação de interesses, pois o fato de as partes alcançarem um pacto ou convênio não significa que o conjunto de interesses esteja garantido. Assim, o estado encarna uma força, cuja autoridade, muitas vezes, expressa a violação ou a supressão dos interesses de uma das partes.

Nas sociedades modernas, há uma separação entre o agir e a normatividade moral da estrutura sistêmica. Por isso, não poucas vezes, as estratégicas conceituais seguem direções opostas (Habermas, 1988, II, p. 161). O reducionismo sistêmico insiste na autonomia das organizações e das instituições, as quais são reguladas através de leis jurídico-constitucionais, amplamente defendidos pelos meios de comunicação deslingüistizados. Tais mecanismos sistêmicos, salienta Habermas, “controlam um comércio social amplamente desvinculado de normas e valores” (1988, II, p. 217). Esse divórcio entre sistema e o âmbito moral do agir comunicativo ocasiona “fissuras” na orientação da ação.

Em função disso, a reconstrução da sociedade civil é um excelente indicativo na inclusão das “instituições sociais e formas associativas, que requerem a integração comunicativa para sua reprodução, pois dependem, principalmente, dos processos de integração social para coordenar a ação dentro de suas fronteiras” (Cohen e Arato, 2000, p. 483). Por esse motivo, parece oportuno reiterar a versatilidade da razão, evitando cair no reducionismo contratual, pois essa versatilidade é muito mais convincente e produtiva que a simples legalidade jurídica e convencionalidade das leis.

Deste modo, a parábola da aliança recobra vigor, pois representa um elemento não institucional, encarregado de proporcionar um diálogo intersubjetivo, com vistas a uma ética universal. O relato da aliança define um conteúdo moral, capaz de assegurar laços de solidariedade e de justiça entre os seres humanos, independentes da forma de vida particular de cada cultura, Estado, religião etc.

Normalmente, o termo aliança aparece quase sempre ligado à tradição cristã. A narrativa bíblica evidencia, desde o começo, o caráter relacional do ser humano. Essa experiência não pode ser partilhada por aqueles que optam pela solidão ou agem de acordo com os princípios do individualismo metodológico (Macpherson, 1997). Esse caráter relacional salienta um diálogo capaz de redefinir um compromisso da “pessoa em relação com outra pessoa” (Cortina, 2001, p. 16). A convivência e a reciprocidade não representam um pacto entre interesses egoístas, mas o reconhecimento mútuo entre seres, possibilitando sua identidade própria através da relação com os demais. Esse reconhecimento mútuo não pode ocorrer a partir do auto-interesse particular, mas da compaixão, entendida não como condescendência com uma relação assimétrica, mas com esse compartilhar as lutas e desafios, esperanças e alegrias, de quem aspire por viver uma vida feliz. A aliança baseia-se na a mútua exigência de reconhecimento entre aqueles que são conscientes de sua identidade humana (Cortina, 2001, p. 19 e 26).

Nesse sentido, a defesa dos direitos de todos se traduz em exigências de justiça, uma reivindicação cada vez mais visível. No entanto, isso não é suficiente. Não se trata apenas de defender a liberdade dos indivíduos, de defender seus interesses, de realizar pactos, na luta pela autonomia e a não-dominação, mas também de participar e engajar-se em assegurar laços de solidariedade e de justiça entre todos. Por isso, não importa qual seja a origem histórica do pacto social. O imprescindível é sua “justificação racional, sua razão suficiente, preocupada em defender os direitos humanos ou liberdades básicas” (Cortina, 2001, p. 46). Nesse sentido, é possível

extrair úteis ensinamentos tanto do formalismo ético como da figura jurídico-políticas do contrato social: o formalismo ético limita sua tarefa a proporcionar um test para comprovar a validez das normas morais, deixando à margem as preferências axiológicas, aconselháveis a um ethos concreto; a figura do contrato propõe um procedimento cuja racionalidade garante a correção das decisões, assumidas a partir dele (Cortina, 1992, p. 173).

 

Como é possível perceber, a aliança supõe algo mais que o convencionalismo. O conceito de aliança se vincula aos pressupostos do reconhecimento recíproco. Trata-se, pois, de um nível pós-convencional do conteúdo normativo, superando o reducionismo do contrato. Por isso, apesar da proteção dos direitos, não é o contrato quem justifica os direitos. Este é um ponto essencial, pois demonstra que o “contrato não é auto-suficiente, mas necessita apoiar-se no reconhecimento recíproco, fundamentando a aliança” (Cortina, 2001, p. 47). O sentido do pacto está em superar sua redução a simples contrato.

Como conclusão, gostaria de ressaltar os seis pressupostos que, segundo Cortina, devem ser cumpridos para garantir o nível pós- convencional da justiça:

1)        A validade do pacto advém da exigência moral, isto é, o cumprimento dos pactos é um dever moral. Esse dever não é uma característica do “direito positivo, mas um pressuposto moral ou religioso do direito positivo” (Cortina, 2001, p. 47).. Na verdade, o direito positivo apenas possui sentido, se tiver como base um pressuposto moral, pois optar por apenas um significa, às vezes, relegar o outro.

2)        Nas relações de confiança entre os pactuantes, o sentido dos pactos não se justifica na identificação da lei a que foi submetido, pois eles devem ser confiáveis e, além disso, possuir a garantia de seu cumprimento (Cortina, 2001, p. 47-48). A confiança supõe, pois, um capital social um background moral, encarregado de orientar as ações, independentemente da natureza jurídica do pacto como tal.

3)        O sentido dos pactos exige equilibrar a validez das normas jurídico-políticas com as valorações que a sociedade pode formalizar. Essas valorações são prévias a qualquer pacto e podem apresentar diferenciações entre uma sociedade e outra. Devido a isso, a prioridade não está nas divergências entre as sociedades e as valorações do indivíduo e seus direitos, mas na primazia do respeito e no reconhecimento do outro como ser humano, independente de sua cultura, religião, modo de vida, leis jurídicas ou interesses, compreendidos e defendidos como benéficos (justos e corretos).

4)        As questões de justiça se vinculam a pretensões de universalidade. Essa exigência requer um diálogo entre todos, pois, para ter sentido, “pressupõe certos direitos pragmáticos e morais. Tais direitos não é objeto do pacto, mas representam aquilo que dá sentido ao fato de entrar no pacto” (Cortina, 2001, p. 49). Por isso, os direitos humanos não dependem de sua procedência como tal, mas de sua presumível universalidade, porquanto fundamentam a normatividade dos diferentes discursos.

5)        A distinção entre direitos legais (jurídico-políticos) e direitos humanos (ou direitos morais) não depende de nenhum de pacto, pois o sentido de todos os direitos está no fato de realmente aderir ao pacto. Em vista disso, o sentido do contrato não pode ser uma criação particular ou a manifestação de um ponto de vista restrito a uma cultura ou religião, embora pretenda impor-se como universal.

6)        Por fim, a obrigação de proteger esses direitos acentua a “força vinculante” do reconhecimento recíproco entre todos os interlocutores capazes de assumir os contratos. Por isso, “as comunidades políticas, embora, em princípio, estejam obrigadas a proteger seus cidadãos, estão também, necessariamente, abertas a todos os seres humanos, ou seja, têm necessariamente uma vocação cosmopolita” (Cortina, 2001, p. 49).

Esses seis aspectos evidenciam que os direitos humanos não são objeto de pacto, nem representam um simples contrato, porque “tais direitos apenas são reivindicáveis por seres humanos, porém, isso sim, por todos e cada um deles” (Cortina, 2001, p. 50). Essa reivindicação representa, pois, uma exigência moral, tornada pública por qualquer ser humano e, como tal, deve ser satisfeita por todos, independente da sua cultura, religião ou modo de vida. No reconhecimento de tais direitos, dá- se a confrontação entre sujeitos de comunidades diferentes. No entanto, os pressupostos universais excedem aos contextos locais ou do relativismo moral ou religioso. Nesse sentido, participar numa argumentação significa “aceitar, implicitamente, pressupostos pragmático- universais” (Habermas,1991, p. 102).

Desse modo, é possível demonstrar que Aliança e Contrato indicam que a versatilidade da razão é um aspecto essencial para o diálogo comunicativo. O debate gira em torno aos aspectos concernentes à filosofia do agir, ou seja, o razoamento sobre as distintas dimensões do agir comunicativo. Com isso, a racionalidade comunicativa consegue salientar o aspecto formal desse compromisso moral, qual seja, o acordo em torno a interesses particulares, grupais e institucionais, conquanto a aliança indicaria uma obrigação advinda do reconhecimento recíproco, isto é, o nível pós-convencional do âmbito moral.

 

REFERÊNCIAS

 

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VALLESPÍN, F. Introducción. In: HABERMAS, J. & RAWLS, J. Debate sobre el liberalismo político. Barcelona: Buenos Aires, México, Paidós, 1998.

 



[1] PIZZI, Jovino.  O conceito de justiça pós-convencional: dilemas entre Israel e Atenas, a aliança e o contrato. In: COLÓQUIO HABERMAS, 5.,2008, Florianópolis. Anais [...]. Florianópolis: NEFIPO, 2008. p. 175-190. Disponível em: https://coloquioshabermas2010.files.wordpress.com/2010/04/ habermas_ anais2008-31.pdf Acesso em: 25 abr. 2023. Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).

[2]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).