ÉTICA DO DISCURSO

conteúdo moral e responsabilidade solidária[1]

Jovino Pizzi[2]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

1 INTRODUÇÃO

 

A ética do discurso justifica o conteúdo de uma moralidade que salienta a simetria entre os sujeitos e a solidariedade entre todos. Para Habermas “a solidariedade é a outra face da justiça” (1999, p. 42), ou seja, são duas faces da mesma moeda. Esta é uma afirmação chave em relação ao conteúdo cognitivo do âmbito moral. A validade das normas pressupõe uma fundamentação normativa estruturada linguisticamente, de forma a vincular a justiça com a solidariedade. A ênfase está em uma razão prática capaz de fundamentar princípios igualitários e universalistas da moral e do direito (2009, p. 63). A legitimação do estado de direito deve preservar sua neutralidade ideológica, alicerçada em uma moral racional, isto é, laica (ou secular). Com isso, as exigências normativas devem ser aceitas por todos em uma sociedade pluralista, formada por cidadãos de diferentes credos e, inclusive, por não crentes (HABERMAS, 2009, p. 69).

A teoria do agir comunicativo se insere no horizonte de uma sociedade com sinais profundos de secularização. A prospectiva habermasiana parte do fato de que, com o desenvolvimento da sociedade democrática moderna e a própria integração social passa a ser determinada por uma razão comunicativa laica. A compreensão moderna do mundo suplantou cosmovisões míticas, religiosas e metafísicas (HABERMAS, 1988, p. 101). A “dissolução” das justificativas mítico-narrativas proporcionou, ao sujeito comunicativo e participativo, a assunção discursiva de “pretensões de validez suscetíveis a crítica (1988, p. 107). O fio condutor do entendimento obedece a um procedimento racional ligado ao mundo da vida. As normas que orientam o agir são fruto desse processo comunicativo intersubjetivo entre sujeitos participantes tendo como base a validez do acordo consensuado entre todos os concernentes. Desse modo, os sujeitos se entendem racionalmente sobre pretensões de validade normativas. E somente podem ter validade as normas aceitas por todos os participantes em um discurso prático.

Nessa perspectiva, a razão secular consegue apropriar-se, através dos recursos do pensamento pós-metafísico, dos conteúdos semânticos das tradições, sem renunciar jamais a autonomia que lhe é inerente. O ponto de vista moral não deriva de asserções do tipo empírico-formais ou ligadas ao determinismo causal, muito menos se limita a análise dos aspectos semântico dos proferimentos. A traduzibilidade da razão prática requer, pois, uma conexão com as práticas cotidianas dos sujeitos em diálogo com os demais. É possível, portanto, descrever o processo de fundamentação e explicá-lo, mas sem que isso signifique a adoção deste tipo de fundamentação (HOERSTER, 1975, p. 150). Nisso parece estar o perigo, pois essa mesma razão secular pode “perder-se” no momento da defesa solidária de metas coletivas. Em outras palavras, ela sofre o risco de não chegar a tempo e revelar sua impossibilidade para afiançar laços de solidariedade, seja dentro dos Estados nacionais, nas relações interestatais ou supranacionais (KALDOR, 2005).

Por um lado, isso é decorrência do debilitamento dos aspectos motivacionais de uma moral racional autônoma e laica, porque propor normas morais não significa, de fato, a assunção de um compromisso solidário. Embora esse déficit possa ser corrigido dentro dos limites do Estado constitucional democrático, pelo direito positivo, mesmo assim, ela moral não consegue impulsionar uma ação coletiva solidária, ou seja, uma ação moralmente instruída. Por outro lado, a questão se vincula à ideia de que os princípios válidos para todos possam realmente acarretar em um compromisso prático, isto é, no consequente engajamento efetivo em favor da justiça e da solidariedade.

Esse é o foco desta pesquisa: o potencial de uma moral laica pós- metafísica que ainda repousa adormecido. Pois, o delineamento de princípios válidos para todos (consensuados comunicativamente, portanto) não mobiliza os sujeitos para assumirem concretamente as responsabilidades diante de situações de injustiça e da falta de solidariedade. Daí, então, a preocupação em delinear as considerações de Habermas a respeito da moral pós-metafísica, cujos fundamentos laicos asseguram tanto os direitos fundamentais como os princípios do estado de direito. No seu modo procedimental, essa perspectiva fundamenta um ponto de vista moral. Todavia, essa razão secular parece definhar à medida que não consegue superar as “debilidades motivacionais” e proporcionar a realização solidária de metas coletivas. Ela é eficaz no concernente à “observância individual dos deveres”, mas parece ser um tanto incapaz de impulsionar o engajamento coletivo solidário, ou seja, não se atreve a preceituar uma “ação moralmente instruída.” Em decorrência, tolera a resignação dos sujeitos diante de injustiças e da não solidariedade; estudar e compreender as potencialidades e os possíveis déficits dessa moral laica é a proposta deste trabalho.

 

2 A RAZÃO PÓS-METAFÍSICA SECULARIZADA

 

A questão em análise se vincula à própria autocompreensão da razão pós-metafísica, consolidada a partir do desencantamento das imagens religioso-metafísicas do mundo e o nascimento das estruturas de consciência modernas (HABERMAS, 1988, p. 249). Ao deixar de lado essas imagens, a filosofia já não arroga mais “fundamentos ontoteológicos ou cosmológicos para modelos universalmente vinculantes” (HABERMAS, 2006, p. 276). Daí, então, o moral point of view vinculado aos interesses de todos, renunciando, portanto, a qualquer perspectiva substancial de uma forma de vida exemplar, isto é, externa e alheia ao mundo. Nesse sentido, o Iluminismo fomentou uma “moral laica secularizada”, de forma que a “consciência moral civil” ganhou autonomia diante das perspectivas cosmológicas e religiosas, possibilitando uma “ética regida por princípios” (HABERMAS, 1988, p. 301). Por isso, o ponto de vista moral deve reconstruir uma perspectiva intramundana, ou seja, “dentro dos limites de nosso mundo intersubjetivamente compartilhado, sem correr o risco de afastamento do mundo como um todo e, em decorrência, da perspectiva universalista” (HABERMAS, 1999, p. 33-34).

Além disso, há outro aspecto significativo em relação à ética. Trata-se do fato de que “o vigor afirmativo das éticas clássicas evaporou-se já faz algum tempo” (HABERMAS, 2009, p. 217). Nesse sentido, não se justifica apenas uma genealogia da tradição moral ocidental e de seus aspectos semânticos, mas em estudar e debater sobremaneira as características dessa moral ilustrada, isto é, de uma “razão prática emancipada” (HABERMAS, 1988, p. 302). Em outras palavras, trata-se de estudar o potencial semântico e simbólico dessa moral laica e sua particular influência na vida prática das pessoas.

O discurso sobre a secularização sofreu modificações no decorrer dos anos 80 e 90 do século passado. No entanto, foi nos albores do século XXI que ele ganhou proporções ainda mais abrangentes. Atualmente, existe forte inclinação à secularização da moral, permeando os diferentes discursos públicos e processos políticos. Essa moral secular encontra-se, todavia, constantemente assediada por propostas, às vezes, pertinentes, como é o caso da relação da complementaridade entre fé e saber. Na verdade, não há como fugir da discussão a respeito da “forma como as cosmovisões, sejam metafísicas ou religiosas, são traduzidas simbolicamente por meio da abertura ao tratamento discursivo ou linguístico” (MENDIETA, 2001, p. 42).

Essa temática abre um leque significativo de apreciações, principalmente na contestação do papel e do valor da metafísica (PINZANI, 2009, p. 118). Todavia, o foco deste projeto está em discutir a sensibilidade moral em relação à justiça e à solidariedade. Na verdade, quando Habermas afirma que “a solidariedade é o anverso da justiça” (1999, p. 42), ele salienta não só um “retorno” do tema, mas uma nova configuração e uma nova atitude diante da questão.

A preocupação em torno à justiça varia bastante. Ela faz parte do pensamento filosófico do século XX e do atual. Grande parte do pensamento moderno abandonou o vínculo entre justiça, economia e política. O período medieval tinha como foco a conexão justiça e paz, aspectos considerados essenciais para o bem viver. Como é conhecido, a filosofia moderna e, mais recentemente, o ethical turn introduziu mudanças significativas para a reflexão filosófica. Esse giro ético da filosofia consagrou um novo impulso para a racionalidade prática, porém as ressalvas parecem advir de um ponto de vista moral que não se incorpora nas atitudes das pessoas e garante a superação das situações de injustiça e de não solidariedade, tanto em relação a aspectos estruturais, como em questões relacionadas ao mundo da vida cotidiana.

Sem dúvidas, isso evidencia que a orientação do agir não se resume à resolução de conflitos, mas a uma pragmática vinculada a políticas deliberativas. Essas políticas não dependem de interesses particulares ou, então, de pressupostos metafísicos, pois estão ligadas a princípios ou normas reconhecidas como válidas para todos. A ampliação significa o não restringimento da moral ao âmbito privado ou ao horizonte familiar, muito menos ao fato de garantir a cada sujeito individualmente o que lhe é devido, mas em um dever moral, pois se trata de um compromisso entre todos.

A sociedade medieval, principalmente a francesa, tolerava a vingança como meio para a resolução de conflitos, de modo especial em relação aos crimes contra a honradez (GAUVARD, 2006 II, p. 56). Esse era um tipo de solução privada, às vezes com a intermediação de um juiz ou árbitro. No entanto, a justiça não se limita ao campo privado, pois apresenta caráter público. Aí nasce uma distinção importante: a justiça pública e a oficial. Desse modo, temos a justiça legal, regulada por um poder judiciário, encarregada primordialmente de regular os conflitos particulares, garantindo os direitos a cada indivíduo. Por isso, se, na Idade Média, a preocupação se centrava no vínculo entre paz e justiça (GAUVARD, 2006, II, p. 55), no século XX, o tema é retomado por Rawls, um dos autores renomados na questão da justiça. Otfried Höffe, Paul Ricoeur e muitos outros pensadores também marcam presença na discussão. Macpherson (1991) fala da ascensão e queda da justiça econômica. Atualmente, muito se fala sobre responsabilidade social, éticas aplicadas, políticas afirmativas etc., embora exista a impressão de haver debilitamento da justiça e da solidariedade. Nessa linha, o discurso moral se traduz, às vezes, em simples marketing ou em campanhas filantrópicas (esporádicas, portanto).

 

3 OS NOVOS DESAFIOS PARA A JUSTIÇA

 

Dos anos 70 para cá, a filosofia e, consequentemente, a ética, experimentam uma transformação profunda. A nova configuração na ética coloca em evidência questões relacionadas à fundamentação e à aplicação. Neste processo, há revalorização de diversos conceitos, como é o caso da justiça. Encontramos um leque de concepções relacionadas à justiça. Diante disso, algumas questões são expressivas:

1.    Como a justiça deve ser entendida, principalmente quando se fala de secularização e na sua influência na hora de tomar decisões? Esse debate está inserido naquilo que Habermas denomina de “genealogia da razão” ocidental (2009, p. 225). Esta razão comunicativa pós-moderna assume características laicas, aspecto que permite a legitimação de um Estado democrático de direito neutro, isto é, capaz de promover a integração social a partir de suas próprias bases ou fundamentos. Não se trata, portanto, de um Estado na forma hobbesiana, mas de uma sociedade pós- secular estabelecida em um Estado constitucional e democrático (HABERMAS, 2002, p. 131-133).

2.    O segundo aspecto diz respeito aos próprios pressupostos fundamentais dessa razão secular. Em Réplicas e objeções (1980), Habermas muda sua tese, porquanto a validez das normas e princípios não se vincula apenas a uma situação contrafática, mas elas devem orientar decisões “dignas de confiança”, cujas pretensões de validez estão ligadas a um sistema de referência descentralizado (2006). Nesse sentido, é imprescindível estudar como devemos pensar a própria autocompreensão da razão iluminista e secular, pois é a encarregada de garantir sua peculiar neutralidade diante dos ideais de bem. Nesse caso, a secularização não se vincula ao aspecto jurídico ou da relação entre a Igreja e o poder secular do Estado (HABERMAS, 2002, p. 131); nem se trata de uma “espécie de jogo” preocupado essencialmente em eliminar um dos competidores (2002, p. 132).

            O qualificativo “secular” indica, pois, uma sociedade na qual “os fundamentos de decisão seculares” tem como base uma “moral profana” (2002, p. 133). Como entender a razão laica e neutra diante dos conteúdos semânticos que a realidade cotidiana carrega consigo? Essa pergunta salienta a necessidade de garantir o sentido a conceitos filosóficos como pessoa, liberdade, individualização, história, emancipação, comunidade e solidariedade tão carregados de experiências e conotações, pois procedem de doutrinas do bem ou, no caso, de tradições religiosas (HABERMAS, 2009, p. 237).

3.          Daí, então, o terceiro aspecto relacionado a uma moral secular envolvida em uma crise de confiança, pois parece demonstrar uma incapacidade prática para sustentar atitudes solidarias de metas coletivas. Essa razão prática revela uma dicotomia interna, pois não promove atitudes cooperativas concretas e solidárias da “mesma forma que a observância individual dos deveres morais” (HABERMAS, 2009, p. 223). Essa moral iluminista e laica, embora consiga sensibilizar moralmente os sujeitos diante das injustiças, não alcança impulsionar uma ação coletiva solidária. Em outras palavras, ela é exitosa em manter aceso o sentido da “injustiça social”, tanto em relação à marginalização de grupos, à perda da consciência de classe social de muitas categorias sociais e a imigração dentro do próprio país, como também avivar a sensibilidade em relação à pobreza sumamente drástica em diversos continentes. No entanto, apresenta os sintomas de um déficit motivador e não tem êxito para exigir dos sujeitos a assunção da responsabilidade pelas ações coletivas e na luta contras as injustiças sociais.

As antinomias da razão prática revelam, portanto, algo de inquietante, ou seja, a constatação (de certo modo, empírica) de progressiva perda de solidariedade entre as pessoas e os grupos, principalmente diante de situações concretas de injustiça. Para Habermas, a solidariedade é considerada como um conceito limite. Ele supõe uma abstração em relações às questões do bem viver, até conseguir reduzi-la a questões de justiça (1989, p. 432). No entanto, ao definir a justiça como a outra face da solidariedade, Habermas parece diluir a justiça aos âmbitos do bem viver, isto é, ao aspecto fático.

 

4 HAVERIA JUSTIÇA SEM SOLIDARIEDADE?

 

Seguidor da tradição crítica, Habermas reitera o processo de secularização das sociedades modernas, o qual parece conceder prioridade à instrumentalização das pessoas e das relações sociais, mesmo que essas pessoas, no fundo, conservem a consciência moral e acreditem em uma justiça social e na solidariedade humana. Para o autor, a perspectiva filosófica produziu uma modernidade que se reabastece em suas próprias fontes. Por sua vez, ela apresenta, entre outras coisas, “debilidades motivacionais de uma moral racional” que apenas podem ser asseguradas nos “limites do Estado constitucional democrático através do direito positivo” (2009, p. 221). A suspeita gira em torno à progressiva perda de solidariedade, ou seja, às exigências de um compromisso moral não impedem, em nada, as tendências de uma insolidariedade, pois existe um progressivo desaparecimento entre os diferentes setores da sociedade, principalmente em situações de injustiça conjuntural ou social. Na verdade, a falta de solidariedade vai aumentando de modo proporcional ao crescimento dos “imperativos do mercado na forma de custos-benefício-cálculos ou da competência de serviços em âmbitos da vida cada vez mais variados, os quais obrigam aos indivíduos, na sua relação com os demais, a uma atitude objetivista” (HABERMAS, 2009, p. 218).

A questão central da racionalidade comunicativa, além de garantir vínculos relevantes entre os sujeitos, está em supor laços de solidariedade e compromissos de justiça. Os princípios normativos obedecem exigências discursivas. Este é, sem dúvidas, o grande desafio de uma perspectiva universalista disposta a não perder de vista o bom e o justificável de cada cultura, nem desprezando os que clamam por justiça e solidariedade. Por isso, a solidariedade deve ser entendida como condição de justiça. Para Habermas, o conceito de razão deve articular uma intersubjetividade comunicativa promovedora da justiça e de laços de solidariedade.

Assim, a justiça não se reduz à benevolência, empatia, intuição ou ao cuidado, mas à solidariedade. No fundo, justiça e solidariedade não são “princípios morais diferentes, mas dois aspectos de um mesmo princípio” (COHEN; ARATO, 2000, p. 425). A justiça ultrapassa os limites semânticos para ganhar o espaço de uma pragmática-fenomenológica, capaz de ressaltar descritivamente a experiência vivida pelos diferentes interlocutores, sem, por isso, abandonar ou rechaçar os princípios, as normas e regras de caráter universal. O sentido da justiça não separa, portanto, razão (Vernuft) de entendimento (Verstand), nem desvincula a fundamentação da sua realização prática. Não se trata de uma questão lógica, mas pragmática, porque repercute nas consequências práticas do agir.

Os ideais da Ilustração salientam a igualdade jurídica, assim como também a igualdade social e econômica. Esse delineamento nos leva a insistir que a justiça deixa de ser uma questão apenas vinculada ao aspecto semântico (isto é, à sua definibilidade conceitual), mas ao aspecto pragmático. Essa pragmática pressupõe uma “neutralidade do procedimento” (HABERMAS, 1998, p. 386), porque ninguém pode garantir, por si só, sua autonomia moral. Ela depende da interação comunicativa, ou seja, dos esforços cooperativos que ninguém pode ser obrigado por meio das normas jurídicas, mas que todos são conclamados a seguir (ou obedecer). Nesse sentido, a pergunta “a quem” são os sujeitos da justiça nos leva às vítimas da injustiça. A preocupação em saber “quem” são os sujeitos da justiça remete inclusive às futuras gerações.

Em síntese, a razão pós-metafísica se fundamenta em princípios irrenunciáveis. Ela presume a mobilização solidária entre as pessoas, isto é, na participação coletiva. A neutralidade procede na medida em que a inclusão de todos realmente aconteça. Somente assim é possível garantir os preceitos de justiça e laços de solidariedade.

Todavia, há um problema: essa razão parece enfrenta uma dicotomia interna. Seus déficits se manifestam no horizonte de um pensamento dividido. Por um lado, permanece a percepção ou a sensibilidade moral em relação à injustiça, mas, por outro, cresce a des-solidariedade. É pertinente referir-se à insolidariedade ou, então, ausência de solidariedade para salientar esse “deixar de lado” a responsabilidade por uma sociedade justa e solidária. No fundo, a solidariedade vai escasseando cada vez mais, debilitando o compromisso frente às injustiças e aos injustiçados, bem como a responsabilidade diante das futuras gerações e dos riscos que o meio ambiente sofre.

Essa deficiência afeta não apenas as pessoas como tal, mas faz parte também do jogo político, no sentido de manter o status quo de uma sociedade estruturalmente organizada, instrumentalizando não apenas a relação entre os sujeitos, mas colocando também em risco a ideia de uma sociedade global e multicultural. Até mesmo os “governos influentes – que são sempre os atores políticos mais importantes deste cenário – prosseguem, sem titubear, com seus jogos de poder social-darwinistas” (HABERMAS, 2009, p. 219). Em outras palavras, para Habermas, “não falta apenas vontade política para desejar instituições e processos de ordem mundial reformada, mas inclusive a perspectiva de uma política interna global satisfatória” (2009, p. 219).

 

5 AS EXIGÊNCIAS MORAIS EM SINTONIA COM O GIRO APLICADO DA FILOSOFIA

 

As exigências normativas estão vinculadas ao querer. Para Hoerster (1975), a possibilidade de formular normas não significa que elas se transformem em atitudes. O “objetivo do agente” nem sempre pode coincidir com as pretensões de todos. A questão se relaciona ao momento da tomada de decisões. O que realmente motiva os sujeitos para agir segundo princípios? Quem decide por quem? Garfinkel (2006) trata de analisar a tomada de decisões a partir de concernentes à situação cotidiana, isto é, na motivação que as pessoas observam ao tomarem decisões. Na verdade, a justiça e a própria solidariedade não se limitam ao âmbito conceitual (semântico, portanto). Assim, é possível compreender o que significa estar no mundo e distinguir sobre o que os sujeitos podem se entender e em que aspectos eles podem intervir no mundo.

O nível pós-convencional dos estágios morais pressupõe como válidas normas que todos possam querer (HABERMAS, 1999). No âmbito das condições concretas, a racionalidade comunicativa conduz a inserção do sujeito no mundo (nos diferentes contextos do mundo da vida), de modo a unir e articular fala e ação. Esse é o horizonte no qual Habermas admite um espaço para o bom na teoria do justo, não como direito positivo, mas como “liberdades de indivíduos inalienáveis que se autodeterminam (1999, p. 70). A pretensão universal de qualquer pretensão de validade deve assegurar, portanto, os direitos e liberdades de cada sujeito de forma a garantir também o “bem-estar do próximo e da comunidade a que (os sujeitos) pertencem” (HABERMAS, 1999, p. 71).

O ethical turn evidencia mudanças que afetam apenas a ética como tal, mas também os diversos âmbitos da vida prática. Como diz Alcira Bonilla, “as éticas do século XX abordaram em seus objetos características de um modo tal que pouco incide nos assuntos práticos que foram aparecendo como consequência do desenvolvimento das ciências e da tecnologia ou da dinâmica própria da vida social” (2006, p. 78). Sem dúvidas, as mudanças são profundas e, por isso, uma nova configuração ou – como dizem os ingleses – a ética se apresenta com um novo desenho, com o qual a fundamentação exige também formas de aplicação. A racionalidade prática passa a se preocupar com os diferentes âmbitos da vida prática. Essa preocupação é tema para a filosofia e incluso para os diferentes campos ou âmbitos e envolvem a todos os sujeitos.

Nesse processo, os conceitos “tradicionais” são retraduzidos e outros recebem novas delimitações, enquanto outros passam por uma revalorização. Essa exigência salienta a necessidade de desenhar também uma “arquitetônica conceptual” da justiça (RICOEUR, 1997, p. 14). Esse delineamento vai além das definições e nos leva, portanto, à fenomenologia da justiça, pois a pergunta “o que é justiça” se encontra confrontada com sua aplicação prática. Por isso, a discussão evidencia a necessidade de ir além da questão semântica e visualizar os aspectos pragmáticos da justiça e dos laços de solidariedade em uma sociedade pluralista.

Por isso, as exigências de justiça devem responder quem são os sujeitos da justiça, de modo que a busca por definições tenha em vista o futuro da natureza humana e, se desejarmos, do próprio meio ambiente. A proposta poderia ser traduzida em uma nova arquitetônica pragmático- fenomenológica, modelo que não apenas destaca os possíveis déficits da razão secular, mas procura também consagrar um diálogo interdisciplinar com os diferentes campos de aplicação. Na verdade, a arquitetônica pragmático- fenomenológica da justiça encontra em Kant um elemento imprescindível, principalmente em seu postulado de que algo pode ser “correto em teoria, mas não serve para a prática” (2000, p. 3). O debate atual da ética encontra em Habermas uma reformulação do imperativo categórico kantiano e, através da metodologia reconstrutiva, procura fundamentar normas válidas para todos. Essa metodologia reforça o tema da justiça.

Nesse sentido, repetimos mais uma vez: a pergunta “o que é justiça” nos leva a pesquisar não somente seu aspecto semântico e realizar uma genealogia da justiça na tradição ocidental, mas também seu aspecto pragmático. Em outras palavras, trata-se de compreender não apenas “o que é” justiça, mas também identificar “quem” são os afetados e “como” configurar a justiça em vistas às exigências de solidariedade inclusive em relação às futuras gerações. Esse delineamento nos leva, portanto, à fenomenologia da justiça, onde a pergunta “o que é justiça” se defrontada com sua aplicação prática com as diferentes áreas do conhecimento e atividades humanas. Por isso, as exigências de justiça devem responder quem são os sujeitos da justiça, de modo que a busca por definições tenha em vista o futuro da natureza humana e, se desejarmos, o próprio meio ambiente, a economia, as empresas etc., aspectos inerentes às éticas aplicadas.

Macpherson afirma que o modelo de Rawls “satisfaz os critérios para uma teoria da justiça econômica, enquanto realmente propõe submeter os acordos distributivos a um princípio ético” (1991, p. 26). Para este autor, o problema é a forma competitiva do modelo liberal, isto é, “uma economia totalmente dominada pelo mercado no qual a reação negativa dos empresários ao incremento dos impostos faz com que diminua a produtividade global (1991, p. 26)”. O mercado acaba dominando as relações, fazendo com que as exigências normativas percam sua força, de modo que a ética não pode fazer valer seus princípios em relação à tomada de decisões concretas. A proposta trata de ver as considerações de Habermas a respeito da justiça, desde o ponto de uma fundamentação vista pós-metafísica, e mostrar os possíveis déficits dessa razão secular e neutra em uma sociedade laicizada.

Por isso, além de destacar as potencialidades de uma razão secular e, ao mesmo tempo, verificar as possíveis debilidades motivacionais geram uma desconfiança na própria razão secular, consequência de uma aparente antinomia interna. Se, por um lado, ela assegura a capacidade de juízo contra a vulneração das prerrogativas e deveres individuais, por outro, ela se apresenta como deficitária na hora de motivar os sujeitos para agirem solidariamente. Este seria, portanto, o foco de estudo a ser aprofundado, na tentativa de evidenciar se tal déficit representa uma dicotomia interna da própria razão laicizada ou, então, se suas exigências normativas ainda não foram totalmente trazidas à tona, isto é, transformados em força motivadora para o agir solidário. Em certo sentido, o fato de a solidariedade ir se tornando cada vez mais escassa, parece indicar que a ética normativa, neutra e voltada a uma sociedade completamente laicizada, sente os efeitos de suas próprias pretensões normativas.

 

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[1] PIZZI, Jovino. Ética do discurso: conteúdo moral e responsabilidade solidária. In: LIMA, Clóvis Ricardo Montenegro de; GÓMEZ, Maria Nélida Gonzalez de (org.).  Discursos Habermasianos. Rio de Janeiro: IBICT, 2010. p. 34-45. Disponível em: https://coloquiohabermas.files.wordpress.com/ 2018/09/ habermasparainternet19072012.pdf Acesso em: 25 abr. 2023. Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).

[2]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).