Jovino Pizzi[2]
Universidade Federal de Pelotas
jovino.piz@gmail.com
Nos últimos textos, quando trata de delinear os contornos entre naturalismo e religião, Habermas insiste em um pensamento pós-metafísico, colocando ênfase em uma razão prática capaz de fundamentar princípios igualitários e universalistas da moral e do direito (2009, p. 63). A legitimação das normas deve preservar sua neutralidade ideológica, alicerçada em uma moral racional laica. As exigências normativas devem ser, pois, aceitas por todos, isto é, por cidadãos de diferentes credos e, inclusive, pelos não crentes (Habermas, 2009, p. 69).
A teoria do agir comunicativo se insere no horizonte de uma sociedade com sinais profundos de secularização. A compreensão moderna do mundo suplantou cosmovisões míticas, religiosas e metafísicas (Habermas, 1988, p. 101). A dissolução das justificativas mítico-narrativas proporcionou, ao sujeito comunicativo e participativo, a assunção discursiva de “pretensões de validez suscetíveis a crítica” (1988, p. 107). Assim, a razão secular consegue apropriar-se, através dos recursos do pensamento pós-metafísico, dos conteúdos semânticos das tradições, sem renunciar sua autonomia.
A auto-compreensão da razão pós-metafísica ganha forçar e se consolidada a partir do desencantamento das imagens religioso-metafísicas do mundo e o nascimento das estruturas de consciência modernas (Habermas, 1988, p. 249). Ao deixar de lado essas imagens, a filosofia não arroga “fundamentos ontoteológicos ou cosmológicos para modelos universalmente vinculantes” (Habermas, 2006, p. 276). O moral point of view vinculado aos interesses de todos, renunciando, portanto, a qualquer perspectiva substancial de qualquer forma de vida exemplar, isto é, externa e alheia ao mundo. Nesse sentido, o Iluminismo fomentou uma “moral laica secularizada”, de forma que a “consciência moral civil” ganhou autonomia frente às perspectivas cosmológicas e religiosas, possibilitando uma “ética regida por princípios” (Habermas, 1988, p. 301). Daí, então, a reconstrução de uma perspectiva intramundana, ou seja, “dentro dos limites de nosso mundo intersubjetivamente compartilhado, sem correr o risco de afastamento do mundo como um todo e, em decorrência, da perspectiva universalista” (Habermas, 1999, p. 33-34).
Todavia, essa mesma racionalidade pode “perder-se” no momento da defesa solidária de metas coletivas. Ela sofre o risco de revelar sua impossibilidade em afiançar laços de solidariedade (Kaldor, 2005). Embora esse déficit possa ser corrigido dentro dos limites do Estado constitucional democrático, através do direito positivo, mesmo assim, ela não consegue impulsionar uma ação coletiva solidária.
Por um lado, se essa perspectiva fundamenta um ponto de vista moral que assegura vínculos entre os sujeitos que acreditam na justiça social e nos laços de solidariedade, por outro, essa razão secular parece definhar conquanto não consegue superar as “debilidades motivacionais” e proporcionar a realização solidária de metas coletivas. Ela é eficiente em relação à “observância individual dos deveres”, mas parece ser um tanto incapaz de impulsionar o engajamento coletivo solidário, ou seja, não se atreve a preceituar uma “ação moralmente instruída.” Em decorrência, tolera a resignação dos sujeitos diante de injustiças e da não solidariedade; e essa é, sem dúvida,a certificação de que essa moral pós-metafísica apresenta um nível de potencialidade significativo, mas, ao mesmo tempo, está permeada de dicotomias típicas de uma moral deficitária.
Para Habermas, a modernidade que se reabastece em suas próprias fontes, mas apresenta, entre outras coisas, “debilidades motivacionais de uma moral racional” que apenas poder ser asseguradas nos “limites do Estado constitucional democrático através do direito positivo” (2009, p. 221). Na verdade, a falta de solidariedade vai aumentando de modo proporcional ao crescimento dos “imperativos do mercado na forma de custos- benefício-cálculos ou da competência de serviços em âmbitos da vida cada vez mais variados, os quais obrigam aos indivíduos, na sua relação com os demais, a uma atitude objetivista” (Habermas, 2009, p. 218). Habermas reitera o processo de secularização das sociedades modernas, que parece conceder prioridade à instrumentalização das pessoas e das relações sociais, mesmo que essas pessoas, no fundo, conservem a consciência moral e acreditem na justiça e na solidariedade mútua.
Macpherson afirma que o modelo de Rawls “satisfaz os critérios para uma teoria da justiça econômica, enquanto realmente propõe submeter os acordos distributivos a um princípio ético” (1991, p. 26). Para este autor, o problema é a forma competitiva do modelo liberal, isto é, “uma economia totalmente dominada pelo mercado no qual a reação negativa dos empresários ao incremento dos impostos faz com que diminua a produtividade global (1991, p. 26). O mercado acaba dominando as relações, fazendo com que as exigências normativas percam sua força, de modo que a ética não pode fazer valer seus princípios em relação à tomada de decisões concretas.
Essa talvez seja a causa das debilidades motivacionais que geram uma desconfiança na própria razão secular, consequência de uma possível antinomia interna. Se, por um lado, ela assegura a capacidade de juízo contra a vulneração das prerrogativas e deveres individuais, por outro, ela se apresenta como deficitária na hora de motivar os sujeitos para agirem solidariamente, porque seus interesses permanecem ligados aos aspectos instrumentais de uma economia de mercado.
[1]PIZZI, Jovino. Considerações de Habermas a respeito da moral laica pós- metafísica e a progressiva perda da solidariedade. In: COLÓQUIO HABERMAS: HABERMAS E INTERLOCUÇÕES, 7.; SIMPÓSIO NACIONAL DE FILOSOFIA: ÉTICA, FILOSOFIA POLÍTICA E LINGUAGEM, 2., 2011. Londrina. Anais [...]. Londrina: UEL, 2011. Disponível em: https://coloquiohabermas.files.wordpress.com/2022/04/66eb1b4e9f1572eac5ec8b606cdd4e5a.pdf Acesso em: 25 abr. 2023.Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).
[2]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).