A TRANSMUTAÇÃO DA MORAL

releitura discursiva do legado nietzschiano[1]

 

Maribel da Rosa Andrade[2]

Universidade Federal de Pelotas

 

Jovino Pizzi[3]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

 

1 INTRODUÇÃO

 

Este artigo se apoia na releitura crítica da ética política de Adela Cortina, tendo como ponto de partida a sua reinterpretação da moral de transmutações. Seguido- ra da ética da discussão, a filósofa espanhola sintoniza com K.O. Apel, assumindo os pressupostos de uma fundamentação discursiva da moral. Na verdade, ela diz que a paternidade da ética da discussão cabe a Apel, quando, “no último capítulo de Transformation der Philosophie” ele esboça as grandes linhas de sua funda- mentação “para, em seguida, não fazer mais do que aprofundá-las e completá-las” (CORTINA, 2002, p. 155).

Na tradição kantiana, o domínio da razão prática envolve conteúdos de dife- rentes tipos de legislação, principalmente a forma moral e a questão jurídica. “Não se trata de dizer simplesmente que elas encerram conteúdos diversos, mas que a moral e o direito são dois tipos formalmente distintos de legislação” (CORTINA, 2002, p. 174). Mais do que salientar divergências, o aspecto convergente indica a superação da filosofia da consciência para, então, insistir na “relação da vontade e da razão” com o aspecto ilocucionário da linguagem orientados para a compreen- são intersubjetiva das pretensões de validade.

Face às novas exigências, a ética da discussão empreende uma reconstrução do ponto de vista moral. O “conteúdo das normas morais é social” (CORTINA, 2002, p. 185), no sentido de consolidar o compromisso do sujeito com o mundo social, pois todos pertencem e interagem em uma comunidade de sujeitos coauto- res. Nesse sentido, a “ética da discussão fornece um quadro ético, fundamentado filosoficamente, que deve ser desenvolvido e complementado para oferecer uma reconstrução fiel da racionalidade prática própria das sociedades situadas no nível pós-convencional” (CORTINA, 2002, p. 189). Para Adela Cortina, o aspecto deon- tológico da ética da discussão deve ser completado, de modo a poder “falar de valores, de fins e de virtudes” (CORTINA, 2002, p. 190).

Em vista dessas considerações, este trabalho pretende salientar o aspecto moral no horizonte da razão pública, tendo como elemento dialogante o legado nietzschia- no. Na verdade, pretende-se descrever a assunção de atitudes que, do ponto de vista moral, podem ser consideradas nocivas para a sociedade. Não se pretende, pois, discutir aspectos de fundamentação, mas indicar comportamentos que atestam dife- rentes posturas diante das exigências normativas. Para ilustrar os modos de proceder dos sujeitos, utilizou-se a analogia das três transformações do espírito, metaforica- mente apresentadas por Nietzsche em Assim Falava Zaratustra para através disso, evidenciar a crítica aos possíveis comportamentos morais dos sujeitos.

 

2 A ANALOGIA NIETZSCHIANA DA TRANSMUTAÇÃO

 

Na obra Assim Falava Zaratustra, Nietzsche revela as transformações do es- pírito que se modifica em camelo, de camelo a leão e de leão em criança. “Três transformações do espírito vos menciono: como o espírito se muda em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente em criança (...) a força desse espírito está bradando sobre coisas pesadas e, das mais pesadas” (NIETZSCHE, 2002, p. 34).

A carga inerente desse espírito sólido e forte é por demais, pesada. Semelhante ao camelo, que anda carregado pelo deserto, assim diz Nietzsche: “corre o espírito sólido e forte pelo seu deserto, o deserto mais solitário” (NIETZSCHE, 2002, p.35). Essa situação dá origem à segunda transformação do espírito, passando, então, de camelo a leão que, não mais satisfeito com o peso de sua carga moral, procura con- quistar a liberdade e tornar-se senhor de seu próprio mundo. Esse fato faz alusão a uma luta com o grande dragão moral do tu deves, ao qual o espírito não quer mais chamar de Deus e nem Senhor. Em contraposição ao dever instituído por imposi- ção e obrigatório até o momento, o espírito do leão defende a moral do eu quero. Nessa alegoria, valores milenares reluzem nas escamas do dragão. Nele, estão refletidos os valores de todas as coisas. A moral do tu deves ressalta que todos os valores já foram criados e, por isso, no futuro o eu quero é impensável. Embora não exista, para o leão, a possibilidade de criar novos valores, é possível conceber a liberdade para a conquista de novos valores. Por isso, o leão torna-se imprescindível. Entretanto, o questionamento de Nietzsche é taxativo: que poderá a criança fazer que não haja podido fazer o leão? Para que será preciso que o leão se mude em criança? (NIETZSCHE, 2002, p. 37).

Na sua inocência, a criança representa um novo começar, uma roda que gira sobre si, ou seja, uma pura afirmação necessária para o ‘jogo da criação’. O espírito necessita, então, realizar a sua vontade. Daí, quem perdeu o mundo, deseja agora, alcançar o seu mundo. Dessa forma, o espírito leonino do eu quero se transforma na inocente criança que, na sua lúdica simplicidade, afirma eu sou. Através desse processo, Nietzsche deseja representar sua crítica à moral e utiliza, para tanto, as três transformações do espírito.

Em tempos de realismo político e no horizonte de uma sociedade complexa, poder-se-ia sintonizar com Adela Cortina e afirmar que o camelo está morto, enquanto o leão e a criança não obtiveram sucesso. No entanto, um animal despretensioso, nada peluginoso e, em certa medida, apocalíptico sobrevive. Trata-se do camaleão, que diz: eu me adapto. Na verdade, trata-se de mestres em disfarces que, no Brasil, pode estar relacionado à lagartixa que, segundo suas características, apresenta o qualificativo de satânico, porque transforma sua coloração de acordo com as circunstâncias. Daí, então a relação com a expressão eu me adapto.

Essa analogia pode também refletir-se no dito popular façam o que eu digo, mas não façam o que eu faço. Traduzindo esse adagio em moralismo, o camaleão (ou a lagartixa satânica) evidencia a diversidade de posicionamentos e/ou atitudes do sujeito que, preocupado apenas com seus interesses privados ou de seu gru- po (agremiação, entidade, partido, empresa ou classe) aposta no jogo de buscar maiores vantagens, sem, para tanto, orientar seu agir de acordo com as exigências normativas mínimas[4].

A bem da verdade, esse realismo moral e político se sustentam em uma liberal tradição mercantilista, a qual presume um animal político convencional cada vez mais afastado dos ideais voltados à responsabilidade solidária com todos os sujeitos. De acordo com a filósofa espanhola, trata-se de um realismo fúnebre, pois inibe qualquer esperança e tolhe as expectativas relacionadas a valores éticos. Nesse senti- do, ela afirma ser uma forma de pensar e de atuar restrito a “números, cifras, estatísticas e probabilidades que podem converter a qualquer medíocre em um dissimulado do qual o presente de uma sociedade inteira dependa” (CORTINA, 1991, p.119).

Em uma época sem “utopias possíveis”, a luta pela liberdade em vistas uma humanidade mais consciente da necessidade de igualdade, existe o risco de tolher qualquer chance de reabilitar a dignidade humana. O preço da mediocridade indica a transformação de qualquer valor a simples cifras ou códigos numéricos. Por isso, o reavivamento do compromisso moral exige não apenas leis jurídicas, mas também o comprometimento com normas de vida social digna para todos, aspecto que nem de perto Freire salienta, com suas utopias possíveis.

De qualquer forma, o jogo moralista do camaleão, transformado em cálculos ou ao somatório dos dividendos, obstrui o compromisso social, pois o cálculo de interesses vai mermando a consciência coletiva como representação simbólica de um princípio de identidade. Segundo Adela, isso decorre do fato de não existir classes políticas, pois elas se vendem, ao mercado eleitoral, ligando-se apenas àqueles que oferecem melhor preço. Em suma, o jogo de interesses faz com que os políticos e os demais integrantes desse jogo leiloem-se a quem mais recursos sejam oferecidos, isto é, com as alternativas que garantem maiores vantagens e, assim, seja possível assegurar o triunfo. É politicamente evidente que

 

o dinheiro desonesto das campanhas é mais importante que o valor intrínseco das pessoas e de qualquer ideologia partidarista; enfim, trata-

-se apenas de um esporte, no qual a lucratividade do posto a ocupar é o menos importante, comparado com os contratos e acordos que serão assinados através da publicidade, direitos de imagem, transações, influências, impunidade, concessões de obras, e a garantia de fazer o sucessor da mesma estirpe (CORTINA, 1991, p. 123).

 

Não obstante, a transmutação camaleônica (ou do tipo lagartixa diabólica) da moral se torna felina enquanto as condições não favorecem o apetite individualista ou as exigências do grupo. Como ressalta Adela Cortina:

 

Quem poderá comprometer-se com a transformação do mundo se – como faz referência Nietzsche – o sujeito não mais se constitui no centro? Qual o compromisso do sujeito se houve um abandono da posição cen- tral para mover-se para não se sabe onde? Trata-se do adelgaçamento da política em ‘vistas ao jogo da economia, de maneira mais indiscriminada, jogando nos limites da lei da oferta e a demanda e do “deixar acontecer, deixar o tempo passar” smithiano. A favor de uma convivência sem emo- ções fortes, sem sobressaltos, resta silenciar as próprias convicções, para serem guardadas no profundo de seu coração, inclusive as razões que movem qualquer um a ser democrata (CORTINA, 1991, p.131).

 

Nesse sentido, Adela relembra Gehlen e Fukuyama que, aceitam o fato de que a história chega a seu fim e se faz visível através do “triunfo da liberalidade econô- mica sobre qualquer idílico pensamento igualitário, que está consumado” (PETO, 2012, p. 2). Diante disso, nem o transcendentalismo kantiano, retomado por Bloch, talvez de maneira um pouco ingênua, consegue hoje a validez confiável, sem ter que engolir o que se convencionou chamar de ingenuidade ou, então, pior ainda, de realista que, para Elster, não passa de “tolos racionais” (PETO, 2012, p. 2).

Portanto, é pertinente a afirmação kantiana de que o sujeito tem dignidade, e não preço. Nesse sentido, sua autonomia possui um valor intrínseco, o que não permite afiançar o “sem muito sentido para a política e inclusive para o social” (PETO, 2012, p. 2). A ironia da mutação de cores, representada pelo oportunismo eleitoral e o jogo politiqueiro dos que assumem o moralismo camaleônico denota a indiferença e a falta de compromisso político, com graves consequências sociais, políticas, culturais e ideológicas. A força dessa moral camaleônica, que insiste na adaptação ao mais conveniente, se traduz em comportamentos do dia a dia coti- diano, a ponto de a representação política tornar-se invisível. Desta forma, é im- possível responsabilizar alguém ou algum grupo diante do não cumprimento das promessas, porque um dia o compromisso aparece de uma cor e, no outro, já é de outra. Nas palavras de Cortina:

 

A moral do camaleão… é um estilo de vida ao qual aderimos os políticos e os cidadãos e, com isso, defraudamos ideais seculares, sonhos da humanidade, como o de uma sociedade de indivíduos autônomos, justos, como o sonho de uma paz universal (CORTINA, 1991, p. 130).

 

Como insiste a filósofa espanhola, esse estilo de vida perpassa o campo teóri- co e assume um caráter prático, isto é, ele faz parte da vida cotidiana dos sujeitos e orienta o agir desses. No Brasil, essa espécie de zoológico evidencia muito mais aspectos anômalos e moralistas, inibindo, muitas vezes, situações de hospitalidade e de congraçamento entre as pessoas. Na verdade, a representação da esfera da vida pública parece insistir muito mais no aspecto destruidor e nocivo de uma cultura que ainda não conseguiu sua maioridade. Há, inclusive, uma diversidade de modelos ou de pontos de vista tão diferenciados que torna impossível qualquer depuração.

Nessa representação díspar de situações, o dom da mutação permite a constante inconstância das pessoas. A própria inconsciência revela que não existe um ponto em comum ou uma exigência válida para todos, estigmatizando o registro de uma cultura adaptativa, mas que, no fundo, se distingue pela burla e pela traição com seu próprio eleitorado, com seus concidadãos, com as próprias convicções; enfim, com uma racionalidade pública. Enquanto vinculada ao moralismo da mutação, a identidade desses “camaleões” é efêmera, sem valor substantivo, apenas superficial. Para os adeptos dessa moralidade, continua a valer mais a política de que todos têm um preço. Nessa direção, tanto políticos quanto os cidadãos se adaptam às circunstâncias e aos fatos, anulando, com isso, a possibilidade de uma sociedade constituída por sujeitos autônomos e coautores.

Adela retraduz a leitura nietzschiana através das três transformações do espírito trabalhadas pelo filósofo alemão, na obra Assim Falava Zaratustra. Ela utiliza como ‘pano de fundo’ o conto sobre animais, que, em Zaratustra, revela a decadência da moral. Todavia, Cortina, ao inserir um quarto elemento, através do qual o aspecto moral pode ser atualmente representado, pretende enfatizar a questão de que esta- mos muito próximos de perder a possibilidade de renascimento da dignidade huma- na à custa do seu preço. O valor das pessoas se concentra na quantidade de votos que os partidos esperam conseguir ou do valor agregado que um determinado negó- cio representa. Essa é, sem dúvidas, a análise que esse trabalho pretende evidenciar, cujo estudo se atém à crítica a um comportamento moral que atualmente pode ser auferido em distintas situações da vida cotidiana. No fundo, o triunfo de um ou de outro modelo também revela as inquietações de um moralismo que, na maioria das vezes, é muito mais pernicioso, arrogante e avassalador do que construtivo e incre- mentador de laços de solidariedade e de compromissos com ideais coletivos.

Essa ironia da analogia da moral do camaleão (ou lagartixa satânica) com o legado nitzscheano representa em nosso país, o oportunismo eleitoral que se repro- duz cada vez mais e traz consigo uma indiferença frente aos interesses coletivos, como também, um nível de falta de compromisso político para com as pessoas, muito forte. Quantos animais políticos dessa espécie, sabemos da existência e que convivem cotidianamente na esfera pública em nosso país e em tantos outros? É interessante observar que mesmo possuidores do dom da transmutação constante, esses camaleões políticos não podem passar despercebidos, pois sua própria cons- ciência os revela. “levam um estigma visível em sua historia, o da burla e traição a seu próprio eleitorado, a seu próprio povo” (PETO, 2012, p. 2).

É possível perceber que a velha tentativa, já apontada por Schopenhauer, de encontrar um fundamento seguro para a moral, ter resultado na concepção de que “não há nenhuma moral natural, independente do estatuto humano, mas que esta é de ponta a ponta um artefato, um meio descoberto para a melhor domesticação do egoísta e maldoso gênero humano”. (SCHOPENHAUER, 2001, p.109). Portanto, parece-me haver certo fracasso nessa tentativa de domesticação, “as lagartixas sa- tânicas escapam a essa domesticação” e, nos encontraríamos num grande erro se acreditássemos que todas as ações humanas fossem de origem moral. Se assim fosse, não haveria espaço para a procriação, para a disseminação dos grupos da espécie de lagartixas satânicas, ou, dos camaleões políticos que se alastram no espaço público.

 

3 A ANTIMORALIDADE MOTIVACIONAIS[5]

 

A motivação principal tanto no homem como no animal é o egoísmo (ímpeto para a existência e o bem-estar). Podemos entender melhor se interpretarmos a pa- lavra “Eigennutz” (interesse próprio) como aquela que aponta o egoísmo enquanto guiado pela razão o torna capaz, por meio de reflexão, de perseguir seu alvo, ou seja, seu objetivo último, porém de maneira planejada (SCHOPENHAUER, 2001, p.120). Nesse sentido podemos chamar as ações dos animais de egoístas, mas não de interesseiras. No egoísmo humano parece estar fundamentado o cálculo de to- dos os meios necessários através dos quais o homem se conduz para alcançar seu alvo para acumular a maior soma possível de bem-estar. Tudo que se opõem a isso provoca má vontade, incompreensão, ira e revolta.

Ao que parece, já não importa mais a consciência histórica nem muito menos a consciência coletiva, como representação simbólica de um princípio de identidade (PETO, 2012, p. 1), as classes sociais, na verdade, deixaram de existir, pois, usam de camuflagens, se adaptam a melhor proposta do mercado eleitoral e se vendem ao melhor proponente, basta que ofereça os melhores recursos, maior quantidade de materiais que possa ser distribuído, garantindo o sucesso do investimento, para então após, recuperá-los em cifras numéricas bem mais atraentes.

São transações, influências, impunidades, concessões de obras, etc... Nesse sentido, as transmutações morais continuam fortemente articuladas, visto o ho- mem ser considerado o mais egoísta dos animais. O egoísmo humano faz com que muitos políticos, carentes de moralidade, e, encontrados em toda parte do mundo, inclusive no Brasil, sejam capazes de camuflar suas verdadeiras intenções ao in- gressar na política. É evidente que valores morais não fazem parte das ações desses políticos, moralidade é uma condição inexistente para esses camaleões. Tornou-se facilmente percebível que esse fator de corrupção política, isto é, o ingresso na po- lítica de camaleões políticos, vem a bastante tempo desestabilizando a Democracia.

 

Segundo Aleksandar Petrovich[6] (2011, p. 2).

 

Em países em desenvolvimento constante, os “camaleões políticos” cada vez aumentam mais e não existem filtros para evitá-los. O duplo padrão, o pagamento de suborno, o tráfico de influências políticas a ní- vel internacional, as concessões de monopólios camuflados, os lobbies para as empresas corruptas, não somente enriquecem esses “camaleões políticos”, como são causa de um grande atraso; prejudicial para o de- senvolvimento econômico, social e político de uma comunidade que pretende evoluir em um sistema democrático[7].

 

Se desejarmos um sistema democrático forte, construído a partir de um pro- cedimento dialógico intersubjetivo, gerador de benefícios comuns, é preciso não apenas saber fazer escolhas certas relacionadas ao tipo de político virtuoso, como também exigir que os que querem ingressar na política, tenham sim um preparo, uma formação em ciência política e em ética pública. Pois não podemos mais se- guir tolerando a presença de políticos “representantes da vontade pública” possui- dores da moral do eu me adapto, no estilo de lagartixas satânicas.

De momento, o povo brasileiro parece não ter argumentos, meios, para neutrali- zar a esses políticos. Para muitos de nossos jovens, os políticos não passam de “caça- dores de cargos públicos” que não merecem sequer respeito. Parece ser que a solução para o “político com moral de camaleão”, está em identificar os vícios ocultos nas estruturas dos partidos políticos. Trata-se de vícios ocultos que apresentam brechas para a entrada dos camaleões, que demonstram ineficácia, autoritarismo e desorganização.

 

4 O TRIUNFO DO CAMELO

 

Para Cortina, a constatação pode ser fundamentada, mas exige respostas a questionamentos tais como: a transformação política e econômica desejada modificou, por sua vez, as necessidades humanas? É supérflua a moral do dever porque os homens desfrutam de suas relações mútuas, sem submetê-las ao jogo mercantil do cálculo e da estratégia e sim ao jogo agradável e desinteressado?

As respostas a essas questões só poderão ser de forma negativa, pois, nem a revolução esperada veio e nem está por vir. Certamente, há recursos suficientes para que todos possam gozar de vida digna e, deste modo, desfrutar de seus direitos fundamentais. Nesse sentido, Adela acredita que Marcuse apresenta uma perspectiva plausível, pois ressalta que a sociedade atual não acredita mais no trabalho como o centro das questões humanas. Na verdade, vivemos em uma sociedade de ociosos, de especuladores, de espertalhões com uma retórica muito bem articulada. A felicidade consiste em conseguir o máximo com o mínimo de esforço. O conceito de homem virtuoso e feliz está à mercê da mais pura casualidade. Ou seja, o sujeito virtuoso é feliz se conseguir maximizar seus interesses e, então, pode considerar-se um sujeito de sorte, pois as condições apenas salientam que uns poucos conseguem vencer, mas à custa do esforço da grande maioria.

Nesse sentido, Cortina salienta que as éticas deontológicas, diante das grandes transformações do final do século passado, estão novamente no auge e refutam a falar de felicidade. A este respeito, tanto Apel como Habermas têm oferecido algumas das razões para semelhante redução que podem resumir-se no seguinte:

1.Uma ética crítico-universalista não pode sequer pré-julgar dogmaticamente a felicidade dos indivíduos, mas deixar a decisão em suas mãos;

2.          Uma ética crítico-universalista não se conforma com o relativismo ao aceitar a pluralidade de formas de vida nascidas dos diferentes ideais de felicidade, porque admite e potencia as diversas ofertas de «vida boa», mas não aceita diversos princípios da justiça; no caso de conflito entre distintas formas de vida, que devem ser submetidos às restrições impostas por princípios universais, legitimadores de normas;

3.          não são unicamente os filósofos quem se colocam a perguntar pela vida feliz, mas  também  os  psicoterapeutas, os  teólogos, os literatos, os criadores de  utopias  imaginarias. Os  modelos de felicidade não podem, portanto, serem universalizados, nem serem exigidos e, por isso, transcendem o domínio da ética (CORTINA, 1996, p. 138).

Como é possível perceber, Cortina afirma que, além destas, ainda cabe adicio- nar outras motivações, embora menos convincentes, para compreender ou justificar o deontologismo reinante e, ao mesmo tempo, submetê-lo dialogicamente à crítica. Para a filósofa, ninguém nega o evidenciamento do homo ludens em detrimento ao homo faber (CORTINA, 1991, p. 129). Nesse sentido, criança joga sentindo-se um camelo carregado de fardos. Assim, ninguém, sequer os partidários de uma ética deontológica, acreditam em uma sociedade pura, isto é, livre das patologias ou dos jogos nefastos dos que apostam em interesses imediatos e privados. Mesmo assim, é tempo de construir uma sociedade ideologizada. Para a filósofa, não se trata ape- nas de uma preferência estética, pois exige também uma perspectiva de felicidade. Essa idealização implica no enfrentamento com algumas questões inevitáveis: o que significa o termo ‘excelência’ em uma sociedade sem piedade e competitiva? Quais seriam as virtudes invejadas por uma sociedade consumista, estratégica e corporativista? Qual seria o ideal de felicidade, o ideal de uma imaginação bombar- deada por todo o gênero de propaganda?

Evidentemente, esses vestígios de ficção ética, levantadas por Adela Cortina suscita outra questão: Seria o homem motivado pelo ideal de felicidade, confor- mado por semelhantes virtudes, capaz de respeitar o princípio fundamental de igualdade e de solidariedade, uma das exigências morais imprescindíveis para os dias de hoje?

Nesse contexto, Cortina responde usando a seguinte argumentação:

 

[...] ao decidir quais normas devem regular a convivência social, é preciso ter em conta os interesses de todos os afetados no mesmo nível, e não de acordo com os fatos fáticos, que estão previamente manipula- dos. Na verdade, nenhum deles goza do mesmo nível material e cultural, nem da mesma informação. Por isso, – parafraseando John Rawls – você está convencido da igualdade humana quando fala, com convicção, so- bre a justiça; ou quando executa ações de fala com sentido, seguir a determinação da ética discursiva; faça, pois, do respeito à igualdade uma forma de discurso normativo e de vida (CORTINA, 1996, p.139).

 

A felicidade, que todos aspiramos, não é entendida da mesma maneira pelas pessoas em geral, nem pelos sábios, muito menos nem pelos jovens, adultos ou na relação entre as diferentes sociedades. Conforme a autora, talvez porque seja um conceito vazio. Enfim, porque não seja a filosofia que tenha de ocupar-se dela. En- quanto as ações possuírem motivos interessados, mesmo que único, o valor moral das ações estará totalmente suprimido, porque é na ausência de toda a motivação egoísta, como afirma Schopenhauer, que podemos encontrar o verdadeiro critério de uma ação dotada de valor moral.

A decadência da moral apontada por Nietzsche em Assim falava Zaratustra, parece prevalecer em tempos contemporâneos, e, além das alternativas apresen- tadas por Apel e Habermas a esse problema, Adela Cortina, em La educación del hombre y del ciudadano, artigo publicado na Revista Iberoamericana de educaci- ón; defende a tese de que a educação é o meio pelo qual podemos confrontar essa questão espinhosa.

A filósofa menciona também Hobbes, que desenvolve uma proposta filosófica calcado na ideia de que é preciso enraizar a moral no interesse egoísta dos sujeitos. Essa seria para Hobbes, a única forma de construir uma moral cimentada e está- vel. Dessa forma ganha ênfase a questão: como podemos conseguir que pessoas “sem” sentido moral possam vir a interessar-se e, a seguir normas morais em um país como, por exemplo, o Brasil? A alternativa trabalhada por Cortina está não em abandonar a louvável tentativa de convencer os indivíduos do sentimento moral, mas uma alternativa plausível estaria na educação; educando moralmente as crian- ças como homens e como cidadãos ao invés de primeiro levá-los a interessar-se por questões de moralidade, mesmo porque se bem trabalhada, a educação despertará naturalmente o interesse pela moral.

É possível perceber que estamos diante de outra questão: O que significa então, educar moralmente? Cortina tenta responder tal questão ressaltando que: “Creio que hoje em dia é necessário recorrer às contribuições de diversas tradições morais e não optar unicamente por alguma delas, descartando as restantes” (COR- TINA, 1995, p.46). Em seu artigo, Cortina articula um modelo de educação moral cujas peças vão sendo fornecidas por diversas tradições morais, desde a base antro- pobiológica, pela qual somos inevitavelmente seres morais (tradição zubiriana), até a capacidade de atuar de acordo com leis que, como seres humanos nos daríamos a nós mesmos (tradição kantiana). (CORTINA, 1995, p. 47).

No entanto, a moral encontra-se frente a uma desmoralização já evidenciada por Nietzsche, e nos dias atuais apresenta um sério agravante: a classe da morali- dade camaleônica e para enfrentar o problema, parece que a educação moral apre- senta a melhor alternativa. Segundo Cortina, para aqueles que querem educar com a moral, primeiramente é preciso saber o que entendemos por moral. Pode-se dizer que a expressão significa capacidade para enfrentar a vida frente à desmoraliza- ção (CORTINA, 1995, p. 49). Poderia pensar-se ser a primeira tarefa da educação moral; formar as crianças como homens para depois então, ensiná-los os valores da cidadania. Dessa forma a cidadania oferece duas vantagens específicas: a) o exercí- cio da cidadania é fundamental para a maturidade moral do sujeito, porque como ressalta a autora, a participação na comunidade destrói a inércia, a consideração do bem comum alimenta o altruísmo. (CORTINA, 1995, p.51). b) A cidadania por sua vez, também permite suavizar os conflitos que surgem entre os professantes de diferentes ideologias porque ajuda a cultivar a virtude política da conciliação responsável dos interesses em conflito. Para formar homens é necessário, pois, construir a classe dos cidadãos convictos do verdadeiro conceito de moralidade.

 

5 CONCLUSÃO

 

A filosofia nietzscheana consiste na ideia de que os seres humanos devem ser traduzidos de volta à natureza (LEITER, 2011, p. 2). Em síntese, Nietzsche foi um genealogista que prepara o terreno para os “filósofos do futuro” (LEITER, 2011, p. 6). Embora ele se afaste de qualquer tradição kantiana, Adela Cortina aproxima-se de sua teoria e refaz a leitura nietzschiana em vistas tratar questões morais, defendendo a tese de que é possível uma alternativa para a erradicação da “moral do camaleão”. A filósofa sustenta que a solução pode ser encontrada na educação. Sua reflexão sobre a transmutação da moral leva-nos a evidenciar a urgente neces- sidade de valores éticos imbricados com as ações morais. Do contrário, estamos fadados à vitória do “camelo”, que continuará a carregar fardos pesados, apontado por Nietzsche nas três transformações citadas em Zaratustra.

 

REFERÊNCIAS

 

CORTINA. A. Ética mínima. Madri: Tecnos, 1986.

 

CORTINA. A. Ciudadanos del mundo: hacia una teoria de la ciudadanía. Madrid: Alianza, 2009.

 

CORTINA. A. La Educación Del hombre y Del ciudadano. In: Biblioteca virtual de la OEI: Revista Iberoamericana de Educación, 1995, Edición PDF. Joaquim Asenjo. Disponível em: http://revistaiberoamericana. pitt.edu/ojs/index.php/Iberoamericana. Acesso em: maio 2013.

 

CORTINA. A. La moral del camaleón: ética política para nuestra fin de siglo. Madrid: Espasa Calpe, 1991.

 

LEITER, B. O naturalismo de Nietzsche reconsiderado. In: Cadernos Nietzsche, n. 29, 2011.

 

NIETZSCHE, W. Friederich. Além do bem e do mal. São Paulo, SP: Schwarcz, 2009.

 

NIETZSCHE, W. Friederich. Assim falava Zaratustra. 2000. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org. Acesso em: maio 2013.

 

PETO, J.T. La moral Del camaleón: dignidad y precio.2012. Disponível em http://www. nssoaxaca.com. Acesso em: maio 2013.

 

PETROVICH, A. La Moral Del Camaléon. 2011. Disponível em: http://gonzalogamio.blo-gspot.com.br/2011/03/la-moral-del-camaleon-por-aleksandar.html. Acesso em: maio 2013.

 

SHOPENHAUER, A. Sobre o fundamento da moral. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

 

 



[1] Andrade, Maribel da Rosa; PIZZI, Jovino. A transmutação da moral: releitura discursiva do legado Nietzschiano. In: COLÓQUIO HABERMAS, 9.,2013, Rio de Janeiro. Anais [...]. Rio de Janeiro: Salute, 2014. Disponível em: https://coloquiohabermas.files.wordpress.com/2013/09/ebook_anais_ix_ coloquio_habermas.pdf Acesso em: 25 abr. 2023.Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).

[2]Bacharela e Licenciada em Filosofia, pela Universidade Católica de Pelotas. Mestra em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas

[3]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[4] Nesse caso, fazemos referência à ética de mínimos, conforme Adela Cortina propõe em suas obras.

[5] Antimoralidade – composição da palavra no sentido de “contrária às regras”.

[6] Advogado, doutor em direito e investigador – Membro do Bar de Madrid – Espanha.

[7] PETROVICH, A. Corrupción y Política: La moral Del camaleón, 2011, p. 2. (artigo).