Jovino Pizzi[2]
Universidade Federal de Pelotas
1 INTRODUÇÃO
Apesar da transformação que a teoria do agir comunicativo apresentou, ela ainda se ressente de um tratamento adequado ao sujeito pronominal. A relação intersubjetiva intercala ego e alter. A intersubjetividade comunicativa supõe a alternância de papeis entre sujeitos coautores da primeira e da segunda pessoa (singular ou plural). Todavia, quando se trata da terceira pessoa, há uma suposta impessoalidade ou imparcialidade. No nível gramatical, a terceira pessoa indica um sujeito não-presente ou, então, aparentemente sem qualquer intervenção direta. Contudo, as exigências pragmático-comunicativas presumem um tratamento pronominal a qualquer sujeito, de forma a reconhecer tanto o falante (singular ou plural = eu ou nós) quanto o ouvinte (singular ou plural = tu ou vós) o status de sujeito coautor, sem considerar as terceiras pessoas na sua completa impessoalidade.
Essa questão retoma um dos aspectos centrais do agir comunicativo. De fato, se os tipos de agir suscetíveis de racionalização seguirem o quadro desenhado por Habermas, não há como superar a dicotomia entre agir comunicativo e agir instrumental. Por isso, a revisão desse quadro tem dois aspectos fundamentais. Por um lado, averiguar como é possível levar em conta todos os pronomes pessoais no mesmo nível, sem, todavia, reduzir a perspectiva do pronome pessoal na terceira pessoa (singular ou plural) ele e/ou eles à esfera da imparcialidade. A impessoalidade pode caracterizar uma relação meramente objetual e, em razão disso, limitando a ação ao âmbito exclusivamente instrumental. Daí, então, o outro aspecto dessa reconsideração: a objeção em torno a própria noção de agir instrumental, de modo que a noção de mundo objetivo seja equacionada. Em outras palavras, a teoria do agir comunicativo necessita ainda de um aprimoramento no sentido de compreender que os não humanos e os elementos da natureza consigam também um reconhecimento como entes de direito.
Em vista disso, a correção da teoria de Habermas passa pela revisão da tipologia do agir, aspecto que requer um esforço considerável. Na tradição latina, por exemplo, a designação res é traduzida como “coisa”, mas que, numa releitura, assume a forma de sujeito concernido. Desse modo, na referência pronominal das terceiras pessoas, haveria a possibilidade de identificar não apenas um sujeito que não se resume a “bens inertes”, mas reconheça também sujeitos enquanto “entes de direito”.
2 O SUJEITO FRENTE A INTERAÇÃO COMUNICACIONAL
Em Teoria do Agir Comunicativo, Habermas transfere a centralidade do processo comunicativo e o realoca na linguagem. Na verdade, para fugir do solipsismo metodológico e da compreensão monológica do significado de qualquer expressão simbólica, o ponto de apoio para o agir comunicativo deixa de ser “a intenção” ou “o propósito” do falante (Habermas, 2012 I, p. 478), priorizando a “estrutura da expressão linguística” (2012 I, p. 479). Com isso, ele pretende mostrar que o agir comunicativo vincula o entendimento às ações de vários atores, e não simplesmente às intenções ou às pretensões subjetivas. Conforme o próprio autor, é preciso situar as “ações em uma rede de espaços sociais e tempos históricos” (2012 I, p. 479). Trata-se, pois de “atos de entendimento” entre sujeitos que interagem em um contexto social, de forma a garantir o um nexo imprescindível entre o “significado de uma expressão linguística e a validade”, isto é, sua pretensão de validez em “contextos situativos” (2012 I, p. 485).
No caso, Habermas indica uma abordagem interna (p. 480) e um horizonte (ou mundo) exterior (p. 484), deixando claro que toda teoria - comunicativa, no caso - deve pressupor um horizonte que possa “fundamentar os modos básicos de emprego da linguagem”. Ao convergir para a linguagem, Habermas reconhece que “há diversas maneiras de os participantes manifestarem pretensões normativas de validade”, pois os sujeitos sempre compartilham um mundo da vida e o que há de “comum” nesse Lebenswelt (Habermas, 2012 I, p. 484). Desse modo, continua o autor, os sujeitos conseguem não somente “coordenar ações”, mas também “contribuírem para que se construam interações” (Habermas, 2012 I, p. 485).
Como é possível perceber, essa “primeira consideração intermediária” da obra Teoria do Agir Comunicativo, Habermas procura salientar a força ilocucionária dos atos de fala (2012 I, p. 485). Em outras palavras, o delineamento de seu programa distingue “agir social, atividade teleológica e comunicação” (2012 I, p. 473 ss, cf. o próprio título da seção). Com isso, ele consegue desenhar os fundamentos da pragmática comunicacional, que permite “explicar, com base na relação ente o significado literal e o significado contextual das ações de fala, a razão pela qual é preciso adicionar a concepção de mundo de vida ao conceito de agir comunicativo” (Habermas, 2012 I, p. 486).
Esse é um dos pontos centrais da teoria do agir comunicativo de Habermas. Mas a debate inclui, atualmente, outros pensadores, como é o caso de Forst e sua discussão a respeito da contextualização ou descontextualização das pessoas e “não pessoas” (2010, p. 11). Ou seja, ao tempo que a teoria do agir comunicativo reforça a participação do sujeito e o trata como sujeito coautor, evidencia-se uma preocupação em torno à configuração de sujeito como tal. No caso de Forts, a “teoria da pessoa” encontra percepções diferenciadas, a ponto de possibilitar fundamentações que justifiquem o modo impessoal e imparcial. Mesmo assim, ele acredita que o tratamento impessoal e/ou imparcial apresenta uma dimensão moral. Todavia, o pano de fundo do “eu desvinculado” remete à consideração a respeito de todos os pronomes pessoais. Daí, a insistência de que a constituição do sujeito coautor perfaz um tipo de fundamentação concernente também às terceiras pessoas, de modo a conseguir o reconhecimento enquanto sujeitos concernidos na ação; e não, simplesmente, na sua neutralidade ou, então, a um sujeito não presente.
Na verdade, mais do que uma simples pretensão individual ou de um sujeito na sua constituição particular, a questão se circunscreve no horizonte das transformações que a filosofia sofreu na última metade do século passado. A mudança ressalta os giros analítico, linguístico, epistemológico, ético e, se quisermos, pode-se acrescentar também o giro aplicado. Todos eles estão relacionados, de uma forma ou de outra, ao abandono da filosofia da consciência. Daí, então, o interesse com o sujeito comunicativo e a intersubjetividade comunicacional. Nesse horizonte, a “constituição do eu” (Forst, 2010, p. 15 ss) passa a ser tema de estudo e preocupação de diversos pensadores.
De todos os modos, a plausibilidade dessa preocupação se reflete na teoria do agir comunicativo, mais precisamente no uso interativo da linguagem. Para Habermas, a linguagem não se limita aos traços fonéticos, sintáticos e semânticos, pois assume as características pragmáticas. Por isso, mais que o significado literal, há o aspecto contextual das ações de fala (Habermas, 2012 I, p. 486). Não se trata, pois, de processos simbólicos ou de expressões escritas como types, muito menos de tokens. Ou seja, o agir comunicativo vai além da idealização ou do caráter semântico dos significados linguístico, pois facticidade e validade penetram a “prática comunicativa”, coordenando a ação entre sujeitos participantes (Habermas, 1998, p. 97).
Em vista disso, o projeto não apenas evoca e persiste nas sendas do linguistic turn, pois pretende rever a forma pronominal inerente ao processo comunicativo, isto é, à interação entre sujeitos coautores. Em se tratando do agir comunicativo, não há como esquivar-se do sentido das expressões gramaticais. Mas isso não é o bastante. A pergunta a respeito do significado de qualquer locução demanda sempre o esforço por responder “o que significa” tal manifestação em um contexto de ação. As alegações envolvem não só a análise gramatical e semântica dos lexemas, pois a compreensão do sentido implica também na discussão de seu aspecto pragmático. Por isso, o fenômeno comunicativo entre sujeitos não pode limitar-se às definições dos signos e expressões, porque há, em qualquer ato de fala ou expressão gramatical, uma referência prática ao agir.
Para Habermas, a linguagem é o meio através do qual os “atores coordenam suas ações” em vistas a um entendimento (1998, p. 97). Além de ater-se à pergunta “o que significa”, a ideia remete a “a quem” são os verdadeiros concernidos e “como” eles utilizam as designações nominativas no seu sentido prático. O significado não é um fato, um acontecimento que possa ser considerado bom ou mau, pois pressupõe uma relação entre pontos de vista diferentes e diferenciados, ou seja, desde uma relação dialógica entre sujeitos coautores. Tanto o eu-sujeito coautor como o outro-sujeito, também coautor, não são simples partícipes na interação, mas também agentes que contribuem na reconstrução dos significados e do acordo concernente a todos.
A racionalidade comunicacional salienta, pois, um procedimento intersubjetivo, porque qualquer ator contribui e, portanto, é participante ativo. Esse caráter dialógico da razão supõe a linguagem como meio de coordenação das ações. Por isso, o reconhecimento recíproco perfaz a base da vida social. A contribuição diferentes autores, como é o caso de Honneth, reforça o fato de que a compreensão linguístico-comunicativa está ligada a um “potencial naturalmente determinado” livre de qualquer tipo de coação (2009, p. 351). Nesse caso, a formação individual do sujeito se vincula ao processo de emancipação, isto é, livre das coações inibitórias da sua capacidade de ação. O reconhecimento recíproco é uma das exigências na busca de um acordo comunicativo. Essa pressuposição requer, pois, uma simetria entre os sujeitos, aspecto indubitável no caso pronominal da primeira e da segunda pessoa (singular ou plural). Mas isso não fica evidente quando se trata da terceira pessoa (singular ou plural), cujo emprego traduz um sujeito não referencial e na forma impessoal, sem expressar, de fato, um vínculo direto com a ação.
O aspecto pragmático comunicacional evidencia, portanto, que todos os concernidos devem ser reconhecidos como coautores. Essa pragmática pressupõe uma “neutralidade do procedimento” (Habermas, 1998, p. 386), porque ninguém pode garantir, por si só, sua autonomia moral. Ela depende da interação comunicativa, ou seja, dos esforços cooperativos que ninguém pode ser obrigado através das normas jurídicas, mas que todos são conclamados a seguir (ou obedecer).
Por isso, a relação entre o significado contextual das ações de fala e a utilização de todos os pronomes pessoais, inclusive os das terceiras pessoas requer uma revisão. O sentido das expressões gramaticais e dos próprios atos de fala deve partir do “como” os concernidos podem reconhecer-se enquanto coautores, e não simplesmente ater-se ao “que” significa tal manifestação. Em razão disso, o pressuposto de universalidade deveria também explicitar o reconhecimento e o uso de todos os pronomes pessoais. Em outras palavras, no processo interativo, não há formas impessoais ou imparciais, inclusive quando se trata das terceiras pessoas. O “quem” são os sujeitos e como eles podem ser reconhecidos enquanto coautores requer um novo quadro tipológico em relação à teoria do agir. O “como” salienta a participação enquanto coautores, pois tanto falantes quando ouvintes são sujeitos ativos na reconstrução das exigências normativas.
3 O SUJEITO FRENTE A INTERAÇÃO COMUNICACIONAL
O ponto de partida da revisão da tipologia do agir de Habermas está na desconfiança a respeito da terceira pessoa, ressaltando sempre a possibilidade de ressaltar o seu uso relativo a uma relação instrumental. Ou seja, a centralidade do agir comunicativo está na alternância dos sujeitos enquanto atores dialogantes. A utilização do pronome pessoal ocorre sempre na primeira e na segunda pessoa (singular e plural). Todavia, as terceiras pessoas (ele ou eles) sofrem o estigma de atores não-presentes e, portanto, imparciais. Por isso, a pragmática comunicacional não pode considerar as terceiras pessoas como atores não concernidos ou completamente imparciais.
A teoria do agir comunicativo reforça a interação entre sujeitos. Todavia, é importante também ressaltar que, para Ricoeur (2007, p. 23), a “[...] forma pronominal”, de uma forma ou de outra, redimensiona a categorização do sujeito comunicativo. Na verdade, Ricoeur entende que o tratamento pronominal não se resume ao binômio falante-ouvinte, aspecto tão precioso para a teoria do agir comunicativo de Habermas. Em outras palavras, a forma pronominal requer que todos os pronomes pessoais sejam reconhecidos e admitidos como coautores. Por isso, no delineamento e na justificação do “significado contextual das ações de fala” não pode haver pronome pessoal neutro e, em decorrência, a concepção de sujeitos não- presentes, considerados na sua absoluta imparcialidade. Ainda que não-presentes, as “terceiras pessoas” indicam sempre atores que não podem ser ignorados. E isso pode ser admitido, por exemplo, em termos de “gerações futuras” – como entende Hans Jonas (2006) – ou, ainda, em relação aos não humanos – como justifica Peter Singer (2004) ou, até mesmo, em vistas à ecologia – como aparece e Dworkin (2003).
O nível gramatical suporta, por exemplo, que a terceira pessoa (singular ou plural) indique um sujeito não-presente ou aparentemente sem uma intervenção direta na ação. Todavia, as exigências pragmático-comunicativas presumem um tratamento pronominal a qualquer sujeito, de forma a garantir tanto ao falante (singular ou plural = eu ou nós) quanto ao ouvinte (singular ou plural = tu ou vós), sem ignorar as terceiras pessoas. Na verdade, trata-se de certificar a possibilidade de justificar a simetria de todos os pronomes pessoais, sem, portanto, reduzir a perspectiva do pronome pessoal ele e/ou eles ao âmbito meramente instrumental.
A pragmática comunicativa obedece, pois, a determinadas condições de fala em que todos os pronomes pessoais possam ter em vista um sujeito coautor. O abandono ou, então, a suposição de que há terceiras pessoas neutras apresenta consequências infelizes – para utilizar a expressão de Austin – para a fundamentação discursiva da moral e, inclusive, no reconhecimento do outro enquanto sujeito coautor. A persistência de um sujeito “neutro” ou imparcial no tratamento pronominal não é garantia para qualquer conceito de responsabilidade, de solidariedade pública, de justiça e assim por diante.
A co-originalidade dos participantes supõe uma atitude performativa. O sujeito assume, pois, o papel de participante. A coautoria se relaciona ao fato de ser sujeito ativo e contribuidor na reconstrução do entendimento. No processo dialógico, o sujeito assume o papel de primeira pessoa (ego) e instaura uma relação interpessoal com outro sujeito (alter). A constante alternância entre as posições de primeira e de segunda pessoa consagra a coautoria entre os concernidos. Todavia, as “vozes” dos sujeitos não-presentes continuam à margem. Às vezes, o abandono da terceira pessoa em favor da primeira pode indicar o menosprezo aos demais, pois trata de um sujeito não referencial. Nesse sentido, os próprios verbos indica a impessoalidade ou um tipo de informalidade, cuja posição fica à mercê dos atores diretamente concernidos.
Como foi destacado, o agir comunicativo faz parte do núcleo da ética discursiva. Isso evidencia que “o processo de reprodução material se apresente como dependente de um processo de entendimento intersubjetivo mediado por normas sociais” (Honneth, 2009, p. 358). Essa pauta não se refere apenas ao trabalho humano e social, pois, para Honneth, o entendimento deve traçar as linhas em torno da “organização da vida social no seu conjunto”. No caso, o “âmbito da reprodução material desenvolvida através das atividades instrumentais” (Honneth, 2009, p. 359). De qualquer modo, o desenvolvimento das atividades, ainda que instrumentais, está sempre vinculada a uma interação entre sujeitos coautores e, portanto, presumem uma interação mediada linguisticamente.
A inclusão do outro reitera a exigência no assentimento de todos os concernidos. Não se trata de um jogo qualquer, mas na possibilidade de os sujeitos coautores adotarem as perspectiva dos demais e, ao mesmo tempo, garantir a cada participante os seus interesses. Nesse caso, as regras da linguagem supõem o uso dos pronomes pessoais, aspecto que se evidencia no componente proposicional e no aspecto ilocucionário dos atos de fala. Por certo, é na oração principal que se encontra a inovação habermasiana. Essa experiência “proporcionada comunicativamente” significa que a linguagem não cumpre apenas a função de enunciativa, mas consolida uma relação interpessoal.
Até aqui, o foco é, por certo, antropocêntrico. Todavia, é pertinente a indagação a respeito das relações com os não humanos e outros elementos da natureza. Será possível evitar o tratamento ele ou eles para não humanos? Qual o pronome pessoal relativo a tais seres? Como proceder nesses casos?
Não há dúvidas de que tais questões precisam ser arrostadas. No caso de não humanos, é possível reconhecê-los como entes do direito (Onida, 2010, p. 180). Para Pietro Paolo Onida, a condição dos não humanos não pode ser reduzida à consideração de simples e meros objetos. Para ele, a perspectiva objetivista – e instrumental, no caso – parte do pressuposto equivocado de que os seres não humanos podem ser tratados enquanto “bens inertes” (Onida, 2010, p. 188). Na interpretação de Onida, a tradição latina diferencia res e pessoa. A tradução de res enquanto “coisa” assume a única versão para indicar qualquer “objeto material”. Todavia, é interessante perceber que res pode referir-se não apenas às coisas, mas também aos terrenos, edifícios, escravos e animais (Onida, 2010, p. 161). Ao mesmo tempo, Onida lembra ainda que a qualificação jurídica de servus abarca tanto a categoria moderna de objeto quanto de sujeito do direito. Para ele, foi na modernidade que ocorreu a separação entre sujeito e objeto, radicalizando e tornando a diferenciação entre personae e res inflexível, pois, na tradição romana, o ser humano é considerado, ao mesmo tempo, como pessoa e res (Onida, 2010, p. 164).
Nessa perspectiva, a fenomenologia – a começar com Husserl – também se insere em um debate que separa corpo (Körper) e corporalidade vivida (Leib). Na interpretação de Habermas, essa distinção realça a percepção de sujeito participante e sujeito observador e observado. Todavia, de forma alguma, o observador não participa menos que o observado (Pizzi, 2006, p. 125). Assim, o reconhecimento do outro, na sua originalidade de sujeito coautor, não admite qualquer tratamento ou relação instrumental.
Em outra vertente, Honneth afirma que há outro problema: a legitimação do poder (2009, p. 361). Essa “força” não regulamenta apenas entre os próprios humanos, mas também dos humanos em relação aos não humanos e à própria biosfera. Por outro lado, é possível insistir na “força da interação”, cujo interesse não está na capacidade de dominação instrumental, mas no potencial de interação entre todos os concernidos (sejam humanos ou não). Assim, o redimensionamento do âmbito moral, vinculado às exigências normativas (ou ao principialismo da vida como tal), reassume, na filosofia contemporânea, a exigência de atribuir uma dimensão não apenas jurídica, mas também moral a todos os sujeitos participantes; e se for o caso, inclusive as gerações futuras, como apregoa Hans Jonas (2006; 2013).
A tese está, então, em conseguir afiançar um papel participante e participativo aos não humanos e à biosfera (no caso). No âmbito jurídico, não há como fugir do reconhecimento de sua dimensão legal. Todavia, no âmbito moral, a auferibilidade de sujeito coautor parece um tanto perplexo. Como é possível perceber, na pluralidade de acepções e nos diferentes usos dos termos, poder-se-ia admitir como sujeitos não apenas os humanos, mas também outros seres isto é, outros sujeitos. Por mais controverso que isso possa parecer, esta seria a alternativa possível para situar a natureza, os não humanos e demais seres como coadjuvantes de uma ética que assume a responsabilidade presente e futura, com o objetivo de configurar um habitat planetário convivial e saudável entre todos os viventes da natureza. Por isso, na feitura de âmbito moral que não admite a terceira pessoa como neutra e, portanto, como ator completamente imparcial.
Em Ricoeur (2007), a exigência do pronome pessoal salienta a atitude reflexiva. A forma como ele justifica tem em vista três perguntas: o que; quem; e como. Segundo o autor, colocar a pergunta o que antes da pergunta quem implica na prevalência do “[...] lado egológico da experiência”, traduzindo-se em um impasse (Ricoeur, 2007, p. 23). Para ele, o agir delineado em termos do eu-sujeito deixa transparecer o aspecto coletivo a partir de um conceito analógico. De fato, o agir desde a primeira pessoa do singular pode presumir, no coletivo, uma compreensão analógica, às vezes até mesmo um corpo estranho, desenhado desde o falante sujeito-ator. E isso inibe o reconhecimento do outro enquanto sujeito coautor.
Em termos da teoria do agir comunicativo, o ato locucionário, na primeira pessoa do singular, indica que o falante não se comporta apenas como proponente, como também pode induzir à justificação do que seja a compreensão exclusiva do falante. No caso, o e os ouvintes nada mais conseguem a não ser assimilar e admitir tal proposição como se ela fosse expressão da vontade dos concernidos como tal. O aspecto locutório é resultante da ação de se emitir um enunciado, ou seja, do ato linguístico, locucional e locucionário concernente ao sujeito falante. E isso é concernente ao falante que se dirige a outros sujeitos proponentes.
Em vista disso, Ricoeur (2007) inverte a ordem das questões e coloca a pergunta “quem” antes do perguntar-se sobre o “que” isso significa. Para ele, uma boa doutrina fenomenológica deve preocupar-se em primeiro lugar com a questão intencional, isto é, com os sujeitos em “[...] todas as pessoas gramaticais” (Ricoeur, 2007, p. 23). Em outras palavras, o desdobramento da pergunta quem representa o lado pragmático, enquanto a pergunta o que revela o lado propriamente cognitivo. No fundo, a proposta aponta para a prevalência do lado pronominal, o que significa, em outras palavras, que nenhum dos pronomes gramaticais pode ser concebido e julgado como neutro, imparcial ou completamente desinteressado.
Em síntese, o binômio sujeito versus ouvinte caracteriza a terceira pessoa (singular e plural) enquanto pronomes de caráter neutro ou desinteressado. Assim, haveria a necessidade de um novo giro ao linguistic turn. No fundo, é necessário configurar uma teoria do agir que pudesse garantir um papel participante aos sujeitos coautores, mesmo que o pronome pessoal estivesse na terceira pessoa (singular ou plural). Em decorrência, poder-se-ia admitir como sujeitos não apenas os humanos, mas também outros seres. Por mais controverso que isso possa parecer, esta seria a alternativa possível para situar a natureza, os não humanos e demais seres como coadjuvantes de uma ética que assume a responsabilidade, presente e futura, na configuração de um habitat saudável; enfim, na feitura de âmbito moral que não admite a terceira pessoa como imparcial e, portanto, enquanto puro e simples objeto.
A perspectiva do agir instrumental deveria, portanto, ser modificada. Além de renegar a própria teoria dos interesses, a insistência de sujeitos na primeira e segunda pessoa (singular ou plural) atesta um público que deixa de lado os pronomes pessoais na terceira pessoa (singular e plural). Do ponto de vista gramatical, essa neutralidade poderia persistir, mas no âmbito moral, ela não se sustenta, pois o compromisso com a natureza e os não humanos exige seu reconhecimento enquanto sujeitos coautores. No caso, as gerações futuras não podem ser diretamente relacionadas enquanto egos ou enquanto alteres (outros) imparciais. Embora as formas de representatividade possam ser reivindicadas pelas gerações presentes, mesmo assim, elas continuam na conjugação da terceira pessoa, isto é, neutros e desinteressados.
Além do mais, é inapropriada a caracterização da terceira pessoa (do singular ou do plural) enquanto pronome pessoal vinculado à neutralidade ou do sujeito meramente observador. A pretensa neutralidade do sujeito inexiste. Ela sequer é plausível ou justificável, principalmente diante das novas exigências de um oikos-cosmos-logos (Pizzi, 2011). A insistência no binômio restrito a falantes e ouvintes e, no caso, a possibilidade do sujeito na terceira pessoa deixa de lado os coautores não participantes. Vale dizer, todos aqueles que não são reconhecidos como sujeitos caracterizados na primeira ou segunda pessoa ficam de fora da comunidade de comunicação, porque a pretensa neutralidade os caracteriza como não participantes.
4 CONCLUSÃO
A racionalidade ético-comunicativa proporcionou – e continua impulsionando – a releitura da filosofia, no sentido de redimensionar a própria noção de racionalidade, sem rechaçar o contexto de vida concernente ao Lebenswelt. Para tanto, as contribuições de Husserl e de Habermas são significativas, salientando não apenas os reducionismos, os formalismos e/ou procedimentalismos, mas também as implicações da categoria mundo da vida para a filosofia prática. Essa incursão torna claro o significado e as controvérsias da categoria mundo da vida, aspecto possibilita inclusive o questionamento a respeito das demandas ou das exigências de reconsiderar os diferentes horizontes da vida cotidiana.
Em relação a isso, cabe destacar a dicotomia que consagra a desconfiança desmedida em relação às experiências vivenciais e às contingencialidades relativas ao mundo da vida (tradicionalmente ligadas à doxa). De modo geral, a filosofia utilizou – ou utiliza – duas expressões para evidenciar essa classificação: episteme e doxa. Atualmente, essa divisão pode ser examinada em vistas a uma idealidade metafísica, isto é, a representação de uma plenitude frente a um mundo de circunstâncias concernentes às contingencialidades, ou seja, relativo ao habitual e ao mundo terrenal que, às vezes, é apresentado de um modo um tanto desfigurador ou, então, desacreditado.
Por isso, se a aproximação com Husserl possibilitou ampliar a compreensão do sentido concernente aos mundos de vida, o ensejo de uma racionalidade ético-comunicativa recupera da fenomenologia – de Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty, Schütz, Parsons, Mead, entre muitos outros –, não apenas a crítica à unilateralidade de cunho nomológica e procedimentalmente monológico; ela permite, também, estudar e entender o significado e a importância desse saber intuitivo e pré-categorial relacionado às circunstancialidades do mundo da vida. Em outras palavras, essa incursão teórica, na perspectiva de uma teoria do agir comunicativo, abriu passo para resgatar e compreender o sentido concernente às circunstancialidades da vida cotidiana, algo nada ingênuo, desfigurador ou desmoralizado nem desmoralizável.
Em suma, a pragmática comunicacional se vê desafiada a entender os significados das ações de fala e de albergar, portanto, todos os pronomes pessoais. Trata-se, pois, de reconhecer o papel participativo de todos os sujeitos pronominais enquanto atores, sem considerar nenhum deles – no caso, as terceiras pessoas – como pronomes ligados a atores neutros ou imparciais. Ao salientar a força ilocucionária dos atos de fala, o sujeito assume o papel primordial. A relação intersubjetiva intercala ego e alter, isto é, o diálogo pressupõe a alternância de papeis entre sujeitos coautores da primeira e da segunda pessoa (singular ou plural). Todavia, quando se trata da terceira pessoa, há uma suposta impessoalidade ou imparcialidade. No nível gramatical, a terceira pessoa indica um sujeito não-presente ou, então, aparentemente sem qualquer intervenção direta. Contudo, as exigências pragmático- comunicativas presumem um tratamento pronominal a qualquer sujeito, de forma a reconhecer tanto o falante (singular ou plural = eu ou nós) quanto o ouvinte (singular ou plural = tu ou vós) o status de sujeito coautor, sem, no entanto, ignorar as terceiras pessoas. Daí, a proposta de averiguar como é possível levar em conta todos os pronomes pessoais no mesmo nível, sem, todavia, reduzir a perspectiva do pronome pessoal na terceira pessoa (singular ou plural) ele e/ou eles à esfera da imparcialidade. A impessoalidade pode caracterizar uma relação meramente objetual e, em razão disso, limitando a ação ao âmbito exclusivamente instrumental. Na tradição latina, por exemplo, a designação res é traduzida como “coisa”, mas que, numa releitura, assume a forma de sujeito concernido. Desse modo, na referência pronominal das terceiras pessoas, haveria a possibilidade de identificar não apenas um sujeito que não se resume a “bens inertes”, mas reconheça também sujeitos enquanto “entes de direito”.
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[1]PIZZI, Jovino. O sujeito pronominal: uma questão em aberto para a teoria do agir comunicativo. In: COLÓQUIO HABERMAS, 10.; COLÓQUIO DE FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO., 1,. Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Salute, 2015. Disponível em: https://coloquiohabermas.files. wordpress.com/2016/03/anais-xi-coloquio-habermas-e-ii-coloquio-de-filosofia-da-informacao1.pdf. Acesso em: 25 abr. 2023. Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).
[2]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).