CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DO RECONHECIMENTO PARA PENSAR A EDUCAÇÃO PARA ALÉM DOS MUROS DA INSTITUIÇÃO[1]

 

Carline Schröder Arend[2]

Prefeitura Municipal de Pelotas

carlinearend@gmail.com

 

Jovino Pizzi[3]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

 

1 INTRODUÇÃO

 

O presente artigo emerge da necessidade de discutir e perceber a importância da inclusão de discussões sobre o reconhecimento no âmbito da educação. Mesmo sabendo que o principal teórico, Axel Honneth, que trata do reconhecimento, não aborde especificamente a educação em suas discussões, assim como sua teoria ainda não repercutiu amplamente nas considerações sobre educação, propõe-se a reflexão acerca de aspectos educacionais, como a formação e a inserção do pensamento sobre o reconhecimento para se pensar a educação, ampliando os horizontes de compreensão.

Nesse sentido, num primeiro momento, realiza-se uma breve reflexão sobre a fundamentação teórica do reconhecimento, bem como são pontuadas as categorias necessárias para que seja possível alcançar o reconhecimento recíproco. Em seguida, o papel do outro, já relacionado com o ambiente educativo, é discutido a partir do amor, a primeira categoria do reconhecimento. A partir disso, são apresentadas possíveis relações entre reconhecimento e formação, buscando salientar a importância da valorização dos ambientes sociais e dos movimentos sociais no âmbito de formação, principalmente a dos profissionais da educação, com o intuito de lançar o olhar para além das instituições educacionais.

 

2 TEORIA DO RECONHECIMENTO DO OUTRO EM HONNETH

 

A teoria do reconhecimento do outro tem sua base fundadora nas ideias do jovem Hegel, no período que esteve em Jena. Honneth (2003) parte da ideia de que a interação entre os sujeitos da sociedade se dá através do conflito, travando, assim, uma luta por reconhecimento. Ou seja, os sujeitos têm a possibilidade de reconhecerem-se mutuamente pelo fato de interagirem e pelo fato de nessa interação se depararem com particularidades e semelhanças, permitindo que haja esse encontro com o outro, que é diferente de si mesmo. Nas palavras de Honneth, essa complexa aproximação com o outro, mediante um processo que não é de todo pacífico, implica nada mais do que “fazer de si o outro de si mesmo e retornar para si mesmo” (2003, p.69). É nesse retorno que ocorre uma mudança no “si mesmo”, pois ao entrar em contato com o outro e o reconhecê-lo como tal, ao retornar a mim, já não sou mais o mesmo. Em outras palavras, posso deixar um pouco de mim no outro, assim como poderei trazer um pouco do outro para a constituição da minha identidade. Essa mudança ocasionada pelo contato com o estranho é que instiga as lutas por reconhecimento, percebendo que o conflito e o reconhecimento se condicionam um ao outro, impulsionando às mudanças sociais que os indivíduos tanto almejam.

Sendo assim, o conceito de reconhecimento recíproco, que está imbricado no reconhecimento do outro, o qual Honneth adota de Hegel, manifesta-se em três esferas sociais: nas relações afetivas ou no amor (família), nas relações jurídicas ou de direito (estado) e na  estima social ou na solidariedade (sociedade). Esferas essas que são pontuadas também por Werle e Melo (2007), quando dizem que:

 

Honneth encontra em Hegel três dimensões do reconhecimento distintas, mas interligadas. A primeira dimensão consiste nas relações primárias baseadas no “amor” e na “amizade”, e diz respeito à esfera emotiva, em que é permitido ao indivíduo, desenvolver uma confiança em si mesmo, indispensável para seus projetos de auto-realização pessoal. A segunda dimensão consiste em relações jurídicas baseadas em “direitos”. Trata-se da esfera jurídico-moral, em que a pessoa é reconhecida como autônoma e moralmente imputável e desenvolve sentimentos de auto-respeito. A terceira e última dimensão é aquela que concerna à comunidade de valores baseada na “solidariedade social”. Honneth está pensando, neste caso, na esfera da estima social, onde os projetos de auto-realização pessoal podem ser objeto de respeito solidário numa comunidade de valores.” (WERLE e MELO, 2007, p.15).

 

Na primeira esfera, o reconhecimento recíproco ocorre entre pais e filhos e está intimamente ligado às etapas de dependência absoluta e dependência relativa, o que possibilita o desenvolvimento da autoconfiança. Já, na segunda, ou na esfera do direito, esse reconhecimento ocorre quando o sujeito sai de seu contexto particular e ingressa em um contexto social ou universal, mediado por relações contratuais, ou seja, os sujeitos se reconhecem portadores de posse, percebem-se como proprietários e, principalmente, enquanto portadores de igualdade, possuindo, portanto, direitos iguais perante a sociedade. Na terceira, a esfera da estima social, as relações que ocorrem mediadas pela solidariedade, além de possibilitarem um respeito universal, possibilitam alguém se perceber como ser possuidor de suas particularidades a serem socializadas com os demais membros de determinada comunidade. Consoante Honneth, “para poderem chegar a uma autorrelação intangível, os sujeitos humanos precisam, além da experiência da dedicação afetiva e do reconhecimento jurídico, de uma estima social que lhes permita referir-se positivamente a suas propriedades e capacidades concretas” (HONNETH, 2003, p. 198).

A ideia do reconhecimento intersubjetivo é constituída por uma filosofia idealista de Hegel a partir das reflexões apresentadas na dialética do senhor e do escravo. Assim, Honneth (2003) dá prosseguimento a essa reflexão sob a luz da teoria crítica dos frankfurtianos. A teoria do reconhecimento do outro, apesar de ser pouco conhecida no âmbito educacional brasileiro, transita livremente pela área do Direito, sendo que esta área originou as primeiras reflexões sobre tal teoria no Brasil. Como exemplo, citamos os autores Marcos Nobre (2003; 2008), Luiz Repa (2010), Emil Sobottka (2008; 2009), Giovani Saavedra (2008; 2009) Denilson Luis Werle e Rúrion Soares Melo (2007; 2008), entre outros, que discutem o reconhecimento do outro nas esferas jurídicas e sociais.

Honneth (2003) defende que a interação ocorre através do conflito e constitui a gramática moral dos conflitos sociais, ou seja, a luta por reconhecimento é a chave do entendimento de como se processa o desenvolvimento social, especialmente a constituição e a autocompreensão dos indivíduos em sociedade. Porém, Honneth não se alimenta apenas das fontes hegelianas, mas também busca aportes teóricos na psicologia social de G. H. Mead e sua principal obra - Espíritu, persona e sociedad (1973) e de Donald Winnicott – O brincar e a realidade (1975). A partir dessas proposições teóricas, ele constrói a hipótese da vivência do desrespeito, considerando ser o não reconhecimento “a fonte emotiva e cognitiva de resistência social e de levantes coletivos” (HONNETH, 2003, p.227).

 

 

 

 

2.1 AS ESFERAS DO RECONHECIMENTO SOCIAL DO OUTRO

 

Honneth (2003) propõe a explicação de sua teoria apresentando três esferas ou formas de reconhecimento, que são: o amor, o direito e a solidariedade. Para definir a primeira esfera, a do amor, Honneth parte de categorias defendidas por Winnicott (1975) para elaborar suas ideias. Num primeiro momento, Honneth reflete sobre a relação simbiótica existente entre mãe e filho, relação essa que ocorre ainda nos primeiros meses de vida do bebê. Mãe e filho vivem, nessa etapa, uma relação de dependência absoluta131: é como se eles vivessem um para o outro. Quando a mãe passa a retomar sua rotina diária, ambos percebem que conseguem viver um sem o outro, ou Segundo Honneth, “ela significa que os dois parceiros de interação dependem aqui, na satisfação de suas carências, inteiramente um do outro, sem estar em condições de uma delimitação individual em face do respectivo outro”. (HONNETH, 2003, p. 166). Então, que a mãe vai embora, mas retorna o que culmina em uma relação de dependência relativa. A criança passa a ter uma relação mais agressiva com a mãe nessa fase, pelo fato da mãe se ausentar em alguns momentos. São exatamente esses movimentos de agressão da criança ou, como Honneth mesmo afirma, “só na tentativa de destruição de sua mãe, ou seja, na forma de uma luta, a criança vivencia o fato de que ela depende da atenção amorosa de uma pessoa existindo independente dela” (Ibidem. p. 170). Do mesmo modo, a mãe também precisa compreender a independência da criança e seus ataques agressivos, de forma que “a mãe e a criança podem saber-se dependentes do amor do respectivo outro, sem terem de fundir-se simbioticamente uma na outra” (Ibidem. p.170). Honneth percebe então que há nesse momento o reconhecimento recíproco, pois mãe e filho possuem um enorme amor um pelo outro, mas, ao mesmo tempo, percebem que conseguem viver longe um do outro. Esse movimento de confiança entre ambos também resultará em autoconfiança.

Ainda na esfera do amor, Winnicott (1975) afirma que a criança precisa desenvolver dois mecanismos psíquicos: a destruição e os objetos transacionais. O mecanismo da destruição se desenvolve quando o bebê percebe que a mãe é independente e passa a agredi-la (mordendo, batendo). Esse momento de destruição é muito importante para o desenvolvimento da autoconfiança e da dependência da criança em relação à mãe. Já os objetos transacionais auxiliarão no processo de independência da criança em relação à mãe, pois aos poucos a criança transfere a ausência da mãe para esses objetos, como travesseiros, brinquedos, chupetas, etc. Quando a mãe desenvolve com a criança, de forma satisfatória, esse momento de separação, está contribuindo para o desenvolvimento da sua autoconfiança, o que poderá influenciar positivamente na relação de autonomia que ela poderá estabelecer mais tarde. Isso é de fundamental importância para, no futuro, essa criança obter êxito nos projetos de auto-realização pessoal, bem como conservar ou conquistar a sua identidade. É essa autoconfiança que possibilitará ao ser humano ter maior autonomia para participar ativamente na vida pública.

A assistência com que a mãe mantém o bebê em vida não se conecta ao comportamento infantil como algo secundário, mas está fundida nele ele de uma maneira que torna plausível supor, para o começo de toda a vida humana, uma fase de intersubjetividade indiferenciada, de simbiose, portanto. (HONNETH, 2003, p. 164). Para Honneth, a criança só consegue reconhecer o outro quando houver o amor e esse outro ser independente. No caso, em relação à mãe, isso acontece quando já ultrapassaram a fase de simbiose em que viviam. Sendo assim, o amor é a forma mais elementar de ocorrência do reconhecimento.

A segunda esfera de reconhecimento apontada por Honneth é a do direito ou do reconhecimento jurídico. Do mesmo modo que o reconhecimento recíproco acontece na relação entre mãe e filho, ou seja, nas relações que envolvem a esfera amorosa primária, ele também se manifesta na esfera do direito. Segundo Honneth, tanto Hegel quanto Mead apontaram que nós percebemos o direito que o outro possui a partir do conhecimento que possuímos de nossos direitos. Ou seja, “todo sujeito humano pode ser considerado portador de alguns direitos, quando reconhecido socialmente como membro de uma coletividade” (HONNETH, 2003, p. 180).

No direito, o reconhecimento é possível porque há respeito e, tanto no amor como no direito, a autonomia manifesta-se quando a liberdade do outro é reconhecida, do contrário não há tal autonomia. Na esfera do direito predomina o autorespeito. Nas sociedades tradicionais o reconhecimento jurídico se dava através do status ou estima social: o indivíduo só estaria habilitado a adquirir o reconhecimento jurídico caso possuísse uma boa posição na sociedade, ou então pelas atividades que desenvolvia na sua comunidade. Honneth afirma que com a modernidade há uma mudança na sociedade, ocasionando, assim, uma transformação também nas relações jurídicas. O reconhecimento jurídico deixa de valorizar única e exclusivamente o status da pessoa perante a sociedade e se torna algo mais geral, considerando os interesses da sociedade como um todo e, com isso, segue uma visão que parte do princípio de igualdade universal. Segundo Honneth (2003), a igualdade universal permite compreender que o indivíduo, como cidadão de uma sociedade, possui valor igual ao dos demais membros da coletividade. O fato de reconhecer-se juridicamente contempla também a questão moral do ser humano, a possibilidade de viver de forma digna, considerando as particularidades de cada ser. Assim, na esfera jurídica, a pessoa individual é reconhecida como autônoma e moralmente imputável, desenvolvendo uma relação de respeito consigo e com a sociedade. “É o caráter público que os direitos possuem [...] o que lhes confere a força de possibilitar a constituição do autorespeito” (Idem, p. 197).

A terceira esfera de reconhecimento sugerida por Honneth é a solidariedade. O reconhecimento se dá aí quando existe aceitação recíproca das individualidades, as quais são julgadas segundo os valores que a comunidade possui. Nessa esfera, é gerada a autoestima, isto é, a pessoa acredita no seu potencial e nas suas qualidades e, ao se deparar com outras pessoas, ela é reconhecida enquanto possuidora dessas características e assim é vista pela comunidade em que está inserida. Além disso, o indivíduo demonstra suas singularidades de forma intersubjetiva e universal, dentro de um meio social (SAAVEDRA e SOBOTTKA, 2008). Se as mudanças ocorridas ao longo da história também deixam suas marcas, a valoração social que havia através do status abre espaço para as manifestações individuais de valorização. Porém, Honneth assinala que tais manifestações individuais entram em atrito com a valorização coletiva: “o sujeito entra no disputado campo da estima social como uma grandeza biograficamente individuada” (HONNETH, 2003, p. 204). Portanto, nesse aspecto, a pessoa é reconhecida como digna de estima social, a qual ocorre em ambiente coletivo. Mas a vivência com seres singulares, na estrutura de um ambiente coletivo e plural, desencadeia um sentimento de tensão, de luta, pois estão todos em busca de autorealização. Dessa maneira, identificam-se com seus pares e desencadeiam um processo de reconhecimento de suas particularidades.

A esses três padrões de reconhecimento intersubjetivo correspondem três maneiras de desrespeito: a violação, a privação de direitos e a degradação, respectivamente. Em resistência a essas formas de não reconhecimento, é que se manifestam os conflitos sociais, tendo por resultado sua paulatina superação. Honneth entende por luta social “o processo prático no qual experiências individuais de desrespeito são interpretadas como experiências cruciais típicas de um grupo inteiro, de forma que elas podem influir como motivos diretores da ação, na exigência coletiva por relações ampliadas de reconhecimento” (Ibidem. p. 257). É nesse sentido que as lutas por reconhecimento passam a fundamentar os avanços normativos sociais.

Em síntese, cada uma das esferas do reconhecimento possui uma autorelação prática do sujeito: nas relações amorosas é a autoconfiança, nas relações jurídicas há o autorespeito, e na comunidade de valores há a autoestima. A partir do momento em que ocorre o desrespeito em alguma das esferas, gera-se o conflito ou o sentimento de luta, gestando-se, assim, as lutas sociais.

Quando o desrespeito ocorre na esfera do amor, ele ameaça a integridade física e psíquica, pois se manifesta por meio de maus-tratos e violação. Na esfera do direito, o desrespeito atinge a integridade social da pessoa, pois a mesma é privada de seus direitos e excluída do convívio social. E, por fim, na esfera da solidariedade, são as ofensas e infâmias que geram o desrespeito, afetando a dignidade da pessoa enquanto inserida em uma comunidade de valores. Logo, podemos compreender, aqui, as mudanças sociais como resultado de lutas ocasionadas pelo desrespeito às esferas do reconhecimento. É a partir do conceito de eticidade que se torna possível identificar as patologias sociais, ou seja, o pressuposto de um ideal de vida boa, que compreende valores éticos e morais, possibilita perceber a violação cometida contra a liberdade pessoal e os valores comunitários.

 

2.2 O PAPEL DO OUTRO NA EDUCAÇÃO: A EXPERIÊNCIA DO AMOR NO CONTEXTO EDUCACIONAL

 

A possibilidade de abertura ao outro, ao diferente e ao estranho proporciona que a formação vá além dos limites técnicos, rigorosos e, talvez, até ortodoxos do pensamento transcendental que ainda perdura na educação, controlando e homogeneizando as ações pedagógicas. A partir das reflexões propostas por Hermann, em seu texto Breve investigação genealógica sobre o Outro (2011), são apresentados alguns passos que foram necessários percorrer para que a questão do outro se tornasse objeto de estudos na modernidade, bem como para que pudéssemos compreender o outro de forma que ele viesse a nos completar. Ou seja, na contemporaneidade, tomamos consciência da necessidade que possuímos do outro nos reconhecer para que nós mesmos possamos nos auto-reconhecer.

Nesse sentido, Hermann retorna a Platão e seu pensamento metafísico para explicar que, com a dualidade estabelecida entre corpo e alma, luzes e trevas, etc, o outro era compreendido como estranho e, portanto, era rechaçado. Ela afirma que “nessa concepção de natureza humana, o corpo é o outro da alma e tende a se tornar estranho à própria identidade de si” (HERMANN, 2011, p. 139). Nos tempos antigos, a separação entre corpo e alma remetia-se muito aos dogmas religiosos. Portanto, o que era considerado bom, se relacionava à alma, já o que se considerava ruim, ou perverso, pertencia ao corpo, pois esse, por possuir sensibilidade, permitia-se o estranho.

Já no século XIX, o outro passa a ter uma existência, pois o eu passa a ter outra identidade e nessa identidade ele se abre ao múltiplo e, assim, também ao diferente. É nesse sentido que Hegel o apresenta em sua Fenomenologia do Espírito:

 

Surgiu, porém agora o que não emergia nas relações anteriores, a saber: uma certeza igual à sua verdade, já que a certeza é para si mesma seu objeto, e a consciência é para si mesma o verdadeiro. Sem dúvida, a consciência é também nisso um ser-outro, isto é: a consciência distingue, mas distingue algo tal que para ela é ao mesmo tempo um não diferente. (HEGEL, 2008, p.135).

 

Portanto, essa consciência ainda não está totalmente aberta ao diferente, ao outro, mas ela já o percebe como tal, só não o reconhece. Hermann (2011) afirma que as reflexões realizadas no período do idealismo nos prepararam para ver o outro, de forma que a isso podemos remeter a dificuldade em nos reportarmos e reconhecê-lo nos planos culturais, políticos e éticos. A autora cita o exemplo da colonização de muitos países, que ignorou a cultura já existente e impôs a sua, o que configura-se como um exemplo de completa desvalorização da diferença e de imposição do outro.

Tomando como ponto de partida a primeira esfera de reconhecimento, o amor, e as relações afetivas, propostas por Honneth (2003), cabe ressaltar que “por relações amorosas devem ser entendidas aqui todas as relações primárias, na medida em que elas consistam em ligações emotivas fortes entre poucas pessoas [...] de amizades e de relações pais/filhos” (HONNETH, 2003, p. 159). Portanto, a reflexão a respeito da relação estabelecida entre teoria e prática, bem como entre educador e educando, se torna promissora quando pensada por esse viés compreensivo. Logo, “em sua efetivação os sujeitos confirmam mutuamente na natureza concreta de suas carências, reconhecendo-as assim como seres carentes” (HONNETH, 2003, p. 160).

Nesse sentido, pensando na relação existente entre teoria e prática, ela passa, em um primeiro momento, por uma relação de certa dependência, ou seja, “na experiência recíproca da dedicação amorosa, dois sujeitos se sabem unidos no fato de serem dependentes, em seu estado carencial, do respectivo outro” (HONNETH, 2003, p. 160). Mas é a partir do reconhecimento da independência do outro que o conflito é gerado e se desencadeia a luta pelo  reconhecimento, em que teoria e prática segue por um caminho de forma independente, desenvolvendo à sua maneira o processo educativo.

Ao trazer esta situação para o cotidiano de uma instituição escolar, ou então, para dentro do contexto acadêmico, há possibilidades de relacionar tais ideias com a situação em que estão envolvidos igualmente professor e aluno. Para que teoria e prática aconteçam de forma simétrica e recíproca, é preciso haver a construção de uma relação que envolva o desenvolvimento da afetividade e do amor. Sendo assim, na relação existente entre professor e aluno há a implicação do afeto e da confiança, que envolvem a valorização do conhecimento, da compreensão por parte do professor e também do aluno, dos interesses e das intenções a serem construídos ao longo do processo educacional, pois tal construção também diz respeito à esfera amorosa.

O professor desempenha um trabalho que inclui o cuidado com seu aluno, tanto ao estimulá-lo para buscar o conhecimento e ampliar seu pensamento ou sua cognição, como quando o orienta no sentido de ter mais paciência, não desistir, chamar a atenção para o que está realizando de forma equivocada, etc. Sabemos que o conhecimento não é algo inato, por conseguinte ele é resultado de um processo que envolve dedicação, paciência, reflexão, curiosidade, descoberta e, principalmente, desejo de aprender e de pesquisar.

No entanto, do mesmo modo que a mãe constrói com a criança, aos poucos, um processo de afastamento ou de dependência relativa, o professor precisa construir esse distanciamento com seu aluno, considerando obviamente que este deverá ser independente do professor no processo de busca de novos conhecimentos. Mesmo porque, ele vai estar frente aos seus próprios alunos ao exercer sua profissão, precisando ter adquirido autonomia profissional para isso. Desse modo, essa relação exige afeto e cumplicidade, embora existam momentos em que o professor irá causar desconfortos e o aluno se sentirá irritado, incomodado, aborrecido, chateado, tanto com o professor quanto consigo mesmo. Nesse momento é perceptível a semelhança existente com a teoria do reconhecimento e, nesse caso, com a primeira esfera, a do amor, quando ocorre a agressão do filho com sua mãe, pois esta se afastou dele por um período. O filho está compreendendo a independência da mãe e, por isso, inicia um processo de conflito, ou seja, uma luta por reconhecimento. Da mesma forma pode ocorrer com o aluno em relação ao professor, em que o primeiro irá esbravejar, reclamar, duvidar do seu mestre, pois está em busca do seu próprio reconhecimento.

Ao refletir sobre a relação professor/aluno, na qual o professor exerce a autoridade e a dominação sobre o aluno, o professor detentor e o aluno receptor do conhecimento, é possível associar tal discussão à reflexão realizada por Flickinger (2010a), em seu texto Senhor e escravo: uma metáfora pedagógica. Nesse artigo, o autor comenta que o senhor, ao exercer o poder sobre o escravo, busca o reconhecimento de sua dominação: “Pela sua experiência no convívio com o escravo [...] o senhor vê-se continuamente exposto à situação de ter de assegurar a subordinação do outro [...] ele precisa do outro e, já nesse sentido, não se poderia considerar autossuficiente” (FLICKINGER, 2010a, p. 129). Na dialética hegeliana do Senhor e do Escravo, o senhor só se reconhece como senhor por existir algo ou alguém, no caso o escravo, que o reconhece como tal e permite que haja essa dominação, a qual permanece ou perpetua-se, uma vez que há uma relação de dependência. O senhor é dependente do escravo, mas este último não compreende dessa forma e permite a dependência, o acarreta sua continuidade. Portanto, o senhor torna-se dependente do trabalho de seu escravo, bem como de sua obediência. Ou seja, tanto nas relações de força ou de dominação, quanto nas relações amorosas, o processo de libertação é o mesmo: existe a necessidade de compreender até que ponto a submissão é importante para a constituição da própria identidade e autonomia, mas também até onde ela se torna um empecilho e um risco. No contexto pedagógico, deveríamos estar mais atentos a esse fato para que os alunos não sejam simples clones de seus professores, robotizados ou automatizados, repetindo um discurso e uma prática pré-estabelecida.

Mas o que pode estabelecer este diferencial entre teoria e prática, dando o tom necessário para a aproximação, além da necessidade de afastamento entre professor e aluno, é a constituição da terceira esfera do reconhecimento: a solidariedade, ou estima social, relacionada ao reconhecimento não restrito exclusivamente ao âmbito familiar e jurídico, mas sim que avança para a esfera da convivência em sociedade. Para adentrar nesse universo do reconhecimento, é preciso sair do intra-acadêmico e intraescolar para ampliar os horizontes de compreensão e passar a entender a sociedade. Nesse sentido, é a partir do reconhecimento que se dá entre os indivíduos em um espaço mais amplo da convivência humana que devemos tomar como referência, para trabalhar, o conhecimento em sala de aula. Ou seja, a partir da forma como as coisas ocorrem no mundo da vida, o modo como o reconhecimento do outro se dá na esfera social em que estamos inseridos, possibilitar-se-á uma maior compreensão do trabalho a ser desenvolvido no espaço intraescolar e intra-acadêmico. O reconhecimento do outro aí ocorre levando em consideração os ambientes e espaços não formais de aprendizagem, conforme aduz Flickinger (2010b), observando como os novos grupos sociais estão construindo a sua identidade. Ele cita o caso dos grupos de motoqueiros, pois aí não há uma simples instrumentalização de técnicas, já que eles conseguem manter seus ideais e objetivos de encontros, lançando-se em busca da conquista da liberdade.

Flickinger (2010b) finaliza dizendo que a Pedagogia deveria observar esses novos movimentos e tentar trazer essas experiências “do outro” para si, como forma de entender o que acontece na realidade, fora de seus esquemas conceituais e operacionais de trabalho. Para isso, a teoria do reconhecimento do outro pode possibilitar uma visão e uma compreensão mais ampla da sociedade e a Educação vem perceber a importância de lançar esse olhar para os espaços não formais de aprendizagem e formação. Essa forma de ver e sentir – sob o prisma do outro – pode alavancar a compreensão para além do entendimento da práxis pedagógica como algo restrito ao intraescolar ou intramuros da escola e da universidade.

 

 

2.3 A FORMAÇÃO NO RECONHECIMENTO DO OUTRO

 

Flickinger (2011) acredita que com a compreensão da herança que a educação possui do processo de secularização, vivenciado concomitantemente ao Iluminismo, é possível entender grande parte dos problemas enfrentados, inclusive da predominância, ainda hoje, pelas ideias iluministas no cerne das reflexões e ideais da pedagogia. Segundo o autor, “a pedagogia contemporânea ainda está longe de enxergar e atender às demandas de uma formação não reduzida à tarefa de profissionalizar o educando para integrá-lo o mais rápido possível ao mercado de trabalho” (2011, p.164). Nesse sentido, complementa:

 

É a integração do indivíduo no mercado de trabalho que lhe providencia não apenas os meios materiais para sua subsistência, senão, antes de tudo, o reconhecimento como membro valioso da comunidade. Quem não consegue acesso a este mercado corre o risco de sua exclusão social, seja ela causada por doença, por deficiência física ou psíquica, por idade, por falta de qualificação ou por outros motivos. [...] quem quiser alcançar um mínimo de independência pessoal terá de concentrar todo o esforço no aperfeiçoamento das condições que o acesso ao mercado de trabalho exige. (FLICKINGER, 2010b, p. 179).

 

Essa formação para o mercado de trabalho está culturalmente arraigada aos meandros das políticas públicas e às bases curriculares nacionais dos cursos de formação. Isso deixa evidente a postura política da legislação ao estabelecer diretrizes que, através da formação educativa, legitimem os interesses de setores da sociedade que dependem da instituição educacional para manter e acelerar a incorporação dos ideais capitalistas na sociedade.

Sendo assim, são as necessidades econômicas que ditam as formas de entrada na sociedade, pois a busca pela qualificação é guiada por tais prerrogativas, ou seja, a formação adquire como ideal os ditames da sociedade competitiva na qual está inserida. Do mesmo modo, a educação agrega nos seus ideais de formação tais ditames, objetivando resultados imediatos, deixando de considerar os meios e processos da construção de conhecimento para se ater a resultados e fins. Por esse caminho, “o processo de formação vê-se guiado pelas diretrizes da racionalidade econômica que servem também de critérios para a avaliação dos resultados” (FLICKINGER, 2010b, p. 180).

Porém, ainda segundo Flickinger (2011), a pedagogia não tomou consciência plena da influência desse processo, e por isso não consegue corrigir os problemas que surgiram a partir disso. Com a crença irrestrita na razão humana, a educação, com o intuito de conquistar a autonomia e a liberdade, exerceu papel muito importante para chegar a esse objetivo. A partir dessa consideração, Flickinger (2011) utiliza-se de um exemplo da criança quando vivencia a fase de descoberta de sua individualidade. Ele destaca os momentos em que a criança se depara com suas fraquezas e dificuldades, e assim busca forças dentro de si para superar tais obstáculos: “insistindo na sua capacidade de dominar o ambiente [...] ela finge ser autônoma, buscando comprovar sua soberania tanto para os adultos, quanto para si mesma” (FLICKINGER, 2011, p. 155). Por conseguinte, o homem que vive a secularização, ao perder a crença na proteção divina, preenche esse vazio crendo em sua capacidade de determinar sua vida, conferindo a si os poderes que anteriormente eram de um Deus. Tal situação ocorre, “porque a formação abrange o ser humano na sua íntegra e não somente como elemento funcional em um sistema por ele vivido como um mundo a ele impingido” (FLICKINGER, 2010b, p. 193).

Com o processo da secularização e do advento dos ideais iluministas, o homem, ao perceber o vazio deixado pela desvalorização de Deus como o ser todo poderoso, conhecedor de tudo, projeta na racionalidade humana a possibilidade de alcançar a liberdade e a autonomia. Portanto, o homem passa a construir a ideia de senhor de si mesmo, preenchendo assim o espaço antes ocupado pela ideia de Deus. Nesse sentido, tomando a ideia de onipotência, o homem se enredou em um narcisismo, percebendo em sua racionalidade a solução para os problemas. Essa referência à crença na onipotência do ser humano recaiu em um ideal de dominação do universo por meio do desenvolvimento do conhecimento científico, o que resultou em grandes guerras e conflitos globais pela hegemonia de uns sobre os outros.

Para Flickinger (2011), tais resquícios da secularização e do Iluminismo refletem seus ideais nas diretrizes e pensamentos que norteiam a educação atualmente. O autor destaca que o principal conceito que retrata a vertente iluminista e a secularização é a busca da autonomia, ou seja, o homem “senhor de si mesmo”. Com essa crítica que faz à pedagogia e seu ideal de formação, ele tenta abalar as certezas racionais daqueles que acreditam que a formação está somente nos ambientes escolares. Na verdade, como preconiza a teoria do reconhecimento, a prática da educação está também nas famílias, na sociedade em geral e no compromisso do estado, através da cultura, dos valores morais, estéticos e éticos vivenciados no mundo. É assim que a formação, enquanto reconhecimento, revela à educação a necessidade de transcender os muros escolares e acadêmicos e de permitir o contato com o estranho, o outro e o diferente, para então reconhecê-lo.

Honneth afirma que “experiências individuais de desrespeito são interpretadas como experiências cruciais típicas de um grupo inteiro, de forma que elas podem influir, como motivos diretores da ação, na exigência coletiva por relações ampliadas de reconhecimento” (HONNETH, 2003, p. 257). Portanto, na teoria do reconhecimento, é possível perceber um ideal de formação que envolve os processos sociais de luta. Do mesmo modo, Flickinger (2010b) realiza uma reflexão estabelecendo relação com os grupos sociais. Esse autor afirma que a Pedagogia deveria se espelhar na organização desses grupos como forma de ampliar os horizontes formativos, sendo necessário que a educação precisa se permita lançar um olhar para fora do ambiente única e exclusivamente acadêmico e escolar. A sociedade oferece uma infinidade de nuances que podem servir de exemplo para a organização e planejamento do aspecto pedagógico.

 

3 CONCLUSÃO

 

Assim como a teoria do reconhecimento, no âmbito educacional também se percebe a necessidade de ampliar a discussão para além da sala de aula, considerando a educação como um fenômeno social, em que participam e interferem a família, o estado e a sociedade como um todo. Afinal, essas instâncias estão envolvidas na gênese da constituição educacional e, principalmente, nas possibilidades que surgem para pensar e refletir sobre o operar pedagógico.

A proposta da teoria do reconhecimento do outro apresenta-se como uma possibilidade de redimensionamento da problemática Tal teoria vem contribuir no que diz respeito a compreender e reconhecer as três esferas em que se dá o reconhecimento: no âmbito da família, com a vivência do amor; do direito, através do cultivo do respeito; e da sociedade, por intermédio da solidariedade.

Em um segundo momento, o reconhecimento ocorre na esfera do amor, categoria na qual a relação entre teoria e prática pode ser refletida, pois não são apenas os conhecimentos que deixam subentendida uma relação de amor semelhante à vivida pela mãe e pelo filho, mas também as relações entre professor e aluno. Por último, o reconhecimento social permite ampliar a esfera da formação para o reconhecimento das experiências não formais de aprendizagem, que ocorrem na vivência da solidariedade dos grupos e associações que compartilham valores comuns, como os que acontecem nas redes sociais e nas mídias ou, presencialmente, nos grupos de motoqueiros, por exemplo, pois, há, dentro dos grupos, relações intersubjetivas que mediam a convivência entre os pares. É a intersubjetividade que direciona para o reconhecimento.

Desse modo, os movimentos sociais e os desafios que se apresentam na sociedade atual, ao serem levados em consideração, podem contribuir para a formação, pois tais questões fazem parte do cotidiano dos indivíduos e complementam o debate sobre a educação atual. Ou melhor, estaremos buscando, assim, princípios e ideais de formação que estejam à altura dos problemas e desafios enfrentados na atualidade.

Por isso, o reconhecimento na esfera da solidariedade ocorre no momento em que teoria e prática ultrapassam os muros escolares e acadêmicos e se deparam com a sociedade e o mundo da vida, buscando aí vestígios do ideal de formação humana e a possibilidade de teoria e prática poderem se reconhecer e andar no mesmo sentido e caminho. Ao propor a abertura ao outro, o professor e o aluno poderão aprender a enfrentar as dificuldades e a mediar conflitos, percebendo e reconhecendo o outro na sua alteridade de forma intersubjetiva. Amplia-se, por esse itinerário, as compreensões formativas, abandonando ideais que se pautam em meras aprendizagens de técnicas e métodos. A formação ultrapassa os muros da escola e da universidade e, ao se utilizar dos exemplos dos grupos sociais e associações que se organizam na sociedade, buscam seu reconhecimento e, principalmente, livram-se das amarras impostas pela sociedade. Sociedade essa que preza pelo narcisismo, pelo individualismo e que se direciona cada vez mais para a instrumentalização da razão. Se a formação dos profissionais da educação ainda apresenta muitos déficits ou lacunas em consequência da submissão a um modelo de racionalidade fechado e excludente, que segrega o pedagógico ao ambiente puramente escolar e acadêmico, quem sabe tal formação possa buscar inspiração para sua mudança nos múltiplos caminhos e possibilidades abertos pelo reconhecimento do outro.

 

REFERÊNCIAS

 

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[2] Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas. Foi bolsista de doutorado Demanda Social - CAPES. Possui Mestrado em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria. Gestão Educacional pelo Curso de Gestão Educacional da Universidade Federal de Santa Maria. Possui Curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Federal de Santa Maria.

[3]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).