TEORIA DO RECONHECIMENTO E O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIApossibilidades educacionais na perspectiva da justiça social[1]

 

Carline Schröder Arend[2]

Prefeitura Municipal de Pelotas

carlinearend@gmail.com

 

Jovino Pizzi[3]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

 

1 INTRODUÇÃO

 

O presente texto tem como tema o estudo da teoria do reconhecimento de Axel Honneth, apresentando o desenvolvimento teórico que inicia com a obra a Luta por reconhecimento e chega até a recente versão apresentada em O direito da liberdade. O estudo tem como objetivo a averiguação da política social de redistribuição de renda para famílias pobres no Brasil, o Programa Bolsa Família. Com isso, pretende-se demonstrar que a política de reconhecimento de Axel Honneth apresenta um suporte teórico importante que permite entender o reconhecimento como uma forma de solidariedade, seja ela política ou moral. Ao mesmo tempo, busca-se também identificar possíveis "patologias" do Bolsa Família, a medida que os sujeitos podem mover-se por interesses egoístas.

O ponto de partida está na seguinte indagação: Como as políticas distributivas, elaboradas dentro do contexto do “novo capitalismo”, estão contribuindo na consolidação de relações solidárias? Este questionamento emerge frente às evidências de in-solidariedade. Ou seja, uma reação sistemática frente ao programa, fruto de um determinado individualismo possessivo que não admite a solidariedade, mesmo quando se trata de uma questão humanitária. Por isso, a motivação em compreender os vínculos de uma perspectiva teórica do reconhecimento – nos moldes da proposta de Honneth – com as circunstancialidades de quem é beneficiado pelo programa. Deste modo, deseja-se identificar se ele não se resume apenas ao repasse de renda, sem, portanto, construir laços de solidariedade social entre os participantes e os demais atores sociais.

Diante disso, o texto se atém aos aspectos teóricos de Honneth, no sentido de mostrar os dois momentos de seu pensamento: a concepção de reconhecimento na sua primeira obra – A luta pelo reconhecimento; o passo seguinte salienta o novo delineamento que aparece em O direito da liberdade. Na continuação, este texto expõe o Programa Bolsa Família, realçando principalmente seu caráter voltado ao combate à fome e à preservação da segurança familiar. Neste caso, a referência não é apenas Honneth, mas também o documentário Informe sobre la Inequidad, salientando que esse programa brasileiro pode ser considerado e tratado como um projeto humanitário.

Deste modo, deseja-se ressaltar que o Programa Bolsa Família não pode ser considerado apenas como filantropia ou uma comiseração, isto é, de um simples assistencialismo, mas de políticas de reconhecimento irrenunciáveis. Em outras palavras, trata-se não apenas de combater a fome e a pobreza, mas de garantir as condições essenciais para a vida e a convivência a qualquer sujeito humano.

 

2 HONNETH E A LUTA POR RECONHECIMENTO

 

Honneth (2003) aponta o conflito como inerente a qualquer interação intersubjetiva, como uma possibilidade de romper com pressupostos de um individualismo possessivo e monológico. Ele constitui a gramática moral das relações sociais, ou seja, a luta por reconhecimento é a chave do entendimento de como se processa a interação social, especialmente ao que concerne a constituição e a autocompreensão dos indivíduos em sociedade. Através das políticas de reconhecimento, é possível entender as patologias desse individualismo cuja in-solidariedade se traduz no desrespeito. Daí que o não reconhecimento seja “a fonte emotiva e cognitiva de resistência social” tanto a grupos ou coletividades (HONNETH, 2003, p. 227) considerados como invisíveis ou vulneráveis, entre outros qualificativos.

Honneth compartilha com a ideia de que a teoria crítica apresenta um déficit sociológico. Ao propor uma política de reconhecimento, é possível salientar, então, o caráter negativo da noção de justiça. Tal noção viola as expectativas de reconhecimento e desencadeia, então, sentimentos de desprezo e de injustiça. Por isso, sua insistência no debate público e democrático, cujas motivações se vinculam às esferas estruturais da sociedade e, ainda, diante da própria natureza da consciência de injustiça (HONNETH, 2011b).

O sentido negativo da justiça é um entrave ao reconhecimento. Por isso, a mudança requer não apenas políticas públicas e/ou sociais, mas também a luta pelo reconhecimento das conflitividades imanentes às relações intersubjetivas. Para Honneth, essa complexa aproximação com o outro, mediante um processo que não é de todo pacífico, implica nada mais do que “fazer de si o outro de si mesmo e retornar para si mesmo” (2003, p. 69). Ou seja, um compartilhar solidário entre sujeitos, cuja solidariedade mútua requer reciprocidade tanto no horizonte moral e político, como também nas garantias de alimentação, de estima social, de afetividade etc. Através dessa interação, processa-se a mudança do “si mesmo”, pois ao entrar em contato com o outro e o reconhecê-lo como tal, ao retornar a si, já não é mais o mesmo.

O contato, isto é, a interação entre sujeitos sociais instiga as lutas por reconhecimento, percebendo que o conflito e o reconhecimento se condicionam um ao outro, impulsionando às mudanças sociais que os indivíduos tanto almejam. Nesse processo, há uma espécie de coautoria entre os sujeitos, pois a intersubjetividade comunicativa promove mudanças tanto em relação ao próprio sujeito como também em relação ao ponto de vista e, inclusive, na compreensão dos fenômenos e fatos. Mais especificamente, a interação não é via de mão única, pois se trata de uma reciprocidade que afeta todos os concernidos e, ao mesmo tempo, se consolida em compromisso para transformar e superar as patologias que geram in- solidariedade.

Na sua conformação teórica, o reconhecimento recíproco, imbricado na conflitividade do reconhecimento do outro, manifesta-se em três esferas sociais: nas relações afetivas ou no amor (família, amizade), nas relações jurídicas ou de direito (estado) e na estima social ou na solidariedade (sociedade). Esta apresentação está na obra A luta pelo reconhecimento. No próximo subitem, explicamos as três esferas de reconhecimento.

 

3 O PRIMEIRO ESBOÇO DO RECONHECIMENTO SOCIAL DO OUTRO

 

Como foi salientado, Honneth propõe, na obra A luta pelo reconhecimento, três categorias de reconhecimento, que são: o amor, o direito e a solidariedade.

Na primeira esfera, o reconhecimento recíproco ocorre na esfera íntima, entre familiares, amigos e filhos e está intimamente ligada a ideia de que o sujeito é um objeto de cuidado de pessoas próximas. Essas relações afetivas de reconhecimento que possibilita o desenvolvimento da autoconfiança.

Nesse quesito, Honneth utiliza, entre outras fontes, categorias defendidas por Winnicott. Desta forma, Honneth (2003) consegue matizar a relação simbiótica existente entre mãe e filho, relação essa que ocorre ainda nos primeiros meses de vida do bebê. Nesta etapa, mãe e filho experimentam uma relação de dependência absoluta; é como se eles vivessem um para o outro. Quando a mãe passa a retomar sua rotina diária, e mãe e bebê percebem que conseguem viver um sem o outro, ou então, que a mãe vai embora, mas retorna, eles passam para uma relação de dependência relativa.

Para Honneth (2003), a criança só consegue reconhecer o outro quando houver o amor e esse outro ser independente; no caso, em relação à pessoa de referência[4], isso acontece quando já ultrapassaram a fase de simbiose em que viviam. Sendo assim, o amor é a forma mais elementar de ocorrência do reconhecimento. E para além da relação dos primeiros meses de vida, conforme abordado acima, o reconhecimento afetivo é de fundamental importância para o desenvolvimento da autoconfiança desse indivíduo, de modo que ele se perceba como ser amado.

A segunda categoria de reconhecimento apontada por Honneth (2003) é a do direito ou do reconhecimento jurídico. Esse reconhecimento ocorre quando o sujeito sai de seu contexto particular e ingressa em um contexto social ou universal, mediado por relações entre sujeitos livres e iguais, ou seja, os sujeitos se reconhecem portadores de posse, percebem-se como proprietários e, principalmente, enquanto portadores de igualdade, possuindo, portanto, direitos iguais perante a sociedade.

Segundo Honneth, tanto Hegel quanto Mead salientam a percepção do direito que o outro possui como ponto de partida do conhecimento que possuímos de nossos direitos. Em outras palavras, “todo sujeito humano poder ser considerado portador de alguns direitos, quando reconhecido socialmente como membro de uma coletividade” (HONNETH, 2003, p. 180). Nesse horizonte, o reconhecimento é possível porque há respeito e, tanto no amor como no direito, a autonomia manifesta-se quando a liberdade do outro é reconhecida, do contrário não há tal autonomia. Por isso, na esfera do direito predomina o autorrespeito.

Há, pois, uma diferença fundamental frente às sociedades tradicionais, pois nelas, o reconhecimento jurídico, ocorria através do status ou estima social. No caso, o indivíduo só estaria habilitado a adquirir o reconhecimento jurídico caso possuísse uma boa posição na sociedade, ou então pelas atividades que desenvolvia na sua comunidade.

A modernidade representou, segundo Honneth, uma mudança importante, proporcionando, assim, uma transformação também nas relações jurídicas. O reconhecimento jurídico deixa, então, de valorizar única e exclusivamente o status da pessoa perante os demais, para se tornar algo mais geral, considerando os interesses de todos os integrantes da sociedade. Ao considerar os interesses de todos, ganha força o princípio de igualdade universal. Para Honneth (2003), a igualdade universal permite compreender que o indivíduo, enquanto cidadão de uma sociedade, possui igual valor que os demais membros da coletividade.

O fato de o sujeito reconhecer-se juridicamente contempla também o âmbito moral do ser humano, realçando a possibilidade de viver de forma digna, sem denegrir as particularidades de cada ser. Por isso, na esfera jurídica, o indivíduo é reconhecido como autônomo e moralmente imputável, desenvolvendo uma relação de respeito consigo mesmo e com os demais membros da sociedade. Para Honneth, “é o caráter público que os direitos possuem porque autorizam seu portador a uma ação perceptível aos parceiros de interação o que lhes confere a força de possibilitar a constituição do autorrespeito” (HONNETH, 2003, p. 197).

Na terceira esfera do reconhecimento, Honneth situa a estima social. Aqui, as relações são mediadas pela solidariedade. Entra em cena o respeito universal, possibilitando aos sujeitos a se perceberem como seres possuidores de suas particularidades a serem socializadas com os demais membros de determinada comunidade. Consoante Honneth, “para poderem chegar a uma autorrelação intangível, os sujeitos humanos precisam, além da experiência da dedicação afetiva e do reconhecimento jurídico, de uma estima social que lhes permita referir- se positivamente a suas propriedades e capacidades concretas” (HONNETH, 2003, p. 198).

Segundo Honneth para os sujeitos “poderem chegar a autorrelação infrangível” (2003, p. 198), eles “precisam ainda, além da experiência da dedicação afetiva e do reconhecimento jurídico, de uma estima social que lhes permita referir-se positivamente a suas propriedades e capacidades concretas” (2003, p. 198).

O reconhecimento se efetiva quando existe aceitação recíproca das individualidades, as quais são julgadas segundo os valores que a comunidade possui. Nessa esfera é gerada a autoestima, isto é, a pessoa acredita no seu potencial e nas suas qualidades e, ao se deparar com outras pessoas, ela é reconhecida enquanto possuidora dessas características. Nessa esfera, o indivíduo demonstra suas singularidades de forma intersubjetiva e universal, dentro de um meio social (SAAVEDRA, SOBOTTKA, 2008). Se as mudanças ocorridas ao longo da história também deixam suas marcas, a valoração social que, antes se considerava através do status, reassume, agora, um novo padrão. Porém, Honneth assinala que, tais manifestações individuais, entram em atrito com a valorização coletiva, isto é, “o sujeito entra no disputado campo da estima social como uma grandeza biograficamente individuada” (HONNETH, 2003, p. 204). Mesmo que haja conflitividade, nesse aspecto, a pessoa é reconhecida enquanto digna de estima social e tal estima ocorre no horizonte da intersubjetividade coletiva.

Para Honneth, a estima social se vincula à experiência com:

 

[...] uma confiança emotiva na apresentação de realizações ou na posse de capacidades que são reconhecidas como ‘valiosas’ pelos demais membros da sociedade; com todo o sentido, nós podemos chamar a essa espécie de autorrealização prática, para a qual predomina na língua corrente a expressão “sentimento do próprio valor”, de “autoestima”, em paralelo categorial com os conceitos empregados até aqui de “autoconfiança” e de “autorrespeito”. (HONNETH, 2003, p. 210).

 

Como é possível perceber, “uma pessoa só pode se sentir “valiosa” quando se sabe reconhecida em realizações que ela justamente não partilha de maneira indistinta com todos os demais”. (2003, p. 204). Mas a estrutura vivenciada de um ambiente coletivo e plural com seres singulares desencadeia um sentimento de tensão, de luta, pois estão todos em busca de autorrealização, e assim se identificam com seus pares e desencadeiam um processo de reconhecimento de suas particularidades.

Em síntese, essas seriam as três esferas do reconhecimento, detalhadas na obra A luta pelo reconhecimento. Trata-se de três padrões de reconhecimento expostos na primeira obra. Eles correspondem a três maneiras de desrespeito: a violação, a privação de direitos e a degradação, respectivamente. Conforme Honneth, “na autodescrição dos que se veem maltratados por outros, desempenham até hoje um papel dominante categorias morais que, como as de ‘ofensa’ ou de ‘rebaixamento’, se referem a formas de desrespeito, ou seja, às formas de reconhecimento recusado” (2003, p. 213). Em resistência a essas formas de não reconhecimento é que se manifestam os conflitos sociais, tendo por resultado sua paulatina superação. Honneth entende por luta social “o processo prático no qual experiências individuais de desrespeito são interpretadas como experiências cruciais típicas de um grupo inteiro, de forma que elas podem influir como motivos diretores da ação, na exigência coletiva por relações ampliadas de reconhecimento” (Ibidem. p. 257). É nesse sentido que as lutas por reconhecimento passam a fundamentar os avanços normativos sociais.

Por isso, cada uma das esferas do reconhecimento possui uma autorrelação prática do sujeito (nas relações amorosas é a autoconfiança, nas relações jurídicas há o autorrespeito, e na comunidade de valores há a autoestima). A partir do momento em que ocorre o desrespeito em alguma das esferas, gera-se o conflito ou o sentimento de luta, gestando-se, assim, as lutas sociais.

Quando o desrespeito ocorre na esfera do amor, ele ameaça a integridade física e psíquica, pois se manifesta por meio de maus-tratos e violação. Na esfera do direito o desrespeito atinge a integridade social da pessoa, pois a mesma é privada de seus direitos e excluída do convívio social. E, por fim, na esfera da solidariedade, são as ofensas e infâmias que geram o desrespeito, afetando a dignidade da pessoa enquanto inserida em uma comunidade de valores. Logo, podemos compreender aqui as mudanças sociais, como resultado de lutas ocasionadas pelo desrespeito às esferas do reconhecimento. Mas é a partir do conceito de eticidade que se torna possível identificar as patologias sociais; ou seja, o pressuposto de um ideal de vida boa, que compreende valores éticos e morais, possibilita perceber a violação cometida contra a liberdade pessoal e os valores comunitários.

 

4 O RECONHECIMENTO EM O DIREITO DA LIBERDADE

 

Na obra Luta por reconhecimento, Axel Honneth afirma que o reconhecimento ocorre através de três categorias: a categoria do amor ou das relações íntimas; a categoria do direito ou das relações jurídicas; e a categoria da solidariedade ou das relações que resultam na estima social, conforme discutido anteriormente. Todavia, em Direito da Liberdade estas categorias sofreram modificações. A primeira categoria mudou do amor para o “nós” das relações pessoais; a categoria do direito deu espaço para o “nós” do agir em economia de mercado; e, por fim, a categoria da solidariedade transformou-se no “nós” da formação da vontade democrática.

Na referida obra, Honneth retoma alguns aspectos da teoria do reconhecimento desenvolvida em A Luta por reconhecimento. A novidade em O Direito da Liberdade concerne ao mercado, pois é a primeira vez que Honneth enxerga no mercado um âmbito de reconhecimento. Assim, o conceito de luta perde seu protagonismo (MADUREIRA, 2015). Em relação a isso, Durkheim se torna uma referência fundamental para discutir as questões referentes a liberdade social.

Para dar uma ideia comparativa mais específica, pode-se evidenciar as diferenças do seguinte modo:

 

1. A esfera das relações íntimas/interpessoais é a única que não sofre grandes mudanças; 2. Ocorre um deslocamento do reconhecimento das capacidades e características individuais, entendido anteriormente como associado ao desempenho e à solidariedade/valoração social, da terceira a segunda esfera, tendo como resultado: a) O desaparecimento do direito como esfera da liberdade social (O direito aparecerá em Das Recht der Freiheit como “possibilidade” de liberdade, não como liberdade “efetiva”, associado à liberdade negativa; b) O surgimento de uma esfera de reconhecimento propriamente política, que não existia na teoria “originária”; c) A localização do reconhecimento das capacidades, associado ao trabalho, em conjunto com os interesses particulares, numa esfera de reconhecimento própria: a economia de mercado (MADUREIRA, 2015, p. 364- 365).

 

Essas modificações remetem a outra questão importante. Em O direito da liberdade, Honneth procura desenvolver “os princípios de justiça social diretamente sob a forma de uma análise da sociedade” (HONNETH, 205, p. 9). Para essa finalidade, o autor insiste em quatro premissas: a primeira delas destaca que a reprodução social está vinculada e se orienta por ideais e valores, ou seja, “essas normas éticas não apenas determinam [...] quais as medidas ou desenvolvimentos sociais podem ser concebidos, mas também são determinados […] como objetivos de educação mais ou menos institucionalizados, pelos quais se organizaria a vida do indivíduo no seio da sociedade” (HONNETH, 2015, p. 19).

A segunda premissa é uma proposta que “se deve tomar apenas os valores ou ideais como ponto de referência moral de uma justiça que, como pretensões normativas, a um só tempo constitui reivindicações normativas e condições de reprodução de cada sociedade” (HONNETH, 2015, p. 21).

Honneth ressalta que a justiça não é independente e, portanto, tais valores e ideais não podem ser determinados de modo descontextualizado, resultando então, de uma análise concreta. Com isso, Honneth traz a reconstrução normativa, como a terceira premissa, como modo de validação do procedimento metodológico, considerando que os “valores justificados de modo imanente são, de maneira direta, tomados como fio condutor da elaboração e classificação do material empírico” (HONNETH, 2015, p. 24). Para então analisar criticamente o procedimento da reconstrução normativa, sendo esta a quarta premissa, partindo da ideia de que “não pode se tratar apenas de desvelar, pela via reconstrutiva, as instâncias da eticidade já existentes, mas deve também ser possível criticá-las à luz dos valores incorporados em cada caso” (HONNETH, 2015, p. 29).

Neste livro, Honneth apresenta a teoria do reconhecimento tendo como ponto central de sua discussão a liberdade, principalmente, a defesa de uma ideia de liberdade social. Com uma organização do livro muito semelhante ao livro Princípios da Filosofia do Direito de Hegel, Honneth defende a ideia de que a liberdade de um indivíduo apenas se efetiva quando este estiver em contato e relacionar-se com outros indivíduos, ou seja, é a ideia de que o sujeito só conquistará sua liberdade quando o outro o auxiliar a realizar sua liberdade e, do mesmo modo, o outro só se tornará livre, quando outro sujeito o auxiliar a realizar a sua liberdade. Assim, não há uma liberdade a perder, e sim uma liberdade a ser construída.

Em síntese, Honneth (2015) apresenta três diferentes modelos de liberdade: liberdade negativa; liberdade reflexiva; e, liberdade social. Estes modelos seguem uma dinâmica organizacional muito semelhante a utilizada por Hegel, portanto, a liberdade negativa relaciona-se com o direito abstrato discutido por Hegel; a liberdade reflexiva está relacionada com a moralidade subjetiva e, por fim, a liberdade social é correspondente as esferas da moralidade objetiva: família, sociedade civil e o Estado. De acordo com o que Pinzani também apresenta, “A parte sobre família do texto hegeliano corresponde, no texto de Honneth, a parte sobre relações pessoais; aquela sobre sociedade civil corresponde a parte sobre o mercado; finalmente, a parte sobre o Estado corresponde a parte sobre o Estado democrático” (PINZANI, 2012, p. 207).

Para discutir a liberdade negativa, Honneth retoma a compreensão de liberdade apresentada por Hobbes, sendo esta uma liberdade individual que não enfrenta resistências externas, ou seja, não há obstáculos para a realização da vontade do indivíduo. Havendo assim a possibilidade do indivíduo agir sem a interferência de outrem, ou então, sem a necessidade de prestar explicação sobre suas ações individualistas, Honneth ressalta que “a ideia de que a liberdade do indivíduo consiste na busca de seus próprios interesses sem que haja impedimentos ‘de fora’ repousa numa arraigada intuição do individualismo moderno” (2015,

p. 46). Essa liberdade é negativa, pois “já que não se deve voltar a questionar seus objetivos quanto à sua capacidade de satisfazer ou não suas condições de liberdade; [...] bastando o ato puro e desimpedido do decidir para que a ação resultante seja qualificada como ‘livre” (HONNETH, 2015, p. 49). Assim, esta liberdade permite a legitimação do desejo de distinção do indivíduo, tornando o indivíduo livre, quanto mais desejos e objetivos ele pudesse vir a realizar, porém, sem interferir na liberdade dos demais. Para Honneth, essa liberdade não é suficiente, pois “todas as insuficiências reveladas pela liberdade negativa remetem, em última instância, ao fato de ela cessar antes do limiar legítimo da autodeterminação individual”, não sendo assim, propositiva.

A liberdade negativa, posteriormente é discutida como liberdade jurídica, e então, ressaltam-se as possíveis patologias que tal liberdade pode vir a causar, segundo Pinzani (2012, p. 209): “a total identificação, pelos indivíduos, de sua liberdade com a liberdade jurídica, isto é, com seus direitos negativos e que, portanto, tais direitos acabem sendo os elementos constitutivos do plano de vida de seus titulares”.

Na liberdade reflexiva, partindo desde a Idade Antiga e Média, para um indivíduo ser livre ele “tinha de chegar às suas próprias decisões e poder realizar sua vontade” (HONNETH, 2015, p. 58). Desse modo, a relação que é estabelecida na liberdade reflexiva é de um sujeito que age segundo suas próprias intenções. Para tanto, Honneth busca em Rousseau, Kant e Herder, suas concepções de liberdade reflexiva. Sendo esta liberdade, perpassada pela ideia de que o agir do indivíduo só é permitido sem que a consciência e a reflexão imponham obstáculos.

A liberdade social se desenvolve nas três esferas, reorganizadas da luta pelo reconhecimento, a saber: as relações pessoais, economia de mercado e formação da vontade democrática. Nesse sentido, a liberdade social pode ser “entendida como um resultado de um esforço teórico de compreender que o critério subjacente ao pensamento da liberdade reflexiva amplia-se até mesmo às esferas que tradicionalmente se contrapõem ao sujeito como realidade externa" (HONNETH, 2015, p. 81). Ao final da descrição dos três modelos de liberdade, Honneth apresenta a ideia de uma eticidade democrática, destacando que uma concepção de justiça que supere o distanciamento da teoria normativa com a realidade social necessita “de uma reconstrução normativa do desenvolvimento social conduzida de maneira normativa” (HONNETH, 2015, p. 112).

Após a atualização histórica que retoma os modelos de liberdade negativa, reflexiva e social, Honneth apresenta como possibilidade de liberdade a liberdade jurídica e a liberdade moral. Destacando para cada uma dessas liberdades sua razão de ser, seus limites e suas patologias.

Honneth (2015) salienta que nas sociedades liberais os indivíduos apenas compreendem-se como pessoas detentoras de vontade própria quando possuidoras de direitos subjetivos, direitos estes concedidos pelo Estado para explorarem suas preferências, constituindo deste modo uma autonomia privada garantida juridicamente. Porém, estes direitos passaram a ser questionados por organizações e movimentos sociais, num sentido de buscar o reconhecimento intersubjetivo e a busca de direitos que atendam a todos os indivíduos. Sob a influência das mudanças ocorridas no âmbito econômico. Corrobora com este posicionamento de Honneth, o pensamento de Sennett (2006; 2009), no contexto do novo capitalismo prevalece uma organização voltada cada vez mais para o individualismo, pois as relações, bem como, o trabalho são organizadas de modo que não se crie expectativas de longo prazo. O que conduz, ilusoriamente, os indivíduos a entenderem-se como pessoas independentes, com vontade própria, gerando uma grande confiança no próprio indivíduo. Essa excessiva responsabilização do sujeito pelos seus atos pode vir a gerar a sensação de que não possui nenhum compromisso com os demais sujeitos.

A tese de que a sociedade passa por uma prevalência do individualismo, segundo Honneth (2014) também passa pelas discussões que contemplam o conceito de autonomia. Conceito este, amplamente discutido tanto no campo filosófico, como no educacional, que não contemplou a discussão sobre as vulnerabilidades sociais, segundo Honneth (2014), esse conceito voltou seu entendimento e discussão muito mais para um aspecto individualista. Concepção esta que também entranhou-se em alguns aspectos das discussões sobre justiça social, mas principalmente, desenvolveu-se um ideal de sociedade justa que “passou a ser compreendida como a de permitir que as pessoas que sejam dependentes o mínimo possível de outros” (ANDERSON; HONNETH, 2011, p. 83).

Essa ideia de que o social está sendo envolvido por aspectos egoístas, também é compartilhado por outros autores. Conforme Macpherson, as sociedades envolvidas por políticas liberais, salientam uma concepção de indivíduo como proprietário de sua pessoa e de suas capacidades, não sendo percebido como um integrante de um todo social, nos direcionando assim, a um individualismo possessivo (MACPHERSON, 1979). Ideia esta que é discutida na obra “Teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes até Locke”, na qual é apresentado o surgimento e o desenvolvimento do individualismo possessivo na Filosofia política do século XVII. Tendo como modelo de sociedade “como sendo uma série de relações de mercado entre esses indivíduos”, sendo esse um dever político suficiente, ou seja, “não eram necessários conceitos tradicionais de justiça […] o dever do indivíduo para com o estado era deduzido dos fatos supostos, como estruturados em um modelo humano materialista e no modelo da sociedade de mercado” (MACPHERSON, 1979, p. 277).

Do mesmo modo, Sennett (2006, 2009) afirma que o sistema capitalista corroeu o caráter das pessoas, ocasionando uma perda de senso de comunidade. Para Sennett (2009), a lógica do curto prazo e a necessidade de adaptar-se constantemente está retirando valores como lealdade e confiança, e desse modo, acaba interferindo na esfera da solidariedade. Consoante Sennett, a cultura do novo capitalismo está diretamente ligada a fragmentação e uma nova organização cultural das instituições. Sennett ressalta que os indivíduos tiveram que aprender a cuidar das relações e empregos de curto prazo e, em meio a isso, também cuidar de si mesmos podendo “ser obrigado a improvisar a narrativa de sua própria vida” (SENNETT, 2006, p. 13). Em meio a esse reinventar-se a curto prazo, também emerge a necessidade de “descobrir capacidades potenciais, à medida que vão mudando as exigências da realidade” (idem. p.13). Com uma estrutura muito dinâmica e que se altera rápida e constantemente, é necessário “permitir que o passado fique para trás” (idem., p. 14). Com tais mudanças nesse cenário, Sennett (2006) afirma que há necessidade de mudanças no caráter das pessoas para poder adentrar nestas instituições e adaptar-se a elas. Assim, “o ideal cultural do novo capitalismo […] o novo homem enriqueceria pensando em termos de curto prazo, desenvolvendo seu próprio potencial e desapegando-se de tudo” (SENNETT, 2006, p. 16).

Assim, Honneth (2014) salienta a ideia de que apenas a auto-regulação do mercado consegue equilibrar o jogo de interesses individuais. E, portanto, direitos coletivos possibilitados pelo Estado como uma alternativa para diminuir as desigualdades sociais causam grande estranheza e críticas pelas partes que não podem utilizar desses direitos, tratando aos dependentes de benefícios provindos do Estado como desvalidos e parasitas sociais. Este estado de desconfiança entre os indivíduos sociais deixa aberto um caminho para o desenvolvimento cada vez maior para o individualismo e a solidariedade torna-se dia após dia um elemento raro entre alguns indivíduos que ainda reconhecem o outro e buscam por justiça social para os menos favorecidos.

Na tentativa de melhorar e tornar prevalentes os direitos subjetivos, acreditamos que a sociedade acabe manifestando cada vez mais um sintoma de in-solidariedade, reforçando as patologias sociais constituídas ao longo do tempo. Assim, como uma possibilidade de superação do individualismo possessivo, busca-se com essa pesquisa a ampliação do debate sobre discriminação, justiça social e, principalmente, em possibilidades de reconhecimento social das crianças e famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família. Assim, tem-se como hipótese que, as políticas distributivas sofrem da apatia devido a cultura do novo capitalismo que tem uma marca do individualismo que estimula a in-solidariedade. Por fim, nosso esforço é buscar no pensamento de Axel Honneth, elementos teóricos que subsidiem uma leitura da implementação da política social de distribuição de benefício financeiro no Brasil.

 

5 O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA: A DIMENSÃO HUMANITÁRIA

 

O Programa Bolsa Família foi instituído pela Lei nº 10.836[5] de janeiro de 2004 e regulamentado pelo Decreto nº 5.209/2004. Ele é um dos programas sob a responsabilidade da União, dos Estados, dos Municípios e Distrito Federal (BRASIL, 2004a; 2004b). Trata-se de um programa de transferência direta de renda, que integra o Plano Brasil Sem Miséria (BRASIL, 2011). Ele busca atender milhões de brasileiros que vivem em situação de pobreza e de extrema pobreza, com vistas a garantir renda, inclusão produtiva e acesso aos serviços públicos.

O Programa como tal tem como objetivo principal combater a pobreza, através da transferência direta de renda às famílias situadas ou classificadas como pobres e de extrema pobreza (BRASIL, 2003). Estas famílias, para que possam receber o benefício, devem possuir renda per capita de até R$ 85,00 – famílias consideradas em situação de extrema pobreza – e renda a partir de R$ 85,01 até R$ 170,00 – família em situação de pobreza (BRASIL, 2016). O programa pretende, com isso, auxiliar na superação da pobreza. A manutenção do benefício está atrelada a condicionalidades, tais como a frequência das crianças e adolescentes na escola e o acompanhamento da saúde das crianças e gestantes beneficiárias.

O Programa Bolsa Família, ao direcionar o benefício às famílias que vivem em situação de pobreza e de extrema pobreza, associou a transferência do benefício à saúde, alimentação, educação e assistência social – direitos sociais básicos. A frequência e permanência das crianças e adolescentes na escola, cuja frequência deve ser igual ou superior a 85% para as crianças com idade entre 6 e 15 anos, enquanto que a frequência igual ou superior a 75% concerne aos adolescentes com idade de 16 e 17 anos (BRASIL, 2015). Além da frequência à escola, o compromisso também envolve a questão relação da saúde, uma vez que as mulheres favorecidas devem realizar o pré-natal (no caso de gestantes), acompanhamento nutricional e da saúde (no caso das crianças com até 7 anos de idade) (BRASIL, 2004a; 2004b).

O acompanhamento dá-se pelo Censo Escolar, atestando a frequência e permanência na escola. Os dados referentes aos alunos são enviados bimestralmente; em relação à saúde, os dados são repassados pelos agentes de saúde dos postos de saúde, com envio semestral. Tanto o acompanhamento da saúde das crianças como o pré-natal e o acompanhamento das nutrizes tem o objetivo diminuir a mortalidade infantil, a desnutrição das crianças e a diminuição no desenvolvimento de doenças como, por exemplo, diarreia, dentre outras.

Esta condicionalidade é fundamental, pois contribui de forma significativa para o desenvolvimento saudável das crianças, favorecendo a conclusão da educação básica em melhores condições, desta forma, vencer o ciclo de pobreza.

Além do mais, é importante ressaltar que o cartão do Programa Bolsa Família, com o qual as famílias podem realizar o saque do benefício, está, em sua maioria, no nome das mulheres. Ou seja, as mães das crianças são as encarregadas de gerir o dinheiro, uma maneira de garantir a participação da mulher/mãe na vida pública. Em relação a isso, Rego e Pinzani afirmam que “as mulheres, a partir do recebimento da renda monetária, se apoderam de alguma forma de capacidade humana, como a de escolher certas opções, inclusive as de ordem moral” (2013, p. 204).

Para Rego e Pinzani (2013), a educação das mulheres reforça a cultura “voltada para a valoração suprema das virtudes e dos valores ligados à vida privada e destituído de conteúdos vinculados aos princípios da autonomia moral e do autogoverno” (2013, p. 51-52). Para esses autores, “essas contrapartidas possuem caráter republicano e contribuem para o processo de formação de cidadãos e indivíduos responsáveis perante sua comunidade política” (2013, p. 70-71). Em outras palavras, através do programa de distribuição de renda, percebe-se também a possibilidade de mudança na autoestima e no amor próprio dessas mulheres, ao possibilitar- lhes não apenas o acesso a renda, mas reforçando também interação social e a solidariedade compartilhada.

Em se tratando de combater a fome e na promoção da segurança alimentar e nutricional, vale a pena destacar alguns dados do documentário argentino Informe sobre la inequidade[6]. Esse documentário relata a distinção entre duas jovens a partir das aptidões e características que diferenciam uma da outra. As questões principais buscam responder algumas perguntas, como: Que atitudes e características diferenciam uma da outra? Quais as circunstancias específicas de cada uma?

Por meio da amostra da realidade das duas jovens – sendo uma – Maria - de classe média-alta (Nível C1) e outra – Angela - de classe baixa (Nível D2) – o documentário tem como objetivo observar tanto o coeficiente intelectual como a interação com a família e o desempenho educacional. Além do mais ele procura comprovar, através da clínica médica e genealógica das duas jovens, a premissa de que, no decorrer do crescimento o corpo humano, há uma diversidade de fatores. Tais fatores são fundamentais, pois são determinantes nas transformações e no desenvolvimento de aptidões, as quais estão diretamente ligadas à nutrição, cujo fator é extremamente determinante[7].

A demonstração dos resultados dos testes e exames indicam que Angela apresenta dificuldades de conexão entre os dois hemisférios do córtex cerebral. Ela é uma menina tímida, com dificuldades para se conectar com suas emoções e, inclusive, para expressá-las. De acordo com o Informe, se a criança não recebe os nutrientes necessários, isto determinará o seu futuro. Aqui existem diversos níveis deficitários: proteínas, glóbulos brancos, tiamina, que determinam uma maior vulnerabilidade a doenças e dificuldades no crescimento e no desenvolvimento cognitivo.

É claro que uma única fonte é relativamente suspeitável. Mesmo assim, é inegável que “a nutrição tem um papel muito importante na promoção do crescimento físico, no desenvolvimento neuropsicomotor e no combate às doenças infecciosas que afetam, principalmente, as crianças” (2011, p. 160). Para Figueroa Pedraza e Queiroz não há dúvidas de que esse fator é determinante na vida das pessoas; no caso, nos primeiros anos de vida.

O fato é que o corpo humano, para ter um desenvolvimento aprazível ou, senão, saudável, necessita de nutrientes. Sendo os nutrientes tanto macronutrientes compostos por: carboidratos, proteínas e lipídios; como por micronutrientes, tais como: vitaminas hidrossolúveis – vitaminas C e do Complexo B – e as lipossolúveis – vitaminas A, D, E e K e os minerais, sendo eles – macrominerais – Ca, P, S, Mg, Na-Ci-K[8] – e microminerais – Fe, Zi, I, F, Mn-Cu-Se[9] (TIRAPEGUI, 2002). Nesse sentido, apenas para citar um exemplo de falta de determinados nutrientes, Figueroa Pedraza e Queiroz (2011, p. 168) ressaltam que “o ferro, o zinco e a vitamina A são os micronutrientes que mais limitam o crescimento infantil e o desenvolvimento cognitivo”. A partir deste exemplo acima citado, é possível mensurar a grande importância da condicionalidade da saúde para o bom desenvolvimento dos filhos e filhas dos beneficiários do Programa Bolsa Família.

Além disso, outro aspecto tornou-se relevante. No documentário há um momento em que é solicitado as meninas pesquisadas para relatarem um pouco da relação com seus familiares. Maria diz que sua relação é muito boa, ama seu pai e que ele é genial. Por outro lado, Angela inicia sua fala afirmando ter bem claro o que seja sua família. Ela odeia sua mãe, sua mãe engravidou aos dezessete anos e foi mandada embora de casa, tendo assim que começar a trabalhar. Angela continua seu depoimento dizendo que havia dias em que ficava trancada em um quarto, triste e chorava durante horas até adormecer chorando. Ela sentia que ninguém lhe dava carinho e ficava de mal com todo mundo. Angela finaliza dizendo: Eu não gostaria de morar na minha casa.

Ao trazer as esferas do reconhecimento de Honneth para, com isso, compreender as situações vivenciais, é possível vincular as emoções e os estímulos afetivos em conexão com as experiências vivenciais. Ou seja, os níveis de amor e de afeto são inerentes à noção da importância de si mesmo. Por isso, a autoestima está ligada à relação de amor, ou seja, há um espaço no qual o ser humano pode desenvolver-se a partir desse cuidado afetivo. Para Honneth (2003), a manifestação afetiva e o cuidado expressa o reconhecimento recíproco. Tal manifestação afetiva de confiança que se estabelece com as pessoas do círculo familiar e de amizades. Honneth (2003) denomina de uma autorrelação prática que, na criança, desenvolve o sentimento de autoconfiança.

Na relação com o Documentário, poder-se-ia, então, afirmar que a autoconfiança está também vinculada aos nutrientes – ou sua ausência – os quais influenciam sobremaneira na consolidação, ou não, desse âmbito relacionado ao que Honneth diz ser o âmbito do afeto e do amor, isto é, de um comportamento ligado às relações primárias. Mais uma vez, ressalta-se que essa relação deveria ser mais aprofundada.

Além da ausência do afeto, o sujeito pobre é silenciado e se torna, assim, alguém invisibilizado. Honneth discute o aspecto da invisibilidade em seu ensaio Invisibilidad: sobre la epistemologia moral del ‘reconocimiento’ (2011). Ele inicia a discussão tomando como referência o romance O homem invisível, de Ralph Ellison (1980). Através desse texto, Honneht realça o sentimento de desprezo frente aos indivíduos que não exercem protagonismo ou que vivem à margem da sociedade. Tal sentimento é nutrido por meio de um “olhar através” (looking through). Para Honneth: “[...] nós dispomos da capacidade de demonstrar nosso desprezo a pessoas presentes mediante o fato de comportarmo-nos frente a elas como se elas, fisicamente, não existissem no mesmo espaço” (HONNETH, 2011, p. 166). Trata-se, pois, de uma percepção física no sentido de ignorar essas pessoas. Desse modo, a atitude revela a invisibilidade, não reconhecendo a relevância social deste outro. Em outras palavras, “o sujeito concernido é observado por outra persona como se não estivesse presente no espaço correspondente” (HONNETH, 2011, p. 169). Desse modo, evidencia-se o aspecto negativo do reconhecimento, pois não há valorização e nem a percepção deste sujeito. No sentido contrário, a visibilização do sujeito indica sua valoração. Esse ato público salienta a sua apreciação, reconhecendo-o como tal. A sua invizibilização designa a negação do reconhecimento social.

 

6 CONCLUSÃO

 

As considerações apresentadas acerca do programa Bolsa Família, com base na teoria do reconhecimento de Axel Honneth – começando pela luta por reconhecimento e salientando também a teoria da justiça desenvolvida em o direito da liberdade – possibilitou traçar algumas considerações a respeito da política social de redistribuição de renda para famílias pobres no Brasil, especificamente do Programa Bolsa Família. Por certo, os desdobramentos do Programa Bolsa Família, no cenário do “novo capitalismo”, permite diferentes interpretações. Mesmo assim, não há dúvidas de que se trata de uma política de reconhecimento voltada a oferecer condições de sustentabilidade mínimas de sobrevivência. Como foi destacado, um dos aspectos relevantes concerne a âmbito humanitário, isto é, de alimentação e de nutrição garantidoras de uma vida saudável e aprazível.

A simples análise do Programa Bolsa Família enquanto apenas transferência de renda, com um viés assistencialista, nega, em boa medida, a necessidade de recursos alimentares e oportunidades de consumo que viabilizam aspectos relacionados ao bem viver, isto é, à vida saudável. Sem dúvidas, as políticas redistributivas podem reforçar ou, então, criar estigmas sociais. Os beneficiários podem ser considerados como, financeiramente, dependentes do Estado. Eles podem ser considerados como privilegiados ou, de outro modo, como incapazes de prover seu sustento por conta própria. Desse modo, a política de redistribuição de renda pode provocar a marginalização dos beneficiários de programas de distribuição de renda, criando e desenvolvendo um círculo vicioso de discriminação. Em seu diálogo com Fraser, Honneth (2007) define que as políticas distributivas não são apenas políticas de redistribuição de renda, mas também são políticas de reconhecimento. Para o autor, não se trata apenas de suprir as necessidades materiais, mas também de possibilitar a conquista da dignidade e maneiras de serem estimadas no meio social. No caso, a autoestima é um dos fatores ligados à humanização do sujeito.

Sem dúvidas, o documentário Informe sobre la inequidad apresenta duas situações distintas. Nele, evidencia-se um contexto de desrespeito, de humilhação e de não reconhecimento, inclusive no âmbito familiar. Tais conceitos negativos não estão relacionados apenas a maus comportamentos e que expressam injustiça, mas, sim, na linha de Honneth (2003), as patologias não se relacionam apenas ao comportamento que é prejudicial. A autoestima, o amor próprio, o cuidado, enfim, a dinâmica das relações primárias podem estar relacionadas a nutrientes e a dietas de alimentação que interferem na autocompreensão de si e, ainda, na forma intersubjetiva de conviver. Às vezes, esta compreensão positiva de si mesma, para as pessoas que vivem em situação de extrema pobreza e na marginalização, sequer existe. Ou seja, o processo de violência, falta de afeto e de não-reconhecimento vai passado de geração em geração. Nos contextos em que não há afeto e muito menos carinho, não há autoestima, o que acaba produzindo, nas pessoas, o não reconhecimento de si mesmas enquanto sujeitos coautores e, portanto, enquanto seres intersubjetivamente relacionais.

A ideia de reconhecimento, defendida por Honneth, principalmente na Luta por reconhecimento, indica a relevância de um bom relacionamento com os íntimos. Isso nos conduz a refletir e perceber que, muitas vezes, as vivências das crianças, provindas de famílias pobres, interfere diretamente no desempenho escolar das mesmas. Muitas famílias, que vivem em situação de pobreza ou de extrema pobreza, não possuem a plena consciência de sujeitos coautores, pois sua alimentação é deficitária.

Muitas vezes, discute-se a frequência e permanência das crianças na escola, pois ela é uma condicionalidade para a manutenção do benefício do Programa Bolsa Família. Esse é, sem dúvida, um quesito importante. Tal condicionalidade é uma possibilidade para a quebra deste círculo intergeracional de pobreza. Todavia, para além da negligência por parte dos agentes e das instituições públicas de ensino, as crianças também precisam lidar com a falta  de autoestima e de amor próprio, muito presente nas famílias de baixa renda, aspecto que se traduz no gosto pelo estudo.

Em suma, as políticas distributivas, elaboradas dentro do contexto do “novo capitalismo”, aparecem como duas faces da mesma moeda. O retumbante discurso de assistencialismo, atribuído às políticas de distribuição de renda, ofusca, por vezes, o direito de uma vida digna. Nesse caso, a in-solidariedade está presente naqueles que estão acima da linha da pobreza. Eles realizam juízo de valor a partir do princípio do mérito, desconsiderando a pobreza extrema como fator preponderante na constituição do reconhecimento intersubjetivo dos beneficiários do Programa Bolsa Família.

 

REFERÊNCIAS

 

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AUTONOMIA, vulnerabilidade, reconhecimento e justiça. Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade. n. 17, p. 81-112, 2011c. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/filosofiaalema/article/view/64839/0. (Acesso em 13/08/2016) .

 

BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Social. Lei nº.10.836 de 9 de janeiro de 2004a.

 

BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Social. Decreto nº. 5.209 de 17 de setembro de 2004b.

 

BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Social. Decreto nº. 7.758 de junho de 2012.

 

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HONNETH, Axel, Reificación: un estudio en la teoría del reconocimiento. Buenos Aires: Editora Katz, 2007b.

 

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LEÃO REGO, Walquiria, PINZANI, Alessandro. Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania. São Paulo: Editora Unesp, 2013.

 

MACPHERSON, Crawford B. A teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes até Locke. Trad. Nelson Dantas – Rio de Janeiro; Paz e Terra, 1979.

 

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PINZANI, Alessandro. Alcances e limites de um CCT Program: quão justificadas são as críticas ao Bolsa Família? In: Cadernos de Filosofia Alemã. v. 19; nº 2, jul-dez, 2014. Disponível em: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2318-9800.v19i2p149-163. (Acesso em 13/08/2016).

 



[1] AREND, Carline Schröder; PIZZI, Jovino.  Teoria do reconhecimento e o programa bolsa família: possibilidades educacionais na perspectiva da justiça social. In: COLÓQUIO HABERMAS, 12.; COLÓQUIO DE FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO, 3., 2016. Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Salute, 2016. Disponível em: https://coloquiohabermas.files.wordpress.com/2016/11/artigos-colc3b3quio-habermas-2016_ corrigido.pdf. Acesso em: 25 abr. 2023.

[2] Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas. Foi bolsista de doutorado Demanda Social - CAPES. Possui Mestrado em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria. Gestão Educacional pelo Curso de Gestão Educacional da Universidade Federal de Santa Maria. Possui Curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Federal de Santa Maria.

[3]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[4] A partir da obra Reificación, Honneth (2007b) não identifica mais apenas a mãe como a pessoa de referência.

[5] Em 13 de junho de 2003, foi promulgada a Lei nº 10.689 que criou o Programa Nacional de Acesso a Alimentação (PNAA). O programa estava ligado às ações voltadas ao combate à fome e à promoção da segurança alimentar e nutricional (BRASIL, 2003). Em 20 de outubro de 2003, institui-se o Programa Bolsa Família através da Medida Provisória nº 132, a qual foi convertida na Lei 10.836 na data de 09 de janeiro de 2004, criando o Programa Bolsa Família, a qual altera a Lei 10.689 de junho de 2003 (BRASIL, 2004a).

[6] Disponível em: http://curtadoc.tv/curta/direitos-humanos/espanol-informe-sobre-la-inequidad/; Acesso em: 26  mai. 2016.

[7] O objetivo foi transcrito a partir da explicação apresentada no documentário.

[8] Cálcio, Fósforo, Enxofre, Magnésio, Sódio, Potássio e Cloro.

[9] Ferro, Zinco, Iodo, Flúor, Manganês, Cobre e Selênio.