Fernando Amaral[2]
Universidade Federal do Rio Grande
Jovino Pizzi[3]
Universidade Federal de Pelotas
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo busca investigar na moral kantiana uma possível intersubjetividade bem como a reconstrução discursiva habermasiana desta moral verificando possibilidades e limites desta reformulação. Para tanto o trabalho é desenvolvido em três partes. Uma primeira parte onde se tentará verificar a presença de intersubjetividade formal na teoria moral de Kant, A ampliação dialógica do formalismo moral kantiano em Habermas através da reformulação discursiva do imperativo categórico e uma terceira parte apresentar a consolidação da intersubjetividade dialógica kantiana e habemasiana bem como a atualidade deste autor no que tange a relação entre moral e dignidade da pessoa humana.
2 OS INDÍCIOS DE UMA INTERSUBJETIVIDADE FORMAL NA MORAL KANTIANA
A Fundamentação da Metafisica dos Costumes (GMS)[4] é a principal obra e Kant em relação a sua filosofia moral, nela ele procura apresentar e fundamentar leis morais independente da experiência (a priori, portanto). A ética de Kant busca ser uma ética normativa, mas pouco usa o termo ética.[5] Prefere o termo moral e metafisica dos costumes. Ética em Kant é a metafísica dos costumes (ou da moral). O pensamento de Kant era muito influenciado por Rousseau e foi de onde ele partiu para fundamentar a sua autonomia[6] moral (autônomo é aquele que segue leis que ele mesmo criou, em Rousseau o criminoso também é autor da própria punição porque ele é autor da lei devido a “vontade geral” instrumentalizada pela democracia). Dado este panoarama geral e estreito, veremos se é possível encontrar na moral kantiana alguma intersubjetividade.
Porque agir moralmente? Kant responde por que no fundo é aquilo que nós queremos. Esta concepção de que o agir correto está no senso comum já era encontrado em Hume, um antecedente de Kant, a diferença era que para Hume a resposta para as ações morais está no empirismo e para Kant na fundamentação metafisica (VOLPATO, 2002, p. 114). Assim, Kant conceitualiza uma noção de razão prática[7]. Ela deve ser pura, independente de pressupostos empíricos ou religiosos.
A tarefa da GMS é a investigação e estabelecimento do princípio supremo da moralidade demonstrando que ela existe como realidade objetiva (GMS, Prefácio, Ak 392). Neste ponto o que Kant oferece é um critério para testar as nossas máximas (principio subjetivo da vontade), mas não responde, obviamente, apesar dos exemplos desenvolvidos, os quais muitas vezes mais confunde do que elucida, como se deve agir para qualquer circunstância o que muitas vezes é criticado por ter deixado os problemas de aplicação a um domínio insignificante na doutrina moral (VOLPATO, 2002, p. 128). Deve o agente investigar as razoes morais da ação, pois se Kant desse resposta para situações concretas definidas estaria traindo a sua fonte principal da razão que é a metafisica (de onde vem o fundamento racional).
Máxima é o princípio subjetivo para agir e tem de ser distinguida do principio objetivo, a saber, a lei prática. Aquela contem a regra pratica em que a razao determina em conformidade com as condições do sujeito (muitas vezes em conformidade com a ignorância ou também com as inclinações do mesmo) e é, portanto, o principio segundo qual o sujeito age; a lei, porem, é o principio objetivo, valido para todo ser racional, e o principio segundo o qual ele deve agir, isto é, um imperativo. (GMS II, nota Ak 420-421, ênfase de Kant).
O que seria bom absolutamente? O argumento da vontade boa é a fundamentação pura da moral de Kant. Uma boa vontade kantiana não está na finalidade ou no resultado da ação mas não vontade de realizar a ação pouco importando para ter valor moral o que a ação promove ou realiza. Neste sentido Kant está longe de ser um filósofo consequencialista pois:
A boa vontade é boa, nao pelo que efetua ou consegue obter, nao por sua aptidão para alcançar qualquer fim que tenhamos proposto, mas tao somente pelo querer; isto é, em si, e, considerada em si mesma, deve ser tida numa estima incomparavelmente mais alta do que tudo o que jamais poderia ser levado a cabo por ela em favor de qualquer inclinação ou até mesmo a soma de todas as realizações. (GMS I, Ak, 394, minha ênfase).
Portanto se acho que devo agir por expectativa social ou obrigação legal é um dever contra a minha vontade pura, logo, estou no plano da heteronomia ainda que isso me seja agradável[8]. O dever de Kant é ao contrario disso, tem razão na liberdade e na autonomia. Quem age “por exibição” ou “por medo”, não age por dever e esta ação, destarte, não tem valor moral. Isso não significa que não deva ser praticada, apenas não é uma ação pura; isso não quer dizer que não seja boa e não seja um dever, apenas não é moral pois não é por devermas meramente conforme ao dever[9].
Por isso ele argumenta que uma vontade autônoma concede a si a sua própria lei e é distinguida de uma vontade heterônoma cuja lei é dada, por exemplo, pelo objeto, sendo a heteronomia da vontade a fonte de tudo que afasta o individuo da moralidade e da maioridade.
Se a vontade busca a lei que deve determiná-la em qualquer outro lugar que não seja a aptidão de suas máximas para uma legislação universal própria, por conseguinte, se, indo além de si mesma, vai buscá-la na qualidade de qualquer de qualquer um de seus objetos, o resultado então será sempre heteronomia. (GMS II, Ak 441, ênfase de Kant).
Mas o que fazer quando o querer moral encontrar limite numa lei da natureza? Como buscar autonomia nessas condições? Kant neste ponto se utiliza de um artifício conceitual de dois mundos. A heteronomia que Kant admite como limite da autonomia pertence ao mundo inteligível e não ao mundo sensível – fenomênico - que sempre produzirá heteronomia pois
Por tudo isto é que um ser racional deve considerar-se a si mesmo, como inteligência (portanto não pelo lado das suas forças inferiores), não como pertencendo ao mundo sensível, mas como pertencendo ao mundo inteligível; tem por conseguinte dois pontos de vista dos quais pode considerar-se a si mesmo e reconhecer leis do uso das suas forças, e por tanto de todas as suas ações: o primeiro, enquanto pertence ao mundo sensível, sob leis naturais (heteronomia); o segundo, como pertencente ao mundo inteligível, sob leis que, independentes da natureza, não são empíricas, mas fundadas somente na razão (GMS III, Ak 452).
Höffe destaca que segundo Kant o querer não é um simples desejo mas “no emprego de todos os meios na medida em que estão no nosso poder” (GMS I, Ak 397, destacamos) “mas a vontade não é de modo algum indiferente em relação a sua manifestação no mundo social e político, ela não é nenhum além da realidade efetiva, muito antes, é o seu fundamento determinante e ultimo” (HÖFFE, 2005, p. 195, destacamos). O moralmente valioso, em ultima instância, não está na realização prática da ação mas sim o querer em de fato empreende-la:
Ainda mesmo que por um desfavor especial do destino, ou pelo apetrechamento avaro duma natureza madrasta, faltasse totalmente a esta boa vontade o poder de fazer vencer as suas intenções, mesmo que nada pudesse alcançar a despeito dos seus maiores esforços, e só afinal restasse a boa vontade (é claro que não se trata aqui de um simples desejo, mas sim do emprego de todos os meios de que as nossas forças disponham), ela ficaria brilhando por si mesma como um jóia, como alguma coisa que em si mesma tem o seu pleno valor. (GMS I, Ak 394, minha ênfase).
Kant afirma que inclusive a regra de ouro, que ele cita apenas em sua formulação negativa, só pode ser entendida como derivada do imperativo categórico, não o contrário, pois faltaria o querer:
Não se pense que o trivial: quod tibi non vis fieri etc. possa servir aqui de norma ou princípio. Pois ele é, se bem que com diversas restrições, tão-somente derivado daquele; não pode ser uma lei universal, visto que não contém o fundamento dos deveres para consigo mesmo, nem dos deveres do amor aos outros (pois muitos topariam de bom grado que os outros não lhes fizessem o bem desde que pudessem se dispensar de se mostrar benfazejos a eles), nem tampouco, por fim, dos deveres exigíveis de uns para com os outros; pois o criminoso argumentaria com base nisso contra o juiz que lhe dita uma pena, etc. (GMS II, nota Ak 430).
O agir racional também não se confunde com a busca da felicidade e inclusive pode entrar em desacordo com este querer, pois a felicidade é algo empírico e conforme os anseios a sua perseguição poderia gerar atos imorais portanto deve-se er prudência na busca de uma vida feliz. No âmbito da GMS esta relação da prudência com a felicidade irá resultar inclusive como forte critério na distinção entre o imperativo hipotético e categórico. Para Kant a prudência é tomada em sentido duplo. Há prudência mundana (a habilidade de uma pessoa no exercício de influência sobre outras para as utilizar para as suas intenções) e a prudência privada (o discernimento em reunir todas estas intenções para alcançar uma vantagem pessoal durável). A prudência privada é propriamente aquela sobre que reverte mesmo o valor da primeira, e quem é prudente no sentido mundanomas não no sentido privado, é considerado “...inteligente e astuto, mas no todo imprudente.” (GMS II, nota Ak 416, ênfase de Kant).
Após tratar da possibilidade (autonomia) e limite (heteronomia) da vontade para esta ser moralmente boa Kant desenvolve deve três proposições: 1) agir por dever e não por inclinação[10]; 2) Uma ação praticada por dever tem o seu valor moral, não no propósito que com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina; não depende portanto da realidade do objeto da ação, mas somente do princípio do querer segundo o qual a acção, abstraindo de todos os objectos da faculdade de desejar, foi praticada. (GMS I Ak, 399, ênfase de Kant); e consequentemente 3) Dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei[11]. (GMS I Ak, 400, nossa ênfase).
Ou seja, quem age por inclinação ou pelas conseqüências pode variar nos desejos e anseios o que afasta a necessidade e universalidade da ação, logo, pratica ações sem valor moral (ainda que possam ter outros valores bons em que pese não-morais). Para Kant, ações boas que não são um fim em si mesmo tendem a ser abandonadas:
Notemos no entanto provisoriamente que só o imperativo categórico tem o caráter de uma lei prática, ao passo que todos os outros se podem chamar em verdade princípios da vontade, mas não leis; porque o que é somente necessário para alcançar qualquer fim pode ser considerado em si como contingente, e podemos a todo o tempo libertar-nos da prescrição renunciando à intenção, ao passo que o mandamento incondicional não deixa à vontade a liberdade de escolha relativamente ao contrário do que ordena, só ele tendo portanto em si aquela necessidade que exigimos na lei. (GMS II, Ak 420, ênfase de Kant).
Dessas proposições – agir por dever, por querer é agir necessário - segue-se então que a lei moral, isto é o principio de uma vontade moralmente boa, nas palavras de Kant, o imperativo categórico ou da moralidade (GMS II, Ak 420) na sua fórmula universal (forma básica): age apenas segundo a máxima pela qual possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal (GMS II, Ak 421); na forma da lei universal da natureza: age como se máxima de tua ação deve-se se tornar por tua vontade uma lei universal da natureza (GMS II, Ak 421)[12] ou na formula da humanidade como fim em si mesma: age de tal maneira que tomes a humanidade, tanto em tua pessoa, quanto na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como fim, nunca meramente como meio[13]. Kant destaca (GMS II, Ak 436) que apesar da variação as três maneiras de apresentar o princípio da moralidade são no fundo a mesma lei, e todas as “máximas”[14] têm, com efeito: 1) uma forma, que consiste na universalidade, ou seja as máximas têm de ser escolhidas como se devessem valer como leis universais da natureza; 2) uma matéria, isto é, o ser racional, como fim em si mesmo segundo; 3) uma determinação completa de todas as máximas por meio daquela fórmula, onde todas as máximas por legislação própria, devem concordar entre si para um possível reino dos fins[15].
Por fim, em relação aos imperativos destaca-se que os Imperativos Categóricos são a priori, pois ordenam ações desprovida do interesse empírico de seus agentes, e são sintéticos (ou progressivos) pois a vontade de um ser racional-sensível nem sempre quer o moralmente bom, é necessário conecta-la ao agente (nem todo ser livre agirá moralmente, pois somos seres racionais imperfeitos)[16]. Os imperativo hipotéticos, por sua vez, são empíricos e analíticos (ou regressivo, pois o ato de estabelecer o fim já este já contido no meio correspondente) (SHONECKER, WOOD, 2014, p. 154).
Assim, Kant responde na sua filosofia moral a pergunta “O que devo fazer?” determinando que a conduta moralmente correta deve ser praticada mediante o Imperativo Categórico, que é o seu imperativo moral.
Com base na demonstração aqui feita é possível verificar, ainda que de forma indiciária, que dentro da moral kantiana há uma intersubjetividade. Conceitos como vontade perfeitamente boa, prudência para se buscar a felicidade ou ate mesmo a dignidade da pessoa humana. Höffe (2005, p. 207) diz inclusive que Kant tinha uma certa concordância com utilitarismo pois considera a promoção do bem-estar de outros como moralmente requerida e que isso pressupõe que as pessoas reflitam a luz do bem estar alheio e das conseqüências de suas condutas. Quando Kant trata dos exemplos de universalização, o quarto exemplo (GMS II Ak 430) é uma proibição da indiferença para com a necessidade alheia (HÖFFE, 2005, p. 209) onde Kant defende que a felicidade é fim que deve ser por todos buscado mas não egoisticamente e há, portanto, uma intersubjetividade solidária como limitação da liberdade das ações humanas. Diz ainda que se “...se um sujeito é um fim em si mesmo, os seus fins têm de ser quanto possível os meus...” e que “...Este princípio da humanidade e de toda a natureza racional em geral como fim em si mesma...” [ênfase de Kant] é a priori pois “...nada é tomado de empréstimo à experiência ... por causa da sua universalidade, pois que se aplica a todos os seres racionais em geral, acerca do que nenhuma experiência é suficiente para tornar o que seja...tendo por conseguinte de originar-se da razão pura”.
Dessa forma a teoria moral kantiana, mesmo se só analisarmos a GMS, possui uma dimensão aspectos intersubjetivos ainda que no seu sentido formal o que impede de dizer que ela é monológica na sua totalidade. Ainda que conceitos como “autonomia”, “liberdade”, “máximas” e “querer” dêem um escopo solipsista da consciência do agente para resolver dilemas morais, por outro lado ela também traz uma dimensão intersubjetiva formal para esta decisão como visto acima.
3 A AMPLIAÇÃO DIALÓGICA DO FORMALISMO MORAL KANTIANO EM HABERMAS
Habermas busca uma reformulação do agir moral através de uma reconstrução discursiva do imperativo categórico, ou seja, a proposta habermasina procura mostrar como é possível superar o solipsismo, tendo presente um procedimento discursivo (PIZZI, 2005, p. 256). Para Habermas o imperativo categórico adota o papel e um princípio de justificação, selecionando e distinguindo como “válidas as normas suscetíveis de universalização, qual seja, o que no sentido moral esta justificado deve ser desejado por todos os sujeitos racionais” (PIZZI, , 2005, p. 264). Para ele é ilegítimo que as máximas que o agente busque a universalidade fique apenas no monólogo solitário do foro interior do ser racional (VOLPATO, 2002, p. 134). Quer Habermas, portanto, uma reconstrução discursiva da moral kantiana, um deslocamento da ênfase do querer autônomo para a concordância discursiva consensual de todos como requisito de validez universal do agir. Um giro gramatical onde sai “eu quero” e entra o “nós concordamos”. Para Habermas os testes objetivos das máximas subjetivas do querer devem ser filtrados pelo consenso dos envolvidos através do discurso, por meio do agir comunicativo teoria que ele desenvolveu no inicio da década de 80.
Para Pizzi (2005, p. 265) a reinterpretação habermasiana substitui o solipsismo moral pelo acordo consensual entre todos, independentemente dos interesses ou das preferências particulares. Em outras palavras, destaca, que a pragmática habermasiana representa a tradução procedimental do imperativo categórico de Kant: mais do que atribuir como válida as demais, qualquer máxima que eu possa querer que se converta numa lei universal “tenho que submetê-la a todos os demais, com a finalidade de examinar discursivamente sua pretensão de universalidade.” (2005, p. 265). Nesse sentido, portanto, a ética discursiva de Habermas é uma reconstrução processual da moral kantiana (VOLPATO, 2002, p. 132), um algo mais para resolver dilemas morais para além do teste unipessoal de máximas para o filtro intersubjetivo.
O meio deste consenso em Habermas, e na sua teoria do agir comunicativo, é através de um discurso pautado pela ética, conhecimento do mundo vivido e linguagem.
Nessa mediação entre hermenêutica e ação comunicativa habermasina o discurso prático exige simetria entre os participantes, porque a luta pela emancipação passa por uma experimentação das condições reais dos sujeitos enquanto implicados no processo. As resoluções dialógicas recebem um reforço regulativo que serve de marco objetivo de referência e ação social, pois estão sempre voltadas para o ideal do consenso. Em outras palavras, surge a forma da intersubjetividade, onde o sujeito particular faz sentido enquanto é capaz de linguagem e ação, mediados por uma moralidade que unifique, ao mesmo tempo, a lógica do discurso e a práxis da vida (PIZZI, 1994, p. 51), portanto exige um agir não de um mero observador que interpreta o mundo mas, para além, de um ator que participa comunicativamente afastando, assim, a decadente filosofia da consciência e introduzindo o paradigma da comunicação (PIZZI, 2005, p. 45). A teoria do agir comunicativo não caracteriza a linguagem apenas como instrumento para entender as orações e expressões gramaticais, a linguagem passa a ser um médium para o entendimento entre sujeitos que pensam e agem comunicativamente. O ato de fala transforma-se em agir comunicativo (PIZZI, 1994, p. 108), assim, pode-se dizer, que em Habermas, para se ter intersubjetividade o foco deve ser nas relações comunicativas e não na consciência solitária.
Ao contrário do que ocorre com a racionalidade instrumental, a noção de interesse prático comunicativo requer como condição um contexto interativo, no qual, além da auto referencia, é necessário um “medium” dos vínculos lingüísticos. Como Kant, Habermas sustenta a universalidade do principio da razão, suscetível de ser assumido – ou não – por todos (consenso ou dissenso). A situação dialógica, porém, na qual os indivíduos se põem de acordo com relação às normas de conduta social, deve ser antecipada “a priori” como sendo um interesse prático que orienta o conhecimento em direção de um reconhecimento recíproco. A validade das máximas individuais são como que mediadas pela máxima universal, que se redefine dialogicamente como consenso verificado “a posteriori” (PIZZI, 1994, p. 52). Para Habermas toda discussão moral deve estar inserida num contexto, esta análise leva em consideração o mundo da vida no seu sentido subjetivo, objetivo e social (PIZZI, 2005, p. 13). Destaca Pizzi (2006, p. 160) que meios como dinheiro e poder passaram a subordinar a ação aos interesses meramente econômicos e um outro contexto de ações com fins comunicativos se faz necessário.
O mundo da vida (ou mundo vivido) fenomênico de Hurssel (o Lebenswelt) é o contexto do agir comunicativo habermasiano que é composto pela totalidade (1) das vivências a que tem acesso privilegiado (mundo subjetivo próprio), (2) das relações interpessoais legitimamente regulados de um grupo social (mundo social comum) e (3) dos estados de coisas existentes (mundo objetivo) (HABERMAS, 1989, p. 79) e o campo dos objetos de pesquisa (HABERMAS, 2009, p. 151). Com a categoria do mundo da vida destaca Pizzi que Husserl quer significar o amplo espaço de experiências mostrengas, certezas pré-categoriais, relações intersubjetivas e valores que nos são familiares no trato do cotidiano com os homens e com as coisas (PIZZI, 2006, p. 63) passando a se constituir no “único espaço de uma racionalidade em que todas as questões, os métodos e teorias tem sentido (PIZZI, 2006, p. 107).
Mas Habermas reconstrói a proposta husserliana por considerar uma fonomelogia ainda dentro de uma “Filosofia da consciência” pois tem como ponto de partida esquemas de interpretação, centrados no eu, com os quais se constroem os mundos da vida dos sujeitos agentes; “esse ego se encontraria, pois, desvinculado do entorno social” (PIZZI, 2006, p. 132) e para ele o que une o “eu” com o “outro” e o eu com o “mundo” é a intersubjetividade através de um ambiente de comunicação pois assim afasta as deficiências monológicas do enfoque fenomenológico (PIZZI, 2006, p. 141). O recurso ao Lebenswelt como pano de fundo do agir moral se dá porque meios como dinheiro e poder passaram a subordinar a ação aos interesses meramente econômicos coordenando de forma sistêmica a integração social (PIZZI, 2006, p. 160). O recurso ao mundo da vida se transforma, portanto, também em uma “capa fundamental para a constituição de uma teoria da ação” (PIZZI, 2006, p. 163) mas dentro de uma reformulação comunicativa. Assim “o mundo da vida, do qual as instituições fazem parte, manifesta-se como um complexo de tradições entrelaçadas, de ordens legítimas e de identidades pessoais – tudo reproduzido pelo agir comunicativo” (HABERMAS, 2012a, p. 42) pois o sentido orientado pelo agir só é acessível na experiência comunicativa (HABERMAS, 2009, p. 159).
A ação comunicativa é uma categoria que se encontra, portanto, entre o discurso e o mundo vivido e Habermas estrutura “sociedade” e “sistema” como dois conceitos do mundo da vida no entanto o diferencia de sistema[17]:
Eu entendo a evolução social como um processo de diferenciação de segunda ordem, porque o mundo da vida e o sistema se diferenciam não somente à proporção que a racionalidade de um e a complexidade do outro crescem, mas também a medida que um se diferencia do outro. (HABERMAS, TAC II, p. 277).
No desenvolver da teoria do agir comunicativo Habermas (1990, p. 65) separa ações em sentido estrito (atividades não lingüísticas orientadas para um fim onde um ator, intervém no mundo, a fim de realizar fins propostos, empregando meios adequados) de proferimentos lingüísticos (atos através dos quais um falante gostaria de chegar a um entendimento com um outro falante sobre algo no mundo). Em que pese o agir finalístico (ou estratégico) e o agir comunicativo serem ambos mediados pela linguagem (1990, p. 82)
somente o agir comunicativo é aplicável o principio segundo qual as limitações estruturais de uma linguagem compartilhada intersubjetivamente levam os atores – no sentido de uma necessidade transcendental tênue – abandonar o egocentrismo de uma orientação pautada pelo fim racional de seu próprio sucesso e a se submeter aos critérios públicos da racionalidade do entendimento (HABERMAS, 1990, p. 82-83; ênfase de Habermas).
Enquanto no agir comunicativo os agentes estão predispostos ao entendimento e buscam o acordo ou revaleçao de dissensos, no agir estratégico não há esta predisposição e os participantes almejam a vantagem ou a manipulação (TAC I, p. 574)[18] pois “a ação estratégica tem como ponto de referencia o êxito do falante diante de um oponente racional” (PIZZI, 2005, p. 82). Pizzi (2005, p. 86) destaca que o agir comunicativo refere-se àquela forma de interação na qual os participantes definem e coordenam, de comum acordo, seus planos de ação. Esse processo demanda expectativas recíprocas de reflexão e ação, ao passo que o agir estratégico almeja a vitória. A validez dos enunciados empiricamente verdadeiros ou corretos e a validez das normas sociais são asseguradas por um reconhecimento intersubjetivo, sempre fundado no entendimento lingüístico. Para Habermas se quisermos estabilização social a sociedade deve ser integrada pelo agir comunicativo, pois ações orientadas para o sucesso não possuem este efeito (HABERMAS, 2012a, p. 45). A experiência comunicativa emerge, tal como o nome indica, de contexto de integração, que liga no mínimo dois sujeitos no quadro da intersubjetividade linguisticamente produzida do entendimento quanto as significações constantes (HABERMAS, 2009, p. 147-148)
Habermas para distinguir os discursos dentro do âmbito da teoria do agir comunicativo se utiliza, cm algumas variações, da teoria dos de fala de Austin. Austin (1990, p 95-96) sugere uma lista de verbos performativos (que indicam ação) explícitos onde se encontram algumas dificuldades para determinar se um ato de fala é ou não performativo, ou pelo menos puramente performativo. Para tanto Austin distinguiu três atos de fala com sentido de ação: atos locucionários, atos ilocucionários e atos perlocucionários.
Em primeiro lugar há um conjunto de coisas que fazemos ao dizer algo, que sintetizamos dizendo ao realizar um ato locucionário, o que vale, a grosso modo, a proferir determinada sentença com determinado sentido e referência, o que, por sua vez, equivale ao "significado" no sentido tradicional do termo. Em segundo lugar, afirma Austin, que também realizamos atos ilocucionários tais como informar, ordenar, prevenir, avisar, comprometer-se, etc., isto é, proferimentos que têm uma certa força (convencional). Em terceiro lugar também podemos realizar atos perlocucionários, os quais produzimos porque dizemos algo, tais como convencer, persuadir, impedir ou, mesmo, surpreender ou confundir. Destaca Austin que aqui temos três sentidos ou dimensões diferentes, senão mais até, da frase "o uso de uma sentença" ou "o uso da linguagem". Todas essas três classes de fala estão sujeitas, simplesmente por também serem ações, às dificuldades e reservas costumeiras que consistem em distinguir uma tentativa de consumação, um ato intencional de um não-intencional. Austin descrevia como falácia descritiva o entendimento que de que a linguagem só descreve o mundo[19] pois para ele o dizer também contém o fazer.
Habermas destaca que quando na situação de fala a linguagem for empregada para o entendimento mútuo (ainda que seja tão somente para constatar um dissenso), logo com pretensões convencionais, haverá então três relações pois “ao dar uma expressão de aquilo que tem em mente, o falante comunica-se com um outro membro de sua comunidade lingüística sobre algo no mundo” (HABERMAS, 1989, p. 40). O acordo alcançado será medido pelo reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validez do ato de fala (HABERMAS, 1989, p. 79). No agir comunicativo, portanto, o ato de fala é ilocucionario, pois nele o falante tem a intenção de buscar o entendimento com o ouvinte, e no agir estratégico ele é perlocucionário devido ao intento não estar voltado para consenso mas para um efeito finalístico. No entanto se falar nestes casos é agir é preciso um elemento de concreção para que a fala se consume de fato, uma pretensão validade. Para Habermas a ação regulada por normas (como as morais), os atos de (1) fala são regulativos, se referem ao (2) mundo social, tem a (3) função lingüística de criar relações interpessoais, a (4) orientação das ações são voltadas para o entendimento, as (5) atitudes básicas estão conforme as normas e a
(6) pretensão de validade esta na correção. Por sua vez num tipo de ação estratégica (ou manipuladora), os atos de (1) fala são perlocucionários e se referem ao (2) mundo objetivo, tem a (3) função lingüística de influência no oponente, a (4) orientação das ações é voltada para o êxito, as (5) atitudes básicas são objetivadoras e a (6) pretensão de validade é a eficácia (TAC I, p. 565). Assim, se no agir estratégico a pretensão de validade, aliada a outras características, a pretensão de validez esta na eficácia no agir comunicativo esta validade está na retidão, o que conforme se destacou acima, na justificativa com razões morais.
Por isso, conforme as características acima (1-6), o procedimento comunicativo ultrapassa os discursos e opiniões monológicas para atingir um entendimento descentrado de mundo preservando, assim, a igualdade e a originalidade dos três elementos do mundo vivido (PIZZI, 1994, p. 78). Percebe-se, portanto, que Habermas deposita nos atos ilocucionarios de Austin o conteúdo comunicativo, porque eles se centram no sujeito que diz algo e também na certeza de que isso é entendido pelos demais (PIZZI, 1994, p. 124-125) devido ao forte conteúdo convencional. A teoria da ação comunicativa postula uma situação ideal de compreensão, que é a condição de possibilidade da comunicação e do reconhecimento intersubjetivo (RAULET, 2009, p. 273)
Para Habermas o conceito “agir comunicativo” faz com que as suposições contrafactuais dos atores que orientam seu agir por pretensões de validade adquiram relevância imediata para a construção e a manutenção de ordens sociais: pois estas mantêm-se no modo do reconhecimento de pretensões de validade normativas. Isso significa que “a tensão entre facticidade e validade embutida na linguagem e no uso da linguagem retorna no modo de integração de indivíduos socializados” (HABERMAS, 2012a, p. 35). O direito positivo tem uma função especial nessa relação pois cabe a ele estabilizar esta tensão de forma socialmente integrada (2012a, p. 35), pois percebida uma incompatibilidade entre
Agir orientado pelo sucesso e agir orientado pelo entendimento e, deste modo, sob a condição de uma incompatibilidade percebida facticidade e validade. (...) encontramos a solução desse enigma no sistema de direitos que provê as liberdades subjetivas de ação com a coação do direito objetivo (HABERMAS, 2012a, p. 47).
No que diz respeito ao direito um dos propósitos de Habermas é introduzi-lo o direito moderno na ótica da teoria do agir comunicativo, pois a tensão entre as pretensões normativas democráticas e a faticidade do contexto social, que é inerente ao direito, pode receber da teoria do agir comunicativo um contributo positivo (HABERMAS, 2012a, p. 113). Para o autor são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais (2012a, p. 142). Para Habermas no que tange a ética do discurso não há uma distinção satisfatória entre principio moral e principio do discurso, uma vez que ela parte da idéia de que o próprio princípio está fundado nas condições simétricas de reconhecimento de formas de vida estruturadas comunicativamente (2012a, p. 142).
Assim, a resposta para “O que devo fazer?” em Habermas toma uma outra configuração e pode ser (re)formulada como age moralmente quem age de acordo com uma norma de ação que possa ser universalizada, isto é, que possa obter o consenso de uma comunidade de comunicação (VOLPATO, 2002, p. 140). Destaca Volpato (2002, p. 140) que Habermas busca através da intersubjetividade consensual uma universalidade que não pode concordar com determinações estranhas a comunicação como, por exemplo, dinheiro e poder.
4 A CONSOLIDAÇÃO DA INTERSUBJETIVIDADE DIALÓGICA
Kant não estava tão longe da intersubjetividade como vimos, mas ela ainda ficou num estado formal, dentro de um paradigma da Filosofia da consciência onde há uma única consciência ainda que com bases racionais e metafísicas. O grande mérito de Habermas foi, através da paradigma da linguagem reforçada pelo giro lingüístico, trazer ela para uma dimensão dialógica colocando o sujeito, através do discurso, num teste de máximas para alem da solidão de uma racionalidade instrumental pois Habermas o falante “deve entender-se a si mesmo a partir da perspectiva de seu destinatário” (PIZZI, 2005, p. 111).
A dimensão dialógica está no ponto desta constante alternância entre a primeira pessoa do dialogo (ego) e a outra pessoa (alter ego). O falante ao fazer uma afirmação assume uma posição e o ouvinte outra, papéis estes que serão alternados e isso é o aspecto miais mportante dos atos de fala em que pese não existir uma posição intersubjetiva-comunicativa privilegiada para o terceiro que não participa do diálogo como há para o falante e ouvinte (PIZZI, 2005, p. 111). Esta situação (ideal) de diálogo em um ambiente comunicativo produzirá, nos termos da teoria do agir comunicativo de Habermas, formulação morais para alem da consciência monologica e, por esta razão, com uma carga maior de validez. Assim, o novo para uma teoria moral em Habermas está no ponto de que a intersubjetividade, ainda em estado formal em Kant, ganha contornos dialógicos entre os atores morais.
A reformulação de Habermas do imperativo moral kantiano não escapou a críticas. Uma delas está no fato de que esta formulação é, na verdade, a fundamentação de uma ação e não a proposição de uma norma moral, ela diria respeito aos “motivos que as pessoas podem ter e requerer para, reciprocamente, poderem atuar de uma forma determinada umas com respeito as outras” (VOLPATO, 2002, p. 140) o que não escapa do foco de Habermas - processualizar a justificação de uma norma moral através do discurso – e se lermos Kant com olhar de alguns de seus comentadores ele também teria falhado em não fornecer regras morais positivas. Destaca Volpato, ainda, que fundamentar uma norma é uma tarefa “mais ou menos hipotética” (2002, p. 276) e, de fato, Habermas ao processualizar o imperativo categórico de Kant, através de um procedimento intersubjetivo e comunicativo, está mais para um meio de se atingir um consenso (ou identificar dissensos) do que demonstrar materialmente um direito moral propriamente dito afinal “No caso de a ação ser apenas boa como meio para qualquer outra coisa, o imperativo é hipotético (GMS II, Ak 414, ênfase de Kant).
Além desta critica, que consideramos razoável, apesar das vantagens do procedimento discursivo, é possível identificar ainda, segundo Pizzi com base em Cortina, limitações ou inconvenientes nesse processo, pois limitar a tarefa da razão pratica à produção de premissas geradoras de consensos apresenta sérias repercussões nos campos em que se expressa especialmente no da filosofa moral. Por isso reduzir, o âmbito da ética aos procedimentos legitimadores de normas supõe renunciar a elementos que vieram constituindo parte imprescindível do saber ético, limitando o aspecto moral a uma forma deficitária do direito (PIZZI, 2005, 269-270). Em outras palavras, é necessário se ter um “mínimo moral pétreo” que não pode ser objeto de mutilação por consensos até porque, questões consensuais ou não sofrem a corrosão do tempo e como enuncia Volpato “Habermas esquece que houve muitas questões não consensuais em ética que se tornaram consensuais, como por exemplo, o repúdio a escravidão, a tolerância religiosa, o trabalho das crianças” (2002, p. 199). Portanto se o “livre arbítrio” kantiano tem o “vício” de deixar a intersubjetividade num esta formal, o “livre consenso” habermasiano sem um mínimo moral pode ser berço de injustiças ou intolerâncias. O que se pode dizer é que Habermas reformulou o Imperativo Categórico de Kant, mas com contornos mais hipotéticos que morais o que para uma dimensão pratica para alguns nao tem tanta importância[20].
Habermas em um escrito atual de 2011 - “O conceito de dignidade humana e a utopia realista dos direitos humanos” in “Sobre a Constituição da Europa” - sobre a dignidade da pessoa humana ele realiza uma conexão entre moral e direito e não traz mais como destaque o consenso como fundamento da determinação moral e lê em Kant um “reconhecimento recíproco da vontade legisladora de cada um quando Kant escreve que ‘jamais deve tratar a si mesmo e todos os outros como meio, mas sempre ao mesmo tempo como fim em si mesmo‘ (HABERMAS, 2012, p. 26)[21] o que parece reconhecer que de fato em Kant já havia a intersubjetividade ainda que em fase embrionária. Destaca que em Kant os direitos humanos derivam de seu conteúdo moral. Trata os direitos humanos como próprio objetivo ideal de uma sociedade justa nas instituições de um Estado constitucional (HABERMAS, 2012, p. 31). O autor enfatiza que:
As próprias pretensões normativas fundamentam-se a partir de uma moral universalista cujo conteúdo há algum tempo foi introduzido, por meio da idéia de dignidade da pessoa humana, nos direitos humanos e nos direitos dos cidadãos das constituições democráticas. Somente esse vínculo interno entre dignidade humana e direitos humanos produz aquela fusão explosiva da moral no médium do direito, no interior do qual deve ser efetuada a construção das ordenes políticas justas. Essa carga Moral do direito é o resultado das revoluções constitucionais do século XVIII. Quem neutraliza essa tensão abandona também uma compreensão dinâmica que sensibiliza os cidadãos de nossas próprias sociedades parcialmente liberais para uma exploração sempre mais intensiva dos direitos fundamentais existentes e para o perigo cada vez mais agudo de erosão dos direitos de liberdade. (HABERMAS, 2012, p. 37).
Se ele ainda tem em mente a validade da sua teoria do agir comunicativo construída na década de 80, Habermas agora retorna a Kant na GMS e coloca um núcleo moral material intangível na elaboração intersubjetiva dos direitos humanos que é a dignidade da pessoa humana. Este conteúdo não pode ser, assim parece no seu atual pensamento, erodido sequer por um consenso sobreposto e racionalmente construído dialogicamente salvo se a construção de uma sociedade, global ou doméstica, não queira ser considerada justa. Habermas retorna mais uma vez a Kant para reconstruir a sua teoria, de onde ele parece também ter saído, para consolidar a intersubjetividade dialógica conectando o formalismo social kantiano ao seu materialismo comunicativo.
Se partimos da interpretação de Allen W. Wood (2005, p. 167) que a FH dos imperativo(s) categórico(s) é a escolhida por Kant para aplicar o principio moral em A metafísica dos Costumes assim como não é a FA nem a FLU que é usada na sua tentativa de estabelecer o princípio da moralidade na terceira seção da Fundamentação, bem como na Critica da Razão Pratica, parece que a humanidade como um fim em si mesma esvazia um pouco a crítica, assim pensamos com Allen Wood, que os críticos dão vazio do imperativo categórico e a acusação do formalismo aos imperativos morais.
Portando, uma consolidação possível entre a intersubetividade formal kantiana com a intersubjetividade discursiva habermasiana pode-se dar no terreno da dignidade da pessoa humana como uma ponte entre este dois paradigmas, afinal é um topoi fundamental nos dois referencias para desenvolver tanto a filosofia moral metafísica de um como a sua reformulação discursiva de outro consolidando, assim, a intersujetividade dialógica.
5 CONCLUSÃO
Vimos que Kant desenvolveu uma teoria moral onde tenta se afastar de argumentos empíricos para determinar regras morais. Com isso ele entra num inevitável formalismo pois através deste procedimento em priorizar a distancia dos contextos para desenvolver metafisicamente imperativos morais ecai no terreno formal para desenvolver a sua ética. Mas dizer que nao há intersubjetividade na sua teoria é um exagero discursivo, ainda há, de acordo com a leitura que aqui propomos, uma interatividade subjetiva ainda que em estado formal.
Habermas aposta na intersubjetividade comunicativa para se afastar do formalismo e reformular o imperativo categórico kantiano mas, como pensamos, não inaugura plenamente a intersubjetividade na teoria moral kantiana pois coloca uma ênfase através do discurso com foco no entendimento e trazendo, assim, o empirismo para desenvolver juízos morais.
Assim, a intersubjetividade se consolida com dimensão formal kantiana e a intersubjetividade discursiva habermsiana e o medium interativo desta ponte está no destaque à dignidade da pessoa humana que tanto Kant e Habermas valorizam nos seus paradigmas pois seja em sentido formal ou em sentido material ela está presente fortemente nos dois modelos que são indispensáveis para o desenvolvimento de dilemas morais.
REFERÊNCIAS
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[1] AMARAL, Fernando; PIZZI, Jovino. A consolidação da intersubjetividade formal Kantiana na dialogicidade Habermasiana. In: COLÓQUIO HABERMAS, 13.; COLÓQUIO DE FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO, 4., 2017, Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Salute, 2017. Disponível em: https://coloquiohabermas.files.wordpress.com/2017/12/coloquio-2017-completo.pdf. Acesso em 23 abr. 2023.. Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).
[2] Doutor em Filosofia na Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e professor efetivo no Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande .(FURG). É graduado em direito (FURG) e mestre em Direito e Justiça Social (FURG). Tem experiência na área de Direito com ênfase em justiça social, ética e filosofia política e temas afins. Pesquisador do CNPQ. Advogado e músico.
[3]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).
[4] Adotaremos as siglas alemãs usuais na tradição filosófica das obras de Kant: Crítica da Razão Pura (KrV), Fundamentação da Metafísica dos Costumes (GMS, os números romanos são as seções da obra), Critica da Razão Pura (KrV) e Critica do Juízo (KU). Na GMS usarei a numeração da acadêmica extraída da tradução de G. A. de Almeida (referencia completa na bibliografia).
[5]Sobre a tradição das expressões moral e ética e seu desenvolvimento, conforme Honneth “Na tradição que remonta a Kant, como foi dito, entende-se por "moral" a atitude universalista em que nós podemos respeitar todos os sujeitos de maneira igual como "fins em si mesmos" ou como pessoas autônomas; o termo "eticidade" se refere, em contrapartida, ao ethos de um mundo da vida particular que se tornou hábito, do qual só se podem fazer juízos normativos na medida em que ele é capaz de se aproximar das exigências daqueles princípios morais universais. A essa desvalorização da eticidade contrapõe-se hoje sua revalorização naquelas correntes da filosofia moral que procuram novamente revocar Hegel ou a ética antiga. (HONNETH, 2009, p. 270, minhas ênfases).
[6] Quanto à relação entre autonomia e dignidade em Kant na GMS “A legislação, porém, que determina todo o valor, tem de ter ela própria, exatamente por isso, uma dignidade, isto é, um valor incondicional, incomparável, para o qual só uma palavra respeito constituía expressão adequada da avaliação a que um ser racional tem de proceder acerca dela. A autonomia, portanto, é o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda natureza racional. (II, Ak 436, ênfase de Kant)”.
[7] Em Kant na KrV “Prático é tudo aquilo que é possível pela liberdade”. O empirismo condiciona a nossa liberdade da vontade e a razão “...só pode ter, nesse caso, um uso regulador e apenas pode servir para efetuar a unidade de leis empíricas”. (KrV B 828, Os pensadores, p. 475-476).
[8] Em Kant, bom (ou boa) está na lei objetiva, o que agrada fazer é uma determinação subjetiva: “Praticamente bom é porém aquilo que determina a vontade por meio de representações da razão, por conseguinte não por causas subjetivas, mas objetivamente, quer dizer por princípios que são válidos para todo o ser racional como tal. Distingue-se do agradável, pois que este só influi na vontade por meio da sensação em virtude de causas puramente subjetivas que valem apenas para a sensibilidade deste ou daquele, e não como princípio da razão que é válido para todos.” (GMS II, Ak 413, ênfase de Kant).
[9] Kant dá o exemplo da caridade: “Ser caritativo quando se pode sê-lo é um dever, e há além disso muitas almas de disposição tão compassiva que, mesmo sem nenhum outro motivo de vaidade ou interesse, acham íntimo prazer em espalhar alegria à sua volta e se podem alegrar com o contentamento dos outros, enquanto este é obra sua. Eu afirmo porém que neste caso uma tal ação, por conforme ao dever, por amável que ela seja, não tem contudo nenhum verdadeiro valor moral, mas vai emparelhar com outras inclinações, por exemplo o amor das honras que, quando por feliz acaso topa aquilo que efectivamente é de interesse geral e conforme ao dever, é consequentemente honroso e merece louvor e estímulo, mas não estima; pois à sua máxima falta o conteúdo moral que manda que tais acções se pratiquem, não por inclinação, mas por dever” (GMS I, Ak 398, minha ênfase). Para Kant quando interesse está no objeto da ação ele é patológico quando na ação em si ele é pratico (GMS II, nota Ak 413). Höffe (2005, p. 193-194) destaca que há três possibilidades de se cumprir o dever moral na GMS (Ak 397 ss). Primeiro por interesse próprio, por conformidade ao dever (legalidade), por dever (moralidade; onde o dever é querido pelo agente e onde está o moralmente bom).
[10] Kant nao tem textualmente “primeira proposição”, mas como tem “segunda” e “terceira”, a presume e impõe a sua busca. A primeira é uma determinante subjetiva de respeito a lei, a segunda o principio subjetivo determinante e a terceira a conseqüência das duas (ver WOOD e SHÖNECKER, 2014, p. 59ss).
[11] Kant explica através de uma nota o que é este respeito. Ele destaca “embora o respeito seja um sentimento, não é um sentimento recebido por influência; é, pelo contrário, um sentimento que se produz por si mesmo através dum conceito da razão e assim é especificamente distinto de todos os sentimentos do primeiro género que se podem reportar à inclinação ou ao medo...A determinação imediata da vontade pela lei e a consciência desta determinação é que se chama respeito...” (ênfase de Kant). Ou seja o respeito aqui está dentro da autonomia do ser racional, na vontade de cumprir a lei em si mesma, por interesse moral e nao por temor. Todo o chamado interesse moral consiste simplesmente no respeito pela lei.
[12] Kant antes de formular o imperativo categórico (IC) desenvolve os imperativos hipotéticos (IH). Destaca que "...todos os imperativos mandam [portanto, são deveres] ou hipotética ou categoricamente. Os hipotéticos representam a necessidade prática de uma ação possível como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer (ou que é possível que se queira). O imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade. (...) No caso de a ação ser apenas boa como meio para qualquer outra coisa, o imperativo é hipotético; se a ação é representada como boa em si, por conseguinte como necessária numa vontade em si conforme à razão como princípio dessa vontade, então o imperativo é categórico.” (GMS II, Ak 414, ênfase de Kant, nossa inserção entre colchetes). Kant no agir não-moral também dá o status de dever, ele associa o IH problemático a busca da felicidade – ou concepção de vida boa - e esta é personalíssima (empírica), por isso é necessário (imperativo) de prudência na escolha das hipóteses possíveis para realizá-la; IH assertório, outra modalidade, deve seguir as regras de habilidade poruqe o fim almejado é a priori.
[13] Kant diz que é uma, explicita três mas há cinco formulas do Imperativo Categórico na GMS (ver WOOD e SHÖNECKER, 2014, p. 115 ss).
[14] Como consta na nota ak 420 máxima é o principio subjetivo e aqui Kant vai enumerar as características comuns das formulas do Imperativo Categórico, o que gera um problema de coerência discursiva interna. O original do texto em alemão está “maximen” portanto não é um erro de tradução. Mas certamente aqui ele quis se referir ao imperativo moral ou equivalente.
[15] Por esta palavra reino Kant entende a ligação sistemática de vários seres racionais por meio de leis comuns. Como as leis determinam os fins segundo a sua validade universal, se se fizer abstração das diferenças pessoais entre os seres racionais e de todo o conteúdo dos seus fins particulares, poder-se-á conceber um todo do conjunto dos fins (tanto dos seres racionais como fins em si, como também dos fins próprios que cada qual pode propor a si mesmo) em ligação sistemática, quer dizer, um reino dos fins que seja possível segundo os princípios acima expostos. (GMS II Ak 433).
[16] Se é preciso deduzir o Imperativo Categórico de forma sintética da vontade livre o mesmo não ocorre com a liberdade e as leis morais pois de acordo com a tese da analiticidade (SCHONOCKER e WOOD, 2014, p. 160) “...assim, pois, vontade livre e vontade submetida a leis morais são uma e a mesma coisa...Se, pois, se pressupõe liberdade da vontade, segue-se daqui a moralidade com o seu princípio, por simples análise do seu conceito.” (GMS III, Ak 447). Justamente neste sentido é que na dedução o dever categórico “...representa uma proposição sintética a priori, por sobreviver à minha vontade afetada por apetites sensíveis ainda a idéia de precisamente a mesma vontade, mas pertencemente ao mundo intelegivel, pura, por si mesmo pratica (GMS III, 454) Aqui Schonecker e Wood (2014, p. 162) dizem que está a dedução do imperativo categórico.. Da analise do conceito de uma vontade livre se extrai leis morais (analiticidade), mas não se extrai delas o imperativo categórico porque outras intenções podem influenciar o agir prático.
[17]O conceito de sistema e mundo da vida de Habermas está no mesmo plano de oposição de sistema e ambiente de Luhman. O mundo vivido de Habermas tem, no entanto, uma dimensão fenomenológica primordial que o torna uma verdadeira "matéria" do mundo social, embora a racionalização do mundo vivido seja considerado inelutável e constitua a própria dinâmica da modernidade. (RAULET, 2009, p. 271).
[18] As referencias a TAC I correspodem a Teoria do Agir Comunicativo volume I, e TAC II ao volume II.
[19] Para Alexy atos locucionários descrevem, atos ilocucionarios regulam e perlocucionarios causam efeito e a originalidade de Austin está no ato ilocicionario pois neles estão o “ato de fala” (faz dizendo algo) propriamente dito (ALEXY, 2013, p. 63-65).
[20] Harald Kohl, em trabalho onde discuti a derivação da lei moral na GMS em Kant, defende como plausível a idéia de imperativos hipotéticos morais ao lado imperativos categóricos (KÖHL, 2006, p. 116). Com base nisso, é possível tratar o consenso habermasiano como um imperativo hipotético e com valor moral.
[21] GMS II, Ak 428.