O OBSERVATÓRIO GLOBAL DE PATOLOGIAS SOCIAIS

teoria e prática para a análise de nosso tempo[1]

 

Maximiliano Sérgio Cenci[2]

Universidade Federal de Pelotas

cencims@ufpel.edu.br

 

Jovino Pizzi[3]

Universidade Federal de Pelotas

jovino.piz@gmail.com

 

1 OS PRIMEIROS RESULTADOS

 

A integração do Observatório consolidou a transversalidade, mas manteve o foco na teoria crítica da sociedade. A “crítica radical”, como salienta Marcuse em suas conversas com outros autores (2018), um tema dos mais relevantes para seguidores da Escola de Frankfurt. Por transversalidade entende-se essa cooperação entre distintos grupos de pesquisa, com estudantes de diferentes áreas.

Assim, o Observatório Global de Patologias Sociais representa, sem dúvidas, uma inovação, ao tempo que congrega pesquisadores de áreas diversas (dentro e fora da Universidade Federal de Pelotas, quer seja em nível nacional e internacional). O desafio, então, volta-se para o diagnóstico social através da contribuição de grupos de pesquisa de diferentes áreas – principalmente das áreas sociais e da saúde. Não se trata simplesmente de um diagnóstico das patologias, mas também na elaboração e implementação de políticas voltadas à qualidade de vida da população.

Nesse horizonte, a visualização ou a proposta de detectar as denominadas patologias sociais e, então, investigar ações em vistas a implementar as políticas públicas e sociais voltadas ao conviver saudável. O quadro a seguir visualiza o mapa do Observatório dentro do grande projeto institucional CAPES/Print da UFPel.

Quadro 1 - Demonstrativo da inserção do projeto.


Nesse período (2018-2021), das missões de trabalho e colaborações surgiu a proposta de construir uma obra inédita sobre Patologias Sociais. A ideia foi publicar um Glossário contendo verbetes diversos relacionados às Patologias Sociais. O resultado das interlocuções, seja no âmbito individual ou em colaboração com outros pesquisadores, resultou no e-book Glosário de Patologías Sociales. Ele reúne textos de 23 autores, de 13 instituições diferentes e oito países (Argentina, Alemanha, Bélgica, Uruguai, Chile, Estados Unidos, Brasil e Espanha). O lançamento do e-book

ocorreu em junho de 2021 e seu acesso pode ser conseguido através do link: http://guaiaca.ufpel.edu.br:8080/handle/prefix/7723.

Além disso, também foi de enorme repercussão a participação de diversos autores dos textos do Glossário durante o Seminário II de Patologias Sociais (abril a junho de 2021), pois, além de pesquisadores do Brasil, participaram autores de diferentes textos do Glosario. Diante da situação de pandemia, os eventos ocorreram através de uma sala Webconf da própria UFPel, cujas gravações estão à disposição a quem desejar aproximar-se com os autores. O link é: https://webconf.ufpel.edu.br/b/jov-qp3-2jz.

Nesse sentido, pode-se afirmar que o Glossário é um produto construído a várias mãos, que reúne a diversidade de pesquisadores deste percurso atrelado a redes de pesquisa, em nível nacional e internacional.

 

 

2 AS PATOLOGIAS SOCIAIS: ESTUDO ATRAVÉS DE DUAS VIAS

 

O ponto de partida procurou listar palavras chaves de um projeto transversal. No caso, foi importante consolidar e ampliar a rede de consórcios de pesquisa em nível internacional para estudos clínicos, síntese de conhecimentos e formação com investigadores de distintos países, principalmente com centros de excelência.

O objetivo principal do observatório é discutir as patologias sociais, suas origens e os desdobramentos para as ciências sociais e da saúde e, ainda, para a filosofia. A exposição dos impactos poderia ser o ponto de partida para definir políticas sociais, seja em relação à prevenção como também em propor alternativa para superar os déficits ocasionados pelas patologias sociais. As atividades de pesquisa do Observatório seguem duas linhas: a) a categorização de patologia social, centrando-se em aspectos filosóficos, sociológicos, epidemiológicos, entre outras vertentes; b) na elaboração de um questionário para averiguação empírica, isto é, a respeito da percepção social concernente ao que possa conceber-se ou na forma como as pessoas compreendem e definem patologia social.

Do ponto de vista da fundamentação teórica, há diversas questões chaves. Como já foi salientado, um dos aspectos concerne à própria terminologia. O termo patologias sociais aparece como uma das distintas expressões voltadas à análise do mal-estar social, sinônimo de anomia, anomalias ou, simplesmente, patologia social. As expressões “patologia” e antídoto são típicas da área da medicina. No entanto, muitos pensadores e críticos sociais, de diferentes áreas do conhecimento, as utilizam como sintagma para o diagnóstico e os processos terapêuticos a respeito dos transtornos que geram sentimentos de mal-estar e sofrimento social, os quais afetam a vida na sua noção de normalidade.

Nos anos 60 do século passado, por exemplo, o termo patologia aparece na literatura acadêmica. Inicialmente, são antropólogos, sociólogos e juristas que procuram explicar os fenômenos socialmente perversos e, então, qualificá-los como patologias. Felippe A. de Miranda Rosa pública, em 1966, uma obra com o título: Patologia Social. Uma introdução ao estudo da desorganização Social. Do ponto de vista jurídico, o autor assume os traços jurídico-sociológico para o diagnóstico de seu tempo, de forma a distinguir as mudanças sociais saudáveis e os aspectos que podem ser “mortais” para a sociedade. Para ele, há “tipos” patológicos normais ou anormais, com o que é possível identificar condutas classificadas como sociais ou anti-sociais.

Há, segundo Miranda Rosa, “predisposições psíquicas, muitas vezes completa ou parcialmente responsáveis pelo desvio do comportamento” (1966, p. 60). Essas predisposições interferem na vida social. Em outras palavras, existe, segundo o autor, uma relação entre a desorganização pessoal e social, pois uma personalidade des integrada provoca desastres sociais. Porém, não se trata de uma via  unidimensional, porque a sociedade também exerce uma “relativa” influência sobre as pessoas, “plasmando-lhe a personalidade”. Trata-se, portanto, de um “círculo vicioso”. No entanto, a análise de Miranda Rosa tem como elemento chave o “ajustamento” entre os fins pessoais e os individuais. Na verdade, trata-se de padrões, modelos e papéis a serem observados, a sociedade define modelos “normais” e “anormais” no horizonte dos processos e mecanismos de “perpetuação da cultura geral” (Miranda Rosa, 1966, p. 66). Deste modo, haveria um modelo “convencional” que pretende estabelecer “a conduta individual que se conforma aos padrões aceitos”. O fato de afastar-se dessa normalidade convencional pode, então, denotar uma patologia, pois influencia no funcionamento da sociedade. A tais comportamentos são atribuídos “juízos de valor” ligados a “um conteúdo de coisas indesejáveis ou inconvenientes” (Miranda Rosa, 1966, p. 221).

No mesmo ano, Mary Douglas publica o livro Purity and Danger (1966). Sua análise antropológica se centra nos conceitos de contaminação e limpeza. A autora identifica a contaminação como parte da estrutura do sistema social de uma cultura específica. Para Douglas, a noção de sociedade é “uma imagem poderosa”, porque apresenta “formas, fronteiras externas, margens e estrutura interna. Seus perfis contêm o poder de recompensar a conformidade e de rechaçar os ataques” (1991, p. 132). Deste modo, Douglas explica os efeitos de vinculação reinantes nas comunidades culturais, um processo de purificação diante das desgraças ou da contaminação, ou seja dos aspectos saudáveis ou, então, patológicos que podem contaminar – ou preservar “limpo” – um determinado estilo de vida. No fundo, as contaminações afetam a vida e a integridade do grupo e, portanto, representam um enorme risco a sua unidade social.

O terceiro autor é Erich Fromm, quem salientou também a noção de patologia.[4] Nesse sentido, cabe destacar o livro The Heart of Man: its Genius for Good and Evil, publicado em 1964. Sua tese supõe mudanças de actitudes, de modo que os sujeitos têm a possibilidade de escolha entre a alternativa voltada ao bem ou, então, ao mal. A orientação em favor da vida recebe o nome de biofilia, mas a propensão à morte reflete uma inclinação necrófila. A necrofilia aparece nas diversas formas de hostilidade, pois se trata de “tendências orientadas contra à vida”, pré-disposições que “podem ser denominadas como a essência do verdadeiro mal”.

No mesmo sentido, Marcuse, nos anos 60, frisou as “coerções” de um sistema social que tem como base “a ativação e a superativação da energia agressiva e destrutiva do que possa ser uma sociedade melhor” (2018, p. 49). As coerções refletem uma espécie de coerentismo nefasto e maléfico, porquanto a coerência se traduz na falta de sinceridade, de responsabilidade, de tato e empatia, ou seja, uma aproximação entre os que se alimentam de uma ética do mal (Bonete Peraltes, 2017) e ao desejo de matar (Fromm, 1994). Segundo Marcuse (2018, p, 73), esse “instinto de destruição” revela, pois, um sentimento agressivo e, portanto, negativo de modo que os sujeitos não se importam com os demais, com a natureza e, inclusive, consigo mesmos.

Habermas, é outro autor contemporâneo que também se ocupa do tema, mas em vistas à teoria do agir comunicativo, cujas expectativas de reciprocidade remetem a um entendimento sem distorções. As perturbações na comunicação indicam sintomas que afetam o “nível mais profundo”, pois mesmo que um sujeito apresente deficiências ou enfermidades, ele não perde seu carácter de sujeito coautor (participante). Enquanto sujeitos ativos, mas como “seres finitos”, as expectativas intersubjetivas, assim como a existência corporal, situada historicamente, encarnada corporalmente e socializada comunicativamente não podem atrelar-se ao fundamentalismo nonsense.

Embora as incertezas e a vulnerabilidade humana, as “certezas” e as enunciações relativas ao mundo vital podem servir de ponto de partida para, no nível da comunidade ideal, serem reconstruídas e, então, transformarem-se em pretensões de validez válidas para todos. O nível cotidiano é, portanto, “inclusivo”, pois não está vinculado apenas aos aspectos familiares das certezas e enunciações. Ele engloba também “os elementos do entorno natural com os quais nos topamos frontalmente” (Habermas, 2015, p. 29).

As orientações do agir supõem, por isso mesmo, uma interpretação desse pano de fundo, sempre exposto ao aspecto “provatório” pela comunidade de sujeitos, em vistas à revisões. Assim, o conceito formal de mundo da vida assegura a possibilidade reconstrutiva. Sem dúvidas, há um otimismo em Habermas, pois, segundo ele, as estruturas da comunicação linguística e do pano de fundo acessíveis reflexivamente possibilitam reconstruir “desde dentro” as pretensões de validade.

No entanto, o fato de distorcer a comunicação e de espalhar ou ocasionar mal- estar social já indica um sintoma patológico, porque produz efeitos nocivos à convivência, isto é, um transtorno não apenas ao sujeito como tal, mas, e principalmente, ao âmbito social. Ou seja, as experiências de manipulação (seja na natureza ou dos demais sujeitos) podem revelar-se como um “veneno ou alimento” e, então – no primeiro caso –, transformar o “entorno” em horizontes ou contextos “inóspitos” (Habermas, 2015, p. 46). Esse carácter de perversidade, de malignidade e que promove o dano social está relacionado a um fenómeno patológico. No momento em que a abrangência afeta e ocasiona perturbações à socialização e nas interações ligadas ao conviver social entre sujeitos coautores, essa distorção pode ser considerada, então, como um interesse nefasto ligado às patologias sociais.

Desde a perspectiva habermasiana, o foco da pesquisa está nas situações sociais de dor e sofrimento, salientando não apenas as idiossincrasias como tal, mas em verificar a sua dinâmica e os efeitos geradores de patologias sociais, com profundos padecimentos na vida das pessoas e, pior ainda, afetando a convivência social. Nesse sentido, a colonização do mundo da vida passa a ser uma referência fundamental para qualquer análise, um processo de compreensão que exige entender a profundidade dos das tramas  vivenciais, tanto no nível proximal  dos vínculos pessoais, como também nos horizontes sociais e educacionais. Neste sentido, a filosofia permite compreender “as relações vitais tóxicas” (Habermas, 2015, p. 155) vinculadas aos mal-estares de uma convivência social sem poder fruir da cooperação e da cordialidade intersubjetiva.

Em Habermas, a noção de Lebenswelt salienta “a tríade” de mundos em conexão com a pretensões de validez, porque os sujeitos, ao utilizar “componentes proposicionais”, fazem referência a algo “presente no mundo” (2015, p. 28). No entanto, “nós mesmos, filósofos do presente […] caímos em una dolorosa contradição existencial” (Husserl, 1990, p. 17). Em outras palavras, muito antes de Habermas, Husserl já insistia “na possibilidade da filosofia como tarefa”, mas denunciando que os filósofos simplesmente renunciaram a essa tarefa fundamental de estar presente no mundo, transformando-se em profissionais sem arraigo com o âmbito social das pessoas. Deste modo, não poucas vezes, os filósofos simplesmente processam “conhecimentos especializados das disciplinas científicas academicamente institucionalizadas” (Habermas, 2015, p. 147). Na verdade, suas pressuposições se apoiam em dados científicos com base em uma “série de testes, com complexos cálculos, em argumentos de probabilidades, enfim, em análise científica de resultados de medições efetuadas em laboratórios, os quais estão afastados da prática cotidiana” (Habermas, 2015, p. 52).

Por fim, e para completar esse quadro de autores, Honneth é, por certo, um autor significativo, pois consolidou a noção de patologia social, indicando o papel da filosofia social. Honneth foi quem disseminou a noção de patologia social vinculada à análise clínica da sociedade. Para ele, os termos diagnósticos e patologia são típicos da medicina, mas eles podem também estar vinculados a comportamentos sociais que impedem uma convivência mais saudável.

Nesse sentido, os estados psíquicos e físicos têm relação com os valores de normalidade em um horizonte social, quando os indivíduos percebem os transtornos de sentido como anormais. Na linha da teoria crítica da sociedade, as pessoas são consideradas como objetos de um sistema que instrumentaliza as relações. Nessa perspectiva, o déficit condiz à anomalia social que vulnera os valores, principalmente a justiça, deformando as possibilidade de um viver pretendido como “normal” ou “saudável”. O patológico remete a transtornos para um viver mais confortável.

Em suas obras, Honneth recupera a noção de filosofia social, passando por Rousseau, Nietzsche, Marx, Hegel, Lukács, Adorno y Horkheimer, Habermas – entre outros pensadores –, com o fim de desenhar a possibilidade de um “diagnóstico filosófico-social” das orientações do agir que ameaçam a autorrealização do indivíduo e – digo eu – à convivência social. Neste sentido, Honneth acredita em um processo filosófico-histórico das patologias, pois se trata do “desenvolvimento errôneo de todo o processo da civilização” (2011, p. 107). Em outras palavras, de “desenvolvimentos deficientes historicamente situados” (Honneth, 2011, p. 109).

Honneth insiste que, sem uma aproximação com a área da saúde, é impossível falar de patologias sociais; portanto, uma perspectiva com características de transversalidade. As ciências da saúde supõem uma “ideia de normalidade”, de modo que o diagnóstico social considera a norma ou a regra para o “habitual”. Deste modo, a aproximação com a medicina permite “falar de uma patologia social”. Em outras palavras, quando existem determinadas suposições sobre como deveriam que ser constituídas as condições da autorrealização humana, o entrave pode significar uma situação adversa e, por isso, passível de uma consideração patológica. Por isso, com a palavra diagnóstico, Honneth entende como “a captação precisa e a identificação de uma enfermidade, de modo que o organismo humano possa ser afetado (Honneth, 2011, p. 114).” Neste sentido, a capacidade de funcionamento do corpo indica ou serve de critério para a certificação das manifestações anormais, uma alternativa clínica relacionada aos contextos sociais, ou seja, à convivência saudável.

A possibilidade de identificar e valorar as relações sociais “exitosas, ideais ou saudáveis” “permite ao indivíduo uma realização não deformada de si mesmo” (Honneth, 2011, p. 118). Por isso, a noção de patologia social está associada às “condições sociais que devem contribuir ao indivíduo sua autorrealização” (Honneth, 2011, p. 118). Em decorrência – ou concomitantemente – à realização das condições normais de uma convivência saudável. Deste modo, o papel das ciências ou, como afirma Honneth, a análise filosófica social das patologias sociais tem a função de qualificar determinados desenvolvimentos da vida social que perturbam e geram danos à convivência com os demais. Neste sentido, os termos diagnóstico e patologia são complementares um ao outro. Não se trata apenas de casos vinculados às ciências da saúde (ou enfermidades individuais), mas de estados ou situações anormais com características patológicas relacionados à autorrealizaçaõ do sujeito e da convivência social, que favoreça a hetero-realização. Daí que uma patologia social “apresenta exatamente aquele desenvolvimento orgânico deficiente que deve ser aclarado ou determinado mediante o diagnóstico” (Honneth, 2011, p. 114).

A proposta se volta, então, a desenvolver, de maneira sistemática, o projeto proposto, uma via investigativa original e inédita dentro da área da saúde e educação quando trata de questionar o que sejam as patologias sociais, seu diagnóstico e prognósticos, o que significa, em outras palavras, poder delinear políticas sociais (ou públicas) capazes de garantir, na prática, esse ideal de uma convivência saudável.

 

3 AS PATOLOGIAS: UM PONTO DE PARTIDA PARA PROGNÓSTICOS

 

Um dos objetivos do Observatório Global de Patologias Sociais salienta a criação de consórcios de pesquisa em rede para diagnóstico, síntese de conhecimentos e formação de observatórios globais com pesquisadores de distintos países. De este modo, está sendo possível discutir as patologias sociais, suas origens e os desdobramentos para ciências sociais e da saúde, para a filosofia e a educação. A exposição dos impactos poderia ser o ponto de partida para definir políticas sociais, uma tentativa para minimizar os efeitos nefastos das patologias e, ao mesmo tempo, consolidar políticas preocupadas com o bem-estar social, isto é, para a autorrealização dos sujeitos e, ao mesmo tempo, na perspectiva de uma hetero- realização.

Não há dúvidas que o atual modelo de intervenção em doenças e patologias, focado apenas no modelo curativo, está esgotado, uma vez que trata apenas a manifestação clínica das doenças e não suas causas, muitas vezes de origem social profunda. No que tange ao tratamento de doenças crônicas não comunicáveis, a nova fronteira do conhecimento científico se insere precisamente no contexto do estudo das Patologias Sociais e suas implicações. Neste contexto, a intervenção passa a estar focada na convivência social, e não simplesmente no indivíduo. Por isso, no escopo desse projeto, estão previstas ações que vão desde o diagnóstico das patologias sociais até a proposição de intervenções para testar hipóteses através de investigação clínica e epidemiológica.

O envolvimento de pesquisadores das humanas e da saúde preserva duas linhas mestras: o âmbito empírico, através de um questionário voltado a detectar os elementos que geram sofrimento e dor, cujos dados podem auferir graus de patologias sociais que interferem na vida social. No caso, espera-se que o pós-pandemia garanta as possibilidades reais para reunir os dados acerca da percepção que as pessoas têm a respeito do sofrimento ou patologia social e, ao mesmo tempo, de como isso se revela como uma espécie de patologia que interfere na convivência social.

Ao mesmo tempo – e essa é a outra parte da pesquisa do Observatório – a repercussão do glossário já é tema para propor uma segunda edição, de modo a reunir as contribuições de novos pesquisadores e, assim, ampliar o mapa das distintas patologias sociais. Tal contribuição revelaria a variedade de perspectivas e, embora multiforme, poderá servir como marco para análise crítico do âmbito social, uma contribuição para o debate social com distintas e diferenciadas interpretações.

Nesse sentido, a relevância do estudo já pode ser percebida desde sua inserção no escopo do objetivo de integração institucional, ou seja, a transdisciplinaridade entre diferentes áreas de conhecimento, assim como os desdobramentos em atividades de ensino, pesquisa e extensão universitária. Dada a dimensão do estudo, o caráter de internacionalização está sendo um dos pontos chaves, de forma que o fomento e o compartilhamento de dados, experiências e aprendizagens são inerentes à execução.

Além do mais, destaca-se a originalidade do Observatório Global de Patologias Sociais como o único centro de estudos com foco nessa área de conhecimento no Brasil e quiçá no mundo. O impacto mais importante do projeto remete a sua contribuição ao Observatório na busca de identificar déficits e disparidades sociais que geram patologias, ou seja, enfermidades que afetam a consolidação da justiça e da solidariedade social. Com esse foco, o a criação de consórcios de pesquisa em rede permite, então, a geração de evidências com estudos clínicos, síntese do conhecimento e formação de recursos humanos qualificados nas diferentes áreas envolvidas.

Em relação à UFPel, os impactos internos concerne às reuniões multidisciplinares periódicas, para discussões sobre patologias sociais, suas origens e desdobramentos para ciências sociais e ciências da saúde com o intuito de discutir os impactos e definir políticas sociais que principalmente previnam, mas que também superem os déficits causados pelas patologias sociais. Por certo, o próprio ato de fazer e comunicar ciência, evolvendo desde os aspectos éticos mais elementares até aspectos metodológicos e de organização conceitual, certamente confirmam o efeito transversal de todo o Projeto de Internacionalização da UFPel, nos diferentes grupos de pesquisa e Programas de Pós-Graduação, e por fim, espera-se impactar de forma transversal as áreas do conhecimento envolvidas. Dessa forma, a pesquisa é um suporte teórico e prático para sua efetiva marca e presença com excelência no cenário nacional e internacional.

Sem dúvidas, a consolidação teórico-prática de uma metodologia realça a sólida presença de investigadores de múltiplas áreas através do fortalecimento da rede que vendo instituída via observatório de patologias sociais. Desde modo, a necessidade de apontar também alternativas concretas, isto é, de políticas públicas e sociais que coadunem o aspecto de análise com as exigências éticas, de modo a visualizar e determinar as “más práticas” sociais e, então, conformar orientações voltadas às “boas práticas”. Deste modo, a Universidade também poderá consolidar seus espaços para a formação e qualificação de profissionais preocupados com as áreas sociais.

Diante disso, o projeto, vinculado ao Observatório, revela-se como um veículo importante, com repercussões Globais, principalmente ao contexto latino-americano e na região de abrangência da Universidade Federal de Pelotas. Por isso, outras iniciativas em andamento e lideradas por pesquisadores da UFPel serão usadas como arcabouço para as discussões estabelecidas e também servirão como referência para a implementação das ações propostas.

Nesse sentido, os processos de análise devem evidenciar a relevância do estudo teórico analítico, o mesmo dar-se-á de maneira transdisciplinar compondo-se das áreas da saúde e educação, a partir dos autores que subsidiam os referenciais destas áreas. Em outras palavras, os referenciais teóricos tecem a complexa definição do verbete patologias sociais juntamente com os textos metodológicos utilizados na construção e acompanhamento dos indicadores dos objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU serão as fontes de análise para os resultados obtidos.

Por isso, os estudos e, especificamente, o desenvolvimento da pesquisa, e em relação ao escopo teórico, o foco está na teoria crítica, de modo a aprofundar a noção de diagnóstico social desde a perspectiva as ciências sociais e, ao mesmo tempo, da área da saúde. Daí o conceito clínico de patologias sociais, não apenas relativo ao diagnóstico da situação ou do sofrimento social. A referência ao mundo da vida (Lebenswelt), ou seja, à realidade vivencial das pessoas, presume que o Lebenswelt seja entendido como a “caixa de ressonância” não apenas enquanto circunstancialidades cotidianas, mas verificar também a potencialidade prática das teorias filosófico-educativas e de seus efeitos na vida social. Nesse sentido, a ressonância reflete também as idiossincrasias e as conflituosidades das relações sociais. Não poucas vezes, a academia se sustenta em argumentos desenhados teoricamente, o que significa um pressuposto bastante significativo. Todavia, a carga tóxica dos vínculos humanos requer uma certificação concreta, ou seja, a partir das vozes dos próprios concernidos, os quais podem oferecer dados e, ao mesmo tempo, argumentos tanto para a análise mais consistente, como também para uma profilaxia mais adequada.

A sintonia com a realidade vivencial das pessoas é, sem dúvidas, fonte de inspiração para medir sua força e capacidade para a superação das patologias sociais, pois transforma os sujeitos em participantes das interações sociais; mais especificamente, os transforma em coautores, pois participam na análise e também na dinâmica de enfrentamento das patologias, laborando para a minimização do sofrimento social. Por isso, a suposição de uma carga nefasta indica não implica apenas na análise linguística, poiso diálogo aberto entre os coautores pode significa um compromisso com a interação e no processo terapêutico.

Por isso, diante da plausibilidade de uma orientação pó-metafísica, a nova reorientação do compromisso social dos profissionais de filosofia e da educação podem “compreender sua época através análises” (Habermas, 2015, 149). Deste modo, a “relação epistêmica” das argumentações com o mundo da vida presume a vinculação sistemática com os horizontes familiares, também traduzido por “solo” ou, então, como um lugar ou hábitat situado historicamente e, portanto, encarnado corporalmente e socializado comunicativamente (Habermas, 2015, p. 24).

Nos dias atuais, essa tendência salienta a reorientação na forma de compreender a realidade e, então, poder desenhar as práticas educativas frente aos discursos que semeiam, por exemplo, o ódio e o racismo, entre muitas outras formas de discriminação. A análise das experiências vivenciais nos possibilita evidenciar a toxidade e os perigos de organizações e grupos (nacionais e internacionais), um tipo de articulação entre grupos voltados a disseminar o ódio, o medo, o racismo ou outras formas de discriminação.

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A contribuição real e positiva da Teoria Crítica ganha força em um mundo que está dividido entre duas alternativas opostas. Por um lado, o cientificismo mecanicista de uma espiral da tecnocracia (Habermas, 2016), que instrumentaliza e isola cada vez

os sujeitos, ou seja, uma tendência a transformar os humanos em consumidores de fakenews enganosas e adoecedoras. A quantidade de inverdades ou, então, de inúmeras pós-verdades fragiliza ainda mais os seres humanos e, em decorrência, enturvece ainda mais os vínculos e as relações intersubjetivas, gerando, por isso, um mal-estar social sem precedentes.

Por outro lado, a potencialidade da teoria crítica renovada mantém vivas as reais possibilidades não apenas de crítica radical em torno às circunstancialidades vivenciais e, ao mesmo tempo, em relação à pretensões de validez com caráter universal. Deste modo, a perspectiva de uma “filosofia radical” aparece como revolucionária. A expressão de Marcule é, assim, um exemplo a seguir no sentido de encontrar respostas à pergunta “Que fazer?” em tempos de incertezas, dúvidas e de um monolinguismo sem precedentes.

Por isso, a noção de um nós – também mencionado por Honneth, em sua obra O direito da liberdade – exige uma reconfiguração da comunidade de sujeitos participantes. O eixo de intersecções passaria a ampliar-se e o ponto de equilíbrio exige o reconhecimento de “sujeitos” não humanos, sem, portanto, separar os mundos de vida um do outro. Nesse sentido, a gramática pronominal remete a uma “nova” normalidade, sem repetir o mesmo padrão de monolinguismo, o que poderia simplesmente ser fatal. Os pressupostos de uma “nova” normalidade exigem, portanto, uma consideração a todos os sujeitos participantes, para considera-los como coautores nas tomadas de decisão.

 

REFERÊNCIAS

 

BONETE PERALTES, E. La maldad. Madrid: Cátedra, 2017.

 

DOUGLAS, M. Pureza y peligro. Un análisis de los conceptos de contaminación y tabú. 2. ed., México; Madrid; Bogotá: Siglo Veintiuno, 1991.

 

FROMM, Erich. El corazón del hombre. Rio de Janeiro: Zahar, 1965.

 

FROMM, E. La patología de la normalidad. Paidós: Barcelona, 1994.

 

HABERMAS, Jürgen. En la espiral de la tecnocracia. Madrid: Trotta, 2016.

 

HABERMAS, Jürgen. Mundo de la vida, política y religión. Madrid: Trotta, 2015.

 

HABERMAS, Jürgen et al. Filosofia radical. Conversaciones con Marcuse. Barcelona: Gedisa, 2018.

 

HONNETH, A. La sociedad del desprecio. Madrid: Trotta, 2011.

 

HONNETH, Axel. Patologías de la libertad. Buenos Aires: La Cuarentena, 2016.

 

ROSA, Felippe A. de M. Patología social. Rio de Janeiro: Zahar, 1966.

 

UNITED NATIONS. Transforming our world: the 2030 Agenda for Sustainable .Development. 2015.

 

 



[1] CENCI, Maximiliano Sérgio; PIZZI, Jovino. O observatório global de patologias sociais: teoria e prática para a análise de nosso tempo. In: COLÓQUIO HABERMAS, 17.; COLÓQUIO DE FILOSOFIA DA INFORMAÇÃO, 8., 2021, Rio de Janeiro. Anais [...] Rio de Janeiro: Salute, 2021. Disponível em: https://coloquiohabermas.files.wordpress.com/2021/11/coloquio-habermas-2021.pdf. Acesso em: 25 abr. 2023. Artigo apresentado originalmente no 19º Colóquio Habernas (2023).

[2]Professor Associado da Faculdade de Odontologia, da Universidade Federal de Pelotas, atuando na graduação no Programa de Pós-Graduação em Odontologia. Graduado e Mestre em Odontologia pela Universidade Federal de Pelotas, Doutor em Odontologia (Cariologia) pela Faculdade de Odontologia de Piracicaba - Universidade Estadual de Campinas (2004-2008).

[3]Graduação em Filosofia e em Comunicação Social -Jornalismo; mestre em Filosofia (PUCRGS, 1992) e doutor em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (2015).

[4]Os diferentes textos foram publicados no livro La Patología de la normalidad (Beltz Verlag, 1991; edição em espanhol de 1994).