O ABORTO EM DWORKIN, HABERMAS E RAWLS

uma comparação

 

Delamar José Volpato Dutra[1]

Universidade Federal de Santa Catarina

djvdutra@yahoo.com.br

1 Dworkin: a indeterminação da noção de valor intrínseco

Dworkin parte da distinção entre avaliação moral do aborto e avaliação da intervenção do Estado em tal matéria. Ou seja, trata-se de distinguir:

 

[…] se o aborto por algum motivo é errado da questão se – se de fato é – é correto para o Estado proibi-lo. Minha posição é que quando a única justificação do Estado para proibir o exercício de uma liberdade importante for a proteção de um valor separado [detached] com uma dimensão religiosa, então o Estado não tem o direito de proibir, não interessa o motivo em questão” (DWORKIN, 2000, p. 432)

 

O Estado tem a tarefa fazer com que os cidadãos decidam tais questões responsavelmente e não deve impor a visão da maioria sobre a correção do aborto. A moralidade política pode ser entendida como a aplicação de determinações morais sobre a política, de tal forma que se possam estatuir princípios básicos morais que deveriam ser respeitados pelos atos da política, ou seja, por aqueles atos que emanam coativamente do Estado. De fato, Rawls designa como justiça política, a justiça da constituição (DWORKIN, 1996. p. 23)

Para que os atos da comunidade política sejam também os atos de cada um é preciso que todos sejam autores de tais atos, portanto, que todos sejam membros de tal comunidade. O conceito moral de membro faz o indivíduo tomar parte no autogoverno, pois a democracia é um governo pelo povo, o que induz ao conceito de ser membro co-autor dos atos legislativos: "se eu sou um membro genuíno de uma comunidade política, seus atos são, em algum sentido pertinente, meus atos, mesmo quando argumentei e votei contra" (DWORKIN, 1996. p. 24). Nesse sentido, "majoritarianismo não pode garantir autogoverno a menos que todos os membros da comunidade em questão sejam membros morais" (DWORKIN, 1996. p. 23).

A concepção constitucional de democracia pressupõe condições democráticas. Tais condições têm que ser satisfeitas antes que a premissa majoritária possa pretender uma vantagem moral sobre os demais procedimentos de decisão: "as condições democráticas são as condições de um membro moral numa comunidade política" (DWORKIN, 1996. p. 24). Assim, a liberdade positiva não é sacrificada quando e em razão da premissa majoritária ser ignorada, mas ela é aumentada quando tal premissa é recusada em favor da concepção constitucional de democracia, pois é defender a condição de membro moral, condição mesma da democracia[2].

Dworkin pretende resolver a questão sobre a moralidade do aborto e da eutanásia a partir de uma distinção de fundamentos: derivado, ou separado [derivative or detached]. Ao primeiro fundamento vinculam-se interesses e, devidamente, direitos; ao segundo fundamento vincula-se valor intrínseco. O problema é que as opiniões sobre valor intrínseco são variadas, em razão de estarem coladas com formulações religiosas. Ele defende o valor intrínseco da vida, sendo que a correção ou não do aborto vai depender, portanto, dos seus motivos. Nesse sentido, o aborto só mostrará respeito pela vida humana motivado por uma das seguintes razões: aa] a criança teria uma vida frustrada; bb] o nascimento da criança teria um impacto catastrófico na vida de outras pessoas. Neste caso, seria um balanceamento com o valor intrínseco de outras vidas. Tal operação lhe permite resolver a controvérsia no nível da moralidade política, com base quase exclusiva na estratégia liberal paradigmática de tratamento de questões morais básicas, a tolerância religiosa. "Tolerância é o preço que devemos pagar por nossa aventura na liberdade" (DWORKIN, 1996. p. 112). Permite-lhe, ato contínuo posicionar-se contra o aborto, moderadamente. Ou seja, defender o direito ao aborto e ao mesmo tempo condenar o aborto como um engano ético (DWORKIN, 1996. p. 36).

Para ele, o governo tem responsabilidades que se seguem dos interesses e direitos das pessoas e outras responsabilidades que se seguem da noção de valor intrínseco, por ex., com relação à vida e à arte. O valor intrínseco de algo é separado ou independente, pois não se segue do fato de ter interesses, ou direitos [derivativa]. Em muitos casos, ambos coincidem. Assim, o art. 121 do CP protege a vida, num sentido independente e derivativo. Mas, às vezes não coincide. Na proibição da eutanásia não coincide, pois se pode pensar que morrer é no melhor interesse da pessoa [fundamento derivado], mas mesmo assim ofender o valor intrínseco da vida [fundamento separado] (DWORKIN, 1996. p. 91)

No tratamento da questão, a concepção derivativa pressupõe que o feto já tenha interesses e direitos, portanto, que ele seja uma pessoa constitucional. A concepção independente, separada, não precisa dessa pressuposição, pois o feto já tem valor intrínseco, mesmo não sendo uma pessoa constitucional. O feto não tem interesses e direitos do tipo que o governo tenha uma responsabilidade derivada de proteger, nem valor intrínseco que o governo possa pretender uma responsabilidade independente de guardar. Nesse sentido, o caso julgado pela Suprema Corte, Roe v Wade, é uma decisão correta, pois estabeleceu que o Estado tem uma responsabilidade separada, independente, de proteger o feto, e não derivativa. Ele rebate o argumento de Ely de que o Estado pode proteger tout court interesses de não-pessoas, por ex., cachorros, pois o Estado não pode fazer isso com uma significativa redução do direito de uma pessoa constitucional, como o direito da mulher controlar seu corpo (DWORKIN, 1996. p. 90).

Nem tudo o que pode ser destruído tem um interesse em não ser destruído, por ex., uma estátua. Para ter um interesse tem que ter vida mental, consciência, por ex., poder sentir dor. O feto não pode sentir dor (DWORKIN, 1996. p. 91). Num caso como o do feto, o que significa o interesse do Estado em proteger a vida? Pode significar:

 

a)    responsabilidade: o Estado pode pretender que as pessoas sejam responsáveis ao decidir o aborto, porque tratam de uma questão muito importante, com valor intrínseco;

b)    conformidade: o Estado pode querer decidir o aborto segundo o que a maioria pensa que respeita o valor intrínseco, ou seja, nos casos que a maioria pensa ser ele legítimo (DWORKIN, 1996. p. 95).

 

Como o feto não é uma pessoa constitucionalmente protegida, resta a santidade da vida, a noção de valor intrínseco, que é uma matéria controversa, pois é controverso radicalmente o que requer o valor intrínseco da vida num caso particular, por exemplo, quando o feto for deformado, ou quando ter uma criança implicar em depressão para a vida da mãe (DWORKIN, 1996. p. 95-96).

Evidentemente, o Estado pode defender valores intrínsecos, como a arte. Mas não pode:

 

a)    quando isso implicar em num grande impacto sobre pessoas em particular.

 

1. “Uma mulher que é forçada pela sua comunidade a gerar [to bear] uma criança que ela não quer, é como no passado estar no controle do próprio corpo dela. Toma-se posse do seu corpo para fins que ela não compartilha. Isso é uma escravidão parcial, uma deprivação da liberdade muito mais séria do que qualquer desvantagem que cidadãos possam suportar (bear) para proteger tesouros culturais, ou salvar espécies ameaçadas. A escravidão parcial de uma gravidez forçada, ademais, é somente o começo de um preço pago pela mulher a quem é negado um oborto”.

 

b) quando houver profundo desacordo sobre tal valor, quando a comunidade estiver divida sobre o que tal valor requer, então, o Estado não pode ditar o que requer o valor intrínseco;

c) quando nossas convicções sobre COMO E POR QUE a vida humana tem valor intrínseco for muito mais fundamental para nossa personalidade moral do que as convicções sobre outros valores intrínsecos. Ou seja, quando envolver algo pessoal, ou religioso. Dito de outro modo, a moralidade política vertida na constituição, limita a invasão da liberdade para defender um valor intrínseco que implique no estabelecido nas três condições acima.

 

Para Dworkin, em seu livro Life´s Dominion (DWORKIN, 1994), o centro do debate sobre o aborto é o desacordo sobre a interpretação do valor intrínseco da vida. Nesse sentido, é um debate mais profundo do que a discussão se o feto é, ou não é, uma pessoa. O ponto é que interpretamos de distintos modos a idéia de que a vida humana seja valiosa. Tal desacordo sobre o aborto é profundo e pode ser perpétuo. No entanto, tal assertiva, defende ele, deveria levar à união, pois a comunidade política é possível, mesmo que existam profundas discordâncias religiosas. Em suma, o valor sagrado da vida humana permite interpretações diferentes. De fato, a santidade da vida é uma noção controversa, por exemplo, quando um feto for deformado, como no caso da anencefalia, será o aborto, ou o nascimento, que servirá melhor ao valor intrínseco da vida? Quando o nascimento da criança arruinar os planos de vida da mãe pode-se levantar a mesma questão.

Dado esse caráter controverso, o Estado não pode pretender impor a vontade da maioria, pois tal coação se exerceria de forma muito contundente sobre um grupo, as mulheres, além disso, tais convicções de como e por que a vida humana tem valor intrínseco são fundamentais de uma maneira radical para nossa vida, sendo diferente de se preservar obras de arte, ou espécies animais. É justamente por se tratar de aspectos fundamentais da existência que o valor intrínseco da vida humana é na essência religiosa, pois a religião responde aos aspectos mais terríveis da vida humana, quais sejam, o sentido da vida, o seu valor, e a morte, principalmente. Se a maioria pudesse impor sobre o resto dos indivíduos suas próprias concepções a respeito da santidade da vida, então, o Estado poderia exigir o aborto em alguns casos, por exemplo, no caso de má formação fetal, o que nos soa, certamente, absurdo. Pela mesma razão, não pode exigir que uma mulher que gesta um feto anencéfalo seja obrigada a tê-lo. Se a maioria tivesse o poder de implantar suas convicções sobre a santidade da vida, então, o Estado poderia exigir isso, mesmo contra as crenças religiosas ou éticas das pessoas, assim como pode requerer vacinação hoje em dia.

Uma verdadeira percepção da dignidade deve apelar para a liberdade e não para a coerção penal a fim de impor um ponto de vista de alguma maioria sobre os demais indivíduos em questões tão cruciais como a vida e a morte. Nesse sentido, vale a observação do juiz Brennan: se a privacidade significa algo, ela significa o direito do indivíduo não sofrer intromissão do governo em matérias que afetam tão fundamentalmente uma pessoa, como engendrar, ou ter um filho. Nesse sentido, algo é religioso pelo seu conteúdo e não pela importância subjetiva que tenha. Por isso, a crença sobre o valor intrínseco da vida humana pode ser descrita como "essencialmente uma crença religiosa" e, portanto, sob o ponto de vista constitucional americano devem ser consideradas sob a primeira emenda. É claro que o direito à intimidade, base da decisão do precedente americano, não garantiria o direito de abortar se o feto fosse uma pessoa (DWORKIN, 1996. p. 102). Sendo assim, o aborto pode ser resolvido, tanto pela cláusula do devido processo da 14ª, emenda à constituição americana, como pela liberdade religiosa da 1ª. emenda constitucional. Em suma, o Estado não pode ditar como se deve respeitar o valor intrínseco da vida.

A questão, portanto, não é quem têm direitos, ou como interesses diferentes devem ser balanceados e protegidos. A democracia tem o dever de assegurar que as pessoas tenham o direito de viver suas vidas em acordo com suas próprias convicções sobre questões religiosas essenciais (DWORKIN, 1996. p. 106).

Com relação ao precedente americano, o esquema de trimestres parece arbitrário. Afinal, por que é no sétimo mês que o feto passa a ser pessoa constitucionalmente protegida? Por que não antes? Por que a viabilidade marca o fim o direito da mãe abortar? Por que o Estado pode proibir o aborto depois da viabilidade? A resposta de Dworkin é: porque naquele ponto começa a sentir dor, portanto, a ter vida mental. Nesse ponto o Estado pode ter um interesse derivado em coagir que não a partir da concepção coletiva da santidade da vida (DWORKIN, 1996. p. 113). Assim, o insulto ao valor da vida é maior conforme o feto for mais desenvolvido. De tal forma que a sociedade pode se proteger de um tal insulto exigindo reflexão de quem decide pelo aborto.

A defesa do aborto potencializa a liberdade, imputando a ela o direito de definir o significado do universo e o mistério da vida humana DWORKIN, 1996. p. 120). Tal não poderia ser limitado, no ordenamento americano ao menos, senão por emenda constitucional que declarasse o feto uma pessoa DWORKIN, 1996. p. 120). Mesmo assim, seria uma emenda que feriria a liberdade, pois proibir o aborto antes da viabilidade negaria a liberdade sem o devido proceso DWORKIN, 1996. p. 126-127). De fato, a claúsula do due process visa a proteger liberdades fundamentais, sendo a salvaguarda dos direitos individuais uma precondição da própria democracia, não um compromiso (DWORKIN, 1996. P. 150).

No caso brasileiro, apesar de ser proibido o aborto, parece que o feto não tenha direito à vida tout court, o que pode ser visto a partir das exceções permitidas. O aborto para salvar a vida da mãe é consistente com o direito à vida, porque poderia ser justificado pelo estado de necessidade. Mas, no caso de estupro, há uma inconsistência com o direito à vida, já que, por analogia, quando eu firo mortalmente alguém, inutilizando, por exemplo, seu coração, isso não implica na permissão de que eu possa ser morto para que meu coração seja doado a quem eu tenha cometido um ato de violência. Além disso, a tipificação do crime numa figura particular, como aborto, com pena máxima de 10 anos e não como homicídio, com penha máxima de até 20 anos, é um indício dessa inconsistência com o direito à vida.

De fato, a legislação brasileira estabelece um conjunto de proposições difíceis de serem harmonizadas, principalmente se tivermos em conta as relações entre três diplomas normativos. No nível constitucional - e vale lembrar que a Constituição da República Federativa do Brasil é de 1988 - é estabelecida, no art. 5º, a inviolabilidade do direito à vida, porém, sem a determinação do momento em que tal direito tem começo. O Código Civil de 2002, seguindo a tradição do código de 1916, estabelece no art. 2º, que "a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida", embora o art. 20, ponha a salvo os direitos do nascituro desde a concepção e o art. 1.596, IV, ao determinar que os embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga, presumem-se concebidos na constância do casamento, estabelece direitos patrimoniais aos embriões. Já, o Código Penal que data de 1940, estabelece o crime de infanticídio com pena de dois a seis anos [art. 123]. O crime de aborto provocado por terceiro com pena de três a dez anos, quando não houver consentimento da mãe [art. 125] e entre um a quatro anos quando houver [art. 126]. O crime de aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento tem pena de um a três anos [art. 124]. Considerando que o crime de homicídio simples tem pena entre 6 e 20 anos [art. 121] dá para perceber uma clara distinção entre a valorização da vida do feto e de alguém após o nascimento. Isso sem levarmos em conta o art. 128 que estabelece dois casos em que não se pune o aborto praticado por médico: quando resultar de estupro e em caso de necessidade[3].

No caso de Dworkin, sua posição evita que o uso do conceito de “vida indigna de ser vivida” seja usada pelo Estado, como fê-lo o nazismo[4], justificado por questões de eutanásia, nem sempre desconexa de questões de eugenia. Tal formulação, há que se constatar, implica “a fixação de um limiar além do qual a vida cessa de ter valor jurídico e pode, portanto, ser morta sem que cometa suicídio” (AGAMBEN, 2002. p. 146).

Para Dworkin, a eutanásia segue o mesmo caminho do aborto, pois há que se determinar o valor intrínseco da vida, o que leva a que se dê um sobrepeso ao princípio da autonomia. Do mesmo modo, é assim que ele se posiciona com relação à eugenia[5].

 

2 Rawls: a vitória da maioria

Rawls menciona a questão do aborto quando trata do conceito de razão pública em Political Liberalism. A razão de algo é aí definida como um poder intelectual e moral (RAWLS, 1996. p. 212-213), ou seja, como modo de formular planos, de dar ordem de prioridade aos fins e de tomar decisões de acordo com isso. Nem toda razão é pública, por exemplo, numa aristocracia. Mas, seja como for, a razão pública trata de matérias de justiça fundamental. Ou seja, matérias constitucionais essenciais: direito de votar, religiões a serem toleradas, propriedade. Não diz respeito, portanto, a questões como do direito tributário, da regulamentação da propriedade, do meio ambiente, da poluição. O conteúdo da razão pública é restrito a uma concepção política de justiça, qual seja, a liberal. O liberalismo vem caracterizado por três elementos fundamentais: a] defende certos direitos básicos, como liberdade e oportunidades; b] defende a prioridade desses direitos sobre o bem público e privado; c] defende medidas-meio para tornar efetivos os direitos estabelecidos em “a”. Essa concepção política liberal tem princípios substantivos, certos valores, bem como guias para aplicá-los, como a razoabilidade e a idéia de balanceamento (RAWLS, 1996, p. 223-224).

Tal concepção não opera sem dificuldades, pois permite mais de uma resposta razoável, ou balanceada, à combinatória de valores, visto que estes podem ser pesados e combinados diversamente. Interessantemente, é nesse particular que Rawls, deferentemente de Dworkin, dá um grande peso à decisão majoritária, pois, para ele, a solução de tais dificuldades tem que ser feita através do voto, sob a condição de cumprir o requisito da razão pública que exige que o voto seja explicado em termos de um reasonable balance (RAWLS, 1996. p. 240). Como exemplo de um problema e de sua solução por votação tendo em vista o balanceamento de valores, Rawls cita o caso do aborto. Ele nomina três valores envolvidos na questão: o respeito pela vida humana, a reprodução da sociedade e a igualdade da mulher. Nesse sentido, uma forma de dar um reasonable balance para esses três valores é pelo esquema de trimestres definido pela Suprema Corte (RAWLS, 1996. p. 243) [6].

Num esclarecimento feito em 1995, ele afirma: “ […] questões disputadas, tais como a do aborto, pode conduzir a um impasse entre diferentes concepções políticas, e os cidadãos devem simplesmente votar sobre a questão” (RAWLS, 1996. p. lv), sendo que o voto dá uma razoabilidade momentânea, visto se tratar de uma hotly disputed question, cuja deliberação se torna obrigatória pela regra da maioria (RAWLS, 1996. p. lvi). Portanto, uma tal decisão sobre o aborto, permitindo ou proibindo, não estaria no conjunto daquilo que autorizaria, por exemplo, a desobediência civil.

 

3 Habermas: nas teias do procedimento

Na posição de Habermas parece haver um hipotético se, ou seja, se o aborto concernir a uma questão de identidade - como proposto por Dworkin -, então, há que se resolvê-lo no nível político da coexistência, como é o caso da religião. Nesse sentido, o texto (HABERMAS, 1991. p. 165-166) parece distinguir dois níveis nos quais a moralidade operaria, o nível político e o nível da moralidade, de tal forma que aparecendo uma impossibilidade de resolver a questão neste, ela seria forçada a resolver naquele. Cabe perguntar: por que a questão do aborto não encontraria uma resolução moral? Habermas sugere não ser possível encontrar uma solução moral para o abortoporque, talvez, não haja interesses universalizáveis, de tal forma que se deva buscar compromissos de equidade e não respostas morais61. O Aborto é um problema não resolvido moralmente no presente, não se podendo excluir a priori a hipótese de se tratar de um problema que não possa de fato ser resolvido sob o ponto de vista moral.

Por outro lado, é difícil remeter a questão, sem mais delongas, para o domínio do que o liberalismo tradicionalmente nomina de esfera privada. De fato, ao analisar as discussões levantadas pelo feminismo com relação a problemas domésticos que antes eram atribuídos à esfera privada, como a violência doméstica contra as mulheres, Habermas pondera, de acordo com sua teoria discursiva, que a fronteira que separa o privado do público tem que poder ser objeto de discussão pública, pois a linha divisória entre o que é público e privado é estabelecida a fortiori. De tal forma que qualquer matéria pode ser objeto de deliberação, desde que possa ser feito no igual interesse de todos (HABERMAS, 1997. p. 30).

Portanto, a neutralidade representada pela posição que defende a prioridade do justo sobre o bem não pode significar a exclusão de questões éticas do discurso político, já que, assim, este perderia sua função racionalizadora de enfoques pré-políticos, de interpretação de necessidades e de orientações valorativas. Sob tal premissa, haveria a restrição do diálogo. A neutralidade não pode ser garantida por regras inibitivas, ou de mordaça [gag rules], que deixam a separação público v. privado ao sabor das tradições culturais. Tal exclusão a priori da agenda política de assuntos considerados privados beneficiaria um pano de fundo tradicional do privado (HABERMAS, 1997. p. 35). De tal forma que neutralidade não é eliminar assuntos do debate da agenda política, mas, em havendo disputa sobre a vida boa, não decidir sob a base de uma intrínseca superioridade de uma ou de outra (HABERMAS, 1997. p. 47). O ponto é que "temos que estabelecer uma distinção entre limitações impostas aos discursos públicos através de processos e uma limitação do campo temático dos discursos públicos" (HABERMAS, 1997. p. 40). Em princípio, o primeiro não impõe limitações ao campo temático de objetos que podem ser discutidos. Tematizar não é se intrometer na privacidade, de tal forma que "nem tudo o que é reservado às decisões de pessoas privadas deve ser subtraído à tematização pública, nem protegido da crítica" (HABERMAS, 1997. p. 41). Nem tudo o que é regrado toca na privacidade e nem tudo o que é discutido é regrado. Assim, não tem sentido a reserva liberal de discussões para além da segurança. O ponto está em que a delimitação do privado não pode ser feita de uma vez por todas (HABERMAS, 1997. p. 37). Assim, no exemplo da pornografia "a criação de limites tem que ser objeto de uma discussão política".

O que se necessita, sim, é que da constatação de um dissenso ético, haja a passagem a um nível maior de abstração, aquele da justiça, para decidir o que é do interesse de todos na base do reconhecimento deste dissenso (HABERMAS, 1997. p. 37).

 

REFERÊNCIAS

 

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[1] Professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina. Graduado em Filosofia (UCS) e em Direito (UFSC), doutor em Filosofia pela UFRGS, com estágio de doutorado na Université Catholique de Louvain, Bélgica. Fez pós-doutorado na Columbia University (New York) sobre a relação entre Dworkin e Habermas. Fez também pós-doutorado na Aberystwyth University (País de Gales, Reino Unido) sobre o tema "Habermass Critique of Kant and Hobbes".

[2] Quais são essas condições para ser um membro moral que estão à base da democracia e, portanto, da concepção constitucional de democracia? Dworkin nomina três condições [DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford: Oxford University Press, 1996. p. 24-6]: aaa] instrumentais, como território, língua e relacionais, ou seja, ser parte como comunidade por meio do voto, da liberdade de expressão. Tais condições garantem a possibilidade de fazer diferença no processo político; bbb] igual consideração e respeito na distribuição de bens e direitos, pois o conceito de ser um membro envolve reciprocidade; ccc] independência moral, ou seja, a possibilidade de cada um se ver como parte num empreendimento coletivo: "uma comunidade política genuína deve ser uma comunidade de agentes morais independentes" [DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: the Moral Reading of the American Constitution. Oxford: Oxford University Press, 1996. p. 26]. Isso implica, como se verá, que a maioria não deva se imiscuir em assuntos de vida, morte, felicidade, voto.

[3] A possibilidade de aborto em casos de anencefalia tem sido discutida no Brasil. Em recente acórdão o STJ defendeu que não, conforme decidido no HC 32.159-RJ: "o habeas corpus foi impetrado em favor do nascituro, ora no oitavo mês de gestação, contra decisão do Tribunal a quo que autorizara intervenção cirúrgica na mãe para interromper a gravidez. Essa cirurgia foi permitida ao fundamento de que o feto padece de anencefalia, doença que levaria à inviabilidade de sua vida pós-natal. A Turma, porém, não concedeu a ordem, pois a hipótese em questão não se enquadra em nenhuma daquelas descritas de forma restrita no art. 128 do CP. Assim, não há como se dar interpretação extensiva ou analogia in malam partem; há que se prestigiar o princípio da reserva legal. HC 32.159-RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 17/2/ 2004" [Informativo de Jurisprudência do STJ n. 0199, 16 a 20 de fev. de 2004]. Sabe-se que a matéria pende de julgamento no STF.

[4] Agamben informa que tal conceito nasce com o livro de Karl Binding, um especialista em direito penal, e de Alfred Hoche, médico preocupado com questões de ética profissional, publicado em 1920, na Alemanha, com o título: “A autorização do aniquilamento da vida indigna de ser vivida” [AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. [H. Burigo: Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita I]. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2002. p. 143.

[5] Ver o texto Playing God in DWORKIN, Ronald. Sovereign Virtue: The Theory and Practice of Equality. Cambridge: Harvard University Press, 2000.

[6] Cabe observer que para ele o nosso esquema de combinação dos valores envolvidos na questão seria cruel e opressor para a gestante.