HONNETH E AS PATOLOGIAS DO DIREITO

 

Delamar José Volpato Dutra[1]

Universidade Federal de Santa Catarina

djvdutra@yahoo.com.br

1 Do método da reconstrução normativa e do valor da liberdade

Honneth pretende conectar a sua teoria crítica com a análise da sociedade, cujo foco não seriam princípios puramente normativos. Na verdade, não objetiva desconsiderar os princípios normativos, mas detectá-los na eticidade de práticas e instituições dadas (HONNETH, 2015, p. 15). De acordo com seu diagnóstico, teorias como a de Rawls e a de Habermas “partem de uma congruência entre princípios de justiça obtidos de maneira independente e os ideais normativos das sociedades modernas.” (HONNETH 2015, p. 23)[2]. Sem embargo, elas apresentariam uma justificação construtiva e autônoma de tais princípios, em vez de uma prova da superioridade delas em relação aos ideais históricos concretos. Para ele, a reconstrução normativa é aquela que mede “[...] as intenções normativas de uma teoria da justiça mediante a teoria da sociedade.”( HONNETH, 2015, p. 24)[3] Trata-se, portanto, de perscrutar a realidade social a fim de esquadrinhar as instituições e práticas que efetivariam a justiça, haja vista o próprio conceito de justiça, seja ele qual for, ser incapaz de fornecer um critério independente (HONNETH, 2015, p. 22). Desse modo, o autor trilha um caminho que questiona a prioridade do justo sobre o bem, já que o caráter ético do bem compartilhado dá forma ao próprio conceito de justiça (HONNETH, 2015, p. 32)[4].

Ora, o valor ético supremo que predomina na modernidade é o da liberdade, não o da liberdade política, mas o da liberdade individual. Já de início, segundo ele, não se trata, por certo, da vontade da comunidade (HONNETH, 2015, p. 37). O leitor é convidado a ver a liberdade individual como o supremo princípio de seu mundo. Tal formulação, inclusive, está na base do conceito de direito que o autor dedilha, a partir de Hegel, a saber, tudo aquilo que possibilita e realiza a liberdade individual de maneira universal (HONNETH, 2015, p. 17). A princípio, os termos liberdade, autodeterminação e autonomia são usadas de maneira mais ou menos intercambiável, (HONNETH, 2015, p. 34-37) o que, aliás, informa muito pouco sobre o significado dos mesmos. A liberdade, por ser bastante indeterminada, encontra na história a ajuda para torná-la mais precisa, o que ocorre com a apresentação de três modelos históricos da mesma: a liberdade negativa, a reflexiva e a social.

 

2 Liberdade negativa e contrato

A liberdade negativa tem como modelo Hobbes, para quem a liberdade se define como não interferência, como ausência de impedimentos externos, segundo o que se lê no início do cap. XIV do Leviatã. Com isso, na busca dos objetivos que podem ser escolhidos pelo indivíduo, obstáculos interiores não devem ser compreendidos como impedimentos da liberdade (HONNETH, 2015, p. 34-37). Além disso, apostrofa Honneth, a liberdade “[...] significa poder realizar todos os objetivos de vida egocêntricos e caprichosos [...]” (HONNETH, 2015, p. 44, 47). Nesse cenário, configura-se um indivíduo atômico e egocêntrico (HONNETH, 2015, p. 52-53), cuja única restrição seria a compatibilidade com a liberdade dos demais (HONNETH, 2015, p. 50-51). Desse modo, descortina-se um conceito de justiça, um ordenamento jurídico, por um lado, medido estrategicamente no seu estatuto e, por outro, limitado em sua extensão. Limitado, que Honneth acusa a tal concepção de não tornar os indivíduos autores e renovadores do ordenamento, o que demandaria um interesse na cooperação, (HONNETH, 2015, p. 55). a exigir uma outra figura da liberdade. Portanto, a permanecer negativa, essa liberdade sempre deter-se-ia em frente da autodeterminação individual, já que sempre restringir-se-ia ao âmbito externo. No rumo da busca de fins realmente próprios, a liberdade teria, indica ele, que se direcionar para a autodeterminação reflexiva e social (HONNETH, 2015, p. 57).

De se observar, aqui, a inspiração hegeliana dupla. Primeira, a crítica ao contratualismo, cujo resultado será uma concepção de direito que deverá descer do cume da abstração para o reino do espírito objetivo. Deveras, nos termos do adendo H do § 141 de as Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, o direito existe somente como uma parte de um todo, como se fosse uma planta trepadeira agarrada em uma árvore, esta, sim, com raízes firmes.[5] Segunda, na crítica ao déficit de subjetividade, cujo sentimento de vingança registrável na punição criminal seria indicativo (HEGEL, 2010, p. 102).

Inicialmente, a liberdade juridicamente concebida é uma espécie do gênero liberdade negativa. De acordo com tal concepção, os motivos não têm interesse para a comunicação estruturada juridicamente, os quais podem ficar no anonimato, (HONNETH, 2015, p. 149) o que é bastante palpável, por exemplo, no exercício do direito de propriedade. Porém, segundo um juízo mais cuidadoso dessa mesma liberdade, Honneth advoga que isso só é possível porque os sujeitos concedem- se reciprocamente esse estatuto normativo. O sujeito solitário tem objetivos estratégicos, mas também outros motivos e convicções presentes a serem considerados.

Nisso se pode ver a principal incapacidade a propósito da liberdade jurídica, pois a autonomia privada só poderá ser empregada de maneira sensata [sinnvoll], só poderá chegar a uma ponderação dos próprios objetivos, a uma confirmação real do bem que pretende, pela referência aos outros como sujeitos eticamente motivados (HEGEL, 2010, p. 102). Ora, isso exige uma atitude diferente daquela que é induzida pelo direito. Exige uma atitude comunicativa. Nesse contexto, ele afirma que o direito até incentiva comportamentos e atitudes que seriam um obstáculo, bloqueariam [im Wege stehen) a liberdade que ele próprio criaria.[6] Sem embargo, essa desvinculação não é uma insuficiência [Ungenügen] da liberdade jurídica, já que é constitutiva de sua lógica. Contudo, ela poderá ter consequências patológicas no âmbito social, como ver-se-á, já que a atitude que a liberdade jurídica faculta pode dificultar vínculos e responsabilidades intersubjetivas. Ao operar monologicamente, o sujeito ficará em um vácuo de decisão e em quase total indeterminação, de tal forma que a liberdade jurídica não serve para descortinar e formular novas versões de ideias do bem; só permite questioná-las e revisá-las. Para uma formulação inovadora e positiva de concepções do próprio bem, precisaria vislumbrar o outro como algo mais do que um ator estratégico (HONNETH, 2015, p. 153-154). Por isso mesmo, no mundo vivido, há motivos que são compartilhados pré-reflexivamente. Quando ocorre um dissenso e tal perspectiva em comum é rompida, surge o ônus de fundamentar a divergência. Nesse cenário, o uso da liberdade jurídica sinaliza a intenção de interromper tal oferta de razões. Ela opera uma espécie de moratória em relação ao fluxo comunicativo. Em sendo assim, reparar-se-ia uma situação rompida não pela conjugação intersubjetiva dos motivos em conflito. Ora, vê-se bem, se essa atitude fosse radicalizada, ela afetaria a busca da autorrealização, pois não seria mais possível contar com os outros para projetos comuns, relações e cooperações, a não ser de modo puramente estratégico. Desse modo, a liberdade jurídica abre a possibilidade de questionar, finalizar ou suspender projetos de vida, mas não a oportunidade de dar realidade a novos projetos, já que isso dependeria de atitudes e modos de comportamento não estratégicos (HONNETH, 2015, p. 154-155). Assim sendo, os direitos pressuporiam uma série de práticas comunicativas já implicadas, das quais, eles, na verdade, dependeriam, já que os direitos subjetivos alimentar-se-iam de um contexto de relações não juridicamente determinadas (HONNETH, 2015, p. 156-157). Por exemplo, um contrato só é aceitável se respeitar uma série de condições éticas que são postas pela realidade social na qual ele opera, como não poder comercializar órgãos humanos.

Honneth define patologia como o que atinge a capacidade racional de acessar um sistema primário de ações e de normas, ou seja, uma perda de habilidade para praticar adequadamente a gramática normativa de um sistema de ação intuitivamente familiar (HONNETH, 2015, p. 157). Como essa patologia clama por um diagnóstico difícil de realizar, ele apela  para exemplos da estética, mormente da literatura, nisso também seguindo Hegel, que no § 37 de suas Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, usa o termo reiner Eigensinn, que poderia ser traduzido por 'rigidez', em uma referência ao personagem Michael Kohlhaas de Kleist. Esse personagem se aferra ao seu direito, que é só uma possibilidade, e não vê toda a abrangência da relação, ao ponto em que a busca pelo seu direito se transforma em vingança. Deveras, hoje, vale registrar, a insistência nos direitos, muitas vezes, não se dá tanto por causa de uma injustiça sofrida ou pela busca de vingança, mas por uma disposição de se retrair ao comportamento jurídico que os outros estrategicamente.

No campo da liberdade negativa, Honneth delineia duas patologias básicas, aquela que transforma os meios de ação em um fim, exemplificado pelo filme Kramer v. Kramer, e aquela na qual o meio se transforma em fim, a que torna os meios da liberdade jurídica que suspende as obrigações em um ideal de vida. Neste segundo caso, a pessoa usa a liberdade para dificultar os esforços da construção de sua identidade, exemplificado pelo personagem Dwigt Wilmerding do romance Indecisão de Kunkel.

 

 

 

3 Liberdade reflexiva e justiça

O segundo modelo de liberdade é a reflexiva, que teria como fontes o pensamento de Rousseau e de Kant, para os quais a ideia de autonomia desempenha papel central. Esse modelo mergulha na interioridade do sujeito ao qual se atribui liberdade, para detectar o que ser-lhe-ia próprio (HONNETH, 2015, p. 157). Exatamente, nesse modelo, noções como autonomia e heteronomia, autenticidade e inautenticidade, passam a ser fundamentais.

Segundo a interpretação de Honneth, os projetos de Habermas, Apel, Mead, Peirce, seriam uma reformulação desse modelo em termos de intersubjetividade (HONNETH, 2015, p. 159). No que se refere à justiça, de acordo com esse modelo reflexivo, a ideia de autodeterminação como autonomia Peirce, seriam uma reformulação desse modelo em termos de intersubjetividade (HONNETH, 2015, p. 69). No que se refere à justiça, de acordo com esse modelo reflexivo, a ideia de autodeterminação como autonomia assumiria, para ele, viés processual, mesmo deliberativo, exemplificado por Rawls e por Habermas. (HONNETH, 2015, p. 73-73). .Já, a autodeterminação como autorrealização assumiria esguelha bastante substantiva,

seja em um viés mais individual, como seria o caso do projeto de Mill, ou mais coletivo, como seria o caso da visão de Taylor, do republicanismo liberal de Arendt [por ele assim caracterizado] e de Sandel (HONNETH, 2015, p. 75). De se mencionar a dificuldade de apontar a concepção de justiça apropriada à liberdade reflexiva, (HONNETH, 2015, p. 73)  contudo, seja lá qual for tal concepção, por não poder contar com uma formulação egoísta, o grau de cooperação exigido “[...] é desproporcionalmente mais elevado [ungleich höher] do que no caso da liberdade negativa,” (HONNETH, 2015, p. 79)  a qual exigiria o mínimo de conjugação com a igual liberdade dos outros.

Honneth reclama que nenhum dos dois modelos de liberdade reflexiva, seja o da autodeterminação seja o da autorrealização, tomam as condições sociais da realização da liberdade como componentes desta. Não, elas tomam o conceito de liberdade reflexiva e dela derivam as condições que seriam necessárias. Não obstante, não indicam as condições sociais indispensáveis, como haver a disponibilidade institucional de objetivos morais e a presença dos bens visados pelos desejos estarem disponíveis na realidade social. Tais condições são como que deixadas de lado e como que adicionadas a posteriori, com a exceção do modelo discursivo dessa liberdade, segundo o qual a instituição social do discurso é entendida como componente da própria liberdade. Aliás, isso funcionará como diretriz, como chave, para Honneth construir um modelo de liberdade que conecta o seu exercício com formas institucionais que possibilitam a sua realização (HONNETH, 2015, p. 79-80).

Nesse diapasão, a liberdade moral seria espécie do gênero liberdade reflexiva. Aquela é a que garante a possibilidade de retração das obrigações comunicativas e de reconecção ao mundo vivido (HONNETH, 2015, p. 175-176). Ela permite a retirada “do leito em que correm nossas eticidades do mundo real.” (HONNETH, 2015, p. 191). Com isso, torna atrativa a vinculação com normas universais, no sentido da crítica ao existente, bem como a construção de novos sistemas de normas. Esse elemento construtivo a distingue e a torna superior à liberdade jurídica, que se desconecta para não se reconectar (HONNETH, 2015, p. 208).

Aqui, uma vez mais, pode ser detectada uma inspiração hegeliana dupla. Sabidamente, Hegel criticara o formalismo vazio da moral kantiana no § 135 das suas Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, formalismo este que só funcionaria, na verdade, por pressupor regras já previamente aceitas pela sociedade na qual se vive, como a de que a propriedade é um valor. A hipocrisia é a outra crítica de Hegel a uma moral sem objetividade, sem instituições, como anota o longo § 140 da mencionada obra. A hipocrisia manifestar-se-ia na inverdade, na afirmação para o outro de um mal como um bem, segundo a qual o mal justificar-se-ia pelas boas razões; manifestar-se-ia no querer o bem abstrato, a intenção boa, de tal forma que ninguém seria mau porque ninguém quereria o mal pelo mal. Desse modo, roubar para dar aos pobres, matar para satisfazer a vingança do seu direito, tudo poderia ser colorido pela convicção subjetiva que embasa o ato. Manifestar-se-ia, finalmente, na ironia e na vaidade do saber-se como a base da objetividade moral. Contudo, no próprio desenho de tal liberdade que estimula ser unilateral, no sentido da retirada da eticidade, Honneth detecta a possibilidade, novamente, de patologias (HONNETH, 2015, p. 192).

As patologias, nesse caso, os distúrbios ou interpretações equivocadas, determinarão comportamentos individuais ou coletivos que tornarão difícil a cooperação social, levando ao isolamento. A ilusão de ocultamento de toda a facticidade normativa, uma desvinculação completa da eticidade e a acentuação do momento crítico e suspensivo no qual só importa o padrão moral, quando envolve a própria vida, conduz ao moralista desvinculado; quando envolve a sociedade conduz ao terrorismo moral (HONNETH, 2015, p. 210). Os escritos de Henry James seriam, para ele, um exemplar de como o zelo por princípios universais faria esquecer as obrigações imediatas, bem como faria esquecer onde o mal deveria ser combatido. Em tal cenário, o personagem Frederick Winterbourne de Daisy Miller causa a infelicidade que tão resolutamente queria evitar, pois a rigidez de seu comportamento acaba gerando a desgraça (HONNETH, 2015, p. 215). O segundo exemplo de patologia ou desvinculação completa está no caso da jornalista Ulrike Meinhof (HONNETH, 2015, p. 221-222). De se anotar que, nesse ponto, mais uma vez, Honneth segue o caminho que o próprio Hegel já havia trilhado com a sua crítica ao terrorismo jacobino e consequente exaltação de Napoleão e seu código civil (HABERMAS, 2013, p. 204).

A liberdade social avança em direção à concretização história, cujo modelo refere, de novo, a Hegel, a demandar um passo que, na tradição da teoria crítica, Habermas e Apel não teriam dado (HONNETH, 2015, p. 82). Nesse percurso, o leitor descobrirá que o valor ético supremo defendido por Honneth é “[...] a liberdade no sentido da autonomia do indivíduo.” (HONNETH, 2015, p. 34). Desse modo, o conceito de liberdade reflexiva é tomado como paradigmático para a sua construção, senão veja-se.

A liberdade negativa fracassa porque ela não consegue verificar se os conteúdos escolhidos seriam realmente livres sob o ponto de vista interior. Por outro lado, a liberdade reflexiva é deficiente por induzir ao pensamento de que o externo é marcado por algum tipo de heteronomia e, portanto, este externo se contrapõe-lhe. A objeção ao segundo modelo complementa a objeção ao primeiro modelo. A deficiência do primeiro modelo é a de não chegar suficientemente à interioridade, ao passo que a do segundo modelo é a de não chegar à exterioridade de forma suficiente. Tendo em vista essa estrutura conceitual, a liberdade reflexiva dará o tom do entendimento da liberdade social, pois é justamente o elemento reflexivo que verificará se realmente ocorreu ou não ocorreu um ato de autonomia em relação aos próprios fins ou um ato de autenticidade em relação aos próprios desejos. No entanto, ao se voltar preferencialmente para o interior parece permanecer em um momento negativo de não obedecer a nada estranho. Com isso, Hegel, por exemplo, teria se direcionado para um aspecto mais positivo, aquele de atribuir liberdade também ao que ocorre externamente, ao que ocorre objetivamente, em sua terminologia. A realidade externa, igualmente, tem que se apresentar livre de coerção e de heteronomia. Desse modo, trata-se de ampliar [auszudehnen] as determinações da liberdade reflexiva à realidade externa (HONNETH, 2015, p. 83-84). Justamente, Hegel teria tomado como exemplares de liberdade externa social a se realizar de forma autônoma e não coercitiva, portanto, livre, a amizade e o amor. Vê-se, destarte, como a liberdade reflexiva amplia-se para se converter em liberdade intersubjetiva, (HONNETH, 2015, p. 85-86) a incluir no conceito de liberdade o aspecto interno e o externo, o que configura o espírito objetivo (HONNETH, 2015, p. 92-93). Disso segue a definição de liberdade social:

 

em última instância o sujeito é ‘livre’ quando, no contexto de práticas institucionais, ele encontra uma contrapartida com a qual se conecta por uma relação de reconhecimento recíproco, porque nos fins dessa contrapartida ele pode vislumbrar uma condição para realizar seus próprios fins. [...] E somente essa forma de reconhecimento é a que possibilita ao indivíduo implementar e realizar seus fins obtidos reflexivamente (HONNETH, 2015, p. 87).

 

Como apontado, no amor, há a ideia de reciprocidade e de realização conjunta de sujeitos que estabelecem uma relação na qual ambos podem reconhecê-la como manifestação de seu eu autônomo, de sua liberdade. No entender de Honneth, Hegel teria expandido essa pesquisa, inclusive para o âmbito da economia e do Estado.

Deveras, vê-se bem a inspiração hegeliana do conceito de eticidade do § 33 das Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito: “a ideia pensada do bem, realizada na vontade refletida dentro de si [sich reflektierten Willen] e no mundo exterior [äußerlicher Welt] [...] o Estado, enquanto liberdade que na livre autonomia [Selbständigkeit] da vontade particular é igualmente universal e objetiva [objective].” Com isso, só haverá liberdade se houver uma conjugação com as possibilidades exteriores de liberdade. O § 10 da mencionada obra sugere a realidade do que a vontade quer como pertença à essência mesma da liberdade e não somente como uma aplicação [Anwendung]. Na verdade, a exigência é mais do que uma conjugação entre sujeitos que se reconhecem, mas uma conjugação entre liberdade subjetiva e objetividade, o que demanda que os sujeitos aprendam [lernen] a alinhar os seus motivos aos seus fins internos. Trata-se de querer o que antes era só uma prática (HONNETH, 2015, p. 92-93).[7] Nesse cenário, as instituições de reciprocidade implicarão a formação [Bildung] que irá buscar no comportamento “[...] desejos e intenções primárias, cuja satisfação se faz possível mediante ações complementares dos outros.”[8] Ações recíprocas vão realizar os fins reflexivos de todos os partícipes. Vê-se, então, que não é suficiente o momento da imposição, sendo necessário aquele da aprendizagem.

O complexo de objetivos com vocação universal, Hegel descortina nas instituições mais gerais de seu tempo, a compor o conceito de eticidade (HONNETH, 2015, p. 61). Será somente na dependência prévia de tais instituições éticas que, para Honneth, os procedimentos contratuais e democráticos poderão ter lugar, como verificadores individuais da legitimidade (HONNETH, 2015, p. 62). Aliás, esse é o lugar próprio das liberdades jurídica ou moralmente concebidas, que estas possibilitam um distanciamento ou afastamento saudáveis da eticidade, contudo, elas teriam um papel secundário e reativo a desentendimentos no mundo vivido (HONNETH, 2015, p. 63). Assim sendo, a justiça não teria a sua medida primeva na extensão das liberdades negativa e positiva, mas na garantia a todos de participar em instituições de reconhecimento.

Por fim, há que se dar dinamicidade a tal eticidade via o desempenho das liberdades negativa e reflexiva, (HONNETH, 2015, p. 64). pois, estranhamente, para Honneth, a legitimidade é medida nos seus termos (HONNETH, 2015, p. 65). Estranho porque as duas liberdades, expulsas pela porta da frente, adentram pela porta dos fundos. Por isso, a cultura da liberdade atual aponta para o rumo do que ele nomina de eticidade democrática. Nisso, Hegel precisa ser atualizado, pois, ele, ao descortinar que a liberdade só se desenvolve em instituições de reconhecimento, não pôde sustentar que a estrutura de tais instituições deveria depender da contingência de um consenso hipotético de todos, pois tal consenso teria que advir de sujeitos que, por não estarem integrados institucionalmente, não seriam suficientemente livres para possuir uma opinião e perspectiva ponderadas [wohlerzogene], ou seja, não haveria como pôr a liberdade individual antes da liberdade social (HONNETH, 2015, p. 66). Essa a forma sutil de Honneth dizer que Hegel não concebeu o Estado de direito como Estado democrático de direito, de tal modo que a ordem institucional justa teria que ser construída previamente antes que decisões de indivíduos isolados fossem tomadas. Dito claramente, já haveria substantividade suficiente para assegurar a liberdade social na família, no mercado, nos estamentos e no Estado constitucional monárquico. Como lê-se claramente no texto do filósofo, “é de todo essencial que a constituição, embora surgida no tempo, não seja vista como algo feito; pois ela é antes pura e simplesmente sendo em si e para si.” (HEGEL, 2010, p. 273). Como pontuara Sieyès “Ici la réalité est tout, la forme n’est rien.” (SIEYÈS, [1789], p. 57). O poder da nação já tem que existir; assim se resolve o problema do regresso ao infinito de uma autoridade anterior.

Nesse diapasão, o termo soberania do povo, em si mesmo, não faz sentido algum,

O povo, tomado sem seu monarca e sem a articulação do todo que se conecta precisamente, assim, a ele de maneira necessária e imediata, é a massa informe que não é mais nenhum Estado e à qual não compete mais nenhuma das determinações que estão presentes no todo formado dentro de si, - soberania, governo, tribunais, autoridade, estamentos e o que quer que seja. (HEGEL, 210, p. 279)

 

A disposição política e a virtude não podem ser pressupostas em indivíduos isolados, como parece ser o caso na democracia. Precisam de mediação, por exemplo, dos estamentos.

Muito embora Honneth conceda o benefício da dúvida com relação a saber se Hegel teria descortinado uma dinamicidade crítica da eticidade, ele registra que, de todo modo, o aprendizado pós-Hegel das forças da individualidade e da autonomia, do potencial da liberdade negativa e da reflexiva, acabaram por desencadear uma dinamicidade que alterou as instituições (HONNETH, 2015, p. 119). É nesse caminho que persegue a continuidade e o avanço do projeto hegeliano do qual ele se pretende o intérprete e o arauto.

 

4 Redutos de eticidade

De acordo com Honneth, as instituições operam com uma função educadora, o que conduz os membros da sociedade a quererem apoiar instituições justas (HONNETH, 2015, p. 114). Honneth gostaria de atestar o grau de saturação histórica necessário para comprovar a teoria da liberdade social pelo apelo a intuições pré-teóricas e experiências sociais que sufragassem, ao modo de Dewey, só haver liberdade na cooperação, já que apelaria para a experiência de os outros não se oporem às intenções individuais de um sujeito, mas de possibilitá-las, incentivá-las, promovê-las, (HONNETH, 2015, p. 117) exemplificado, como dito, pela relação amorosa. As liberdades jurídica e moral seriam, portanto, concedidas [zugewiesen] socialmente, (HONNETH, 2015, p. 225) em vez de serem inatas e asseguradas [gesichert] (HEGEL, 2010, p. 44).

Isso significa a obrigação de desempenhar um papel social de acordo com um padrão normativo. A ação social exige um comportamento segundo o qual os objetivos dos indivíduos se tornam dependentes do modo como os outros agem, da ação dos outros. Normas, nesse caso, não somente regulamentariam ações que possibilitariam a coordenação intersubjetiva da ação, mas constituiriam um tipo de ação que somente poderia ser executada cooperativamente, em conjunto. Em epítome, esses sistemas de ação seriam relacionais (HONNETH, 2015, p. 227). Assim sendo, não haveria patologias para tais regras, pois elas não seriam incompletas [unselbständig], dependentes, a demandar complemento [Ergänzung] por relações da vida social, mas seriam já constituídas pelas relações sociais, assim como a instituição do discurso seria constitutiva da racionalidade comunicativa.

Ora, o que caracteriza a esfera social é, justamente, o entrecruzamento de papeis, já anunciado no caráter relacional. Compõe tal esfera as relações pessoais [a amizade, as relações íntimas e a família], na qual há necessidades e propriedades individuais, o mercado [consumo e produção], no qual há interesses e habilidades individuais, e a formação da vontade democrática [esfera pública e Estado democrático de direito], na qual fins individuais em busca de configuração intersubjetiva.

Cada esfera oferta uma contribuição educativa e formadora da liberdade social. Na amizade, por exemplo, descortinam-se propriedades éticas (HONNETH, 2015, p. 250). Não só ela seria uma condição necessária da vida feliz, na medida em que cumpriria um papel epistêmico de melhoraria das decisões vitais, já que induziria a uma espécie de publicidade mínima das mesmas, como, no âmbito da educação moral, operaria uma pressão para circunstanciar os princípios morais, suprimindo a sua rigidez. Por fim, as amizades cruzariam fronteiras e barreiras de classe, de etnia, de preconceitos, “de modo que talvez se possa reconhecer nelas o fermento mais elementar de toda a eticidade democrática.” (HONNETH, 2015,p. 256)

Por seu turno, as famílias distinguir-se-iam das relações íntimas, como uma esfera própria de relação pessoal, pela triangulação da relação, pela mediação dos filhos, sendo eles biológicos ou adotivos, (HONNETH, p. 292) pois é isso que fundaria uma comunidade por toda a vida (HONNETH, p. 295). A família não é uma comunidade democrática, pois não serve aos fins da deliberação pública, mas ela veio a representar, com sucesso, o núcleo de todas as atitudes e disposições [Dispositionen] requeridas pela democracia, (HONNETH, 2015, p. 222) na medida em que permite experimentar como participar individualmente em cooperação partilhada, pela internalização das regras de reconhecimento intrafamiliar, de tal forma a determinar um aprendizado para deixar de lado os próprios interesses egocêntricos em face das necessidades dos outros membros da família. Todas as habilidades desse tipo de individualidade cooperativa poderiam ser adquiridas pela participação nas práticas das famílias: o esquema de pensamento do outro generalizado, a partir do qual as obrigações devem ser distribuídas de forma justa e equitativa; a prontidão [Bereitschaft] para realmente aceitar as obrigações implícitas contidas em seu papel na negociação deliberativa de tais responsabilidades; a tolerância requerida quando membros da família cultivam estilos de vida ou preferências que conflitam de forma fundamental com a sua própria (HONNETH, 2015, p. 223). A família se torna uma escola para esses tipos de comportamentos, incluso para as futuras gerações.

Por fim, um mercado que não atentasse para regulamentações normativas, geraria anomia, ou seja, movimentos sociais de reivindicação (HONNETH, 2015, p. 346-347). Honneth gostaria de apresentar de forma defensável um funcionalismo normativo porque o mercado é analisado também pelo viés de sua legitimidade, o que implicaria subordiná-lo à democracia que deveria controlar o trabalho, a terra, o dinheiro, pela atenuação da pressão da oferta e da procura sobre os mesmos (HONNETH, 2015, p. 347). Desse modo, ele avança uma tentativa de justificação ética do mercado pela fixação adicional de normas justas e favoráveis à outra parte, de tal forma que a reprodução do mercado sem resistências tácitas implicaria o atendimento de tais imperativos extraeconômicos e morais (HONNETH, 2015, p. 351). O ponto é, precisamente, que o mercado não pode ser considerado isolado dos valores (HONNETH, 2015, p. 354).

Com isso, Honneth se afasta da alternativa de uma crítica abrangente ao mercado, aquela de Marx, que, segundo a análise deste último, o mercado impediria o exercício da liberdade negativa a uma enorme parcela da população (HONNETH, 2015, p. 363-364). Duas circunstâncias contribuiriam para uma tal conclusão:

a)    aquela de muitos só terem como propriedade a sua força de trabalho. Os que só têm como mercadoria a sua força de trabalho nunca estarão em igualdade de condições para fazer um contrato, logo, o contrato de trabalho não seria voluntário nos termos de uma normatividade social que consideraria a liberdade reflexiva; e

b)    aquela da especificidade da mercadoria trabalho como a única capaz de produzir valor. Desse modo, não haveria salário capaz de pagar o trabalho, já que este seria a única fonte de produção de riqueza, ou seja, o que é pago pelo trabalho implicaria exploração, necessariamente.

Deixando de lado a segunda circunstância, por ser problemática demais, restaria, ao menos para Honneth, o impedimento do exercício da liberdade negativa a uma enorme parcela da população. Como é improvável a possibilidade da não aceitação de um contrato, frente à necessidade da sobrevivência, a liberdade negativa não se realizaria. Sem embargo, de acordo com Honneth, Marx não conseguiu provar que contratos produzidos sem a anuência voluntária feririam a liberdade negativa. Marx considerava isso inevitável no mercado. Não obstante, para Honneth, na verdade, a primeira circunstância não se põe em termos conceituais ou analíticos, de tal forma que é uma questão empírica que deve ser enfrentada, ou seja, como estabelecer condições sociais de uma liberdade geral de contrato:

Desse modo, a questão aqui em debate assume traços empíricos: não é possível decidir de antemão se no interior das economias de mercado capitalista é possível estabelecer as condições sociais de uma liberdade geral de contrato, mas isso precisa ser revisado num processo de reformas implementadas com esse propósito (HONNETH, 2015, p. 366).

Nesse sentido, nem os contratos com marca bastante coercitiva, nem a exploração do trabalho, seriam déficits estruturais, quiçá, devido a possíveis correções compensatórias.

Nessa direção é que caminha a retomada da economia moral para descrever os inconvenientes como desvios de um conjunto de exigências que subjazeriam ao mercado, (HONNETH, 2015, p. 367) de  tal forma que seria possível acomodar magnitudes morais como sentimentos de injustiça, mecanismos discursivos e normas de justiça que permitiriam indicar em que grau eles estariam ou não realizados (HONNETH, 2015, p. 367). Tratar-se-ia de aplicar às relações econômicas as exigências normativas das sociedades democráticas liberais, como imposições de uma liberdade social geralmente aceita. Via protestos, movimentos sociais, reformas, haveria possibilidade de realização dos princípios da liberdade social que garantiriam a legitimação do mercado, mediante processos discursivos de regulação e consolidação jurídica da igualdade de oportunidades.

De se registrar o caráter bastante idealizante dessa proposta, haja vista a economia se alicerçar grandemente na liberdade negativa, não na comunicativa. Deveras, ele registra, nesse quesito, ao longo do tempo, anomalias ou desenvolvimentos falhos [Fehlentwicklungen] maiores do que evoluções (HONNETH, 2015, p. 370). Vale anotar, por fim, como fundamental que aquilo que compõe o estofo da liberdade social, “possui mais o caráter de práticas, costumes e papéis sociais do que de circunstâncias jurídicas,” (HONNETH, 2015, p. 126)  de tal forma que, esclarece uma nota a essa citação, “muito do direito que se tem em nome da liberdade não pode ser garantido sob a forma de direito positivo.” Com isso, fica determinado um afastamento sempre crescente da liberdade negativa e, portanto, do âmbito jurídico. Segundo um tal entendimento, as condições da justiça implicariam atitudes, modos de tratamento e comportamentos que não poderiam ser juridicizados. Tais direitos da liberdade conectados à justiça dependeriam muito da “[...] existência de um imbricado emaranhado de práticas e costumes harmonizados de fraca institucionalização [...] esquivas a categorizações jurídico-estatais [...].” (HONNETH, 2015, p. 127). Como bem pontuara Prestes, “Há redutos de ações comunicativas em vários subsistemas que podem ser liberados por uma racionalidade que se baseia nas pretensões de validade.” (PRESTES, 1996, p. 75)

Nesse diapasão, Honneth descortina uma categoria de liberdade bem diferente da negativa, a qual é fundamental para a própria garantia da liberdade social em espectro amplo. Segundo ele, a configuração da realidade social sob o pálio dos direitos juridicamente concebidos, ou seja, como direitos subjetivos, na modernidade, acabou na dependência da esfera estatal que positiva e executa tais direitos. Essa instância estatal, a vontade unida de todos, acabou criando, na verdade, uma nova fonte de legitimidade. Ocorre que essa fonte de legitimidade depende de os destinatários dos direitos atuarem como autores dos mesmos. Contudo, tal autoria exige uma ação positiva. Tal liberdade é, portanto, diferente da liberdade negativa que concede um espaço de atuação, à discricionariedade do ator, no qual ele pode explorar a sua vontade de forma puramente privada. Não, a exigência é positiva no sentido da cooperação ativa. Em outras palavras, a autonomia coletiva exige práticas, atitudes e convicções democráticas que só podem ocorrer no âmbito da liberdade social, da eticidade.[9] Vê-se bem, amiúde, a necessidade de se pontuar os redutos de ações comunicativas mencionados por Prestes. Como dito, a democracia parece exigir um tipo de ação positiva do indivíduo, algo bem diferente do espaço de ação sem amarras morais ou sociais da liberdade jurídica.[10] Trata-se, agora, de averiguar se Honneth consegue apresentar tais determinações éticas nos âmbitos que analisa.

 

5 Na contramão da eticidade democrática

Muito embora a reconstrução normativa de Honneth busque evitar a alegada abstração das teorias kantianas da justiça que acabaria por criar problemas de mediação entre a idealidade da teoria e a realidade social, ela, na verdade não consegue evitar o problema da mediação, não somente porque ele não consegue registrar traços significativos de eticidade nas diversas esferas que analisa, como porque a própria reconstrução normativa depara-se com modos específicos da liberdade, ou seja, “[...] com interpretações diferentes do que deve constituir a liberdade individual [...],”[11]concorrentes entre si, de tal forma a se configurar interpretações díspares do valor da mesma. Ora, como a terceira formulação da liberdade, a social, só se consumaria pelo apelo a um sujeito cooperante, tornar-se-ia possível, justamente por isso, a construção de instituições mediadoras a poderem contribuir para a resolução de tais discordâncias, ao invés da retração do ambiente social, a liberdade social disponibilizaria um espaço de participação no agir comunicativo.[12] Apontar-se-á, abaixo, para a insuficiência da tentativa de resolução desse quesito no âmbito da liberdade social.

No diagnóstico das relações íntimas, aquelas que se distinguem da amizade pela intimidade sexual,[13] Honneth destaca, de forma negativa, a crescente incapacidade de vinculação dos parceiros a longo prazo, pois as exigências da formação capitalista da subjetividade estariam na direção da desvinculação. Segundo ele, isso ameaçaria a própria eticidade democrática, já que os seus membros deveriam ter como sustentáculo “por um lado, saberem-se institucionalmente guardados em sua necessidade natural e, por outro lado, obterem uma confiança elementar em si mesmos com base nessa experiência específica de ser reconhecidos reciprocamente,” (HONNETH, 2015, p. 281) de onde a necessidade de que deveriam ser determinados limites para prevenir o dano ocasionado pela colonização de outras esferas. No caso, a colonização das relações íntimas pela economia.

No âmbito do consumo, o seu diagnóstico trilha caminho semelhante, pois pode-se observar a predominância do consumo ostentativo, de luxo, sobre o de necessidades, este relacionado ao valor de uso. Depois de idas e vindas para melhor e para pior sob o ponto de vista de uma configuração social do mercado nos séculos XIX e XX, nas últimas décadas, que inclui o séc. XXI, ele registra uma predominância do comportamento privatista e consumista (HONNETH, 2015, p. 281). Como anotara Habermas:

 

À medida que o sistema econômico submete a seus imperativos a forma de vida das economias domésticas privadas e a conduta de vida de consumidores e assalariados, o consumismo e o individualismo possessivo, bem como os motivos relacionados com o rendimento e a competitividade, se transformam na força configuradora (HONNETH, 2015, p. 281) .

         

Por isso, Honneth reluta em classificar o consumo mediado pelo mercado como um componente da eticidade democrática. Mesmo que haja potencial normativo no consumo, a carência de mecanismos discursivos e regulamentos não o habilitaria, por ora, para a prática de uma adoção recíproca de perspectivas, nem habilitá-lo-ia à aprendizagem de práticas de restrição das necessidades. Em epítome, por ora, prevaleceria a anomalia [Fehlentwicklungen] do consumismo privado de bens efêmeros, o que mostrar-se-ia grave frente à previsível catástrofe do clima, bem como frente a um mercado de bens não éticos, como venda de órgãos, contratação de barriga de aluguel, etc. (HONNETH, 2015, p. 2418-419).

Desse modo, a conclusão é a de que o consumo mediado pelo mercado careceria de todas as precondições sociais que poderiam convertê-lo em uma instituição da liberdade social. Não se registraria reciprocidade institucionalizada na satisfação de interesses ou necessidades, (HONNETH, 2015, p. 420) isso porque os consumidores, divididos entre si, não disporiam de instrumentos discursivos para o entendimento, por meio dos quais puderiam generalizar as divergentes e variadas preferências, de tal modo a obrigar a outra parte e as empresas a considerar essas preferências, sob pena de fazer fracassar a concepção de produtos e política de preços. Não conseguiriam, portanto, desenvolver uma consciência conjunta da realização da sua própria liberdade individual em conjunto com outros. Na verdade, o maior obstáculo para a unificação da comunicação e das normas legais seria a crescente diferença entre situações sociais e níveis de renda, (HONNETH, 2015, p. 421). ou seja, “variadas e divergentes preferências [...] Divididos em grupos parciais, entre os quais não há processos de entendimento [...] esses consumidores já não podem desenvolver nenhuma consciência conjunta de realização da liberdade individual no intercâmbio cooperativo da contraparte.” (HONNETH, 2015, p. 421). Assim, a distância socioeconômica leva ao fracasso, pois origina perspectivas de futuro e oportunidades de consumo muito diferentes. Daí a necessidade de se passar do consumo mediado pelo mercado para a questão do trabalho mediado pelo mercado, pois a posição na estrutura social não é a que decide, precipuamente, mas a posição no sistema de produção capitalista: (HONNETH, 2015, p. 422), “Todos os esforços para que, mesmo de maneira incipiente, se realize uma esfera do consumo estão fadados ao fracasso quando a distância socioeconômica entre as classes aumenta a ponto de originar perspectivas de futuro e oportunidades de consumo muito diferentes.” (HONNETH, 2015, p. 422), Como mencionado, Honneth pretende fazer uma espécie de atualização do pensamento de Hegel, inclusive nesse particular. De fato, este último já apontara que o mercado produz a plebe [§ 241, § 244, § 245, das Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito], bem como que a divisão do trabalho tem como consequência a possibilidade de substituir o trabalho por máquinas [§ 198 da mesma obra]. Das duas anomalias [Fehlentwicklungen] mencionadas, a primeira delas foi predominante no séc. XIX e a segunda no séc. XX (HONNETH, 2015, p. 423). O próprio Hegel já detectara, em sua obra [§ 245], a operação do conceito de decência moral para corrigir o mercado em favor dos necessitados, o que poderia ser entendido como um esforço de configuração moral da economia (HONNETH, 2015, p. 428). No parágrafo mencionado, o próprio Hegel empregou o conceito de autonomia e honra em relação à distribuição de bens aos pobres, sem mediação do trabalho, muito embora em um sentido de questionamento a respeito das possíveis implicações morais de tal estratégia.

A consideração de Honneth, em relação ao mercado, passa por duas possibilidades: aquela da institucionalização da garantia jurídica, via direitos subjetivos, da igualdade de oportunidade e aquela da institucionalização de mecanismos discursivos para influir nos interesses das empresas ou corporações (HONNETH, 2015, p. 436). Contudo, não deixa de observar o efeito dessocializante dos direitos subjetivos: direitos subjetivos que alheiam do ambiente comunicativo, conduzindo à figura típica do individualismo (HONNETH, 2015, p. 439)  e às limitações próprias da racionalidade jurídica, já apontadas acima. De qualquer modo, para ele, no séc. XIX, os impulsos de auto-organização logo se paralisaram e, a partir dos anos 90 do século XX, ele constata até mesmo retrocesso nesse quesito (HONNETH, 2015, p. 439).

Como se pode perceber, o seu diagnóstico é marcadamente pessimista. Deveras, em relação aos ganhos passados, ele registra, contemporaneamente, uma grande anomalia [Fehlentwicklung]. As pessoas, colonizadas pelo mercado em sua personalidade, não manifestam mais reações coletivas de resistência e indignação ((HONNETH, 2015, p. 472). Houve até mesmo uma privatização das reações, rumo ao individualismo e mesmo mutismo, de tal modo que o desconforto moral acaba sendo articulado de maneira privada e, incluso, com recorrência a formas não verbais de resistência, como o suicídio. Com essa anomalia, o nós da eticidade democrática careceria de um de seus elementos nucleares, pois não haveria inclusão para a formatação do mercado. Assim sendo, o grau de anomalia poderia ser medido pela reconversão/regressão da promessa de liberdade social na pura liberdade individual. Possível solução ele só vislumbra na internacionalização de movimentos de oposição para uma reconfiguração moral da economia de mercado capitalista (HONNETH, 2015, p. 482-483).

Honneth tem um diagnóstico ruim da liberdade negativa, ou jurídica, pois, para ele, primeiro, os objetivos que poderiam ser buscados pelas possibilidades que tal liberdade descortina seriam indeterminados, sendo que a sua especificação dependeria de comunicação, contudo, ela ameaça excluir o indivíduo da comunicação, devido à sua estrutura privada. Segundo, a incompletude da mesma mostrar-se-ia no modo como avaliaria os deveres, expectativas e vínculos não jurídicos, informais, ou seja, vê-los-ia como bloqueios (HONNETH, 2015, p. 131). Dito claramente, a liberdade da comunicação é “[...] uma categoria de liberdade de tipo bem diferente.” ((HONNETH, 2015, p. 128).

A efetivação da liberdade na esfera pública democrática depende, ao menos, de uma realização parcial da liberdade social nas outras esferas (HONNETH, 2015, p. 487). Antes de tudo, de se anotar que o espaço para a discussão pública de opiniões diferentes emergiu das liberdades liberais, entendido segundo a configuração dos direitos individuais, de tal forma que pensar em obrigações de certos papeis como complementares seria ferir o seu caráter de meramente formar a opinião privada via debate público. Para tal, far-se-ia necessário mostrar a sua dependência de práticas comunicativas (HONNETH, 2015, p. 558-559).

Como já mencionado, em verdade, o direito de voto, reunião e associação, configurou um tipo de liberdade diferente da liberal, fazer algo que não se podia fazer sozinho, pois o cidadão teria que justificar algo para o bem comum. Trata-se, bem entendido, de contribuir com argumentos e de avaliar argumentos que poderiam ser aceitos por todos, por contraposição ao que poder-se-ia chamar de paternalismo político.

A história teria mostrado que a garantia dos direitos individuais para expressar a própria opinião e participar politicamente seria insuficiente. Tal insuficiência dar-se-ia por ser somente uma primeira condição, a demandar outras, como, a seguir, aquela de vencer barreiras de classes e fronteiras estatais. Terceira, uma mídia informativa. Quarta condição: disposição ao trabalho voluntário para elaboração de material, fazer apresentações e participar/realizar reuniões presenciais para reconcretizar a comunicação. Visa-se a prontidão para resistir à dissolução da esfera pública com serviços voluntários que contribuem para a mesma. Quinta condição: decisão individual de colocar os objetivos privados depois do bem comum (HONNETH, 2015, p. 560). Portanto, uma cultura cidadã de fazer sacrifícios, uma cultura política que alimenta e alenta sentimentos de solidariedade seria o requerimento elementar para vitalizar e acionar a vida pública, com remissão ao patriotismo constitucional (HONNETH, 2015, p.558-559).

As altas exigências que Honneth faz em termos éticos não conseguem uma comprovação reconstrutiva suficientemente robusta para muscular uma concepção palatável de eticidade democrática, justamente o que ele propõe como alternativa ao normativismo imputado a Habermas e o consequente déficit sociológico. Nesse diapasão, a presente pesquisa deverá avançar, futuramente, para uma comparação com a proposta de Habermas.

 

REFERÊNCIAS

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[1] Professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina. Graduado em Filosofia (UCS) e em Direito (UFSC), doutor em Filosofia pela UFRGS, com estágio de doutorado na Université Catholique de Louvain, Bélgica. Fez pós-doutorado na Columbia University (New York) sobre a relação entre Dworkin e Habermas. Fez também pós-doutorado na Aberystwyth University (País de Gales, Reino Unido) sobre o tema "Habermass Critique of Kant and Hobbes".

[2] O diagnóstico feito com relação a Rawls pode ser desafiado se a sua teoria for compreendida, no dizer de Weithman, como conception-based, em vez de rights-based: “On my reading, Rawls supposes from the outset that under the impact of liberal democratic thought and practice, we, his readers, think of ourselves as free and equal persons embedded in a society that ought to be a fair scheme of social cooperation. We have, he thinks, a democratic conception of our society and a conception of ourselves that I call a free- and-equal self-conception.” [WEITHMAN, Paul. Why Political Liberalism? On John Rawls’s Political Turn. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 12]

[3] A aproximação com o procedimento do equilíbrio reflexivo entre conceito e realidade histórica é sugerida [HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 107-8].

[4] Exemplares de tais questionamentos seriam as obras de Putnam e Taylor.

[5] “das Recht existiert nur als Zweig eines Ganzen, als sich anrankende Pflanze eines an und für sich festen Baumes.”

[6] Ao tratar do paradoxo da legitimidade que surge da legalidade, Habermas detecta um problema semelhante, mas não chega ao ponto de desqualificar a própria forma jurídica.

[7] A referência, nesse ponto, é a MacIntyre.

[8] HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 93. Raz ensaiaria um modelo mais enfraquecido da ligação da liberdade à exterioridade institucional [HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 91]. Segundo Honneth, Marx também teria seguido esse modelo da cooperação social como paradigma da liberdade, haja vista o trabalho implicar referência à satisfação das necessidades, próprias e dos outros [HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 95-7].

[9] HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 129-31, 146, 496-8,

[10] HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.129.

[11] HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.123.

[12] HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.125-6.

[13] HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p.267.