ELEMENTOS KANTIANOS PARA A COMPREENSÃO DA FORMA JURÍDICA EM HABERMAS

 

Delamar José Volpato Dutra[1]

Universidade Federal de Santa Catarina

djvdutra@yahoo.com.br

1 Introdução

A liberdade ínsita à forma jurídica, Habermas aponta-a de forma mais sistemática a partir da análise da legalidade em Kant. O texto principal para essa análise está especialmente no capítulo I.III de Direito e democracia, que se alicerce fortemente no aspecto coercitivo do direito. Nesse ponto, o conceito de legalidade kantiano é usado para dissolver um paradoxo concernente às dimensões de validade do direito[2]. Tal paradoxo residiria em o direito ser concebido por Kant como uma coerção que serve para eliminar empecilhos da liberdade: “impedimento de um impedimento da liberdade” (KANT, 205, p. 231). Ora, como pode a coerção ser usada para sustentar a liberdade e, mais importante, como pode o reconhecimento de que a coerção torna possível a liberdade ser uma razão suficiente para que o direito seja cumprido moralmente ou por dever? Destarte, “razões analíticas impedem que um agir por dever, isto é, a obediência ao direito por motivos morais, possa ser imposto com o uso da coerção” (HABERMAS, 1998, p. 49).

A solução kantiana consistiria, segundo Habermas, em atribuir ao direito uma concepção de liberdade que se constituiria em um dispositivo que permitiria a motivação moral, embora não a possa obrigar, sem excluir as motivações estratégicas ou outras que se poderiam conceber: “As Kant recognized, law differs from morality in the formal properties of legality. Certain aspects of conduct open to moral assessment (for example, convictions and motives) are per se exempted from legal regulation” (HABERMAS, 1998, p. 201). O importante é que com a legalidade se faz uma abstração do móbil [ohne Rücksicht auf die Triebfeder derselben] (KANT, 205, p. 219). Sabidamente, a legalidade concerne à relação externa da ação com respeito à sua conformidade ou não conformidade à regra que a enforma. A legislação jurídica não exige que a própria idéia do dever, que é interna, se erija em motivo determinante da ação, liberando, por consequência, a interioridade. Em suma, "a doutrina do direito e a doutrina da virtude, se distinguem, então, bem menos por deveres diferentes que pela diferença de legislação que associa à lei um móbil antes que um outro" (KANT, 205, p. 220).

Moral e direito são, portanto, conceitualmente distintos sob o ponto de vista da motivação (interna e externa), mas não são, em princípio, incompatíveis, nem sob o ponto de vista da justificação, nem quanto à motivação (VOLPATO DUTRA, 2008). Tal compatibilidade/incompatibilidade tem como fundamento o fato de que para "leis idênticas, as máximas dos agentes podem ser muito diferentes" (KANT, 205, p. 225). O acordo da ação com a lei é a legalidade; já o acordo da máxima da ação com a lei é a moralidade. A máxima é um princípio de ação que o sujeito se dá por norma, de tal forma que para a mesma lei podem concorrer diferentes máximas (KANT, 205, p. 225). Nesse sentido, a legislação ética seria imperfeita, por admitir somente a coerção interna. Ao passo que a jurídica seria perfeita, por admitir as duas. Então, a legislação moral admite uma motivação, qual seja, a própria lei moral. Sendo que "o direito é a suma de condições pelas quais o arbítrio de um pode concordar com o arbítrio de outro segundo uma lei universal de liberdade" (KANT, 205, p. 230), não se pode exigir que esse princípio, qual seja, limitar a liberdade para que ela possa conviver com a liberdade dos outros, possa ser exigido como máxima para a ação de qualquer um. Este, certamente, é um dever ético, mas que releva do campo do direito.

Resulta da formulação kantiana que a coerção exige a ação externa, mas libera o interior, a motivação. A moral, ao exigir que o motivo da ação seja o próprio dever, exige uma total transparência do interior, dominando, completamente, a vontade, não deixando a ela espaço algum de mobilidade. Se, por um lado, a moral libera a ação externa do cálculo de consequências, imputando, mesmo, falta de valor moral a tal cálculo, na medida em que a pureza da vontade é que dá todo o valor moral, já que o importante no valor moral da ação é tão somente a vontade boa, ela, de outro lado, domina a vontade livre com uma determinação unitária, ao lhe exigir motivação exclusiva, calcada na pureza do próprio ordenamento moral. Como bem pontua Habermas, “a positividade do direito força uma divisão da autonomia, que não possui equivalente no campo moral. A autodeterminação moral constitui um conceito unitário” (HABERMAS, 1997, p. 310). Não fosse assim, cairia por terra o elemento mesmo que distingue as duas legislações.

O direito, por seu turno, exige a conformidade à legislação, descompromissando a motivação com relação aos elementos nos quais se prenderá. Tal economia, por não querer penetrar no âmago da vontade, se contenta apenas com a exterioridade, a qual é, então, objetivamente calculável e perceptível, ao contrário da motivação moral, sempre de difícil vislumbre, dada a pureza que se lhe exige. Logo, da coatividade da conduta se segue uma incongruência com a disciplina da própria vontade no agir por dever. De fato, afirma Kant:

 

[…] quem, quando sente em si a presença do móbil determinando-o à observação do dever, conhece-se o bastante para saber se este móbil procede inteiramente da representação da lei ou se não concorrentemente muitos outros impulsos, sensíveis, que são orientados a uma vantagem (ou à prevenção de uma desvantagem) e que, em outras circunstâncias, poderiam estar inteiramente a serviço do vício? (KANT, 2005, p. 447)

 

Portanto, o verso da medalha do aspecto coativo do direito é, precisamente, a liberação da vontade da motivação moral, facultando-lhe a indeterminação do arbítrio. Isso é que se encontra precisamente no início da parte III.III do texto, ou seja, um tipo de arbítrio, que se diz também como liberdade negativa, e que se apresenta como verso da medalha precisamente o aspecto coercitivo do direito. Tal verso pode ser expresso na gramática dos direitos subjetivos. Ou seja, a necessária coatividade do direito implica na liberação da vontade, conferindo-lhe, destarte, o que se poderia chamar direitos subjetivos de motivação, cuja única formulação possível consiste na chamada liberdade negativa de abandonar a motivação da lei pela lei. É assim que se pode entender por que o verso da medalha do aspecto coercitivo do direito reside em algo que se poderia chamar de direito subjetivo de motivação, por mais contrario sensu que pareça, pois, o verso da medalha da coerção, por razões categoriais, tem que ser a liberação da vontade da obediência por dever à legislação.

Um outro aspecto correlato diz respeito aos âmbitos moralmente neutros, ou seja, àqueles que não há imperativo contrário algum, ou seja, âmbitos não ordenados ou proibidos, sendo moralmente indiferentes. [222-3, comentário Bekemkamp xxv s]. Como bem pontua Habermas "o sentido dos direitos subjetivos consiste inicialmente em desligar, de um modo bem circunscrito, os sujeitos de direito de mandamentos morais, abrindo aos atores espaços de arbítrio legítimo" (HABERMAS, 199, p. 311).

Direitos de ação subjetiva, entendidos nesse sentido negativo, são, portanto, constitutivos da forma jurídica. Ser sujeito de direito implica esse espaço da liberdade. Essa forma jurídica, como se pode ver, é, em princípio, neutra com relação a qualquer conteúdo, pois ela resulta apenas de sua distinção da moral, a qual, segundo a boa doutrina kantiana, decorre da precisão que deve ser feita duplamente, no que tange à motivação e no que tange a conteúdos morais indiferentes.

Essa abstração dos móbiles, fazendo aparecer a motivação como fator que caracteriza estritamente o direito, sendo decorrência de seu aspecto coercitivo, é o que permite a Habermas partir do conceito de legalidade kantiano, interpretando-o como direito subjetivo, ou liberdade subjetiva de motivação e de ação (HABERMAS, 1997, p. 48). Apregoa ele: "de si mesmo, o direito está ligado à autorização para o uso da coerção" (HABERMAS, 1997, p. 49), logo, é possível extrair o direito da simples conformidade de uma ação com a lei, "pois razões analíticas impedem que um agir por dever, isto é, a obediência ao direito por motivos morais, possa ser imposto com o uso da coerção" (HABERMAS, 1997, p. 48). O direito libera os motivos para a sua obediência, ou seja, o direito "permite substituir convicções através de sanções"(HABERMAS, 1997, p. 52). Desse modo, o direito libera, por um lado, o motivo para o cumprimento da norma e, por outro, "protege a esfera interior da qual uma pessoa concreta, responsável moralmente, e que conduz a sua vida de modo ético, pode se desenvolver livremente" (HABERMAS, 1997, p. 148). Aliás, será neste segundo aspecto que ficará aberto o espaço dentro do qual será possível cada um realizar seu plano particular de felicidade, segundo uma vida autêntica.

Assim formulado, o direito portaria como que uma racionalidade própria, não necessitando nem estar sob o jugo do poder ou da moral e nem ser um parasita destes. Portanto, munido de características próprias ele poderia interagir com o poder, ganhando deste a força coativa que o caracteriza e ofertando um meio racional e, por que não, legítimo, de configuração do poder, da mesma forma no caso da moral, ofertando eficácia a suas formulações e recebendo em troca elementos de justiça.

Há, ainda, duas outras referências diretas a Kant em Direito e democracia, ambas no cap. III, as quais não são essenciais para a determinação do conceito de forma jurídica.

A primeira delas, em III.I, tem conexão com a relação entre os direitos humanos e a soberania popular. Nela, Habermas critica as perspectivas de três autores, por razões diferentes. Hobbes é criticado pela sua formulação estratégica do direito público e Rousseau pelo tratamento formal a partir da semântica da generalidade das leis, ponto que será apresentado a seguir. Contra Kant, por seu turno, ele alega que a fundamentação moral dos direitos humanos por ele proposta lhe uma prioridade indevida sobre a soberania popular.

A segunda citação está em III.II e diz respeito à relação entre direito e moral. Nela, Habermas defende que Kant não teria concebido uma racionalidade própria para o direito, mas tê-lo-ia tratado como um caso especial da moral, a qual seria, então, limitada por várias determinações ínsitas ao direito, mormente aquela da coerção. Ademais, com isso, Kant teria excluído razões importantes do direito, como as pragmáticas e as éticas, estas últimas conexas com questões de felicidade.

Em suma, para a caracterização do conceito de forma jurídica, em Kant, é importante referir a uma formulação da liberdade mais abrangente do que aquela concernente à moral, haja vista tal liberdade ser capaz de incorporar em si, incluso, a motivação moral, sem prejuízo de qualquer outra possibilidade motivacional.

 

2 O direito como mediação entre moral e democracia

A análise que Habermas faz da filosofia do direito kantiana mostra que ela é ambivalente. Kant por uma série de abstrações configura uma concepção de direito que mais parece a moral travestida pela roupagem da coação, especialmente sob o ponto de vista do conteúdo da norma. Tanto a sua definição de direito, quanto o princípio universal do direito, são interpretados por Habermas como um direito subordinado à moral. De fato, Kant desloca sutilmente a definição de direito da formulação deste como coação, “Direito e faculdade de coagir significam, portanto, a mesma coisa” (KANT, 2005, p. 232), para esta outra formulação, “o direito estrito pode ser representado também como a possibilidade de uma coação recíproca geral concordante com a liberdade de qualquer um segundo leis universais” (KANT, 2005, p. 232). Ou seja, trata-se, neste último caso, de uma definição normativa referida ao que é justo (KANT, 2005, p. 229). Com isso, a liberdade e a igualdade (veja-se que aparece na formulação os termos “geral” e “universais”) são claramente estabelecidas. Note-se, contudo, que já no texto Contra Hobbes de 1793, ele houvera estabelecido uma relação entre o único direito humano inato, a liberdade, e o sistema jurídico como um sistema de leis:

Todo o direito depende, de fato, das leis. Mas uma lei pública que determina para todos o que lhes deve ser juridicamente permitido ou interdito é o ato de um querer público, do qual promana todo o direito e que, por conseguinte, não deve por si mesmo cometer injustiças contra ninguém. Ora, a este respeito, nenhuma outra vontade é possível a não ser a de todo o povo (já que todos decidem sobre todos e, por conseguinte, cada um sobre si mesmo): pois, só a si mesmo é que alguém pode causar dano. (KANT, 2004, p. 294-295)

 

Segundo Habermas, isso significa que a autonomia moral só pode adquirir figuração concreta pela autonomia política, de tal forma que “o princípio do direito parece realizar uma mediação entre o princípio da moral e o da democracia. Contudo, não está suficientemente claro como esses dois princípios se comportam reciprocamente” (HABERMAS, 1997, p. 127). Para se entender isso, deve-se esclarecer que a vontade pública do republicanismo Habermas a chama de democracia. Ele sugere uma aproximação entre o que Kant nominou republicanismo e o que hoje se chama democracia (HABERMAS, 1997, p. 122).

Kant muito bem observa tratar-se da vontade pública de todo o povo, pois somente quando se tratar da vontade de todo o povo é que não poderá haver injustiça contra quem quer seja. É essa a ideia que ele repete alguns anos depois na Doutrina do direito e que Habermas (HABERMAS, 1997, p. 259) considera como uma formulação kantiana da soberania tal qual definida por Rousseau[3]:

 

O poder legislativo somente pode caber à vontade unificada do povo. Pois, uma vez que deve proceder dele todo direito, não deve ele por sua lei poder ser injusto pura e simplesmente com ninguém. Ora, se alguém decide algo em relação a um outro, sempre é possível que assim ele seja injusto com ele, mas nunca naquilo que ele decide acerca de si mesmo (pois volenti non fit injuria). Assim, somente a vontade concordante e unificada de todos, na medida em que cada um decide o mesmo sobre todos e todos sobre um, portanto somente a vontade universalmente unificada do povo é legisladora (HABERMAS, 1997, p.122).

 

Nesse sentido, poder-se-ia perguntar como ficaria a relação entre o direito racional e a vontade unida do povo, quando esta estabelecesse leis com conteúdo contrário ao direito racional. Essa não parece ser uma possibilidade para Kant, pois o cidadão não poderia concordar com leis que desrespeitassem tal direito: “todo o homem tem os seus direitos inalienáveis a que não pode renunciar, mesmo se quisesse, e sobre os quais tem competência para julgar” (KANT, 2005, p. 304). De fato, pode-se afirmar que há uma correspondência entre todos poderem concordar e cada um não poder discordar, de tal forma que não haveria, segundo Habermas, uma limitação da vontade unida do povo pelo direito racional, haja vista, justamente, os cidadãos não poderem dar seu consentimento a leis que negassem seus direitos humanos.

Kant não explica se a razão pela qual o cidadão não pode concordar com leis contrárias à liberdade decorre de uma capacidade moral ou de um mecanismo referido à generalidade da lei jurídica que acaba por fazer reverter sobre o indivíduo o que ele legisla para os outros, em uma espécie de regra de ouro. Habermas sugere esta interpretação em 1988:

E, para que a razão legitimadora do poder não se anteponha mais à vontade soberana do povo – como em Locke – situando os direitos humanos num estado natural fictício, atribui-se uma estrutura racional à própria autonomia da prática da legislação. Uma vez que a vontade unida dos cidadãos só pode manifestar-se na forma de leis gerais e abstratas, é forçada per se a uma operação que exclui todos os interesses não generalizáveis, admitindo apenas as normatizações que garantem a todos iguais liberdades. O exercício da soberania popular garante, pois, os direitos humanos. (HABERMAS, 1997, p. 259)

 

Em 1992, porém, ele atribui isso claramente a Rousseau, mas afirma, por duas vezes, não haver clareza em Kant sobre o assunto (HABERMAS, 1997, p. 127-128), sendo que tal falta de clareza dever-se-ia basicamente a Kant ter operacionalizado a autonomia dos sujeitos no exercício da soberania popular segundo o imperativo categórico: “porém ele explica esse conceito [autonomia] na fórmula legal do imperativo categórico” (HABERMAS, 1997, p. 127-128).

Evidentemente, como não pode haver a vontade unida efetivamente operante, a leis devem ser feitas como se pudessem contar com o acordo de todo o povo:

 

[…] se, por conseguinte não se pode esperar unanimidade de um povo inteiro, se, portanto, apenas se pode prever como alcançável uma maioria de votos e, claro está, não a partir dos votantes diretos (num povo grande), mas apenas dos delegados enquanto representantes do povo, então, o próprio princípio que consiste em contentar-se com esta maioria, e enquanto princípio admitido com o acordo geral, portanto, mediante um contrato, é que deverá ser o princípio supremo do estabelecimento de uma constituição civil[4].

Desse modo, em Teoria e práxis, ele afirma que a vontade geral é uma idéia da razão que:

[…] obriga todo legislador a fornecer as suas leis como se elas pudessem emanar da vontade coletiva de um povo inteiro, e a considerar todo o súdito, enquanto quer ser cidadão, como se ele tivesse assentido pelo seu sufrágio a semelhante vontade. E esta, com efeito, a pedra de toque da legitimidade de toda a lei pública. Se, com efeito, esta é de tal modo constituída que é impossível a um povo inteiro poder proporcionar-lhe o seu consentimento (...) não é justa; mas se é apenas possível que um povo lhe o se assentimento, então é um dever considerar a lei como justa. (KANT, 2004, p. 297)

 

Seja como for, jamais Kant imputará virtude ao cidadão como condição de possibilidade do estabelecimento de um Estado, ou mesmo de um Estado justo: “o homem está obrigado a ser um bom cidadão, embora não seja obrigado a ser moralmente um homem bom. O problema do estabelecimento do Estado, por mais áspero que soe, tem solução, inclusive para um povo de demônios (contando que tenham entendimento)” (KANT, 2004, p. 366). Por isso, pode haver injustiça, ou seja, o legislador pode errar: “a injustiça de que, na sua opinião, ele é vítima só pode, segundo aquele pressuposto, ter lugar por erro ou por ignorância do poder soberano quanto a certos efeitos das leis [...] Com efeito, admitir que o soberano não pode errar ou ignorar alguma coisa seria representá-lo como agraciado de inspirações celestes e superior à humanidade. Por isso, a liberdade de escrever (...) é o único paládio dos direitos do povo” (KANT, 2004, p. 366).

Desse modo, quando ele operacionaliza a vontade unida do povo, o direito racional da liberdade garantido de forma moral ancora em um sujeito que não pode deixar de querer tal direito, embora possa errar, haja vista as leis nunca demandarem efetivamente a manifestação de todos os concernidos por ela. No caso de Kant, em última análise, te-se-ia, portanto, que apelar a um sujeito moral que não pode se recusar a dar seu consentimento aos direitos humanos. Dito lapidarmente, o que se registra em Kant é um déficit de operacionalização da forma jurídica quanto ele trata da relação entre a vontade individual e a coletiva. Ou seja, Kant exagera na moralização do direito. Como se verá, o problema de Rousseau é outro, ele exagera na concretude da forma de vida como condição para sustentar o acordo da vontade privada e da vontade geral.

Tanto em Kant quanto em Rousseau parece haver um mecanismo do direito que medeia os direitos humanos e a soberania do povo, porém, como Habermas afirma, isso não está “suficientemente claro”, especialmente no caso de Kant. Seja como for, em Direito e democracia Habermas encaminha a solução kantiana da relação entre direitos humanos e soberania popular por um outro viés que não este da forma do direito. Assim, ele não estipula que pelo fato de a soberania popular ter que apresentar seus produtos sob a forma da lei jurídica e sendo a lei jurídica abstrata e universal, eo ipso, não haveria como abrigar conteúdo contra os direitos humanos. Melhor dito, como o procedimento deve produzir um produto válido para a vontade  de todos, a igualdade exigida pelo direito inato à liberdade seria realizada por uma espécie de automatismo do procedimento (HABERAMAS, 1997, p. 127). Essa, como se verá, é uma das interpretações possíveis que ele atribui a Rousseau.

No que concerne a Kant, portanto, o caminho, como dito, seria bem outro, na interpretação de Habermas. Para Kant, o direito inato à liberdade teria um fundamento moral, pois ele obteria o princípio universal do direito via aplicação do imperativo categórico a relações externas. Sabidamente, essa foi a tese sustentada por Gregor (1963)[5]. Seguir-se-ia dessa posição que “os princípios do direito privado já valem como princípios morais no estado natural” (HABERMAS, 1997, p. 135). No que concerne a Rousseau, por seu turno, primeiro ele constituiria a autonomia do cidadão via contrato e depois introduziria um vínculo com os direitos humanos: “como a vontade soberana do povo somente pode exprimir-se na linguagem de leis abstratas e gerais, está inscrito naturalmente nela o direito a iguais liberdades subjetivas, que Kant antepõe, enquanto direito humano fundamentado moralmente, à formação política da vontade” (HABERMAS, 1997, p. 135).

Desse modo, no caso de Kant, a vontade unida do povo é formulada de tal modo a abarcar todos, como um sinônimo da igualdade, o que permite que não haja injustiça (volenti non fiat iniuria). No procedimento realmente levado a cabo para legislar, não precisa haver o acordo de todos, mas deve ser possível a todo o povo dar o seu acordo. A tensão entre vontade individual e vontade coletiva ocorreria porque, por um lado, o acesso que Kant tem aos direitos humanos é prévia a qualquer ato de soberania e, por outro lado, a soberania teria uma origem que não portaria conexão com os direitos humanos. Segundo Habermas, a partir de Maquiavel, o poder político passou a ser interpretado de forma naturalística, como algo que pode ser calculado estrategicamente. Tratar-se-ia, portanto, de um poder fático de mando. O que os teóricos do direito natural teriam feito seria revestir com o manto do direito as manifestações imperativas da vontade soberana. “Porém, o poder da vontade do senhor, canalizado pelas leis, continua sendo essencialmente o poder substancial de uma vontade apoiada na pura decisão” (HABERMAS, 1997, p. 175). Justamente nas obras de Rousseau e de Kant apareceria a tensão entre a vontade decisionista do soberano e as determinações formais da lei jurídica nas quais esta teria que ser explicitada, mormente a generalidade e a abstração, mas também a liberdade subjetiva que está implícita na forma jurídica, como a liberdade de motivação. Isso já estaria manifesto, incluso, na ideia kantiana de reformas paternalistas que deveriam ser conduzidas pelo soberano. Tratar-se-ia de um respeito hobbesiano pelo fato natural do poder político, exatamente o coração decisionista da política que separa direito e moral (HABERMAS, 1997, p. 175).

O ponto de Habermas, quiçá, é que em Kant o indivíduo já entra no contrato equipado com um direito, o qual ele não abrirá mão ou não poderá concordar em abrir mão. Desse modo, pode-se afirmar que esse direito fundamentado moralmente na humanidade como fim em si mesma adentraria na vontade soberana do povo e adentraria também no direito positivo. No fundo, Habermas está acusando Kant de ter operacionalizado a vontade geral de forma individualista, via imperativo categórico, nos termos da filosofia da consciência, e não por um procedimento discursivo de viés jurídico.

Na verdade, Kant é ambivalente porque tem uma estratégia dupla. Por um lado, ele não tem como manter uma motivação moral como fundamento do direito, isso por razões analíticas, vis-à-vis da sua definição do que consiste uma ação por dever, já que não se pode impor coativamente a prática de uma ação por dever; por outro lado, sob o ponto de vista do conteúdo, o direito racional continua vinculado à moral, como uma espécie de aplicação do imperativo categórico a relações externas, muito bem sublinhado por Gregor.

Assim sendo, parece haver um paradoxo porque, por um lado, Kant não parece imputar virtude ao cidadão, por outro lado, Habermas o interpreta de tal forma que ele opera a vontade unida do povo via imperativo categórico. Ora, tal determinação exige que a vontade seja boa, mas Kant não exige um cidadão virtuoso, como parece ser o caso de Rousseau, ao menos segundo a interpretação de Habermas. A (dis)solução desse problema está no seguinte: Kant pode alegar não haver oposição entre a vontade geral e a vontade particular porque, bem compreendido, aquilo que a vontade geral deveria estabelecer como direito racional seriam exatamente aquelas normas que poderiam ser queridas também moralmente, de tal forma que ambas seriam compatíveis porque a vontade geral deve corresponder ao que os indivíduos querem sob o imperativo categórico[6]. Essa parece ser a interpretação de Habermas.

Sem embargo dessa interpretação, para Kant, como visto, o fundamental é que seja “apenas possível que um povo lhe dê o seu assentimento”. Tal formulação alivia o cidadão da motivação moral, mas imputa à lei que for legislada a capacidade de poder contar com a motivação virtuosa. Com isso, ele é suficientemente sutil para não ter que admitir, como Rousseau, um cidadão ético.

 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Guido Antônio de. Sobre o princípio e a lei universal do Direito em Kant. Kriterion. N. 114, 2006.

GREGOR, Mary J. Law of Freedom: A Study of Kant’s Method of Applying the Categorical Imperative in the 'Methapysik der Sitten'. Oxford: Blackwell, 1963.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

HABERMAS, Jürgen. The Inclusion of the Other: Studies in Political Theory. Cambridge: MIT Press, 1998.

KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. [Trad. J. Lamego]. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.

KANT, Immanuel. Sobre a expressão corrente: isso pode ser correcto na teoria, mas nada vale na prática. Covilhã: Lusofia. Disponível em: http://www.lusosofia.net/. 2004

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 3. ed., São Paulo: Martins Fontes, 2000 [1949].

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. 2. ed., São Paulo: Abril Cultural, 1978.

RAWLS, John. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press, 1999 [1971].

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social. Paris: Aubier, 1943 [1757].

VOLPATO DUTRA, Delamar José. Manual de Filosofia do Direito. Caxias do Sul: Educs,  2008.



[1] Professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina. Graduado em Filosofia (UCS) e em Direito (UFSC), doutor em Filosofia pela UFRGS, com estágio de doutorado na Université Catholique de Louvain, Bélgica. Fez pós-doutorado na Columbia University (New York) sobre a relação entre Dworkin e Habermas. Fez também pós-doutorado na Aberystwyth University (País de Gales, Reino Unido) sobre o tema "Habermass Critique of Kant and Hobbes".

[2] “Normas do direito são, ao mesmo tempo e sob aspectos diferentes, leis da coerção e leis da liberdade” [HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. I]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 49].

[3] 39 «Ces clauses, bien entendues, se réduisent toutes à une seule - savoir, l'aliénation totale de chaque associé avec tous ses droits à toute la communauté: car, premièrement, chacun se donnant tout entier, la condition est égale pour tous; et la condition étant égale pour tous, nul n'a intérêt de la rendre onéreuse aux autres. De plus, l'aliénation se faisant sans réserve, l'union est aussi parfaite qu'elle peut l'être, et nul associé n'a plus rien à réclamer: car, s'il restait quelques droits aux particuliers, comme il n'y aurait aucun supérieur commun qui pût prononcer entre eux et le public, chacun, étant en quelque point son propre juge, prétendrait bientôt l'être en tous; l'état de nature subsisterait, et l'association deviendrait nécessairement tyrannique ou vaine» [ROUSSEAU, Jean- Jacques. Du contrat social. Paris: Aubier, 1943 [1757], livre I, ch. VI].

[4] TP, AA 08: 296. Locke apresenta como fundamento do princípio majoritário a força superior da maioria em relação à minoria: “sendo necessário ao que é um corpo para mover-se em um sentido, que se mova para o lado para o qual o leva a força maior, que é o consentimento da maioria” [LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. [Trad. A. Aiex e E. Jacy Monteiro: Concerning Civil Government, Second Essay]. 2. ed., São Paulo: Abril Cultural, 1978. cap. VIII]. Kelsen, por sua vez, sustenta o seguinte: “a idéia subjacente ao princípio da maioria é a de que a ordem social deve estar em consonância com o maior número possível de sujeitos e em discordância com o menor número possível de sujeitos [...] é o princípio da maioria que assegura o grau mais alto de liberdade política possível dentro da sociedade. Se uma ordem social não pudesse ser modificada pela vontade de uma maioria simples de sujeitos, mas apenas pela vontade de todos (ou seja, de modo unânime), ou pela vontade de uma maioria qualificada (por exemplo, por um voto majoritário de dois terços ou três quartos), então um único indivíduo, ou uma minoria de indivíduos, poderia impedir uma modificação na ordem” [KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 3. ed., [L. C. Borges: General Theory of Law and State]. São Paulo: Martins Fontes, 2000 [1949], p. 412]. Para Rawls, a regra da maioria é escolhida por questão de efetividade, pois “não há outro modo de lidar com o regime democrático”. No entanto, ele implica, como contrapartida, que “the parties accept the risk of suffering the defects of one another’s knowledge and sense of justice in order to gain the advantages of an effective legislative procedure” [RAWLS, John. A Theory of Justice. [Revised Edition]. Oxford: Oxford University Press, 1999 [1971], p. 312].

[5] Almeida também segue essa estratégia: ALMEIDA, Guido Antônio de. Sobre Sobre o princípio e a lei universal do Direito em Kant. Kriterion. N. 114, 2006, p. 209-222.

[6] Com efeito, é possível encontrar em Kant formulações como esta: “O ato pelo qual o próprio povo se constitui em um Estado, [...] é o contrato originário, de acordo com o qual todos (omnes et singuli) no povo entregam sua liberdade externa, para imediatamente retomá-la como membros de uma república, i. e., do povo considerado como Estado (universi), e não se deve dizer que o homem no Estado sacrificou a um fim uma parte de sua liberdade externa inata, mas que ele abandonou totalmente a liberdade selvagem sem lei, para reencontrá-la sem diminuição em uma dependência legal, i. e., em um estado jurídico, porque esta dependência procede de sua própria vontade legisladora” [KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. [Trad. J. Lamego]. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, MS, AA 06: 315-316]. Aliás, muito semelhante a esta outra de Rousseau:

«On pourrait, sur ce qui précède, ajouter à l'acquis de l’état civil la liberté morale qui seule rend l'homme vraiment maître de lui; car l’impulsion du seul appétit est esclavage, et l'obéissance à la loi qu'on s'est prescrite est liberté» [ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social. Paris: Aubier, 1943 [1757], Livre I, chap. VIII].