KARL-OTTO APEL (1922-2017)

contribuições filosóficas

Delamar José Volpato Dutra[1]

Universidade Federal de Santa Catarina

djvdutra@yahoo.com.br

1 A virada linguística

Em 1965 Rorty publicou um livro sobre a virada linguística. Sabidamente, 25 anos depois ele revisou profundamente, senão abandonou, aquela visão primeva da filosofia da linguagem que ele sustentara em 1965, já que a qualifica, sob o olhar de 1990, como quaint (RORTY, 1992, 371). O slogan da chamada filosofia analítica da linguagem ou da virada linguística era: problemas de filosofia são problemas de linguagem. A virada linguística teria, ao final, feito uma contribuição importante para a filosofia, no sentido de mudar a perspectiva da experiência, como sendo o meio da representação, para a linguagem, como sendo tal meio (RORTY, 1992, 373). A vantagem dessa mudança seria que o termo sentença ou proposição, que os filósofos da linguagem passaram a usar, não conteria uma ambiguidade que palavras como experiência e ideia portariam, que poderiam significar tanto impressão dos sentidos, quanto crença.

De todo modo, a filosofia analítica da linguagem carregaria consigo, para o olhar de Rorty de 1990, dois problemas. O primeiro é que não haveria algo tão definido como a filosofia. O segundo é que não haveria algo como a linguagem, assim como aparece na expressão problemas de linguagem (RORTY, 1992, 371). Linguagem e filosofia não nomeariam algo unificado, contínuo, estruturado, mas seriam atividades humanas vagas e amorfas (RORTY, 1992, 374). Justo isso seria um impedimento para a possibilidade de se desenhar um método para a filosofia, amiúde, pretendido pela perspectiva analítica da linguagem, que nem mesmo haveria uma natureza própria dos problemas filosóficos (RORTY, 1992, 374). Dito claramente, haveria muitas maneiras de fazer filosofia, como haveria diversas filosofias feitas de diversas maneiras. Um programa de pesquisa filosófica poderia, sim, terminar, como ocorreu com o tomismo e, talvez, estivesse a ocorrer o mesmo com a imagem representacionista cartesiana do conhecimento, como, aliás, denunciado pela própria filosofia analítica da linguagem (RORTY, 1992, 374), o que, por certo, mostra a dificuldade de se identificar a natureza da atividade filosófica, bem como lhe atribuir um método próprio.

Para se ter uma ideia do cenário da época, basta lembrar que o predomínio da filosofia analítica da linguagem com inspiração no primeiro Wittgenstein, aquele do Tractatus, cuja tônica era a defesa das proposições da ciência como sendo as únicas portadoras de valor de verdade, implicou uma crítica radical, não só da metafísica, mas também da ética, da estética, da filosofia política, bem como de outras áreas da Filosofia.

Um dos textos fundantes da ética discursiva bem resume esse cenário:

Como já se sugeriu anteriormente, alguns pressupostos básicos da filosofia analítica moderna, diante de uma fundamentação da ética normativa, fazem- na parecer praticamente impossível. Procuraremos ter presentes os mais importantes dentre esses pressupostos:

1. Não se pode derivar normas de fatos (ou: de proposições descritivas não se podem deduzir proposições prescritivas e, portanto quaisquer 'juízos de valor'). [...]

2. A ciência à medida que proporciona cognições conteudísticas, trata de fatos; por isso é impossível haver fundamentação científica de uma ética normativa (APEL, 2000, 427).

 

Seja como for, na introdução de 1965, Rorty fizera uma espécie de prospecto para a filosofia da linguagem, de acordo com o qual, depois da dissolução dos problemas tradicionais, o que era o intentado pelo programa da filosofia analítica da linguagem, seis possibilidades abrir-se-iam (RORTY, 1992, 34). Importa aqui destacar a sexta possibilidade. Esta possibilidade avança no sentido de transcender a perspectiva da dissolução de problemas pela análise da linguagem, em direção a uma atividade de descoberta de "condições necessárias para a possibilidade da própria linguagem (em um estilo análogo ao modo pelo qual Kant buscou descobrir condições necessárias para a possibilidade da experiência)" (RORTY, 1992, 35). Strawson é nomeado por Rorty como representante de um tal viés. Ora, é bem conhecida a influência de Strawson sobre Apel e Habermas. Nesse particular, soa quase como se Rorty estivesse prefaciando obras de Apel e de Habermas, já que, como bem pontua Bernstein (2010), Habermas teria um pragmatismo kantiano. Sem embargo, um dos títeres desse pragmatismo da linguagem de viés kantiano viria a ser justamente Apel (REPA, 2016).[2]

O presente estudo se dedica a destacar as tensões desse percurso do qual participam Apel e Habermas. O artigo defende, portanto, que ambos os autores são partícipes de um mesmo projeto de filosofia de linguagem, o qual ensaia vestir a filosofia analítica da linguagem em trajes kantianos, tendo em vista uma argumentação de viés transcendental, como sugerido por Rorty. Pretende, sobretudo, apontar para uma tensão entre os dois pensadores, a qual diz menos respeito a diferenças substantivas de pensamento e mais respeito a disputas de família, no sentido de quem realizaria na melhor luz um projeto comum (HABERMAS, 2007, p. 91, 114). Vale registrar que muitas teses fundamentais de Habermas já estão presentes nas Christian Gauss Lectures[3] (1971), e em Teorias da verdade (1972), sendo que o livro de Apel, Transformação da filosofia, foi publicado em 1973.

Em março de 1999, Apel pronuncia as Mercier Lectures, em Louvain-la-Neuve. As oito lições foram publicadas em 2001 sob o título The Response of Discourse Ethics to the Moral Challenge of the Human Situation as Such and Especially Today e depois em alemão como um capítulo de Transzendentale Reflexion und Geschichte (2017). Toma-se, como hipótese, considerar essas lições como um apanhado geral e, principalmente, uma sistematização que Apel fez de sua própria proposta filosófica com um todo.[4] Por isso, pretende-se tomá-lo como fio condutor e como base da presente exposição.

 

2 O princípio do discurso

A Teoria da ação comunicativa (1981), marca, de forma sistemática, a incorporação da filosofia da linguagem pela teoria crítica reconstruída por Habermas, que havia sido preparada por Trabalho e interação (1967), Christian Gauss Lectures

1971) - ministradas em Princeton -, Teorias da verdade (1972), Transformação da Filosofia - de Apel (1972-3) -, e Pragmática universal (1976). Tem-se, durante a década de 70, em conjunto com Apel, o desenho da racionalidade comunicativa. Tratava-se, então, de analisar/reconstruir as condições de possibilidade dessa manifestação da racionalidade.

Ainda que todo espectro das pretensões de validade esteja sob o escopo do princípio do discurso, o referido princípio parece um princípio vocacionado para a ética. Nesse diapasão, Apel, quando pôs o foco na ética, começa por apresentar uma hipótese sobre a gênese histórica da mesma. Nesse particular, ela é pensada como uma resposta a um problema que teria resultado do processo evolutivo, precisamente quando surgiu o animal humano. A evolução, que gerou a humanidade, despotencializou o papel dos instintos como mecanismo bem-sucedido de sobrevivência de todos os animais, o qual, com a hominização, teria sido compensado pelas determinações da razão. Nesse cenário, ele acata a teoria de Arnold Gehlen segundo a qual as instituições cumpririam ou substituiriam a função dos instintos, na medida em que aliviaram exigências teóricas e práticas que cada um teria que tomar, em função do eclipse dos instintos (APEL, 2001, 5-6). Ele atribui à ética, nesse processo evolutivo, justamente, uma função metainstitucional, no sentido da crítica dos fundamentos das instituições (APEL, 2001, 6-7), o que já implicaria atividade discursiva, comunicativa. A problemática avança, então, pelas instituições, pela guerra nuclear, mas, para ele, especialmente avança na consideração da intervenção que os humanos passam a fazer no meio ambiente (APEL, 2001, 11), o que acabou por tomar dimensões planetárias. Essa reconstrução quer mostrar um desafio que ele caracteriza como externo à ética, no sentido de que seria uma demanda advinda de fora do próprio campo da ética, a demandar uma resposta que ele nomina como ética da responsabilidade (APEL, 2001, 12).

A esse desafio externo, ele ajunta um desafio interno, o qual demanda que sejam construídos padrões éticos, como a regra de ouro (APEL, 2001, 13). Nesse sentido, a racionalidade estratégica dos imperativos hipotéticos não se perguntaria pelos fins (APEL, 2001, 15). Ora, a comunicação parece precisamente poder comportar a função primordial de encontrar quais fins deveriam ser buscados, na medida que seriam tais fins que estariam em acordo com o interesse de todos (APEL, 2001, 16). Nessa perspectiva, ele reclama do relativismo dos comunitaristas (APEL, 2001, 68), de Rorty (RORTY, 1991) e mesmo de Rawls (APEL, 2001, 21), por não ofertarem, sob o ponto de vista interno, uma fundamentação universal da ética, o que teria como consequência uma falha dessas formulações éticas em sua capacidade de resolução dos desafios externos à ética. Mesmo Kant teria falhado nesse quesito, inclusive porque a fundamentação por ele proposta ficaria a meio-caminho, pelo apelo a um fato da razão (APEL, 2001, 24).[5]

Portanto, a fundamentação seria um desafio interno à ética, já, a questão da guerra nuclear, a situação da ecologia no mundo de hoje e a justiça social seriam desafios externos (APEL, 2001, 29). Os desafios externos mostrariam as insuficiências das respostas dadas internamente e clamariam por uma nova fundamentação (APEL, 2001, 27). O seu diagnóstico da situação filosófica da Europa em meados do século XX é que esta tenderia a ver a moralidade como uma questão privada irracional, como seria já o caso da religião (APEL, 2001, 31). Porém, o desenvolvimento científico e tecnológico levantara problemas globais, a exigir uma ética da responsabilidade global. Logo, nem a ética existencialista, para ele irracional, nem a racionalidade científica livre de valores poderiam ofertar uma resposta a essa problemática externa à própria ética (APEL, 2001, 32). Do lado marxista, a resposta não teria sido melhor. De tal forma que, no ocidente, o resultado teria sido a paralisia da racionalidade ética pelo absolutismo da racionalidade científica livre de valores, já, no leste europeu, a ética teria sido substituída por uma corrupção da ciência e da própria ética, no sentido de pensar esta última como uma ciência incluída no materialismo dialético da evolução da história, em vez de pensá-la discursivamente (APEL, 2001, 35). Devido à sobrecarga teórica do modelo marxista, ele concebe a alternativa liberal do ocidente "como a única base disponível para uma ordem política e econômica global, que inclui implicitamente a moral e o direito" (APEL, 2001, 35).

Concernente ao ponto do desafio interno à ética, aquele da fundamentação, ele anota que muito embora a dedução lógica tenha marca importante, ela conduziria ao trilema de Münchhousen (APEL, 2001, 39-40). Particularmente, em relação à ética, ter-se-ia que, ou derivá-la de evidências empíricas, o que conduziria a uma falácia naturalista, ou derivá-la de normas já consideradas válidas. Isso é o que pavimentaria o caminho em direção à racionalidade instrumental ou estratégica, cujos fins seriam já sempre já dados, o que tornaria, outrossim, impossível uma fundamentação racional da ética (APEL, 2001, 40). Nesse sentido, como bem pontua Hobbes, a razão nada mais seria do que cálculo (HOBBES, 1979, cap. V).

Em contraponto a essa reconstrução, ele parte da constatação de que todo pensamento, argumentação, ocorre pela linguagem. Com isso, abre-se a possibilidade de uma reflexão transcendental das condições de possibilidade da comunicação que ocorre pela linguagem. O seu ponto específico será que o "pensamento tem o caráter de uma argumentação pela linguagem e que a racionalidade comunicativa da argumentação pressupõe normas morais" (APEL, 2001, 41).

Bem entendido, trata-se de uma pragmática transcendental da linguagem como transformação da filosofia transcendental kantiana (APEL, 2001, 41-2).

 

3 Argumentos transcendentais

A Teoria da ação comunicativa (1981) foi o gatilho que levou Apel a remarcar as diferenças de sua posição com relação àquela de Habermas, concernente à fundamentação. Sabidamente, a pragmática universal e a pragmática transcendental resumem a posição de Habermas e a de Apel, respectivamente. O segundo concorda com Habermas no projeto, mas discorda na estratégia (APEL, 1989, 15). Habermas, por sua vez, diz que ele e Apel colocam os acentos em lugares distintos (HABERMAS, 1984, 7). Não obstante, intenta-se apontar, por um lado, para um aspecto no qual considera-se que Apel não interpreta corretamente a posição de Habermas, a saber, que o mundo vivido seria o fundamento último da teoria crítica e da ética, justamente uma leitura que Apel fez induzido pela Teoria da ação comunicativa, e, por outro lado, intenta-se apontar para uma divergência entre ambos no que diz respeito ao estatuto dos argumentos transcendentais de fundamentação.

No referido texto, Apel começa por constatar a sua concordância em relação a Habermas, no que concerne ao apelo ao conceito de mundo vivido como "pré- estrutura da faticidade do ser-no-mundo que compreende, estrutura anterior a todo entendimento mútuo" (APEL, 1989, 16). Dessa forma, Habermas, por um lado, quereria salvaguardar a universalidade das pretensões de validade e do princípio do discurso. É isso que se quer traduzir com a expressão quase-transcendental, uma versão débil do argumento pragmático-transcendental. Mas, por outro lado, rejeita    como impossível e inútil uma fundamentação última, "válida a priori, da pretensão filosófica à validade dos enunciados necessários da discussão argumentativa" (APEL, 1989, 19). Nesse sentido, Habermas teria "contestado os enunciados da pragmática universal e utilizado, sem limite algum, o princípio do falibilismo para os enunciados (válido somente fatualmente, no sentido (para Habermas) de sem alternativa possível) da pragmática filosófica universal" (APEL, 1989, 19). A partir dessas considerações, Apel reconstrói, como ele mesmo intitula, a estratégia de Habermas de "fundamentação antifundamentalista" da teoria crítica, por meio de duas figuras argumentativas que poderiam ser assim resumidas:

a)      Habermas aceita como necessários os pressupostos do entendimento, da comunicação, como as quatro pretensões de validade e o princípio do discurso, o que demandaria, para Apel uma argumentação transcendental de fundamentação última (APEL, 1989, 23-4); e

b)    considerando que Habermas recusa o estatuto de uma fundamentação última à argumentação transcendental, o seu recurso de fundamentação seria aquele do mundo vivido (APEL, 1989, 25-8).

Em poucas palavras, no plano pragmático-transcendental, Habermas encontraria os elementos que a pragmática universal reconstruíra e que seriam intransponíveis. Sem embargo, por medo de perder o contato com a prática do mundo vivido, enquanto base material da filosofia, Habermas concederia ao fundamento comunicativo do mundo vivido não só a constituição de sentido intencional (gênese), mas também a justificação da validade (da ética, por exemplo) (APEL, 1989, 52).

Apel tentará demonstrar que:

a)      a primeira figura argumentativa, sem a fundamentação última, não seria suficiente para fundamentar normativamente a teoria crítica; e

b)      sob o ponto de vista da coerência do próprio projeto de Habermas, a fundamentação última do princípio do discurso seria mais apropriada ao projeto de fundamentação da teoria crítica do que o presumido apelo ao mundo vivido (APEL, 1989, 28-9).

Em síntese, o argumento de Apel poderia ser assim enunciado: Habermas, ao recusar uma fundamentação última para os enunciados da pragmática universal, substitui essa fundamentação última pelo recurso ao mundo vivido. Sem embargo, essa posição não é suficiente para cumprir a própria intenção de fundamentar a teoria crítica e a ética, por isso, sua posição é incoerente. Habermas deveria ter recorrido a uma fundamentação última.

Se por um lado Habermas discorda de Apel com relação à fundamentação última, por outro lado, não faz uma mera fenomenologia do mundo vivido como parece também sugerir Ferry (1996), já que, na interpretação deste, haveria uma diferença entre reconstruir e fundamentar:

Habermas entende reconhecer um primado ontológico ao Lebenswelt, ao 'mundo vivido' e, portanto, dá a preferência a uma reconstrução pragmático- fenomenológica sobre uma fundamentação pragmático-transcendental (...) [Assim,] Apel viu justamente: Habermas atém-se, firmemente, ao solo da experiência vivida para reconstruir a racionalidade da prática (FERRY, 1996, 164).[6]

 

Ora, a primeira consideração a ser feita refere-se à autorrefencialidade. É exatamente esta autorrefencialidade presente em certos atos comunicativos que permite o funcionamento da contradição performativa. A segunda consideração é que o método reconstrutivo ou descritivo (por exemplo em Strawson) não implica na contingência de um núcleo conceitual mínimo, mas apenas na contingência da formulação desse núcleo convencional, a partir das várias linguagens filosóficas. Não obstante, em todas as reconstruções permanece o elemento de autorrefencialidade dessas proposições, o que permite, ao menos, refutar a posição que afirma a contingência desse núcleo racional. Como bem atesta Kant:

Mas nada pior poderia suceder a estes esforços do que se alguém fizesse a descoberta inopinada de que não há nem pode haver em parte alguma um conhecimento a priori. Este perigo, todavia, inexiste. Seria como se alguém quisesse provar pela razão que não razão alguma (KANT, 2003, 43, A 23).

 

Nesse particular é que se torna relevante a relação da pragmática transcendental com a reformulação strawsoniana de Kant. De acordo com Habermas:

A filosofia distingue-se, no mais, pela auto-referencialidade de alguns de seus argumentos. Somente a auto-referencialidade da análise, certamente central, das pressuposições universais da argumentação, que nós não podemos empreender a não ser enquanto sujeitos argumentantes, não assegura à filosofia essa autarquia e essa infalibilidade que Apel liga à idéia de fundamentação última. Essa segunda reserva refere-se ao estatuto e ao sentido dos argumentos transcendentais, dos quais eu não posso tratar aqui em detalhes. Eu não quero senão chamar à memória o fato que, até o presente, falta o equivalente para alguma coisa como a dedução transcendental das categorias do entendimento de Kant – e essa alguma coisa também não está em vista. Mas, sem um tal equivalente, nós somos reenviados a argumentos transcendentais fracos, no sentido de Strawson (HABERMAS, 1991, 194).

 

Desse modo, Strawson conceberia a filosofia primeira como uma tarefa descritiva do que se poderia caracterizar como transcendental.[7] Tratar-se-ia de tentar encontrar um núcleo do pensamento humano que seria ahistórico: "For there is a massive central core of human thinking which has no history […] there are categories and concepts which, in their most fundamental character, change not at all" (STRAWSON, 2003, 10). O que está em questão, portanto, é o nosso esquema conceitual de ver o mundo, sendo que uma das condições desse esquema, segundo Strawson, seria, por exemplo, a identidade dos particulares.

Strawson não concebe uma prova dedutiva para suas descrições, mas uma prova refutativa, ou seja, as dúvidas do ceticismo não se constituiriam em verdadeiras dúvidas porque seriam dúvidas que equivaleriam a uma rejeição de todo o sistema conceitual no interior do qual somente tais dúvidas fariam sentido: "Thus his doubts are unreal, not simply because they are logically irresoluble doubts, but because they amount to the rejection of the whole conceptual scheme within which alone such doubts make sense" (STRAWSON, 2003, 35). Então, o ceticismo seria uma empresa autocontraditória que visaria a oferecer um sistema alternativo, contudo, não podendo fazer isso sem usar o que seria contestado. No caso específico de Strawson, pode- se dizer que o cético, ao tentar construir um outro esquema conceitual, não pode deixar de incluir, nesse sistema, particulares idênticos. Ou melhor, sua dúvida faria sentido sob o pressuposto da identidade do significado, do qual ele não pode se desfazer. Nesse diapasão, o argumento de Strawson explora "o caráter auto-refutativo da negação das proposições transcendentais" (GRAM, 1973, 263).

Haveria, para resumir, uma distinção entre demonstrar um princípio e provar a sua verdade pela destruição das provas contra ele (RÉGIS, 1935, 217). A fundamentação não teria um caráter último porque ela não seria logicamente estabelecida, isto é, demonstrada:

Em termos aristotélicos e, além disso, em toda boa doutrina aristotélica, Habermas não admite que a refutação possa jamais constituir uma demonstração. É, então, a cada vez que alguém recusa a admitir os a priori éticos, com cada sofista, que é necessário se aplicar em demonstrar que, pelo seu ato mesmo, ele se contradiz e trai a intenção de seu discurso que é de convencer e chegar a um acordo intersubjetivo (CASSIN, 1988, 152).

 

O que está em questão, com relação a esse particular, é o próprio método reconstrutivo utilizado por Habermas,[8] que as reconstruções

Referem-se a um saber pré-teórico de tipo universal, a uma capacidade universal (...) Quando o saber pré-teórico que de se reconstruir representa uma capacidade universal, quer dizer, uma competência (ou subcompetência) cognoscitiva, linguística ou interativa, o que começa sendo uma explicação de significados tem como meta a reconstrução de competências da espécie (HABERMAS, 1984, 370).

 

As reconstruções têm, portanto, uma pretensão especialíssima de descrever e tornar explícitas estruturas profundas de competência.

Embora não ceda ao ceticismo no que concerne às determinações fundamentais da racionalidade comunicativa, Habermas tem consciência de que o argumento de defesa contra o cético é um argumento indireto, é um modo de prova não dedutiva. O argumento leva o cético a ver o absurdo da negação das condições da comunicação. Por isso, a explicitação dessas condições do entendimento restaria hipotética. Ainda assim, seria um argumento suficiente para desafiar objeções recentes como a de Steinhoff (2009).

Ademais, não se deve entender hipótese no sentido de que possa ser confirmada empiricamente, como parece sugerir Apel (1989, 28-9). Habermas, nesse sentido, em acordo com Strawson, só nega "validade a priori" à explicitação dos enunciados da pragmática e, nesse sentido preciso, ele é um falibilista que propõe uma divisão do trabalho entre filosofia e ciências reconstrutivas. Não obstante, no tratamento da questão do transcendental, Habermas se alinha à perspectiva de Strawson:

For though the central subject matter of descriptive metaphysics does not change, the critical and analytical idiom of philosophy changes constantly. Permanent relationships are described in an impermanent idiom, which reflects both the age’s climate of thought and the individual philosopher’s personal style of thinking (STRAWSON, 2003, 10).

 

Nesse sentido preciso, cabe observar que Apel, às vezes, parece concordar com Habermas. Por exemplo, quando ele afirma: "estes enunciados (da pragmática) podem, no melhor dos casos, serem corrigidos enquanto que eles são uma explicitação do sentido que pressupõe sua própria verdade. Mas são infalíveis na medida em que enunciam as pressuposições necessárias do princípio falibilista" (APEL, 1989, 20, n. 7). Logo, tais pressupostos poderiam ser explicitados de forma defeituosa e incompleta (APEL, 1989, 38, 64).[9] Apel aceita que as condições da argumentação sejam revisáveis, mas não que elas tenham o estatuto de hipóteses empíricas (APEL, 1990, 37). Também Habermas não defende que elas sejam hipóteses empíricas, apenas que possam ser confirmadas, de forma indireta, pela coerência com os resultados de pesquisas empíricas. É o caso das pesquisas de Kohlberg no âmbito da ética. Para Habermas, os pressupostos da pragmática, enquanto pressupostos, são universais, infalíveis em cada caso, intranscendíveis em cada caso, mas os enunciados filosóficos que explicitam essa intuição são falíveis.

O que se pode afirmar é que, como o argumento da autocontradição performativa presume uma ação comunicativa concreta, então, em cada caso ela refuta o cético e, assim, em todos os casos, universalmente, mas não que daí resulte um transcendental no sentido da dedução proposta por Kant. Nesse sentido, ela não é última, mas é em cada caso. Ou seja, esse transcendental presume sempre uma condição para ser verdadeiro. Esse é exatamente o elemento pragmático. Então, a fundamentação não é última porque não se trata de verdades em si, mas de verdades como condição de possibilidade de alguma coisa, a saber, da ação comunicativa. Em momentos-chave de sua argumentação, Habermas transcende os limites do mundo vivido, rumo a uma fundamentação de caráter mais duro. É o que se percebe em seu ensaio de fundamentação da ética. Por isso, é plausível a tese de que Habermas fundamenta a ética nesses pressupostos incontornáveis da ação comunicativa e não no conceito de mundo vivido: "a ética discursiva refere-se àqueles pressupostos da comunicação que cada um de nós, intuitivamente, tem que fazer, sempre que quer participar seriamente de uma argumentação" (HABERMAS, 1984, 527). Como exposto, o princípio da ética discursiva é decorrência e é fundamentado nesses princípios, infalíveis em cada caso, da ação comunicativa. Habermas não apela ao mundo vivido para fundamentar a ética, e quando fá-lo é para dar um estatuto mais forte do que uma argumentação transcendental, já que a negação total do mundo vivido é inquinada de doença mental grave (CASSIN, 1988).

Aliás, é bom esclarecer que quando Habermas afirma "as intuições morais do cotidiano não precisam do esclarecimento do filósofo" (HABERMAS, 1989, 121), ele não está sugerindo um retorno a um estágio convencional da moral, mas, em analogia com Kant, que afirma que "no conhecimento moral da razão humana vulgar, chegamos nós a alcançar o seu princípio, princípio esse que a razão vulgar, em verdade, não concebe abstratamente numa forma geral, mas que mantém, sempre realmente diante dos olhos e de que se serve como padrão dos seus juízos" (KANT, 2009, 403), ele está sugerindo que também o PU já é operante nas estruturas comunicativas do mundo vivido.

 

4 A Ética Discursiva: fundamentação e aplicação

Segundo Apel, em relação à fundamentação da ética, ter-se-ia que pressupor junto aos atos de pensar também um princípio para a moral. Kant teria concebido algo assim quando buscou fundamentar o imperativo categórico em uma autoconsistência da razão [Selbsteinstimmigkeit der Vernunft], um fato da razão (APEL, 2001, 45). No caso de Apel, junto com a fundamentação transcendental do princípio do discurso, sempre é pressuposta a existência e a cooperação de participantes do discurso (APEL, 2001, 46). Como visto, a existência da linguagem não pode ser negada sem autocontradição performativa, bem como não pode ser negada a existência de uma comunidade de comunicação. Se tudo isso é procedente, então, a cooperação já estaria em operação no uso da linguagem, o que pressuporia também a performance de certas normas éticas fundamentais. Portanto, o princípio da ética da busca do consenso não pode ser negado sem autocontradição performativa. Tal princípio prescreve o procedimento de buscar consenso por meio de discursos práticos das pessoas afetadas ou por meio dos seus advogados (APEL, 2001, 47), caso em que todos têm igual direito de argumentar, bem como responsabilidade de argumentar. Ambos os pontos são cooriginais e constituem uma solidariedade primordial (APEL, 2001, 48), o que aponta para o pressuposto de uma comunidade ideal de comunicação, cuja negação implica autocontradição performativa (APEL, 2001, 49). Todo discurso argumentativo pressupõe algo como uma ética discursiva no sentido do igual direito de argumentar (APEL, 2001, 58). Nesse sentido, a ética filosófica teria por tarefa ofertar a fundamentação do procedimento, o que não significa que a filosofia detenha uma posição privilegiada de julgamento em relação a questões morais concretas (APEL, 2001, 62). Tal procedimento inclui regras como não ser morto, não ser enganado, bem como os direitos humanos (APEL, 2001, 63).

O problema básico da aplicação da ética discursiva Apel o entende em conexão com a falta de reciprocidade na cooperação (APEL, 2001, 83). Apel alega ser ele diferente do modo como Habermas e Günther o compreendem, pois estes pareceriam preocupados com uma espécie de 'escolha' de quais normas fundamentadas universalmente se adequaria melhor a um caso concreto, o que seria no máximo um experimento mental de aplicação, ao passo que ele estaria preocupado com a falta de reciprocidade em discursos reais de aplicação. Falta de reciprocidade significa falta de cooperação no discurso, inclusive pelo uso da ação estratégica (APEL, 2001, 94- 5). Por isso, precisaria um princípio de suplementação capaz de fazer as vezes do procedimento ideal que não ocorreria ou ocorreria de forma incompleta. A questão diria respeito ao que fazer em casos nos quais não haveria reciprocidade de responsabilidade comunicativa. Em tais casos, duas possibilidades abrir-se-iam: agir moralmente de acordo com a ética discursiva, como se houvesse tais condições idealizadas, a despeito da sua não efetividade na realidade, ou simplesmente abandonar o agir moral discursivo e passar a agir estrategicamente de acordo com a Realpolitik (APEL, 2001, 86).

Dito claramente, o mau curso do mundo em descompasso com a racionalidade comunicativa demandaria uma terceira alternativa, a qual não poderia se deter em uma reclamação de falta de motivação moral, como ele sugere ser a posição de Habermas (APEL, 2001, 87), mas teria que fazer uso da coerção, especificamente, o uso da coerção do direito. Contudo, um tal uso da coerção teria que ser justificado moralmente. Por certo, de acordo com Apel, não há autoridade no próprio princípio do discurso, já que este é um discurso livre de autoridade ['herrschaftsfreier Diskurs'], portanto, a autoridade do direito, e com ela a coerção, só poderia ser justificada eticamente. O direito positivo, coercitivo, não poderia ser uma especificação do princípio do discurso, mas ele teria que ser uma suplementação necessária, portanto legítima, em razão da falta de reciprocidade na responsabilidade discursiva. Em estado de natureza, a ética discursiva fica necessitada de suplementação. Apel pode pensar desse modo porque ele concebe a ética  discursiva nos termos de uma ética da corresponsabilidade situada historicamente, o que determina ter que justificar elementos de coerção (APEL, 2001, 90).

Haveria como que um duplo a priori, o da comunidade ideal de comunicação e o da comunidade real de comunicação (APEL, 2001, p. 90). Nesse sentido, a comunidade discursiva primordial implicaria uma antecipação contrafática da comunidade ideal de comunicação, de tal modo que, quando a aplicação da comunidade ideal de comunicação restasse impedida na comunidade real, isso clamaria por uma suplementação (APEL, 2001, 91). Ou seja, haveria reservas estratégicas, como os crimes, por parte de alguns, que demandariam uma 'estratégia de contra-estratégia' moralmente justificada, como dever de responsabilidade, já que seriam termos contrafaticamente aceitáveis para uma comunidade ideal de comunicação (APEL, 2001, 92). Seria uma espécie de compensação moral pelo mau curso do mundo. Com isso, ter-se-ia uma dimensão teleológica no sentido de uma ideia regulativa a ser realizada, o que seria o caso mesmo no âmbito da comunidade ideal, em vista das dificuldades de se obter, mesmo nesta, um consenso de todos os afetados (APEL, 2001, 93). Vê-se bem, então, que a ética discursiva acaba como que exposta e contaminada pela situação histórica, incluso na parte A (APEL, 2001, 94).

Há que se apontar, por oportuno, para algumas dissonâncias entre Habermas e Apel sobre a ética discursiva. Na perspectiva de Habermas, Apel faria uma passagem muito rápida do princípio do discurso ao princípio da ética discursiva, sem maiores mediações, ou seja, por uma espécie de atalho que pareceria nem precisar apelar a procedimentos discursivos, já que capaz de extrair determinações substantivas bem concretas, quais sejam,

 

Dessa exigência (implícita) de toda argumentação filosófica, podem ser deduzidos a meu ver dois princípios regulativos e fundadores da estratégia moral de ação de todo ser humano a longo prazo: [...] assegurar a sobrevivência da espécie humana como comunidade real de comunicação; e, em segundo lugar, (de) que a comunidade de comunicação ideal se realize na comunidade real de comunicação. O primeiro objetivo é a condição necessária do segundo; e o segundo, dá ao primeiro o seu sentido – qual seja o sentido que já se antecipa com cada argumento (APEL, 2000, 487).

 

Essa falta de mediação ocorreria justamente porque Apel "pretende inferir, da autorreflexão sobre as normas pressupostas na argumentação, e sem nenhuma mediação, as obrigações morais para uma política que visa a produção de condições de vida morais para todos os homens em escala mundial" (HABERMAS, 2007, 112). Isso conduz a análise de Habermas a suspeitar na posição de Apel à espreita do rei- filósofo, ou seja, a figura do político solitário que em bases morais intenta pôr o mundo na devida ordem (HABERMAS, 1991, 197; 2007, 112).[10] Para Habermas, Apel substituiria o cidadão das democracias pelo político que atua moralmente. Desse modo, o possível caráter emancipatório da ética pensado por Apel, no sentido da sua relação com a teoria crítica da sociedade, acaba sendo por demais carregado moralmente:

Embora essa ética não possa deduzir o engajamento concreto na situação, ela pode conferir um parâmetro para a crítica, com base no qual o próprio engajamento pode se medir – seu êxito e seu fracasso. Essa necessidade não irá 'extinguir-se' com a 'burguesia', mas isso ocorrerá em todo caso quando a filosofia for 'superada' por sua 'efetivação') (APEL, 2000, 489).

 

Trata-se, portanto, nesse particular, de uma discordância no próprio design da ética discursiva. Soa como se Habermas acentuasse mais o aspecto processual da ética discursiva, ao passo que Apel já formularia determinações morais com algum conteúdo. Isso ocorre porque Apel tende a ver no princípio do discurso alguns elementos morais (APEL et al., 2004, 210, 249), no mínimo, senão a concebê-lo como sendo ele próprio tendo uma natureza moral: "não se pode dizer que a lógica implica logicamente uma ética. Contudo, pode-se afirmar que a lógica – e com ela todas as ciências e tecnologias – pressupõe, sim, uma ética como condição de possibilidade" (APEL, 2000, 451). Para Habermas, essa concepção implica uma indevida mistura de determinações lógicas com determinações éticas. Porém, haveria que se distinguir regras lógicas, ainda que pragmáticas, retratadas pelas condições de possibilidade do discurso, e conteúdos morais:

As tentativas feitas, até agora, para fundamentar uma ética discursiva, padecem do fato de que as regras da argumentação são curto-circuitadas com conteúdos e pressupostos da argumentação e confundidas com princípios morais enquanto princípios da ética filosófica (HABERMAS, 1989, 116-7).

 

Desse modo, Habermas faz uma dupla operação: confere natureza lógico- pragmática aos elementos do princípio do discurso, retirando-lhes qualquer natureza moral, e introduz dois princípios de argumentação discursiva, um princípio específico para a moral e outro específico para o conhecimento científico (HABERMAS, 1989, 144-5), cuja relação de inferência a partir do princípio do discurso é por abdução.

Seja como for, pareceu realmente um passo necessário a distinção feita por Apel entre uma parte A e uma parte B da ética discursiva, algo já pré-anunciado no próprio texto de 1973 (APEL, 2000, 482), o que remete à questão das relações entre a moral, o direito e a política. Deveras, a questão do direito e da democracia é seminal para a ética discursiva. A temática já aparece em 1973 no texto de Apel sobre a ética discursiva. Com efeito, o ato de fala em uma comunidade de argumentação é pensado como um direito: "pressupõe-se na comunidade de argumentação o reconhecimento recíproco de todos os membros como parceiros de discussão, com direitos iguais para todos" (APEL, 2000, 452, [ênfase acrescentada]).[11] É no mesmo texto que ele já correlaciona a ética discursiva com a democracia: "Com isso, parece-me já ter sido sugerido o princípio fundamental de uma ética da comunicação, que representa, ao mesmo tempo, o fundamento de uma ética da formação democrática da vontade por meio do convênio" (APEL 2000, p. 481, [ênfase acrescentada]).[12] Essa temática se torna cada vez mais saliente, como é indicativa a citação seguinte do início da década de 80:

If the idea of democracy has a normative-ethical quality, as I think it has, then it is nothing else than the idea of an approximate realization of the fundamental norm of consensual communication, namely, of mediating the ground of legitimation of norms or laws through a procedure of consensus formation. Of course, the affected individuals are only represented (in the parliament) and the discussions are terminated by 'decision-procedures,' as, for example, majority votes. But these pragmatic restrictions that may be modified again and again do not reduce the idea of democracy to that of just a decision procedure, as is maintained by many 'politologists' today (APEL, 1989, 126- 7).

 

Como bem pontua o comentador

This, in turn, implies a responsible politics that concerns itself with the further actualization of democratic rights, which alone ensure the symmetry, reciprocity, and reflexivity of all communication partners. Indeed, there is a close affinity, if not mutual correspondence, between discourse ethics as an ethics of responsibility and a normative theory of democracy (MENDIETA, 1996, XIV).

 

Contudo, na obra de Apel, o tema da democracia e do direito ficam à sombra de uma outra temática mais cara a ele, a saber, aquela do tratamento ético responsável da política, entendida de um ponto de vista mais geral.

Em 1982, Apel publica Normative Ethics and Strategical Rationality: The Philosophical Problem of a Political Ethics, no qual ele propõe uma ética para a política. Em 1988, vem a lume Diskurs und Verantwortung, no qual ele acentua a relação entre a ética, a política e a responsabilidade, consubstanciada na distinção entre uma parte A e uma parte B da ética discursiva (APEL, 1988, 134). O texto A ética do discurso diante da problemática jurídica e política: as próprias diferenças de racionalidade entre moralidade, direito e política podem ser justificadas normativa e racionalmente pela ética do discurso? Foi publicado em 1992.[13] Neste texto, a distinção até então feita entre as partes A e B é caracterizada como vaga (APEL et al., 2004, 116). Neste momento (1992), ele vê no trabalho de Habermas das Tanner Lectures[14] uma melhor precisão com referência ao que estaria contido na parte B da ética discursiva por ele proposta. Ainda que o texto tenha sido publicado no mesmo ano de Faktizität und Geltung de Habermas, não há referência a ele no escrito de Apel. Deveras, o Habermas das Tanner Lectures pôde ser recepcionado por Apel como meio de precisar melhor a sua parte B da ética discursiva, no caso, pela introdução do direito de uma forma mais clara, como um mediador entre a moral e a política, porque Habermas entendera o direito nas Tanner Lectures como estando subordinado à moral, com o que Apel podia concordar integralmente, o que lhe permitiu destacar o direito como um dos elementos importantes da parte B de sua ética.

No entanto, as diferenças entre os dois ficarão mais evidentes a partir de Faktizität und Geltung (1992), que levará Apel, em 1998, no texto Dissolução da Ética do Discurso?[15] A contestar a nova arquitêtonica proposta por Habermas em Faktizität und Geltung. Sabidamente, Apel, em a Fundamentação normativa da "Teoria Crítica": recorrendo à eticidade do mundo da vida?[16], 1989, já tecera severas críticas ao empreendimento de Habermas desenvolvido em Teoria do agir comunicativo. Nestes dois últimos textos, ele ensaia pensar com Habermas contra Habermas, no sentido de que a posição de Habermas tornar-se-ia no mínimo mais coerente, mas também mais consistente, se se aproximasse de sua própria perspectiva de fundamentação última e se pensasse o direito submetido à moral, o que seria justamente o caso das Tanner Lectures.

Segundo Apel, Habermas entenderia o problema como sendo propriamente de natureza motivacional e apelaria à coerção jurídica como solução (APEL, 2001, 87). Contudo, a própria suplementação da ética pelo direito teria que ser fundamentada em termos éticos. A complementação proposta por Habermas pareceria ser mais sistêmica do que normativa. Habermas pareceria focar mais na diferenciação entre o direito, a moral e a política, o que implicou a propositura de um princípio do discurso neutro moralmente, cuja consequência, para Apel, seria a não possibilidade de fundamentar o próprio princípio da ética discursiva, inclusive pelo recurso à abdução. Ademais, a diferenciação proposta por Habermas, que recorre à neutralidade do princípio do discurso, impediria, também, a fundamentação normativa do direito positivo, pois isso não seria possível de ser feito de forma moralmente neutra (APEL, 2001, 89).

 

 5 Direito, um problema para a Teoria de Apel?

Nesse ínterim, no mesmo ano de 1992, no qual Faktizität und Geltung é publicado, Cohen & Arato lançam Civil Society and Political Theory, sem o conhecimento de Faktizität und Geltung, incluindo, também, ao que tudo indica, o desconhecimento das Tanner Lectures. No referido texto eles buscam verter a ética discursiva em um princípio de legitimidade democrática: "we reinterpret discourse ethics as a principle of democratic legitimacy" (COHEN, ARATO, 1992, 354). Segundo os autores, a legitimidade se mostra conjugada à democracia, ainda que não haja um modelo acabado de democracia: "It is indeed difficult to conceive of democratic legitimacy without democratic institutions" (COHEN, ARATO, 1992, 389). Uma tal formulação enseja que a ética discursiva tenha um aspecto institucional e que tal aspecto institucional seja no sentido da democracia, de tal modo que ela fundamentaria o princípio da legitimidade democrática, bem como fundamentaria um conjunto de direitos básicos: "we shall argue in this section and the next that (1) discourse ethics does have a link to an institutional level of analysis, and (2) the principles of democratic legitimacy and basic rights that it grounds imply an open ended plurality of democracies" (COHEN, ARATO, 1992, 389-390). Como um princípio de legitimidade, a ética discursiva teria por consequência que o direito e o poder, para se justificarem, terem que recorrer a procedimentos discursivos: "discourse ethics implies that the generation of law and power must be referred back to the democratic participation of all concerned in order to be considered legitimate" (COHEN, ARATO, 1992, 395). A tese é que a institucionalização de procedimentos discursivos seria algo implicado pela ética discursiva: "Discourse ethics has obvious relevance here, for it implies an institutionalization of discourses in civil society that is crucial for positing and defending rights" (COHEN, ARATO, 1992, 396). Ou seja, o potencial da ética discursiva para um tratamento normativo da democracia pareceu algo que deveria se seguir naturalmente como um passo seguinte. Um passo que, deveras, acabou sendo dado por Apel e por Habermas.

Portanto, até o momento, pode-se desenhar três modelos para se pensar o direito, a partir da ética discursiva. O primeiro [1] poderia ser esquadrinhado nas seguintes obras: Teorias da verdade (1972), O que significa pragmática universal (1976), Teoria da ação comunicativa (1981), Notas programáticas para a fundamentação de uma ética do discurso (1983) e Tanner Lectures (1986). De acordo com um tal modelo, o direito não desempenharia um papel de destaque, em contraponto com a moral e a política. O segundo [2] é o modelo proposto por Cohen & Arato em Civil Society and Political Theory (1992). Esse modelo foi construído a partir da ética discursiva, sem o conhecimento de Faktizität und Geltung, também de 1992. Contudo, diferentemente do modelo anterior do próprio Habermas, é dado um protagonismo maior ao direito, como mediação entre a moral e a política. Finalmente, [3] há o modelo desenhado em Faktizität und Geltung. No que diz respeito a Apel, ao que tudo indica, ele permaneceu em toda a sua obra adstrito ao primeiro modelo, tendo recusado explicitamente o terceiro deles.

Cohen & Arato são aqui nominados porque eles apontam para um problema que se quer dar destaque no presente estudo, a saber, aquele de que a ética discursiva não teria como fundamentar os direitos básicos. Este é justamente o problema que Habermas quer dar conta em Faktizität und Geltung, o que parece ter passado desapercebido no "debate" que houve entre ambos. Em relação ao ponto dos direitos básicos e a sua conexão com o princípio da ética discursiva, os autores destacam:

What relationship, if any, exists between the metaprinciples of discourse ethics and fundamental rights? There are three possible ways of conceptualizing such a relationship: (a) fundamental universal rights could be presupposed by discourse ethics, but the metanorms of rational discourse would not be able on their own to supply the 'ground' or principle for such rights; (b) fundamental rights could enter in as the content of a possible rational consensus; or (c) fundamental rights could be implied by the metaprinciples of discourse ethics. We shall argue that all three ways of relating discourse ethics and basic rights obtain, depending on which classes of rights one is considering" (COHEN, ARATO, 1992, 396-7, [ênfase acrescentada]).

 

Não se pretende expor o modelo por eles construído, nem o cotejar com o modelo que o próprio Apel e Habermas vieram a defender, mas apenas enfatizar o que eles reconheceram ser uma insuficiência de uma reconstrução que fosse calcada exclusivamente nos recursos que a ética discursiva poderia suprir, como parece ser o caso de Apel.

Deveras, se o direito for entendido como "a liberdade negativa de retirar-se do espaço público das obrigações ilocucionárias recíprocas [...] e a recusa de obrigações ilocucionárias" (HABERMAS, 1997a, 156), então, o princípio do discurso não pressupõe direitos desse jaez. Contudo, se a política for considerada como distinta da ética, como pensa a modernidade, pelo menos desde Maquiavel, e se se buscar compreender a política democraticamente ou se for intentado aplicar o princípio do discurso à política, ou seja, se se tentar pensar a política de acordo com a racionalidade comunicativa, então, os processos de institucionalização de direitos, mormente os constitucionais, já pressupõem o exercício de certos direitos. Para explicitar isso sem recurso à noção de direitos naturais, Cohen & Arato introduzem o conceito de metacondição do discurso, no caso, o princípio do discurso pressuporia a autonomia privada, a qual seria o elemento-chave do conceito de direitos básicos: "we can link the idea of rights to the metaconditions of discourse: Without individuals whose autonomy is guaranteed by rights, the demanding preconditions of rational discourse (against which any empirical agreement can be measured) cannot in principle be met" (COHEN, ARATO, 1992, 397). A autonomia que está na base dos direitos seria, para os autores, um "princípio moral substantivo" que não poderia ser fundamentado pela racionalidade comunicativa, haja vista, para esta, a liberdade estar conectada com obrigações ilocucionárias: "In this context, autonomy means the ability to take on dialogue roles, to engage reciprocally in ideal role taking, […] in order to determine their universalizability and arrive at a common agreement on general norms" (COHEN, ARATO, 1992, 398). Dito claramente, o problema desta concepção de autonomia que seria ofertada pela racionalidade comunicativa é que ela não seria aquela propriamente declinada no conceito de direitos básicos. Na verdade, a concepção de autonomia pressuposta pelo princípio do discurso em conexão com a política concebida democraticamente é que ela seria parasitária de uma concepção de autonomia mais complexa: "parasitic on a more complex principle of autonomy that is not derivable from the metaprinciples of rational discourse" (COHEN, ARATO, 1992, 398, [ênfase acrescentada]). Este conceito de autonomia seria complexo por envolver dois aspectos, um abstrato, a autodeterminação, ligado ao conceito de pessoa no sentido jurídico e um outro concreto [situated], ligado à habilidade de construir, revisar e buscar planos de vida (COHEN, ARATO, 1992, 398). Nesse ponto, para os autores, haveria a conjugação de dois aspectos: a reciprocidade simétrica do princípio do discurso e a autonomia do indivíduo participante. Ora, justamente este segundo aspecto não se seguiria do princípio do discurso: "Accordingly, there is a sense in which an important dimension of rights involves negative liberties and personality rights that do not flow directly from discourse ethics" (COHEN, ARATO, 1992, 399, [ênfase acrescentada]). Está-se a falar do que se convencionou chamar de direitos negativos ligados à personalidade jurídica.

Ora, sabe-se que a construção de Habermas em Faktizität und Geltung apela justamente à liberdade que habita a forma jurídica, como forma de dar conta do tratamento desse problema fundamental para uma teoria consistente dos direitos básicos. Nesse desiderato, Habermas não contesta a liberdade mediante a qual Hobbes definiu o direito natural; ao contrário, ele a aceita (HABERMAS, 2001, 144-5; 1998, 191; 1998, 109). Com efeito, segundo Hobbes, o direito, por ser coercitivo, só pode ter sob seu comando a ação externa: “that no human law is intended to oblige the conscience of a man, but the actions only” (HOBBES, 1928, chap. 25, §3). Desse modo, não haveria como abarcar os estados mentais, como as crenças:

 

um outro erro em sua filosofia civil (o qual nunca aprenderam com Aristóteles, nem com Cícero, nem com qualquer outro dos pagãos) para aumentar o poder da lei, a qual é apenas a regra das ações, a ponto de abarcar os próprios pensamentos e consciências dos homens. (HOBBES, 1979, cap. XLVI). [17]

 

Kant parece ter seguido pelo mesmo caminho ao restringir o direito [em cotejo com a moral] às ações externas, ao arbítrio (não ao desejo) e à formalidade da relação entre os arbítrios, de tal forma que "O direito é, pois, o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode ser reunido com o arbítrio do outro segundo uma lei universal da liberdade" (KANT, 2014, 230).

Habermas toma como central a caracterização kantiana da legalidade, cuja origem ele em Hobbes, como mostrado pouco. Vê-se, então, que a caracterização do conceito de forma jurídica, de suma importância na fundamentação do sistema de direitos básicos proposta por Habermas, tem raízes fortes na conceituação hobbesiana de liberdade. Nesse diapasão, o que Habermas faz é alterar a fundamentação de uma tal definição, seja para afastá-la do nominalismo hobbesiano, seja para afastá-la de uma fundamentação naturalista. Isso é feito com base na forma jurídica tal qual formulada por Kant, cujo elemento central é justamente aquele da coerção, no sentido preciso de que a coerção teria o efeito de pôr em cena uma concepção peculiar de liberdade: “O curioso é que a positividade do direito força uma divisão da autonomia, que não possui equivalente no campo da moral. [...] Por isso, a autonomia jurídica não coincide com a liberdade em sentido moral” (HABERMAS, 1997b, 310-1, [posfácio]).

Isso posto, o que significa precisamente a dicção de que “[...] a autonomia jurídica não coincide com a liberdade em sentido moral?” (HABERMAS, 1997b, 310- 1, [posfácio]). De acordo com Habermas, “O sentido dos direitos subjetivos consiste inicialmente em desligar, de um modo bem circunscrito, os sujeitos de direitos de mandamentos morais, abrindo aos atores espaços de arbítrio legítimo” (HABERMAS, 1997b, 311, [posfácio]). A citação parece significar que as liberdades comunicativas, tais quais definidas no contexto da Teoria da ação comunicativa, portariam mais semelhanças com uma compreensão moral das mesmas, ao passo que, no contexto de Faktizität und Geltung, as liberdades comunicativas passariam a se aparentar mais com a liberdade juridicamente concebida, haja vista a formulação da mesma sob a forma jurídica dos direitos subjetivos.

Ora, não se consegue reconhecer em Apel essa problemática. Ele prefere caracterizar os elementos definidores do princípio do discurso em termos de direitos iguais (APEL, 2000, 452, [ênfase acrescentada]; APEL et al., 2004, 210). Porém, como visto, não está contido nesse uso da palavra direito, nesse contexto, o significado do uso da palavra direito, por exemplo, nas declarações de direitos humanos, que referem à liberdade negativa, inclusive de se retirar da comunicação, como interpretado por Habermas. Tanto isso é verdade que Apel descreve os direitos que comporiam o princípio do discurso no sentido da sua conexão com a responsabilidade, portanto, seria uma liberdade vinculada (APEL et al., 2004, 210, 249)

Como anotado, esse é precisamente o ponto destacado por Cohen & Arato, ponto, aliás, levado a sério por Habermas em Faktizität und Geltung, inclusive no intento de buscar o tipo de liberdade próprio do direito em uma fonte diversa do princípio do discurso, a saber, a forma jurídica. Já, o texto de Apel muito embora sinalize para o problema, qual seja, aquele dos limites da intervenção moral que poderia beirar a um tipo de totalitarismo (APEL et al., 2004, 110), ele não dá indícios de tê-lo enfrentado.

A bem da verdade, destacam-se dois problemas na abordagem de Apel, a primeiro, e mais importante, é este do significado dos direitos. O outro problema é aquele do tratamento da coerção. Senão, veja-se.

Nesse ponto reside uma das maiores discordâncias com Habermas, já que, para este, “a forma jurídica não é um princípio que possa ser ‘fundamentado’ epistêmica ou normativamente”[18] Há discussão se a coerção é elemento central do uso da palavra direito (HABERMAS, 1997a, 147)[19], como parecem pensar Hobbes, Kant, Kelsen, Apel, Dworkin[20], Habermas, e há aqueles que, como Hart, sustentam que a coerção é no máximo um dos elementos do direito, nem mais e nem menos importante do que outros elementos, como a moral e as regras (HART, 1994, 18).

Para os que defendem o primeiro ponto, torna-se necessária uma justificação da coerção. Em geral, essa justificação segue o seguinte esquema: tem-se uma norma fundamentada moralmente e a coerção se justifica em função desta. No caso de Hobbes tal norma é o contrato que tem base na lei natural, um meio para a obtenção da paz. A coerção é, então, introduzida de forma estratégica: "And Covenants, without the Sword, are but Words, and of no strength to secure a man at all” (HOBBES, 1968, chap. XVII). Kant, no § C da Doutrina do direito, define o direito sem o concurso da coerção, a qual é ajuntada estrategicamente nos dois parágrafos que seguem, o § D e o §E, como "impedimento de um impedimento da liberdade". O próprio Apel parece, em algumas passagens, acompanhar essa posição, como a sua explicação da gênese da moral no sentido de uma compensação para instintos (APEL et al., 2004, 227-8).

Apel quer algo mais musculado. Ele quer uma fundamentação moral da própria coerção como forma das normas jurídicas (APEL et al., 2004, 224). Apel intenta justificar a coerção nos termos do princípio do discurso do seguinte modo. O princípio do discurso, que é o fundamento da cognição moral, o que ele nomina de parte A da ética discursiva, implica, como uma espécie de verso da medalha, o princípio da responsabilidade, ou seja, a determinação de levar a sério um curso político de realização do princípio do discurso. Com isso, pareceria estar indicada uma fundamentação ética da coerção do direito, nos próprios termos do princípio do discurso, enquanto princípio de fundamentação da ética. Para ele, a responsabilidade seria mais do que deontológica, ela teria um elemento teleológico que estaria conectado com a realização do Estado de direito (APEL et al., 2004, 231-2). Seria esse elemento teleológico, como verso da medalha da parte dentológica, que daria a requerida fundamentação moral. Seria um postulado da razão prática (APEL et al., 2004, 232).

Realmente, é uma tese forte, pois, um argumento é dizer que haveria justificação de a moral usar da coerção como meio para seus fins, outra coisa é dizer que haveria um dever moral de usar da coerção com essa finalidade (APEL et al., 2004, 126; HABERMAS, 2007, 113). A bem da verdade, o argumento de Apel faz um sutil deslocamento da fundamentação da coerção para a fundamentação da coerção do Estado de direito (APEL et al., 2004, 139), o qual é um conceito já normativo, cuja relação com a coerção gerada pelo poder político já é mediada, de tal forma que a coerção gerada pelo poder político é fenômeno mais primitivo[21] que não é tocado pelo argumento de Apel, inclusive porque é uma coerção que pode ser usada para outros fins, mesmo considerados imorais, como ocorreu em muitos casos ao longo da história, de tal sorte que, em realidade, o argumento de Apel não se distingue substantivamente daqueles de Habermas, Kant e outros, ou seja, de uma complementaridade funcional entre os dois sistemas. Na verdade, o argumento se distingue no sentido de que Habermas se encaminha na direção da defesa da juridicização da política como forma de sua domesticação e não na direção do "reforço moral das virtudes do agir político, que parece ser a solução acalentada por Apel" (HABERMAS, 2007, 112). Para Habermas "O que Apel oferece na 'parte B' como forma de compromisso de uma moral capaz de calcular perspectivas de sucesso de uma moral em geral, desconhece a dimensão de uma justificação democrática da política, que poderia ter como resultado uma civilização das condições de vida" (HABERMAS, 2007, 113).

Nesse sentido da juridificação [Verrechtlichung], um "aproveitamento funcional de um poder [Gewalt] do Estado" (HABERMAS, 1997a, 169), o qual, funcionalizado pelo sistema de direitos, ou seja, juridificado, transmuta-se em poder [Macht] político (HABERMAS, 1997a, p. 169-170). Nesse sentido preciso, há uma implicação ou pressuposição da sanção:

Tais aspectos não constituem meros complementos, funcionalmente necessários para o sistema de direitos, e sim, implicações jurídicas objetivas, contidas in nuce nos direitos subjetivos. Pois o poder [Macht] organizado politicamente não se achega ao direito como que a partir de fora, uma vez que é pressuposto por ele: ele mesmo se estabelece em formas do direito. O poder [Macht] político só pode desenvolver-se através de um código jurídico institucionalizado na forma ade diretos fundamentais (HABERMAS, 1997a, 171).

 

Desse modo, o argumento parece falhar, já que o seu recurso ao Estado de direito é na verdade o apelo a um conceito normativo, mas nele não está implícita a coerção. Isso se vê justamente nas tensões que pode haver entre a soberania que detém a coerção e o Estado de direito, como conceito normativo que se configura mediante os direitos humanos. É nesse sentido que Habermas fala em domesticação do poder político pelo Estado de direito (HABERMAS, 2007, 108), o qual consiste justamente em uma exigência de usar da coerção de um modo justificado, de tal forma que o raciocínio feito não pode avançar mais do que o argumento funcional avançou.

 

6 Uma Ética para a Democracia?

Direitos são melhores candidatos do que a moral para relacionar com a coerção. Como visto há pouco, Habermas sustenta que a coerção é uma implicação dos direitos e não um complemento funcional, bem como afirma que a coerção é mesmo pressuposta pelos direitos. Por certo, quem conceba a possibilidade de um sistema jurídico despido de coerção. Seja como for, boas razões para não conectar a coerção com a moral. Primeiro, porque o tipo de liberdade que opera na moral é infensa à coerção. Cediço, também, que a liberdade jurídica é infensa ao direito, não obstante, há assimetrias importantes nos dois casos. Para o direito, a liberdade, justamente por lhe ser infensa, não lhe concerne, diferentemente da moral para quem o tipo de liberdade não importa, como pode ser tudo o que importa. Desse modo, o uso da coerção pela moral não poderia receber uma fundamentação normativa ou epistêmica porque ela não conseguiria efetivar o tipo de liberdade, cujo funcionamento a moral exigiria, inclusive, para o caso da ética discursiva. Desse modo, a ética discursiva pode se aproximar da coerção e desafiá-la para seus propósitos, mas ciente das limitações, a começar pela dificuldade de justificar um dever específico de uso da coerção para implementar a moral no mundo, precisamente o desiderato de Apel, pelo qual, a moral não poderia usar da coerção para se autoimplementar de maneira funcional, como ela teria o dever de fazer isso. Com isso, tornar-se-ia obrigatório fazer política para implementar a ética. Tornar-se-ia um dever implementar estruturas políticas e jurídicas que estivessem de acordo com a racionalidade comunicativa.

Sem embargo, isso enfrentaria graves problemas. Primeiro porque a coerção seria um meio ineficaz para tal, tendo que se contentar, ao final, apenas com a conduta externa dos agentes, o mesmo, aliás, que ocorreria com um povo de diabos. O coração, morada da moral, é inacessível à coerção. Segundo porque "a moral constitui uma bússola por demais imprecisa e, inclusive, enganadora" (HABERMAS, 2007, 113).

Se efetivar a ética discursiva for considerado um dever que acompanha o princípio do discurso, como se fosse o seu verso da medalha, então, o que significaria implementar a comunidade ideal de comunicação? Forçar as pessoas a serem livres? Seria um dever implementar a comunidade ideal e preservar a real, sob pena de irresponsabilidade. Pois bem, o que seria preservar a comunidade real? Voltar à idade da pedra no uso dos recursos naturais? Se não, qual o arbitramento que a ética discursiva poderia ofertar? Qual o nível de preservação? O aborto atentaria contra a preservação da comunidade real de comunicação? Poder-se-ia torturar para preservar a comunidade real? E a eutanásia, seria permitida? Até que ponto a violência poderia ser usada para implementar a democracia? Ademais, se é uma espécie de ética da política ou ética da democracia, como verso da medalha da ética discursiva, qual o limite para a incursão na liberdade individual das pessoas, a fim de torná-las parceiras cooperativas na comunidade de comunicação? Até um ponto semelhante ao da inquisição? Ademais, de qual democracia tratar-se-ia? Da liberal? Da marxista?[22] Seria possível sociedades decentes sem democracia? King, o líder dos movimentos civis, estaria autorizado a usar da violência?

Talvez, essas sejam razões para uma maior modéstia, primeiro, para dizer que a moral deve se deter na fundamentação e não desenhar um mundo moral. Ademais, há boas razões para uma justificação no máximo instrumental do uso da coerção por parte da moral, que tornar a coerção uma face necessária de todo dever ético implicaria o problema de um governo moral do mundo. Portanto, a parte B da ética discursiva levanta, a bem da verdade, o questionamento do quão democrática ela é. Aliás, vale anotar, nesse particular, que Apel não libera a democracia da submissão à moral (APEL et al., 2004, 300-1). Desse modo, a concepção de Apel é uma ética da democracia, mas não uma teoria da democracia, pelo menos, não uma teoria no sentido jurídico, haja vista a ética discursiva, por si mesma, a partir de seus próprios recursos, não ter como dar conta do aspecto jurídico, ainda que ela possa fundamentar um determinado tipo de uso da coerção estatal, como faz Kant, por exemplo.

Na parte B da ética discursiva proposta por Apel, a política é central. O direito compõe um elemento da parte B que faz a mediação entre a moral da parte A e a política da parte B (APEL et al., 2004, 115). Não só Apel reconhece que isso é muito vago, como há que se acrescentar um problema pouco tratado, qual seja, a própria noção de direitos fundamentais. Nesse diapasão, sustenta-se que o máximo que a perspectiva de Apel poderia ofertar em relação a esse particular seria algo muito semelhante à proposta feita por Cohen & Arato, os quais, não obstante, reconheceram um limite intransponível para uma estrutura conceitual assim entendida. Desse modo, a rigor, Apel não consegue alocar o direito como instância mediadora entre a ética discursiva e a política, como intentado. Uma solução possível teria que avançar na direção de algo semelhante ao que Habermas fez em Faktizität und Geltung, que Apel, em todo caso, ainda não conhecia até os textos de 1992, incluindo aquele de 1992, e, quando conheceu tal proposta, ele a rejeitou no texto de 1998, mas não foi capaz de vislumbrar a limitação que Cohen & Arato corretamente perceberam.

A coerção e o poder são fatos brutos multicausados. Eles podem ser justificados de forma estratégica para a implementação de normas. Porém, há um ponto fundamental da forma jurídica que não há como justificar moralmente e nem pelo princípio do discurso. Ainda que a moral pudesse fundamentar um uso justificado da coerção, esta, por um lado, continua a ter uma gênese empírica ligada ao poder. Por outro lado, a própria coerção, mesmo a justificada moralmente ou pelo direito racional, revela uma dimensão, um aspecto, um sentido, da liberdade que é distinta da liberdade moral e da liberdade comunicativa. Desse modo, a coerção revela ou vem acompanhada por um tipo de liberdade específica da forma jurídica.

 

7 Conclusão

As discordâncias de Apel e de Habermas em relação à fundamentação do princípio do discurso se devem mais a uma questão de ênfase do que propriamente a uma diferença substantiva entre ambos, sem contar que não implicaria grave prejuízo à posição de Habermas se ele admitisse o que Apel defende e vice-versa. Isso sob a reserva de que o apelo que Habermas faz ao mundo vivido não chega ao ponto da substituição da argumentação transcendental. O desacordo é mais sobre o estatuto dos argumentos transcendentais. O termo quase-transcendental usado por Habermas sinaliza o teor do desacordo.

Em relação ao programa de fundamentação da ética discursiva, no essencial, ambos concordam que a ética discursiva pode ser fundamentada no princípio do discurso. Contudo, Apel concebe o princípio de universalização quase como o verso da medalha do próprio princípio do discurso, ao passo que Habermas clama por mais mediações, como a concepção de um princípio como instância para o funcionamento dos discursos morais, a saber, o princípio de universalização.

O que Habermas faz em 1992 não é propriamente desacoplar o princípio do discurso do princípio da moral, pois, ele, a bem da verdade, já o fizera anteriormente, precisamente com o destaque do princípio de universalização em relação ao princípio do discurso, quase como se fossem espécie e gênero, o que ele, então, faz, verdadeiramente, em 1992, é desconectar o direito e a democracia do princípio de universalização e, por consequência, dar destaque a um princípio próprio para o âmbito do direito e da política. Para tal, ele teve que deixar mais clara a neutralidade do princípio do discurso, precisamente a tese do texto de 1992.

 

REFERÊNCIAS

APEL, Karl-Otto et al. Sprachpragmatik und philosophie. Frankfurt: Suhrkamp, 1982.

APEL, Karl-Otto, OLIVEIRA, Manfredo Araújo de, MOREIRA, Luiz. Com Habermas, contra Habermas: direito, discurso e democracia. São Paulo: Landy, 2004.

APEL, Karl-Otto. Auseinandersetzungen in erprobung des transzendental-pragmatischen Ansatzes. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1998.

APEL, Karl-Otto. Das a priori der Kommunikationsgemeinschaft und die Grundlagen der Ethik. In: Transformation der philosophie. Band II. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1973, p. 358-435.

APEL, Karl-Otto. Das Problem einer philosophischen Theorie der Rationalitästypen. In: SCHNADELBACH (Ed.) Rationatät. Frankfurt: Suhrkamp, 1980.

APEL, Karl-Otto. Der Denkweg von Charles S. Peirce. Eine Einführung in den amerikanischen Pragmatismus. Frankfurt: Suhrkamp, 1975.

APEL, Karl-Otto. Die Erklären: Verstehen-Kontroverse in transzendenta-lpragmatischer Sicht. Frankfurt: Suhrkamp, 1979.

APEL, Karl-Otto. Die idee der sprache in der tradition des humanismus von dante bis vico. 3 Aufl, Bonn: Bouvier, 1980.

APEL, Karl-Otto. Discourse Ethics, Democracy, and International Law: Toward a Globalization of Practical Reason. American Journal of Economics and Sociology. v. 66, n.. 1, p. 49-70, 2007.

APEL, Karl-Otto. Diskurs und Verantwortung. Das Problem des Übergangs zur postkonventionellen Moral. Frankfurt: Suhrkamp, 1988.

APEL, Karl-Otto. Diskursethik vor der Problematik von Recht und Politik. In: APEL, Karl-Otto, KETTNER, M. (ed). Zur Anwendung der Diskursethik in Politik, Recht und Wissenschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992. p. 29-61.

APEL, Karl-Otto. Limiti dell'etica del discorso? Tentativo di un bilancio intermedio. In: APEL, Karl-Otto et al. Etiche in dialogo: tesi sulla razionalità pratica. Genova: Marietti, 1990.

APEL, Karl-Otto. Normative Begründung der “Kritischen Theorie” durch Rekurs auf lebensweltliche Sittlichkeit? Ein transzendentalpragmatisch orientierter Versuch, mit Habermas gegen Habermas zu denken. In: HONNETH, Axel et al.

APEL, Karl-Otto. Paradigmen der ersten philosophie: Zur reflexiven – transzendentalpragmatischen Rekonstruktion der Philosophiegeschichte. Frankfurt: Suhrkamp, 2011.

APEL, Karl-Otto. Penser avec Habermas contre Habermas. Paris: L’Éclat, 1990.

APEL, Karl-Otto. Regarding the relationship of morality, law and democracy: on Habermas’s Philosophy of Law (1992) from a transcendental-pragmatic point of view. In ABOULAFIA, Mitchell, BOOKMAN, Mayra, KEMP, Catherine [ed.]. Habermas and pragmatism. Routledge: London, New York, 2002, p. 17-30.

APEL, Karl-Otto. Selected Essays. V. 2. Ethics and the Theory of Rationality. Atlantic Highlands: Humanities Press, 1996.

APEL, Karl-Otto. The response of discourse ethics to the moral challenge of the human situation as such and especially today. (Mercier Lectures, Louvain-la- Neuve, March 1999). Leuven: Peeters, 2001.

APEL, Karl-Otto. Transformação da filosofia II. São Paulo: Loyola, 2000 [1973].

APEL, Karl-Otto. Transformation der philosophie. Band I/II. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1973.

APEL, Karl-Otto. Transzendentale reflexion und geschichte: Herausgegeben und mit einem Nachwort von Smail Rapic. Frankfurt: Suhrkamp, 2017.

BERNSTEIN, Richard J. The pragmatic turn. Cambridge: Polity Press, 2010.

CASSIN, Barbara. “Parle si tu es un homme” ou l’exclusion transcendantale. Les Études Philosophiques. n. 2, p. 145-155, 1988.

CASSIN, Barbara. “Parle si tu es un homme” ou l’exclusion transcendantale. Les Études Philosophiques. n. 2, p. 145-155, 1988.

CIRNE LIMA, Caros R. V. Sobre a contradição pragmática como fundamentação do sistema. Síntese. v 18, n. 55, p. 595-616, 1991.

COHEN, Jean L., ARATO, Andrew. Civil society and political theory. Cambridge: MIT Press, 1992.

DWORKIN, Ronald. Justice for hedgehogs. Cambridge: Harvard University Press, 2011.

DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986.

FERRY, Jean-Marc. Sur la fondation ultime de la raison: "penser avec Apel contre Apel". In BOUCHINDHOMME, Christian, RAINER, R. (org.). Habermas, la raison, la critique. Paris: Cerf, 1996.

GEBURTSTAG. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989. p. 15-65.

GRAM, M. S. Categories and transcendental arguments. Man and world. v. 6, n. 3, 1973.

GREEN, Leslie. The authority of the State. Oxford: Clarendon Press, 1988.

HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. [M. Seligmann-Silva: Die postnationale Konstellation: Politische Essays]. São Paulo: Littera Mundi, 2001 [1998].

HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. (Trad. Guido A. de Almeida: Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989 [1983].

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [v. II]. [Trad. F. B. Siebeneichler: Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997a.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. [V. I]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997b.

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. [F. B. Siebeneichler: Zwischen Naturalismus und Religion: Philosophische Aufsätze]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007 [2005].

HABERMAS, Jürgen. Erläuterungen zur Diskursethik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991.

HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. 4. Auflage, Frankfurt am MaIn Suhrkamp, 1994 [1992].

HABERMAS, Jürgen. Justification and aplication: remarks on discourse ethics. [Translated by Ciaran Cronin]. Cambridge: The MIT Press, 2001.

HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa: complementos y estudios previos. (trad. M.J. Redondo: Vorstudien und Ergänzungen zur Theorie des Kommunikativen Handelns). Madrid: Cátedra, 1989.

HABERMAS, Jürgen. Teoria e práxis. [Rúrion Melo: Theorie und Praxis]. São Paulo: Editora UNESP, 2013 [1963].

HABERMAS, Jürgen. The Inclusion of the Other: Studies in Political Theory. [Transl. Ciaran Cronin: Die Einbeziehung desanderen Studien zur politischen Theorie]. Cambridge: MIT Press, 1998 [1996].

HABERMAS, Jürgen. Vorstudien und Ergänzungen zur Theorie des Kommunikativen Handelns. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984.

HART, H. L. A. O conceito de Direito (com um pós-escrito). [A. Ribeiro Mendes: The Concept of Law]. 2. ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994 [1961].

HERRERO, F. Javier. A pragmática transcendental como "filosofia primeira". Veritas. v. 42, n. 4, p. 817-829, 1997.

HERRERO, Javier. A razão kantiana entre o logos socrático e a pragmática transcendental. Síntese. v. 18, n. 52, p. 35-57, 1991.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. [Trad. J. P. Monteiro e M.B.N. da Silva: Leviathan, or Matter, Form, and Power of a Commonwealth Ecclesiastical and Civil]. 2. ed., São Paulo: Abril Cultural, 1979 [1651].

HOBBES, Thomas. The Elements of Law Natural and Politic. Cambridge: Cambridge University Press, 1928 [1640].

HUGHES, Robert C. Law and Coercion. Philosophy Compass. v. 8, n. 3, p. 231– 240, 2013.

KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. (Trad. Valério Rohden: Kritik der praktischen Vernunft). São Paulo: Martins Fontes, 2003 [1788].

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. [Trad. G. A. de Almeida: Grundlegung zur Metaphysik der Sitten]. São Paulo: Discurso Editorial/Barcarolla, 2009 [1785].

KANT, Immanuel. Princípios metafísicos da doutrina do direito. [Trad. J. Beckenkamp: Metaphysische Anfangsgründe der Rechtlehre]. São Paulo: Martins Fontes, 2014 [1797].

KETTNER, Mathias. Discourse Ethics: Apel, Habermas, and Beyond. In REHMANN- SUTTER, C., DÜWELL, M., MIETH, D. Bioethics in cultural contexts: reflections on methods and finitude. Dordrecht: Springer, 2006, p. 299-318.

MENDIETA, Eduardo. Introduction. In APEL, Karl-Otto. Selected Essays. v. 2. Ethics and the Theory of Rationality. Atlantic Highlands: Humanities Press, 1996. RÉGIS, L.-M. L’Opinion selon Aristote. Paris/Ottawa: Vrin/IEM, 1935.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Sobre a fundamentação. Porto Alegre: EDPUCRS, 1993.

REPA, Luiz Sérgio. Os sentidos da reconstrução: método e política na teoria crítica de Jürgen Habermas. Tese de livre-docente. USP, 2018.

REPA, Luiz Sérgio. Reconstrução racional, argumento transcendental, fundamentação última: sobre o debate entre Habermas e Apel. Kriterion. n. 135, p. 741-758, 2016.

ROHDEN, Valério. Resenha VOLPATO DUTRA, Delamar José. Kant e Habermas: a reformulação discursiva da moral kantiana. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. Ethic@. v. 1, n. 1, 2002, p. 97-100.

RORTY, Richard. The Linguistic Turn: essays in philosophical methods. Chicago: University of Chicago Press, 1992 [1965].

SCHAUER, Frederick. The force of Law. Cambridge: Harvard University Press, 2015.

STARR, Bradley E. The Structure of Max Weber's Ethic of Responsibility. Journal of Religious Ethics. v. 27, issue 3, P. 407-434, 1999.

STEINHOFF, Uwe. The philosophy of Jürgen Habermas: a critical introduction. [K. Schöllner: Kritik der kommunikativen Rationalität: Eine Darstellung und Kritik der kommunikationstheoretischen Philosophie von Jürgen Habermas und Karl-Otto Apel]. Oxford: Oxford University Press, 2009.

ZWISCHENBETRACHTUNGEN: In Prozess der Aufklärung. Jürgen Habermas zum 60.



[1] Professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina. Graduado em Filosofia (UCS) e em Direito (UFSC), doutor em Filosofia pela UFRGS, com estágio de doutorado na Université Catholique de Louvain, Bélgica. Fez pós-doutorado na Columbia University (New York) sobre a relação entre Dworkin e Habermas. Fez também pós-doutorado na Aberystwyth University (País de Gales, Reino Unido) sobre o tema "Habermass Critique of Kant and Hobbes".

[2] A questão da fundamentação foi tema da recepção de Apel e Habermas no Brasil. Pode-se ajuntar ao texto de Repa: (CIRNE LIMA, 1991; DE OLIVEIRA, 1993; HERRERO, 1997; HERRERO, 1991).

[3] Actually, my research program has remained the same since about 1970, since the reflections on formal pragmatics and the discourse theory of truth first presented in the Christian Gauss Lectures." (HABERMAS, 2001, 149]. Nesse sentido, ver: (VOLPATO DUTRA, 2012, 219-239).

[4] Algo semelhante foi feito por Dworkin em seu livro Justice for Hedgehog.

[5] Sobre essa temática ver: (VOLPATO DUTRA, 2002; ROHDEN, 2002).

[6] Repa também segue o viés que destaca as consequências da união entre método reconstrutivo e argumentação transcendental, embora em um sentido diverso daquele de Ferry (REPA, 2016, 754).

[7] "Typically, a transcendental argument, as now construed, claims that one type of exercise of conceptual capacity is a necessary condition of another" (STRAWSON, 1983, 22).

[8] "A reconstrução racional, ao contrário, abrange sistemas anônimos de regras que podem ser seguidos por quaisquer sujeitos, uma vez que adquiriram as correspondentes competências sobre regras" (HABERMAS, 2013, p. 56). Ver a esse respeito: (REPA, 2018).

[9] A esse propósito, comenta Ferry (1996), Apel aceita revisar as formulações filosóficas, assumindo, assim, um certo falibilismo. Porém, um tal falibilismo não atingiria a verdade [Wahrheit], mas só a boa formulação/compreensão [Wohlgeformtheit, Verständlichkeit]. Por isso, a aderência de Apel ao falibilismo, assim entendido, seria meramente retórica (FERRY, 1996, 173-4).

[10] É interessante registrar que o próprio Apel endereça esta acusação do rei-filósofo para o modo como a ética teria sido concebida no mundo comunista, como alinhada a uma visão dialético-materialista da história, entendida em termos científicos. Isso poria de lado justamente o caráter discursivo da ética pela sua substituição pela ciência (APEL, 2001, 35).

[11] Ver também: (APEL et al. 2004, 210).

[12] Ver: (STRYDOM, 2017, 5).

[13] Compõe o cap. III do livro (APEL et al., 2004).

[14] O texto que ficou conhecido por esse nome resultou de algumas conferências proferidas por Habermas em 1986, em Harvard, sendo primeiramente publicado com o título Law and Morality em 1988 no volume VIII da coleção The Tanner Lectures on Human Values, organizada por McMURRIN,

S. M., traduzida por K. Baynes. O original Habermas publicou nos estudos preliminares e complementares a Faktizität und Geltung, com o título Recht und Moral (Tanner Lectures 1986).

[15] Publicado como o cap. VI de: (APEL et al., 2004).

[16] O texto foi publicado como cap. I de: (APEL et al., 2004).

[17] “A state can constrain obedience, but convince no error, or alter the minds of them that believe they have the better reason” (HOBBES, 1990, 62). “As for the inward thought, and beleef of men […] they are not voluntary, nor the effect of the laws, but of the unrevealed will, and of the power of God; and consequently fall not under obligation” (HOBBES, 1968, chap. XL). Ou seja, o direito coercitivo do soberano “cannot oblige men to believe” (HOBBES, 1968, chap. XLII). “But what (may some object) if a King, or a Senate, or other Soveraign Person forbid us to beleeve in Christ? To this I answer, that such forbidding is of no effect; because Belleef, and Unbeleef never fowwou mens Commands” (HOBBES, 1968, chap. XLII).

[18] Diese Erläuterung ist Bestandteil einer funktionalen Erklärung, nicht etwa eine normative Begründung des Rechts. Denn die Rechtsform ist überhaupt kein Prinzip, das sich, sei es epistemisch oder normativ 'begründen' ließe" (HABERMAS, 1994, 143).

[19] HUGHES, Robert C. Law and Coercion. Philosophy Compass. v. 8, n. 3, p. 231–240, 2013.

[20] "O direito é uma questão sobre quais supostos direitos fornecem uma justificação para usar ou recusar a força coletiva do Estado" (DWORKIN, 1986, 97). No mesmo sentido: "Philosophies of law are in consequence usually unbalanced theories of law: they are mainly about the grounds and almost silent about the force of law. They abstract from the problem of force, that is, in order to study the problem of grounds more carefully" (DWORKIN, 1986, 111). Teorias da desobediência são mais sobre a força do direito do que sobre os fundamentos (DWORKIN, 1986, 113).

[21] "Yet the notion of authority is more primitive than that of law" (GREEN, 1988, 8]. "A política não se deixa moralizar diretamente" (HABERMAS, 2007, 112).

[22] "Só na sociedade comunista, quando a resistência dos capitalistas estiver perfeitamente quebrada, quando os capitalistas tiverem desaparecido e já não houver classes, isto é, quando não houver mais distinções entre os membros da sociedade em relação à produção, só então é que 'o Estado deixará de existir e se poderá falar de liberdade'. então se tornará possível e será realizada uma democracia verdadeiramente completa e cuja regra não sofrerá exceção alguma" (LÊNIN, 2011, 137).