ESFERA PÚBLICA, CIDADANIA MULTICULTURAL E FORMAÇÃO CRÍTICA EM JURGEN HABERMAS

 

Anderson de Alencar Menezes [1]

Universidade Federal de Alagoas

anderufal@gmail.com

 

1  INTRODUÇÃO

A temática que envolve este trabalho é de grande complexidade pelas relações imbricadas no mesmo. Penso que a questão da Esfera Pública numa ótica habermasiana se assinala a partir de algumas notas características. Primeira, deve-se realçar o aspecto Multicultural da cidadania, aspecto que recebe especial signifi cado na compreensão habermasiana, pois, insere-se na dimensão de Esfera Pública, algo fundamental na compreensão habermasiana. A segunda está contida na dimensão formativa da obra habermasiana que nos leva a compreender a Interculturalidade a partir da dimensão de Estado Pós- Nacional e suas implicações éticas e educativas no que toca à dimensão da aprendizagem social. A terceira envolve a temática em geral, pois nos apresenta a cidadania como um espaço de construção numa sociedade democrática, tarefa explícita da cidade educadora. De fato, este pensamento nos remete ao princípio da fi losofi a habermasiana que é a postulação de uma ação comunicativa como via de regra para o estabelecimento de uma sociedade esclarecida e emancipada.

 

2 DEMOCRATIZAÇÃO E REVITALIZAÇÃO DA ESFERA PÚBLICA

Em sua obra Mudança Estrutural da Esfera Pública , Habermas defi ne o que entende por Esfera Pública:

O uso corrente de ‘público’ e ‘esfera pública’ denuncia uma multiplicidade de signifi cados concorrentes. Eles se originam de diferentes fases históricas e, em sua aplicação sincrônica sobre relações da sociedade burguesa industrial tardia e organizada sócio-estatalmente, entram num turvo conúbio. As mesmas relações que, no entanto, se contrapõem ao uso tradicional do termo, um emprego um tanto confuso dessas palavras, parecem até mesmo exigir a sua manipulação ideológica. Pois não só a linguagem corrente fi nca pé nisso (ao menos aquela já impregnada pelo jargão das burocracias e dos mídias); também as ciências, sobretudo Direito, Ciência Política e Sociologia, estão, evidentemente impossibilitadas de substituir categorias tradicionais como ‘público’ e ‘privado’, ‘esfera pública’, ‘opinião pública’, por defi nições mais precisas. Ironicamente, tal dilema vingou-se primeiro na disciplina que, expressamente, faz da opinião pública o seu objeto: com o avanço das técnicas empíricas, diluiu-se, como uma grandeza impossível de ser captada, aquilo que a public opinion research propriamente deveria captar; também a sociologia não é consequente e não desiste pura e simplesmente dessas categorias, pois ainda se continua a tratar de opinião pública tanto quanto anteriormente (Habermas, 1984,p. 13-14).

 

Neste âmbito de compreensão, o conceito de “esfera pública” é um conceito sociológico vital e fundamental na estrutura arquitetônica do pensamento habermasiano. Todavia, o autor prefere falar de Esfera Política Pública, ideia representativa de uma democracia liberal assentada no conceito de formação da vontade da opinião pública. Obviamente que a Esfera Política Pública adquire signifi cado quando os princípios democráticos formam as bases das dinâmicas societárias.

O fato é que a revitalização da Esfera Política Pública nos remete à ideia de um Estado liberal representativo, em que as forças políticas não são oriundas única e exclusivamente dos meios jurídicos ou políticos, estritamente falando, mas advindas das relações que se estabelecem no espaço público em que os cidadãos são “cidadãos” e na medida em que se autocompreendem enquanto atores sociais numa determinada esfera pública.

É de fundamental importância retomar Marx nesta discussão pois, para ele, a opinião pública é a representação da falsa consciência, enquanto ela oculta de si mesma o seu verdadeiro caráter de máscara do interesse da classe burguesa. Neste sentido, o que Habermas justamente procura evitar é que a Esfera Pública seja dominada pelo império da opinião pública como império dos muitos e dos medíocres. Daqui surge a sua ideia de consenso, enquanto aspecto regulador e normatizador dos vários interesses societários.

Ao se falar de revitalização da esfera pública, temos que levar em consideração a interpenetracão progressiva da esfera pública com o setor privado. Neste sentido, a teoria política do Estado alcança aqui o seu fundamento e síntese, ou seja, pensar a esfera pública significa pensá-la a partir da relação intrínseca entre sistema e mundo-da-vida.

Neste âmbito de compreensão, para além do “público” e do “privado” surge a esfera do social, cujo intuito é o de dissolver esta relação paradoxal no âmbito da vida pública, politicamente falando. Por outro lado, trata-se de recolocar, no lugar normativamente desejado, a ideia de uma esfera social repolitizada, cujo intuito fundamental é de não permitir que esta política “neo-mercantilista” promova uma espécie de “refeudalização” da sociedade, em que o público e o privado não se distinguiam enquanto tal e que a esfera do social, que é um fenômeno mais moderno, fi que desconstituído dos potenciais mais constitutivos, principalmente no que toca aos aspectos de crítica e reconstrução do tecido socio-político.

Nesta perspectiva, conforme Morrow e Torres (2002), é no âmbito da revitalização da esfera pública que, para Habermas, a aprendizagem democrática se dá de um modo mais complexo e diversifi cado. Há uma distinção que ambos estabelecem entre Freire e Habermas que deve ser realçada. Enquanto que o foco da concepção primária de emancipação prática de Freire é pequena, no contexto internacional de prática pedagógica, para Habermas, o foco tem sido a questão da transferência destes princípios para um nível de larga escala para seus agentes coletivos. Como nós devemos perceber, o foco de Freire na possibilidade de construção de uma provisória e pequena esfera pública como interação básica de emancipação da educação foi amplamente relacionada à história do discurso de Habermas e que se encontra nas origens do modelo de democracia surgido nos séculos XVII e XVIII.

De acordo com Morrow e Torres (2002), a preocupação habermasiana com a questão educacional se dá em três pontos fundamentais: 1) no do signifi cado histórico da institucionalização dos discursos; 2) no da relação geral da educação entre a esfera pública e a democracia, em especial as regras das universidades e 3) no do signifi cado do “novo” movimento social como forma de aprendizado coletivo relacionado à revitalização da esfera pública. Portanto, para Habermas, a educação passa pela formação de novos movimentos sociais em que o aprendizado coletivo nos âmbitos da esfera pública passa pela construção de uma cidadania cívica, ética e refl exiva.

A partir desta perspectiva, as instituições de ensino fazem parte de um complexo discurso que contribui para o processo universal do aprendizado da coletividade. Em termos evolutivos, outros exemplos dramáticos de discursos institucionalizados incluem o questionamento teórico das interpretações míticas e religiosas; o sistema que testa a validade para a reivindicação do profano (científi co) e os conhecimentos relacionados com a ética profi ssional da emergência da esfera pública que poderia representar a questão política, isto é, a democracia burguesia.

Neste nível, a compreensão habermasiana original se dá no âmbito do papel das Universidades na esfera pública na contemporaneidade. Morrow e Torres (2002) sustentam que Habermas atribui às universidades um papel estratégico, aqui se referindo ao contexto das universidades alemãs, em que grande parte das reformas implementadas falharam. Apesar de suas falhas, as universidades preservam sua importância como exemplos de comunicativo racional e criativo enquanto “esferas públicas internas especializadas” que carregam a nota promissória de surpresa argumentativa, uma vez que, a qualquer momento, um novo ponto de vista pode surgir, uma nova ideia aparecer inesperadamente.

 

3 ESFERA PÚBLICA, FORMAÇÃO CRÍTICA E APRENDIZAGEM SOCIAL

Para Robert Young , em sua obra A Critical Th eory of Education: Habermas and Our Children’s Future, o desenvolvimento de uma teoria crítica da educação tem sido complexa.

Deve-se notar que a mais recente teoria crítica da educação foi concluída à maestria do Marxismo. O processo de ensino era visto como parte de um processo social geral de formação dos seres humanos. As forças produtivas eram mediadas pelo processo histórico da formação dos indivíduos e das instituições onde eles viviam. Neste sentido, o autor referido nos leva a compreender:

O ponto principal da teoria crítica da educação foi o desenvolvimento crítico vindo de uma perspectiva educacional, desenhada pelo leste tradicional marxista, uma crítica com prática, isto é, educacional, intencional. Mas desenhado apenas pela tradição mais seletiva. Como Keckeisen tem mostrado, as bases intelectuais de muitos dos recentes teóricos constituem-se como movimento auto-crítico a partir de um pensamento educacional. A concepção com a tradição de origem hegeliana atuou na maioria das formas de pensamento. O problema educacional foi defi nido assim em termos de ligação entre a realidade e a possibilidade, entre real e ideal. Enquanto este novo tipo de pensamento marxista foi considerado de impacto na Alemanha durante os anos turbulentos de 1960, como inclinação para a abstração das polêmicas e proteção desta turbulência numa velocidade em declínio somente pelo aquecimento do movimento estudantil que o subsidiou (Young, 1990, p. 56-57).

 

Foi justamente neste período de desenvolvimento da teoria crítica que se descobriu o valor do método hermenêutico em oposição ao método positivista. E isso principalmente no âmbito educacional, em que as inadequadas técnicas burocráticas das formas de administração da educação foram substituídas pelo discurso e pela práxis da fi losofi a das ciências sociais, mas, neste âmbito, de maneira histórica e procedimental, quer dizer, mais refl exiva em suas formas e estruturas, se tornando, assim, um modelo alternativo a um dado paradigma positivista.

Deve-se salientar ainda que a infl uência epistemológica positivista na construção de currículos foi muito criticada, pois, como consequência desta infl uência, tivemos o bloqueio ou a interrupção de um desenvolvimento criativo da aprendizagem que fez da sala de aula um lugar em que a administração tecnocrática encontrava o seu pleno desenvolvimento. Isto originou o que se costuma chamar de “pedagogia da manipulação”, em que os educandos são vistos mais como objetos da educação do que como sujeitos da mesma.

No âmbito pedagógico, a teoria crítica passa a ter maior relevância justamente a partir de uma concepção de razão menos funcionalista e mais hermenêutica e pragmática. Pois tal teoria tem como parâmetro de compreensão, de análise e de percepção, a fi losofi a da linguagem em oposição a uma fi losofi a da consciência, sobejamente solipsista e circunscrita nos meandros da concepção da metafísica clássica que se estrutura a partir da relação entre sujeito cognoscitivo e objeto cognoscível.

É na tradição da Escola de Frankfurt que a Teoria Crítica foi cunhada e pensada como Teoria Crítica da Sociedade. Portanto, a contribuição original dos autores de Frankfurt, como já tivemos ocasião de mostrar no decorrer deste estudo, está em nos ajudar a compreender o processo de formação a partir de uma relação consistente entre a cultura, a política e a sociedade, entendidas como espaços de constituição das identidades subjetivas e sociais.

O pensamento habermasiano se inscreve nesta tradição frankfurteana mas vai além dela, à medida que postula um paradigma fundado na linguagem e não mais na consciência. Young (1990) considera Habermas o mais atual dos muitos pensadores que reconhecem o potencial crítico da educação. A presença na tradição clássica de uma crítica fracassada já tem sido notada. Kant falou da coragem de libertar-se da falta de liberdade auto-imposta. Schleiermacher desenvolveu as ideias de Kant ainda mais, argumentando que os estudantes devem se tornar responsáveis não apenas por suas atividades educacionais, mas também pelo desenvolvimento do grupo social ao qual eles pertenciam.

Conforme Young (1990) a crítica que se faz à tradição clássica é que ela não consegue abraçar o signifi cado da crise na educação, mas apenas tem uma visão parcial acerca do assunto. As duas ideias dominantes de nacionalismo e dogmatismo foram construídas de modo simultâneo, de tal forma que a ideia de democracia foi relegada a segundo plano, tornando-se assim frágil o argumento da tradição clássica na proposta de uma educação das pessoas comuns, cujo signifi cado nos remete aos tempos de Platão.

Neste sentido, o fundamento último da realidade não está mais localizado na compreensão do sujeito isolado (egológico), mas desloca-se para o campo prático e intersubjetivo. Esta é a virada linguística proposta por Habermas, de uma razão centrada no sujeito, para uma razão descentrada, fundada na linguagem, e, portanto, na intersubjetividade da fala.

Esta mudança paradigmática, anteriormente aludida, tem suas ressonâncias no campo pedagógico, como diz Martinazzo:

 

O entendimento situa-se na base da constituição de construções sociais e pedagógicas, emancipadoras e democráticas. E isso só se torna possível porque, nos pressupostos da teoria comunicativa, o político-social e, para nós, a fortiori, o pedagógico, é produto não apenas de uma consciência monádica (rex extensa cartesiana), mas de uma capacidade linguística, argumentativa e comunicativa dos homens capazes de fala e de entendimento. Uma Pedagogia do Entendimento Intersubjetivo, portanto, assenta-se na linguisticidade do ser humano que redireciona e amplia a razão mentalista, técnicoinstrumental e estratégica; ou seja, constitui-se enquanto razão comunicativa de sujeitos que se entendem por intermédio de atos linguísticos e não por ações isoladas da razão e da consciência (Martinazzo, 2005, p. 204).

 

Portanto, o paradigma não é mais a razão substantiva, mas uma razão que se orienta em sua ação pelo procedimento linguístico. Esta visão crítico-reconstrutiva proposta por Habermas torna complexa a relação com o conhecimento, principalmente no que tange aos saberes pedagógicos. Ora, a consequência imediata de compreensão no âmbito educacional está em perceber que o centro do ato pedagógico não é mais a relação mecânica existente entre ensino e aprendizagem, pois o centro da relação passa a ser a interligação ou comunicação crítica entre os vários saberes envolvidos na construção do agir pedagógico que, na leitura que fazemos do pensamento habermasiano, deixa de ser ato pedagógico, dimensão fortemente substantiva e metafísica, e passa a ser agir pedagógico, implicando uma relação ulterior com o agir linguístico, dimensão pós-metafísica. Neste sentido, o sujeito não é mais o fi m último da razão e do conhecimento humanos, mas adquire realce a intersubjetividade e as práticas oriundas dos mais diversos saberes envolvidos na teia das interações comunicativas.

Deste modo, no centro do agir pedagógico está a re-ligação e a interconexão entre os vários saberes. Como isto se dá no interior da escola? Quando se recupera uma das dimensões mais vitais do ser humano, a sua refl exividade. Portanto, a ação educativa é comunicativa na medida em que tem como pressuposto fundamental uma racionalidade discursiva cujo objetivo fundamental está em formar sujeitos éticos e críticos. Consequentemente, o refl etir passa a ter, nesta perspectiva, uma função eminentemente educativa.

Portanto, o primeiro aspecto pedagógico que se deriva da ação educativa como ação comunicativa é o refl etir como função educativa central. A função educativa do refl etir é retomada por Adorno no seu texto clássico, Educação e Emancipação. De fato, o conjunto desta obra revela que a educação é, antes de tudo, esclarecimento. Daí, a formação educativa do refl etir, como auto-refl exão. Quando refl etimos, resgatamos uma dimensão que vai além do círculo da mercadoria, do repetitivo. Isso é educativo, é formativo.

A aplicação direta da concepção habermasiana à ação educativa, salvaguarda três princípios centrais: esclarecimento (autonomia), emancipação (liberdade) e formação (autorefl exão crítica).

Quanto ao esclarecimento, trata-se de um conceito denso e que nos remete à obra fundamental de Adorno e Horkheimer, A Dialética do Esclarecimento, e que é datada de 1947, cuja totalidade das partes refl ete a tese central do livro – o esclarecimento não é um conceito puro do iluminismo burguês; como desejava Horkheimer e Adorno, ele passa a signifi car um conceito que nos tira tanto do obscurantismo do medievo como do irracionalismo moderno.

Esta obra apresenta o Mito de Ulisses, cuja autoria se deve a Homero. Ulisses representa toda a tradição ocidental, pois o seu desejo se expressa em se autolibertar dos dogmas da religião, bem como dos mitos da tradição. Nesta obra, Adorno e Horkheimer (1994) compreendem a Aufk lärung, o esclarecimento, indo além de toda uma concepção tradicional que implica este termo. A Aufk lärung, consignada no mito de Ulisses quer representar, na concepção greco-clássica, aquilo que se denominaria, na modernidade, como autonomia do sujeito. Bem se sabe que a concepção que se tem de esclarecimento entre os gregos não assume a mesma fi sionomia na modernidade.

A questão que interessa aqui é perceber que, já entre os gregos, a dialética existente entre mito e realidade produzia certo obscurantismo no modo de apreender a totalidade do mundo circundante. Porém, na modernidade, a Aufklärung atinge uma significação mais precisa: ela passa a ser concebida como fruto da construção crítica do mundo. Esclarecido é o sujeito que não se deixa orientar, única e exclusivamente, pelos ditames da tradição, da religião ou da própria metafísica. Aqui está uma outra concepção do sujeito moderno, que pretende se auto-libertar da figura mítica do mundo para viver segundo a sua própria consciência e liberdade. Neste sentido, passa-se de uma concepção heterônoma (exterior) para uma concepção autônoma (interior) do modo de agir e conceber o mundo.

Neste sentido, o esclarecimento não deve ser reduzido aos aspectos estritamente formais da educação. Nem deve o mesmo ser entendido de forma equívoca, como, por exemplo, ter sufi ciente clareza dos procedimentos. Pelo contrário, o esclarecimento do qual estamos falando é um conceito que nos conduz à concepção greco-clássica, anteriormente aludida. De uma forma mais moderna, o esclarecimento remete ao conceito propriamente kantiano, quando este fala do ser humano que deve sair da menoridade, ou seja, da tutela dos dogmas, da moral ou de uma dada religião ou tradição e passar a se auto-compreender a partir de sua própria maioridade. É um processo de auto-libertação que atinge o seu cume num processo coletivo de reconhecimento mútuo.

Indaga-se: qual o alcance desta percepção esclarecedora para o processo educacional? Primeiro, deve-se notar que o processo de esclarecimento cultural deve ser o objetivo fundamental da educação no que diz respeito à formação do sujeito crítico enquanto participante da construção de espaços públicos mais democráticos e efetivamente mais solidários.

O termo, esclarecimento cultural reveste-se de uma feliz percepção. Pois, se constitui, na compreensão habermasiana, como um dos momentos fundamentais de crítica cultural. Ou seja, a educação passa pela reconstrução da eticidade e esteticidade da fala. O horizonte cultural deve passar pelo fi ltro das argumentações da fala, em que o saber e a tradição cultural são procedimentalmente discutidos.

No âmbito da escola, a tradição cultural deve ser articulada com o pensamento refl exivo e deve ser analisada de forma crítica em oposição aos arquétipos ideológicos da “colonização”. Aqui, certamente pergunta-se: como a tradição cultural deve se transformar em conteúdos de aprendizagem? Na escola, para além da aprendizagem cívica (aprendizagem do Hino Nacional, homenagem ao dia do índio etc) que são meras reproduções de um arquétipo cultural colonizador, dever-se-ia, ao contrário, estabelecer processos de aprendizagem, de modo que as diferentes etnias, raças, culturas, possam ser aprendidas com um cunho mais ético e integrador. A escola deveria se preocupar, portanto, em traduzir certos conteúdos de aprendizagem em atitudes éticas concretas, abrindo-se assim a uma dimensão mais abrangente da existência.

Quanto ao tema da “emancipação”, situa-se numa narrativa social e educacional pouco aberta e sensível a esta realidade. Falando da formação histórica do Estado Brasileiro, nomeadamente os períodos que se seguiram ao golpe militar de 1964, percebemos, nitidamente, um retrocesso que se traduz, ainda hoje, em um processo de subserviência e a-criticidade no desenvolvimento da existência humana e das relações tecidas em sociedade.

O tema da emancipação, enquanto realidade concreta, é relativamente recente no Brasil. As políticas educacionais, que orientam os órgãos públicos do Governo Brasileiro e que animam os projetos político-pedagógicos dos Estados, desenvolvem-se a partir de uma perspectiva pouco emancipadora. Os programas pedagógicos e as deliberações estatais seguem um princípio legislador muito coercitivo. Ou seja, a emancipação passa a assumir um tom de retórica, de junções gramaticais bem construídas, são narrativas gramaticais que pouco ou nada incidem nas narrativas sociais de construção político-semântica do saber a ser construído socialmente.

Quanto à “formação”, a tarefa de uma pedagogia crítico-comunicativa está em promover uma política de formação continuada que vise discutir os pressupostos basilares para todo agir educativo, que são: linguagem e racionalidade. A leitura destes aspectos, no conjunto da obra habermasiana, reveste-se de um caráter singular. Formar-se é, antes de tudo, entender-se como ator consciente e livre. A questão da formação para Habermas dá-se na esfera pública, em que o debate tem, na proposição argumentativa, o desejo de persuadir, tendo como critérios os seguintes princípios: veracidade, inteligibilidade e normatividade.

Nesta perspectiva, a formação adquire um sentido peculiar a partir de uma ótica educacional que se permite ser concebida a partir de uma racionalidade comunicativa. No primeiro momento, deve-se reconhecer que a tarefa proeminente da educação é a formação do sujeito, mas em uma compreensão que vá além da concepção e constituição do sujeito epistêmico e moral kantiano. Neste sentido, a formação do sujeito se autocompreende como intersubjetividade. Portanto: “... a recusa de um pensamento metafísico, que ofereça direção teleológica para a formação do sujeito, leva a reconhecer que a educação é parte de uma socialização que se efetiva no mundo prático. Nesse processo, a formação do sujeito (Eu) está em mútua dependência da mediação social, da qual se retiram os conteúdos normativos”. (Prestes,1996, p. 118)

O desenvolvimento pessoal (personalidade); a integração social (socialização) e a apropriação cultural (desenvolvimento cultural) estão centradas nas três perspectivas de análise habermasiana de construção do sujeito da educação. Este sujeito compreendido enquanto intersubjetividade.

Por sua vez, quando a perspectiva da formação é orientada por uma racionalidade cognitivo-instrumental, logo se faz notar as incongruências de todos os gêneros. Esta é uma razão que produz anomia, coação sistêmica, e diversas outras formas de patologias sociais, ocasionando certo ceticismo quanto à perspectiva da ação formativa. Neste sentido:

 

As condições necessárias para realizar a formação do sujeito, a partir de Habermas, emergem de uma racionalidade comunicativa do discurso prático, que possibilita chegar à justeza das normas e à universalidade. O sujeito precisa amadurecer na direção de se colocar diante de diferentes perspectivas para chegar a manter ou reformular normas (Horkheimer; Adorno, 1997, p. 119).

 

Daí, podermos concluir que a tarefa de educar os sujeitos na perspectiva da racionalidade comunicativa signifi ca superar a cisão existente entre subjetividade transcendental e subjetividade empírica a partir da conciliação habermasiana entre ciências reconstrutivas e o ponto de vista fi losófi co.

Wolfgang Leo Maar, na introdução da obra de Adorno (1995) Educação e Emancipação, faz-nos compreender a crise da formação no seguinte sentido:

 

A crise da formação é a expressão mais desenvolvida na crise social da sociedade moderna. De Hegel a Marx, de Nietzsche a Freud, de Husserl a Heidegger, de Lukács à Escola de Frankfurt, a crise do processo formativo seria um tema privilegiado. O trajeto intelectual de Adorno constitui, neste sentido, a história desta crise da formação e da educação em face da dinâmica do trabalho social. Portanto, a ‘Bildung’, numa leitura adorniana tem um sentido de formação cultural e política dos atores sociais em questão (Adorno, 1995, p. 16).

 

Estes três princípios, anteriormente aludidos, implicam em três tarefas educativas que se podem depreender do pensamento habermasiano. Segundo Habermas (1993), “quando os pais querem educar os seus fi lhos, quando as gerações que vivem hoje querem se apropriar do saber transmitido pelas gerações passadas, quando os indivíduos e os grupos querem cooperar entre si, isto é, viver pacifi camente com o mínimo de emprego de força, são obrigados a agir comunicativamente”. Nesta perspectiva, as três grandes tarefas educativas na ótica habermasiana seriam: a formação de identidades pessoais (educação dos fi lhos); a reprodução cultural (apropriação dos saberes) e a integração social (cooperação).

Vale salientar que estas tarefas devem ser realizadas pela sociedade em seus vários segmentos; mas que, deste modo, as mesmas transcendem o âmbito da educação estritamente escolar. Nesta perspectiva, tem razão Pinto (2004) ao dizer que toda Cidade é convocada a ser Educadora. Portanto, estas três grandes tarefas educativas podem ser plenamente realizadas no âmbito da complexidade do mundo-da-vida, uma das categorias centrais do pensamento habermasiano.

 

4 ESFERA PÚBLICA, CIDADANIA ESCLARECIDA E CIDADE EDUCADORA

De fato, a compreensão da teoria do agir comunicativo aplicada à esfera educativa é a de postular a formação de cidadãos mais autônomos e, portanto, mais esclarecidos tanto socialmente quanto historicamente. O engajamento na esfera pública, em que a educação é uma esfera privilegiada do tecido social e para onde apontam vários interesses convergentes, ocupa um lugar privilegiado na formação em vista tanto de uma interação crítica com a realidade quanto o desenvolvimento de forças propulsoras de transformação social.

Porém, na acepção de Habermas, devemos compreender a formação de uma cidadania esclarecida a partir do contexto de um Estado Pós-Nacional, Pós-Secular e Pós-Metafísico.

 

Por sua vez, institucionalizar uma ‘cidadania multicultural’ requer programas e regulamentos que põem em crise o fundamento nacional de solidariedade cívica já transoformado numa espécie de segunda natureza. Nas sociedades multiculturais fazse necessário uma ‘política de reconhecimento’, no momento que a identidade de cada cidadão se une à identidade coletiva e vem a depender do estabelecimento de uma rede de reconhecimento recíproco. É um fato que a existência de cada indivíduo depende sempre das tradições intersubjetivamente condivisas e comunidade formadora da identidade... Nas nações que tiveram uma maturação histórica de si mesmas, qualquer que seja a política que tenha por objetivo a equiparação jurídica das diversas formas de vida – comunidades étnicas, grupos linguísticos, confi ssões religiosas – deve dar início a um processo tanto doloroso quanto difícil (Habermas,2002, 49-50).

 

Esta forma de compreensão se insere hoje numa cosmovisão mais abrangente da vida humana. Habermas, ao compreender as sociedades multicuturais hoje, pergunta pela possibilidade de se instituir um Estado Democrático de Direito em que os atores sociais possam viver de forma multicultural em que não haja mais fronteiras e sim espaços porosos permeados por uma ideia cada vez mais crescente de estados pós-nacionais, em que várias etnias, raças e culturas sejam juridicamente respeitadas nos seus direitos e deveres.

Hoje, na Europa, existe toda uma discussão sobre os imigrantes que, provenientes de várias nacionalidades, não são reconhecidos nos seus direitos fundamentais. É um problema ético elementar, mas se constitui também como um problema cultural, de ordem eminentemente educativa, já que toca na formação de atitudes e de comportamentos diante de instituições injustas e deliberadamente comprometidas com a destituição do social e de suas forças intrínsecas.

Portanto, na concepção habermasiana, a formação de uma cidadania multicultural passa essencialmente pela formação da opinião pública e pelo reconhecimento dos grupos minoritários, em que a educação deve desempenhar um papel fundamental na esfera pública de construção de uma cidadania ativa e esclarecida.

Este aspecto da luta pelo reconhecimento das minorias “inatas” não é apenas um detalhe na teoria habermasiana. De fato, as minorias, sejam elas étnicas, culturais, sociais ou políticas, devem ser reconhecidas a partir de uma concepção de Estado Democrático de Direito em que se chegue a uma inclusão “com sensibilidade para as diferenças”.

Neste âmbito, Habermas nos diz que

 

 

(...) a coexistência com igualdade de direitos de diferentes comunidades étnicas, grupos linguísticos, confi ssões religiosas e formas de vida, não pode ser obtida ao preço da fragmentação da sociedade. O processo doloroso do desacoplamento não deve dilacerar a sociedade numa miríade de subculturas que se enclausuram mutuamente (Habermas, 2002, p. 166).

 

Por sua vez, no âmbito educativo, cabe à escola e às outras instituições educativas propor um itinerário formativo não mais a partir da concepção do Estado-nação, mas a partir de uma concepção de Estado Pós-nacional dentro de um contexto crescente de uma sociedade cada vez mais multicultural e complexa. Neste sentido é de fundamental importância salientar o que pensa Pinto:

Esta ordem real de coisas sugere a seguinte viragem estratégica na formação para a cidadania: 1) é necessário tornar o lugar próximo; 2) é necessário tornar a matéria acessível; 3) é necessário conceber uma formação que se dirija a todos os cidadãos e que mobilize todos os cidadãos numa modalidade que talvez faça lembrar o velho método do ensino mútuo ou a educação em rede, como propunha Ivan Illich. Sobretudo o que é necessário é evoluir para uma sociedade convivial onde, contrariamente ao preconizado pelo pedagogo fi lósofo, a escola institucional deve continuar a existir, embora reconvertida em centro educativo com funções culturalmente multiplicadas (Pinto, 2004, p. 145).

 

5 CONCLUSÃO

A perspectiva conclusiva deste artigo inscreve-se na dialeticidade do mesmo. Ou seja, a democracia e a formação crítica na ótica habermasiana implica em processos de aprendizagem, aprendizagens estas, que não se reduzem ao aspecto cognitivo, mas, inscreve-se no âmbito da ética, da estética, da política e da cidadania cívica.

O pensamento habermasiano tem muito a conbribuir para os processos refl exivos mais críticos e dialéticos. Ao trabalhar no âmbito da linguagem, este se insere numa perspectiva menos metafísica e postula uma perspectiva pós-metafísica, portanto, menos ontológica e mais antropológica e hermenêutica.

Penso que é este caráter hermenêutico que deve ser a maior contribuição habermasiana para pensar a formação no âmbito da Esfera Pública. Sem dúvida alguma, ele se insere num contexto mais polifônico da razão educativa e apresenta uma perspectiva formativa mais centrada na postulação de atores socais críticos e emancipados.

Na primeira linha conclusiva, o pensamento habermasiano compreende a educação e a formação no âmbito de uma sociedade democrática, neste sentido, compreende o educativo no âmbito da Esfera Pública.

Numa segunda linha conclusiva, a releitura habermasiana do processo formativo far-se-á numa compreensão ética da existência humana, a perspectiva da tolerância e do respeito às outras etnias, raças e culturas, pede-nos um novo olhar educativo, que não é somente tarefa da escola, mas das várias agências educativas envolvidas no Estado Democrático de Direito.

A terceira linha conclusiva está na formação de uma cidade educadora como postualdo central do pensamento habermasiano. A cidade educadora é plasmada no âmbito da esfera pública pelas interações sociais e é composta pela heterogeneidade das tendências e perspectivas da sociedade. Neste âmbito, a aprendizagem social que é democrática e cidadã passa pela recontrução da cidade numa ótica educadora e emancipada.

 

REFERÊNCIAS

ADORNO, Th eodor. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola, 2002.

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

HABERMAS, Jürgen. Passado como futuro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1993.

MARTINAZZO, Carlos. Pedagogia do entendimento intersubjetivo: razões e perspectivas para uma racionalidade comunicativa na Pedagogía. Ijuí: Unijuí, 2005.

MORROW, Raymond A.; TORRES, Carlos Alberto. Reading Freire e Habermas: critical Pedagogy and transformative social change. USA: Columbia University, 2002.

PINTO, Fernando Cabral. A Formação humana no projeto da humanidade. Porto: Instituto Piaget, 1996.

PINTO, Fernando Cabral. Cidadania, sistema educativo e cidade educadora. Lisboa: Instituto Piaget, 2004.

PRESTES, Nadja. Educação e racionalidade: conexões e possibilidades de uma razão comunicativa na escola. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.

YOUNG, Robert E. A Critical theory of education: Habermas and our children´s future. USA: Columbia University, 1990.



[1] Doutor em Educação pela Universidade do Porto – Portugal. Professor no Programa de Pós-graduação em Educação – Mestrado e Doutorado - da Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Coordenador do grupo de estudos em Teoria Crítica, Emancipação e Reconhecimento – TECER, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Alagoas – UFAL.