Os PRINCÍPIOS DA MORAL NUMA SOCIEDADE PÓS-SECULAR

a perspectiva de Jurgen Habermas

 

Anderson de Alencar Menezes [1]

Universidade Federal de Alagoas

anderufal@gmail.com

 

1 INTRODUÇÃO À LEGITIMIDADE DA PROBLEMÁTICA

Habermas (2002) defende, no texto ― Uma visão genealógica do teor cognitivo da moral, que a Ética do Discurso justifica o conteúdo racional de uma moral do respeito para cada um e da responsabilidade solidária pelo outro. Contudo, ele faz isso, inicialmente, através da “reconstrução racional dos conteúdos de uma tradição moral abalada em sua base validativa religiosa”. (Habermas, 2002, p. 55) O questionamento que o autor em questão coloca é: se ainda pode ser justificado o teor cognitivo dessa moral?

Veremos, a seguir, os passos que Habermas dará para defender o conteúdo racional da moral.

A análise genealógica do teor cognitivo da moral, proposta por Habermas (2002), pode ser dividida (didaticamente) em três etapas: 1) na primeira, a análise genealógica se dirige ao exame da tradição religiosa judaico-cristã, pois essa tradição religiosa consegue conferir às normas de um teor cognitivo; 2) na segunda etapa, a genealogia investiga, após a desvalorização do fundamento religioso de validação das normas na modernidade, algumas propostas da filosofia moral moderna que buscam reconstruir o conteúdo cognitivo das intuições morais; e 3) na terceira etapa, após constatar que os esforços da filosofia moral moderna não conseguiram reconstruir o conteúdo das intuições morais cotidianas, a análise genealógica ajuda a Ética do Discurso a responder, primeiro, quais intuições morais são reconstruídas e, em segundo, como é possível fundamentar, a partir da teoria moral, o ponto de vista moral.

Segundo Habermas, em sua Obra A Inclusão do Outro (2002) frases ou manifestações morais têm, quando fundamentadas, um teor claro cognitivo. Precisa-se distinguir 2 aspectos iniciais:

1. Aspecto: Compreender esta questão quanto à teoria da moral, ou seja há algum saber nas manifestações morais e como elas podem ser fundamentadas?

2. Aspecto: A questão fenomenológica, ou seja qual teor cognitivo os participantes desses conflitos percebem em suas reivindicações ou apelos morais.

Habermas (2002) situa a sua fala a partir de uma fundamentação moral de maneira descritiva. Ou seja, inserindo-a no contexto das interações cotidianas do mundo vivido. Fundamentalmente, seria a reconstrução e a reconstituição destas falas no horizonte da prática comunicativa cotidiana, como elas refletem e revelam os apelos e as reivindicações de ordem moral. Não só a sua compreensão semântica, mas, sobretudo pragmática e epistêmica da linguagem e de seus vários usos no tecido do mundo fenomênico.

Neste âmbito de compreensão, as manifestações morais portam consigo um potencial de motivos que pode ser atualizado a cada disputa moral.

Conforme Habermas (2002), uma nova concepção de moral emerge desta compreensão, ela não diz respeito apenas como os membros da comunidade devem se comportar; ela simultaneamente coloca motivos para dirimir consensualmente os respectivos conflitos de ação.

Na perpectiva de Silva (2011) fazem parte do jogo da linguagem moral as discussões, as quais, do ponto de vista dos participantes, podem ser resolvidas convincentemente com ajuda de um potencial de fundamentações igualmente acessível a todos. Nesta perspectiva, se a moral carecesse de um teor cognitivo crível, ela não seria superior às formas mais dispendiosas de coordenação da ação (como o uso direto da violência ou a influência sobre a ameaça de sanções ou a promessa de recompensas).

A partir do fato de haver normais morais “em vigor” para os integrantes de uma comunidade, não segue necessariamente que as mesmas tenham, consideradas em si, um conteúdo cognitivo. O intuito seria recolher reconstrutivamente, mais ou menos, elementos do conteúdo cognitivo das nossas intuições morais cotidianas.

Neste sentido, o não-cognitivismo severo quer desmascar o conteúdo cognitivo da linguagem moral como sendo, em tudo, ilusão. Ele tenta mostrar que, por trás das manifestações morais passíveis de justificação, se escondem apenas sentimentos, posicionamentos ou decisões de origem subjetiva.

Na compreensão de Silva (2011) descrições revisionistas semelhantes às do emotivismo (Stevenson) e do decisionismo (Popper) foram encontradas pelo utilitarismo, que vê nas preferências a origem do sentido “obrigatório” das orientações de valor e dos deveres. Contudo, diferentemente do não-cognitivismo severo, ele substitui a autoconsciência moral irrefletida dos participantes por um cálculo de benefícios, feito a partir da perspectiva do observador, e, nessa medida, oferece uma fundamentação que parte da teoria da moral para o jogo moral de linguagem.

Nesta perspectiva de análise, o utilitarismo tange algumas formas do não-cognitivismo atenuado, que leva em conta a autoconsciência dos sujeitos que agem moralmente, seja tendo em vista sentimentos morais (como é o caso da tradição da filosofia escocesa), seja a orientação segundo normas vigentes (como no caso do contratualismo hobbesiano). Contudo, a autoconsciência do sujeito que julga moralmente recai em revisão. Em seus posicionamentos e julgamentos, presumidamente justificados de modo objetivo, deveriam exprimir-se de fato apenas motivos racionais, sejam sentimentos ou situações de interesses (fundamentáveis pela razão dos seus fins).

O cognitivismo atenuado também deixa intacta a autoconsciência da práxis cotidiana das fundamentações morais, na medida em que atribui às valorações “fortes” um status epistêmico. O cognitivismo severo quer, ainda, fazer justiça à reivindicação categórica de validade dos deveres morais. Ele tenta reconstruir o conteúdo cognitivo do jogo moral de linguagem em toda a sua amplidão. Aqui a teoria moral apresenta a possibilidade de fundamentação, na medida em que reconstrói o ponto de vista que os próprios membros das sociedades póstradicionais assumem intuitivamente, quando, diante de normas morais básicas que se tornaram problemáticas, só podem recorrer a motivos sensatos.

 

2 A ANÁLISE GENEALÓGICA DO TEOR COGNITIVO DA MORAL - A GENEALOGIA DA TRADIÇÃO RELIGIOSA JUDAICO-CRISTÃ

Segundo Habermas (2002) após o desmoronamento de uma visão de mundo católica, obrigatória para todos, e com a passagem para sociedade de cosmovisão pluralista, não mais podem ser justificados publicamente segundo um ponto de vista divino transcendente.

Nas sociedades ocidentais profanas, as intuições morais cotidianas ainda estão marcadas pela substância normativa das tradições religiosas por assim dizer decapitadas, declaradas juridicamente como questão privada – sobretudo pelos conteúdos da moral da justiça judaica, do Antigo Testamento.

Os ensinamentos proféticos transmitidos pela via bíblica tinham à sua disposição interpretações e motivos que conferiram às normas morais uma força de convencimento pública.

A filosofia moral não precisa apresentar ela própria os fundamentos e as interpretações que, nas sociedades secularizadas, ocupam o lugar dos fundamentos e das interpretações religiosas desvalorizadas – ao menos publicamente.

Contudo, conforme Habermas (2002) ela precisaria designar o gênero de fundamentos e interpretações que poderiam assegurar ao jogo de linguagem moral uma força de convicção suficiente, também sem uma retaguarda religiosa. Tendo em vista esse questionamento genealógico, gostaria de 1) lembrar a base de validação monoteísta de nossos mandamentos morais e 2) determinar mais precisamente o desafio proveniente da moderna situação de partida.

Nesta perspectiva de análise, a justificativa ontoteológica recorre a uma instalação do mundo devido à sábia legislação do deus criador. Ela confere ao homem e à comunidade humana um status destacado em meio à criação e, com isso, seu “destino”.

Por sua vez, a justificação soteriológica dos mandamentos morais recorre, por outro lado, à justiça e à bondade de um deus salvador. Esta estrutura comunicacional marca o relacionamento moral – mediado por Deus – com o próximo, sob os pontos de vista da solidariedade e da justiça.

Aspectos que devem ser realçados e advindos da tradição judaico-cristã. A “Solidariedade” baseada na qualidade de membro o liame social que une a todos: um por todos. O igualitarismo implacável da “justiça” exige, pelo contrário, sensibilidade para com as diferenças que distinguem um indivíduo do outro. Cada um exige do outro o respeito por suaalteridade. A tradição judeu-cristã considera a solidariedade e a justiça como dois aspectos de uma mesma questão: elas permitem ver a mesma estrutura comunicacional de dois lados diferentes.

1. Duas tentativas de renovação da moral de explicação empirista.

Conforme Habermas (2002) Seriam duas linhas distintas. A primeira ligada a Allan Gibbard que segue uma linha mais expressivista da explicação e elucidação de uma convivência solidária; ao passo que, a segunda, ligada à Ernst Tugendhat, segue mais uma linha contratualista da ideia de uma comunidade justa.

Neste âmbito de compreensão, a consciência moral é expressão das legítimas reivindicações que os membros de uma comunidade moral podem exigir e criar expectativas, quando se compreendem enquanto membros cooperativos de um grupo social.

Segundo Tugendhat (1993 apud Habermas, 2002, p.27) “os sentimentos morais (vergonha e culpa) sinalizam às pessoas que se reconhecem como sérias, que elas fracassaram enquanto ‘membros cooperativos’ ou ‘bom parceiros sociais’ de uma dada comunidade moral”.

Passaremos agora a analisar, de forma ainda que sumária, as perspectivas apontadas por Gibbard e Tugendhat, na ordem dos autores elencados.

Na compreensão de Habermas (2002), Gibbard distintamente de Kant, compreende as normas para além das normas para ação. Segundo ele, as normas devem ser utilizadas para todas as espécies de padrões, o que significa a consideração do que é racional, ao emitir uma opinião, externar um sentimento ou de agir de determinada forma. O que é mais importante é que para Gibbard (1992, apud Habermas, 2002, p.84) denomina “morais as normas que fixam, para uma comunidade, quais as classes de atos que merecem reprovação espontânea”.

Para Gibbard (1992 apud Habermas, 2002, p.30) “não se pode compreender o entendimento discursivo sobre normas morais a partir do modelo da busca cooperativa da verdade, mas a no sentido de influenciação retórica.” Neste âmbito, como o processo discursivo não se pautou pela mobilização dos motivos melhores, mas pela capacidade de contágio das expressões mais impressionantes, não se pode falar de uma real “fundamentação”.

Neste ponto de vista, como explicar o ponto de vista, em que sob condições pragamaticamente excelentes, as normas encontrariam anuência sob o ponto de vista funcional no seu “valor de sobrevivência”, objetivamente elevado e específico. (Gibbard, 1992, apud Habermas, 2002, p. 31)

Veremos agora, uma perspectiva distinta da visão funcionalista da moral. Tugendhat faz esta abordagem a partir de 3 pontos. 1) descreve os sistemas de regras morais em geral, quais os motivos para sermos morais em geral; 2) que espécie de moral deveríamos racionalmente escolher sob condições pós-metafísicas. (Tugendhat, 1993, apud Habermas, 2002, p. 32).

Tugendhat começa com um conceito pleno de comunidade moral. Ele sublinha a questão da autoconsciência daqueles que se sentem vinculados a regras morais. Segundo o autor em questão, faz parte de nossa autonomia pertencer ou não a uma comunidade moral. Entende, por autonomia apenas a capacidade de se agir orientado por regras, a partir de motivos racionais. (Tugendhat, 1993, apud Habermas, 2002, p. 32)

Tugendhat (1993, apud Habermas, 2002, p. 32) apresenta alguns motivos práticos, quais sejam:

 

Prefiro participar de uma comunidade moral, pois diante de um processo de instrumentalização mútua, escolho ser sujeito e destinatário de direitos e deveres; Prefiro relações equilibradas de amizade, pelo fato de serem melhores que a solidão estrutural de um ator que age estrategicamente; Prefiro a satisfação de me sentir respeitado por pessoas que são, elas próprias, moralmente respeitáveis.

 

No segundo ponto, Tugendhat (1993, apud Habermas, 2002, p. 34-35) parte do fato de que, “após a perda da base tradicional da validação de uma moral comum, os participantes têm que refletir juntos sobre quais normas morais deveriam se pôr de acordo”. Neste sentido, todos os pontos de vista para um acesso moral à verdade estão invalidados.

Partindo deste ponto de vista, depois da religião e da metafísica, o que fundamentaria uma moral da consideração igual para todos? Se não há mais, a prescrição transcendente? Precisamos compreender então, este jogo moral de linguagem a partir da perda da base religiosa de validação da moral.

Segundo Tugendhat (1993, apud Habermas, 2002, p. 35):

 

se o que é bom deixa de ser prescrito de forma transcendente, o respeito pelos membros da comunidade, que passa a ser ilimitado, ou seja, o respeito por todos os outros – por sua vontade e seus interesses –é que, segundo parece, passa a fornecer os princípios da bondade.

 

Neste sentido, a intersubjetividade passa a ocupar o lugar da prescrição transcendente.

Neste ponto de vista, Tugendhat aproximasse do princípio kantiano da generalização a partir das considerações simétricas da situação de partida, em que as partes se confrontam, destituídas de todos os seus privilégios. Em que se buscam os acordos fundamentais que podem ser aceitas racionalmente por todos os participantes. Portanto, se os participantes aceitam entrar numa práxis de entendimento cooperativo, também aceitam tacitamente a condição da consideração simétrica ou uniforme do interesse de todos. (todo participante sério precisa examinar o que é racional para ele nas condições de consideração simétrica e uniforme dos interesses).

 

3 A FUNDAMENTAÇÃO DA MORAL A PARTIR DA TEORIA DO DISCURSO

Ao se perder a autoridade epistêmica da posição divina, os mandamentos morais perdem também sua justificação soteriológica e ontoteológica.

A ética do discurso, por sua vez, não pode nem conservar o teor moral íntegro das instituições religiosas, nem preservar o sentido realista de validação próprio às normas morais.

Segundo Habermas (2002) a ética discursiva justifica o teor de uma moral do respeito indistinto e da responsabilidade solidária por cada um. Assim, propõe-se de saída a tentativa de estabelecer uma base profana, em que as fundamentações éticas possam convergir.

O fato é que os indivíduos perderam o suporte ontoteológico e precisam agora se autoreferirem a sim mesmos. Ou seja, devem criar com base em si mesmos as próprias orientações normativas.

Conforme Habermas (2002) o “bem transcendente” que falta só pode ser compreendido de forma “imanente”. Há 3 passos para se chegar a uma fundamentação do ponto de vista moral, no âmbito da teoria moral.

 

1 Passo: Introdução do princípio “D”. O participante ao admite que a argumentação é a única maneira de avaliar a imparcialidade das normas morais, já está adotando o princípio “D”.

2 Passo: Introdução do princípio “U”. Aceitação geral e não coativa.

3 Passo: É a satifisfação que talvez os envolvidos tenham com o princípio “U”, à medida que ele se mostre e não conduza a resultados contra-intuitivos.

 

Por fim, a Ética do Discurso reconstrói, parcialmente, o conteúdo cognitivo da moral. Neste sentido, a justificação da validade de normas morais tem de pressupor a existência de dois elementos reconstruídos: justiça e solidariedade. Neste ponto de vista, Habermas (2002) defende um universalismo sensível às diferenças. Este Universalismo sensível significa uma inclusão não niveladora e não apreensória do outro em sua alteridade.

A ideia de inclusão do outro significa que as fronteiras da comunidade estão abertas a todos, também e justamente àqueles que são estranhos um ao outro, e querem continuar estranhos um ao outro. A noção de comunidade moral deixa transparecer o universalismo sensível defendido por Habermas.

Porém, neste novo cenário que se vai desenhando, sobretudo na perspectiva de recente de Habermas (2015), nota-se uma preocupação crescente com o discurso produzido pelas religiões num âmbito de sociedades pós-seculares. Ou seja, a percepção habermasiana de um renascimento do discurso das religiões no âmbito da esfera pública. Na perspectiva de Habermas (2015) ao descrever como “pós-secular” as sociedades modernas refere-se à mudança de mentalidade que deve nos conduzir a identificar três fatores principais. O primeiro fator é perceber, difusa na mídia em geral, o problema das guerras religiosas. Neste sentido, põe-se em crise uma convicção secularista de mundo, ou seja, de um possível desaparecimento das religiões. Portanto, viver em uma sociedade laica, significa compreender que a modernização sociocultural não reduzirá o significado público e pessoal da religião.

O segundo fator, segundo Habermas (2015) é o reconhecimento do papel das religiões na esfera pública, não tão somente na mídia, mas, sobretudo no âmbito da vida política, pois as comunidades religiosas passam a ocupar um papel de comunidade de interpretação. Ocupando-se da formação da opinião e da vontade pública no tecido social. Sobretudo, no âmbito da esfera pública no conflito de valores, no que toca às questões ligadas à legalização do aborto, eutanásia, questões bioéticas, proteção de espécies animais, destruições ecológicas. Nesta perspectiva, os cidadãos seculares devem prestar mais atenção ao fenômeno de uma religião emergente na esfera pública.

O terceiro fator, segundo Habermas (2015) é a questão da imigração que gera problemas no âmbito da comunidade européia. Pois o desafio é harmonizar o pluralismo de das formas-de-vida. A Europa está se transformando numa sociedade pós-colonial de imigração. A problemática é pensar estas diferentes formas-de-vida a partir de uma tolerante convivência religiosa.

 

4 À GUISA DE CONCLUSÃO

A ética do discurso, particularmente na forma que ela adquiriu através de Karl OttoApel e Jürgen Habermas, é, entrementes, discutida em todo o mundo e merece, já por esse  fato, uma análise. A ética do discurso, ou comunicativa, é um fenômeno especificamente alemão, do fim da década de 1960 e da década de 1970.

Habermas (1991) situou seu conceito de ética do discurso no quadro de uma teoria geral da verdade, segundo a qual o critério da verdade é o consenso dos que argumentam. O mais importante é que Habermas defende a ideia de que argumentar é uma tarefa eminentemente comunicativa. Por isso, o discurso intersubjetivo é, para ele, o lugar próprio da argumentação. Somente se poderia aceitar como critério de verdade aquele consenso que se estabelece sob condições ideais, que Habermas designa como condições da situação ideal de fala. Esta é definida por ele mediante uma série de regras básicas, condição essencial para que se possa falar de um autêntico discurso.

O que se denomina como discurso autêntico? Habermas (1991) distingue entre condições triviais e não-triviais. Como condições triviais, pode-se enumerar o seguinte: todos os participantes têm chances de participar do diálogo; têm chances iguais para a crítica; o enunciado que se faz é verdadeiro (veracidade – mundo objetivo); o ato de fala é correto em relação ao contexto normativo vigente (legitimidade – mundo social); a intenção expressa pelo falante é realmente condizente com o que este pensa (sinceridade – mundo subjetivo). Nesse sentido, há critérios para a racionalidade da ação. Esta deve exprimir, por sua vez: moralidade, legalidade e sinceridade de sentimentos, pressupostos fundamentais para os desejos mais autênticos dos atores sociais sejam externados.

Habermas (1991) designa como não-triviais duas outras condições, que são particularmente importantes para o discurso moral e servem, também, para eliminar fatores de poder. Conforme a primeira condição, todos os falantes devem ter chances iguais de expressar suas atitudes, sentimentos e intenções. Decisiva é, porém, a segunda condição em que são apenas admitidos ao discurso falantes que tenham as mesmas chances enquanto agentes, quer dizer, para dar ordens e se opor, permitir e proibir. Desta forma, um diálogo sobre questões morais entre senhores e escravos, empregadores e empregados, pai e filho, violaria as condições de situação ideal de fala.

No dizer de Tughendat (1997), Habermas denomina como “discurso autêntico” aquele que ocorre entre pessoas em situação igual, sob condições igualitárias. As condições são agora não apenas igualitárias, do ponto de vista da participação no discurso, mas pressupõe-se que as pessoas sejam postas em situação igual na vida prática, resultando na criação das várias comunidades comunicacionais com fins prático-estéticos e prático-morais. 

A ética comunicativa se constitui assim como uma colocação ética do discurso, como é a proposta habermasiana para a crise do nosso ethos. O ressurgimento da reflexão ética na vida humana se constitui como um tema capital para a existência dos seres humanos hoje.

O ético emerge da interação de sujeitos, mas aponta para a superação de qualquer particularismo: só se pode falar propriamente de norma moral quando se leva em conta a pretensão de validade universal. O ético diz respeito a um espaço de possível reconhecimento recíproco entre sujeitos de igual dignidade. Mas tal sentimento, que aponta para a autoridade de normas éticas, só se sustenta se for possível demonstrar que tais normas têm fundamento.

Dever fazer algo significa ter fundamento para sua ação. Normas éticas perdem toda a autoridade sem um conteúdo cognitivo, quer dizer, se não puderem mostrar que possuem razão de ser. Portanto, qualquer reflexão sobre o ético implica que se leve em consideração essa rede de sentimentos éticos que perpassa a práxis comunicativa da cotidianidade dos seres humanos. Certamente, diz Habermas (1992), esses sentimentos éticos têm, para a legitimação moral de normas de ação, um papel semelhante ao da percepção na explicitação teórica dos fatos.

Na percepção de Ferry (1987) a ética comunicacional pretende justamente superar a antinomia entre verdade e sociabilidade, universalidade e mundaneidade, legitimidade e civilidade. Pois ela se apresenta como uma ética da comunidade.

No que concerne ao breve panorama da filosofia prática atual no campo da ética e da filosofia o debate acerca da universalidade dos princípios morais, e, consequentemente, sobre a legitimidade da democracia, tem alcançado uma força impressionante, e nele se vislumbra um problema que tem sido objeto de discussão permanente ao longo da história da filosofia ocidental, a saber: o da relação entre os princípios universais de justiça e as concepções particulares do bem. Na verdade, tal problema é constitutivo da razão prática e define o campo de possibilidade da própria ética filosófica numa era pós-metafísica.

A perspectiva habermasiana da ética filosófica adquire notória singularidade com base nas noções de comunicação e de reconstrução. Trata-se, com efeito, de uma teoria moral de caráter pragmático e, como tal, inscrita no âmbito do giro linguístico do pensamento pósmetafísico e vinculada às estruturas gerais do mundo vivido. O termo “pragmática universal”, usado por Habermas (1989) para designar a perspectiva teórica, pretende justamente indicar uma abordagem reconstrutiva dos pressupostos universais e incontornáveis da comunicação, sendo a teoria moral um campo privilegiado para a aplicação de tal abordagem.

Em relação à estratégia argumentativa contra o ceticismo moral, Habermas (1989) apresenta sua teoria pragmática da moral por meio do confronto imaginário entre os partidários do cognitivismo e do ceticismo. Edifica, por assim dizer, uma batalha em sete etapas, da qual podem-se extrair os argumentos vitais em prol de uma ética deontológica (concentrada na questão da fundamentação da validez prescritiva das normas de ação), cognitiva (que afirma, como se notou, que as questões práticas são passíveis de argumentação racional), formalista (limitada ao estabelecimento de um princípio ou procedimento de justificação das normas morais) e universalista (que defende a superação dos limites históricos e culturais pelas estruturas transcendentes da comunicação, nas quais se baseia a fundamentação daquele princípio). Assim, o modelo habermasiano de ética discursivo é uma forma de reinterpretação procedimental do imperativo categórico kantiano.

Na teoria pós-metafísica da justiça, a prioridade do justo sobre o bem não implica, contudo, total abstração dos contextos das formas de vida. As normas na verdade existem ou são propostas no solo real das práticas comunicativas do mundo vivido. No entanto, o procedimento da justificação das normas requer o ponto de vista argumentativo pelo qual os participantes da comunicação visam restaurar um consenso ingênuo perturbado. Neste sentido, a concepção pragmática de Habermas (1989) deve ser entendida como um modelo que conjuga autonomia individual e soberania popular, ambos os conceitos passíveis de reconstrução racional baseada numa lógica interdependente das evoluções ontogenéticas (consciência moral dos indivíduos) e filogenéticas (representações jurídicas das sociedades).

Dois conceitos são centrais nas concepções kantianas e pós-hegelianas da razão prática: justiça e solidariedade. Eles designam princípios distintos, porém complementares, emanantes da mesma e única raiz da moral, como dois pólos de uma só realidade e correspondentes aos aspectos igualmente importantes dos direitos dos indivíduos e do bem da comunidade.

 

REFERÊNCIA

FERRY, Jean-Marc. Habermas et al. L´Éthique de la Communications. Paris: Presses Universitaire de France.

HABERMAS, Jurgen. A Inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola, 2002.

HABERMAS, Jurgen. Comentários à ética do discurso. Lisboa: Instituto Piaget, 1991.

HABERMAS, Jurgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

HABERMAS, Jurgen. Direito e moral. Lisboa: Instituto Piaget, 1992.

HABERMAS, Jurgen. Verbalizzare il Sacro: sul lascito religioso della filosofia. Bari: Laterza, 2015.

SILVA, Bruno Luciano de Paiva. A Análise Genealógica do Teor Cognitivo da Moral em Jurgen Habermas. Pensar - Revista Eletrônica da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. v.2 n.1(2011) p. 24-36. Disponível em: faje.edu.br/periodicos2/ index.php/pensar/issue/view/428. Acesso em: 19 ago. 2015.

TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre ética. Petrópolis: Vozes, 1997.



[1] Doutor em Educação pela Universidade do Porto – Portugal. Professor no Programa de Pós-graduação em Educação – Mestrado e Doutorado - da Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Coordenador do grupo de estudos em Teoria Crítica, Emancipação e Reconhecimento – TECER, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Alagoas – UFAL.