RECONHECIMENTO E GRAMÁTICA MORAL

perspectivas a partir de Habermas e Honneth

Anderson de Alencar Menezes [1]

Universidade Federal de Alagoas

anderufal@gmail.com

Virgílio Andrade Neto [2]

Universidade Federal de Alagoas

andradevirgil@gmail.com

José Aparecido de Oliveira Lima [3]

Secretaria de Estado da Educação de Alagoas

aparecido.filosofia@gmail.com

1 INTRODUÇÃO

Ao se falar de revitalização da esfera pública, temos que levar em consideração a interpenetracão progressiva da esfera pública com o setor privado. Neste sentido, a teoria política do Estado alcança aqui o seu fundamento e síntese, ou seja, pensar a esfera pública significa pensá-la a partir da relação intrínseca entre sistema e mundo-da-vida. Neste sentido, Habermas nos ajuda a perceber que:

 

A esfera pública burguesa desenvolve-se no campo de tensões entre Estado e Sociedade, mas de modo tal que ela mesma se torna parte do setor privado. A separação radical entre ambas as esferas, na qual se fundamenta a esfera pública burguesa, significa inicialmente apenas o desmantelamento dos momentos de reprodução social e de poder político conjugados na tipologia das formas de dominação da Idade Média avançada. (Habermas, 1984, p. 169)

 

 Neste âmbito de compreensão, para além do “público” e do “privado” surge a esfera do social, cujo intuito é o de dissolver esta relação paradoxal no âmbito da vida pública, politicamente falando. Por outro lado, trata-se de recolocar, no lugar normativamente desejado, a ideia de uma esfera social repolitizada, cujo intuito fundamental é de não permitir que esta política “neo-mercantilista” promova uma espécie de “refeudalização” da sociedade, em que o público e o privado não se distinguiam enquanto tal, e que a esfera do social, que é um fenômeno mais moderno, fique desconstituído dos potenciais mais constitutivos, principalmente no que toca aos aspectos de crítica e reconstrução do tecido socio-político.

Portanto, é neste âmbito de compreensão que devemos pensar a Luta por Reconhecimento a partir de uma nova Gramática Moral. Neste sentido, é no processo de dialética entre Estado Democrático de Direito e Sociedade Civil que podemos pensar uma nova gramática moral que se funda em novos padrões morais: Amor, Direito e Solidariedade.

 

2 A LUTA POR RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Segundo Habermas é consensual a declaração de Amy Gutmann:

 

O Reconhecimento público pleno conta com duas formas de respeito: 1) o respeito pela identidade inconfundível de cada indivíduo, independentemente de sexo, raça ou procedência étnica. 2) o respeito pelas formas de ação, práticas e visões peculiares de mundo que gozam de prestígio junto aos integrantes de grupos desprivilegiados, ou que estão intimamente ligados a essas pessoas. (Habermas, 2002, p. 232).

 

Evidentemente, o mesmo vale para croatas na Sérvia, russos na Ucrânia, curdos na Turquia; vale também para deficientes, homossexuais. Essa exigência não visa em primeira linha ao igualamento das condições sociais de vida, mas sim à defesa da integridade de formas de vida e tradições com os quais os membros de grupos discriminados possam identificar-se.

Normalmente, segundo Habermas ocorre que o não reconhecimento cultural coincide com o demérito social, de modo que as duas coisas se fortalecem de maneira cumulativa (Habermas, 2002, p. 232).

 Polêmico é definir se a exigência 2 resulta da exigência 1, ou seja, se ela resulta do princípio de que deve haver igual respeito por cada indivíduo em particular, ou se essas duas exigências têm mesmo de colidir, ao menos em alguns casos.

Habermas em sua obra, A Inclusão do Outro, ao citar Taylor nos diz que o asseguramento de identidades coletivas passa a concorrer com o direito a liberdades subjetivas iguais - com o direito humano único e original, portanto, segundo Kant, de modo que no caso de uma colisão entre ambos é preciso decidir sobre a precedência de um ou de outro. Significa uma política de respeito por todas as diferenças, por um lado, e uma política de universalização de direitos subjetivos, por outro (Habermas, 2002, p. 232).

Por sua vez, liberais da grandeza de Rawls ou Dworkin propugnam por uma ordem jurídica eticamente neutra que deve assegurar chances iguais a todos, de modo que cada um possa orientar-se por uma concepção própria do que seja bom. Em face disso, comunitaristas como Taylor e Walzer contestam que haja neutralidade ética no direito.

Com o Liberalismo 1, Taylor designa uma teoria segundo a qual se garantem liberdades de ação subjetivas iguais para todos os jurisconsortes, sob a forma de direitos fundamentais; em casos controversos os tribunais decidem que direitos cabem a quem. Essa interpretação do sistema dos direitos continua sendo paternalista, porque corta pela metade o conceito de autonomia.

Quando tomarmos a sério a concatenação interna entre o Estado de Direito e a Democracia ficará claro que o sistema dos direitos não fecha os olhos nem para as condições de vida sociais desiguais, nem muito menos para as diferenças culturais.

Portanto, feminismo, multiculturalismo, nacionalismo e a luta contra a herança eurocêntrica do colonialismo, todos esses fenômenos aparentados entre si, lutam por reconhecimento no âmbito do Estado Democrático de Direito. Seu parentesco coincide quando as mulheres, as minorias étnicas e culturais, as nações e culturas, todas se defendem da opressão, marginalização e desprezo, lutando, assim, pelo reconhecimento de identidades coletivas, seja no contexto de uma cultura majoritária, seja em meio à comunidade dos povos.

Deve-se salientar que quanto mais profundas forem as diferenças religiosas, raciais ou étnicas, ou quanto maiores forem os assincronismos histórico-culturais a serem superados, tanto maior será o desafio; e tanto mais ele será doloroso, quanto mais as tendências de autoafirmação assumirem um caráter fundamentalista-delimitador, ora porque a minoria em luta por reconhecimento se desencaminha para regressões, por causa de experiências anteriores de impotência, ora porque ela precisa primeiro despertar a consciência em prol da articulação de uma nova identidade nacional, gerada por uma construção através da mobilização de massa. Ressalta-se, portanto, que a mudança de coloração da cultura majoritária, por sua vez, fez emergir outras novas minorias.

Quanto à impregnação ética do Estado de Direito, sob uma visão da teoria do direito, o multiculturalismo suscita em primeira linha a questão sobre a neutralidade ética da ordem jurídica e da política. Gramaticalmente, o que está inscrito nas questões éticas é a referência à primeira pessoa e, com isso, a remissão à identidade de um indivíduo ou de um grupo.

A perspectiva de Taylor e Walzer segundo a qual o sistema dos direitos ignoraria reivindicações de defesa em prol de formas culturais de vida e identidades coletivas, agiria com indiferença em face delas, e careceria, portanto, de correção.

Porém, deve-se salientar que uma cultura majoritária que não se vê ameaçada só conserva sua vitalidade através de um revisionismo irrestrito. Isso vale em especial para as culturas de imigrantes, as quais, pela pressão assimiladora das novas circunstâncias, vêem-se desafiadas a um isolamento étnico relutante e à revivificação de elementos tradicionais, mas estabelecem logo a seguir uma forma de vida igualmente distanciada da assimilação e da origem tradicional.

Neste sentido, em sociedades multiculturais, a coexistência equitativa das formas de vida significa para cada cidadão uma chance segura de crescer sem perturbações em seu universo cultural de origem. Pois, a mudança acelerada das sociedades modernas manda pelos ares todas as formas estacionárias de vida. As culturas só sobrevivem se tiram da crítica e da cisão a força para uma autotransformação. Garantias jurídicas só podem se apoiar sobre o fato de que cada indivíduo, em seu meio cultural, detém a possibilidade de regenerar essa força. E essa força, por sua vez, não nasce apenas do isolamento em face do estrangeiro e de pessoas estrangeiras, mas nasce também – e pelo menos em igual medida – do intercâmbio com eles.

 

3 AS FORMAS DE RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O declínio da subjetividade simbólica é um dos fatores primordiais para a degradação das relações sociais e a sua consequente desumanização. Daí a tarefa das ciências humanas, sobretudo da filosofia, em possibilitar o descortinamento desta realidade, apontando as raízes subterrâneas destas relações no tecido social. Neste âmbito de compreensão emerge o papel das ciências da educação para delinear itinerários que incluam processos, objetivos, critérios e etapas para o desenvolvimento de novos modelos e paradigmas de aprendizagem ética, cívica e cidadã.

A nossa perspectiva é de pensar a ideia de integração social a partir da categoria filosófica do reconhecimento partindo dos princípios e parâmetros da ética do discurso e da ética do reconhecimento, no âmbito do Estado Democrático de Direito, procurando evitar uma concepção mecânica e funcionalista da realidade social.

A Ética do Discurso adquire grande relevo, pelo fato de seu caráter interdisciplinar possibilitar o envolvimento das várias ciências na busca constante de iniciativas e soluções para os vários problemas ligados à violência contemporânea.

Honneth (2003) procura mostrar que o indivíduo desenvolve, em cada forma de reconhecimento, um tipo de relação prática positiva consigo mesmo (a autoconfiança nas relações amorosas e de amizade; o autorrespeito nas relações jurídicas e a autoestima na comunidade social de valores), ressaltando os vínculos entre liberdade e autonomia individual e os vínculos comunitários/societários. A ruptura ou violação dessas condições gera formas de desrespeito social que levam a lutas sociais e conflitos políticos motivados por diferentes razões morais.

A cada uma das formas de reconhecimento corresponde uma forma de desrespeito: maus-tratos e violação, que ameaçam a integridade física e psíquica, em relação à primeira; privação de direitos e exclusão, que atingem a integridade social do indivíduo como membro de uma comunidade político-jurídica, na segunda; e degradação e ofensas, que afetam os sentimentos de honra e dignidade do indivíduo como membro de uma comunidade cultural de valores, no caso da terceira esfera de reconhecimento. Cada uma delas abala de modos diversos a autorrelação prática da pessoa, privando-a do reconhecimento de determinadas dimensões de sua identidade.

Para Honneth (2003), interessam aqueles conflitos oriundos de experiências de desrespeito social capazes de suscitar uma ação de luta social que busque restaurar as relações de reconhecimento mútuo ou desenvolvê-las num nível de ordem superior. É possível ver na luta por reconhecimento uma força moral que impulsiona desenvolvimentos sociais, políticos e institucionais.

São as lutas moralmente motivadas de grupos sociais, sua tentativa coletiva de estabelecer institucional e culturalmente formas ampliadas de reconhecimento recíproco, aquilo por meio do qual vem a se realizar a transformação normativamente gerida das sociedades.

O que importa mostrar é a lógica dos conflitos que se originam de uma experiência social de desrespeito, de uma violação da identidade pessoal ou coletiva.

Os conflitos sociais emanam de experiências morais decorrentes da violação de expectativas normativas de reconhecimento firmemente arraigadas. Essas expectativas formam a identidade pessoal. Quando essas expectativas são desapontadas, surge uma experiência moral que se expressa no sentimento de desrespeito. O sentimento de desrespeito, por sua vez, somente pode se tornar um ponto de vista generalizável, dentro do horizonte normativo de um grupo.

O surgimento de movimentos sociais depende da existência de uma semântica coletiva que permita interpretar as experiências de desapontamento pessoal como algo que afeta não só o eu individual, mas também o círculo de muitos outros sujeitos. A sequência desrespeito, luta por reconhecimento e mudança social constitui o desenvolvimento lógico dos movimentos coletivos. Em síntese, a ideia básica é a de que sentimentos morais, quando articulados numa linguagem comum, podem motivar as lutas sociais.

Segundo Honneth (2003), existem formas não distorcidas de reconhecimento. No âmbito da dinâmica social do reconhecimento, do desrespeito e da luta por reconhecimento pode ser extraída uma concepção formal de eticidade ou vida boa que sirva como padrão normativo de justificação da normatividade.

Nas sociedades modernas, os sujeitos têm de encontrar reconhecimento como seres tanto autônomos quanto individualizados. A concepção formal de eticidade reúne todos os pressupostos intersubjetivos que precisam estar preenchidos para que os sujeitos se possam saber protegidos nas condições de sua autorrealização.

Honneth (2003), ao retomar o jovem Hegel de Jena, fala da ideia de uma Fenomenologia das Relações de Reconhecimento; ao citar o psicanalista inglês Donald Winnicott apresenta o conceito de fase de intersubjetividade indiferenciada em oposição à teoria freudiana do narcisismo primário. Winnicott fala de uma intersubjetividade primária, que constitui o processo de interações sociais através do qual mãe e filho, podem se separar do estado de indiferenciado ser-um, de modo que eles aprendem a se aceitar e amar, afinal, como pessoas independentes. Segundo Winnicott há um processo de amadurecimento infantil que comporta uma cooperação intersubjetiva mãe/filho (Honneth, 2003, p. 164).

Seja no estado de ser-um simbiótico, eles de certo modo precisam aprender do respectivo outro como eles têm de diferenciar-se em seres autônomos. A mãe e a criança podem saber-se dependentes do amor do respectivo outro, sem terem de fundir-se simbioticamente uma na outra. Concluímos com Winnicott acerca do processo de amadurecimento na primeira infância com ilações a respeito da estrutura comunicativa que faz do amor uma relação particular de reconhecimento recíproco (Honneth, 2003, p. 164).

Para Winnicott, citado por Honneth (2003), a quebra da simbiose faz surgir aquela balança produtiva entre delimitação e deslimitação, que para ele pertence à estrutura de uma relação amorosa amadurecida pela desilusão mútua (tensão intersubjetiva; relação descontraída consigo).

Na concepção de Hegel, a forma do reconhecimento do amor que ele descreve como um “ser-si-mesmo em um outro” não designa um estado intersubjetivo, mas um arco de tensões comunicativas que medeiam a experiência do poder-estar só com a perspectiva do estarfundido.

A referencialidade do “eu” e a Simbiose representam os contrapesos exigidos mutuamente e que possibilitam estar-consigo mesmo no outro. A Reciprocidade da estrutura intersubjetiva tensa é perturbada nos casos patológicos ou pela autonomia egocêntrica ou pela dependência simbiótica. Nesse sentido, salienta-se a ideia de aceitação cognitiva da autonomia do outro e o Reconhecimento da independência do outro.

 

4 A POLÍTICA E SEU U PAPEL NA LUTA POR RECONHECIMENTO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Em meio à estratificação das sociedades contemporâneas e submersa nos problemas cogentes e nos paradigmas constituídos pelas políticas modernas e pela aculturação do poder democrático, faz-se necessário uma nova perspectiva, pautada na igualdade dos direitos e no reconhecimento de luta das minorias, buscando assim, superar o atual sistema coercivo e segregador no qual estamos inseridos.

Diante deste âmbito de pensamento, percebemos de um lado a sociedade moderna composta por um emergente contexto social multicultural e complexo, e por outro lado, temos em caráter normativo e constitucional a representação da lei, formado por entre outros, do exercício político, do Estado e do seu poder coercivo. Por outro lado, pensar em uma constituição que busca assegurar direitos iguais para todos é pensar em uma sociedade que se reconhecem reciprocamente, isto é, “Em última instância, trata-se da defesa dessas pessoas individuais do direito, mesmo quando a integridade do indivíduo – seja no Direito, seja na moral – dependa da estrutura intacta das relações de reconhecimento mútuo” (Habermas, 2002, p. 229).

Em vista disso e frente às identidades subjetivas que englobam uma diversidade multicultural, heterogênea e complexa, revela-se uma preocupação resultante de um esquecimento político das minorias sociais que anseiam, antes de tudo, por um reconhecimento igualitário, integrador e mútuo, contra todo tipo de aculturação tradicionalista, opressora e segregadora.

Segundo o pensamento habermasiano:

 

Em um primeiro momento, no entanto, as coisas parecem ser diferentes quando se trata de reivindicar reconhecimento para identidades coletivas ou igualdades de direitos para formas de vida culturais. Feministas, minorias em sociedades multiculturais, povos que anseiam por independência nacional ou regiões colonizadas no passado e que hoje reclamam igualdade no cenário internacional, todos esses agentes sociais lutam hoje em favor de reivindicações [...] (Habermas, 2002, p. 231).

 

De fato, desenvolver uma ‘política do reconhecimento’ é uma das reivindicações mais emergentes e necessárias que depõem a favor de uma democracia de direito envolto pelo respeito ao sujeito, a sua identidade e a sua constante mutação.

Ora, as regulamentações políticas acerca dos contextos sociais não podem tomar conotações diferenciadas e, consequentemente, divergentes. Para Habermas (Ibid., p. 233) “Taylor esmiúça essa oposição [...] segundo os conceitos de bom e justo, advindos da teoria moral [...] que deve assegurar chances iguais a todos, de modo que cada um possa orientar-se por uma concepção própria do que seja bom”.

Verdadeiramente, é imprescindível que os sistemas de direitos não deixem de problematizar e evidenciar as segregações sociais e os preconceitos culturais. Por isso, se faznecessário uma política de reconhecimento do outro; e uma dialética coerente e igualitária entre o sistema normativo, os movimentos sociais e as individualidades subjetivas impregnadas nas coletividades.

Acerca disto, Habermas (2002, p. 237) afirma que:

 

Uma leitura ‘liberal’ do sistema de direitos que ignore essa relação não tem saída senão entender erroneamente o universalismo dos direitos fundamentais enquanto abstrato de diferenças, e de diferenças tanto culturais quanto sociais. Caso se queira tornar o sistema de direitos efetivo por via democrática, é preciso que se considerem as diferenças com uma sensibilidade sempre maior para o contexto. Ontem como hoje, a universalização dos direitos é o motor de uma diferenciação progressiva do sistema de direitos, sistemas que logra manter segura a integridade dos sujeitos jurídicos, mas não sem um tratamento rigidamente igualitário [...] dos contextos de vida de cada um, os quais originam sua própria identidade individual.

 

Perceber a necessidade de um nivelamento político acerca das diferenças culturais e sociais é evidenciar um processo de universalização política, partindo de uma democratização onde o respeito pelas minorias e por suas diferenças são reconhecidas e aceitas.

Fechar os olhos para essa realidade é reelaborar um processo contínuo de esquecimento histórico das lutas e dos direitos conquistados. Este flagelo social que resulta nas divisões de classes e no esquecimento histórico instigam novas minorias que fracassam na busca por reconhecimento social e por direitos políticos, pois “disputa acerca da interpretação e imposição de reivindicações historicamente irresolvidas é uma luta por direitos legítimos, nos quais estão implicados agentes coletivos que se defendem contra a desconsideração de sua dignidade” (Habermas, 2002, p. 230).

É perceptível no pensamento habermasiano a preocupação quanto à autonomia pública da sociedade enquanto cidadãos do Estado. Para Habermas é preciso uma política com características igualitárias e com normatizações que busquem corrigir as desigualdades, sem estas políticas o sujeito fica sem a possibilidade de percorrer novas fronteiras “de crescer sem perturbações em seu universo cultural de origem, e de poder criar seus filhos nesse mesmo universo” (Ibid., p. 252).

Noutras palavras Habermas (2002, p. 237) persevera em favor da sociedade por elucidações junto à política e ao Estado, ou seja:

 

[...] em debate público acerca da interpretação adequada das carências, os enfoques sob os quais as diferenças entre experiências e situações de vida de determinados grupos de homens e mulheres se tornam significativos para um uso das liberdades de ação em igualdades de chances.

 

Neste sentido, em comunhão com o pensamento habermasiano, as vontades e os entendimentos políticos devem trilhar também as expressões particulares de uma minoria que clama por reconhecimento social e político. Isto deve/pode embasar razões que compreendam e orientem decisões que denotem, por exemplo, um ‘auto-entendimento ético político’ ou justificações e discussões acerca de uma concepção de vida escolhida, buscando evitar assim, segregações e exclusões. De outro modo, para Habermas “A exclusão social da população de um Estado resulta de circunstâncias históricas que são externas ao sistema dos direitos e aos princípios do Estado de direito” (Ibid., p. 246).

Portanto, enquanto não existir um entendimento comum entre o Estado de Direito e a democracia, os sujeitos multiculturais não poderão usufruí da chance de confrontar, romper, continuar ou transformar a realidade no qual estão inseridas, a partir de sua origem cultural e de suas atitudes autocríticas, mas em um contexto livre da coerção, do preconceito e da intolerância revestida de normatização democrática. Na concepção de Habermas (2002, p. 252) “A mudança acelerada das sociedades modernas manda pelos ares todas as formas estacionárias de vida. As culturas só sobrevivem se tiram da crítica e da cisão a força para uma autotransformação”.

Neste seguimento, é necessário romper com uma sociedade e, consequentemente, com uma política pautada no senso comum respaldados pelo que acham a grande maioria. De outra forma, Habermas nos propõe um “posicionamento reflexivo”, com base no reconhecimento multicultural, na tolerância ao diferente e na reciprocidade entre os heterogêneos pontos de vista, ou seja, “é preciso reconhecer cada pessoa como membro de uma comunidade integrada em torno de outra concepção diversa do que seja o bem, segundo cada caso em particular” (Habermas, 2002, p. 253).

Ora, como afirma o próprio Habermas “Todo recalque produz seus sintomas” (Ibid., p. 266), as segregações e os preconceitos são sintomas que impossibilitam uma política do reconhecimento, da democratização justa e da relação recíproca. Como afirma Buber “Que ninguém tente debilitar o sentido da relação: relação é reciprocidade” (2001, p.54), ou seja, perceber o outro, desenvolver políticas que reconheça o outro é antes de tudo, edificar a relação mútua entre o ‘eu’ e o outro diferente.

 

5 RECONHECIMENTO E JUSTIÇA[4]

Existe uma grande discussão entre liberais e comunitaristas. Para os liberais, trata-se de dar prioridade a uma concepção abstrata de “pessoa”, desvinculando suas capacidades de agir de forma autônoma e livre dos contextos e determinações históricas específicas que compõem sua identidade. Para que uma concepção de justiça possa fornecer princípios e normas com pretensões morais de justiça, é preciso limitar-se a uma concepção impessoal e imparcial de pessoa.

Já segundo os comunitaristas, a justiça está atrelada aos contextos da comunidade, ou melhor, à sua história, tradição, práticas e valores, que formam o horizonte normativo para a constituição da identidade de seus membros e, por conseguinte, dos princípios de justiça.

O debate entre ambos os grupos no início da década de 1980 se caracterizou pela rigidez das distinções: os liberais, pertencentes à tradição kantiana, podiam ser definidos como aqueles que se esquecem do contexto; já os comunitaristas, de tradição hegeliana, como os que são obcecados pelo contexto.

O debate com John Rawls é de que os princípios de justiça devem ser objeto de um acordo original e razoável, isto é, de que a escolha dos princípios seja feita de modo equitativo e imparcial, sem que o indivíduo saiba seu lugar na sociedade, a posição de sua classe ou status social, sua sorte na distribuição de dotes e habilidades naturais, sua inteligência, força e coisas semelhantes. Essa é a função do véu da ignorância.

Neste sentido, a autorrealização deveria ser assegurada por uma estrutura de direitos, liberdades e deveres como querem os liberais; não abstratamente deduzida e, sim, efetivada num contexto ético intersubjetivamente compartilhado, como defendem os comunitaristas.

 

6 ASPECTOS NORMATIVOS DO RECONHECIMENTO

É certo que o ordenamento jurídico tende a contemplar os direitos que os cidadãos, reciprocamente, devem se submeter e estão obrigados a exigir uns aos outros; essa regra é própria dos meios do Direito Positivo. Também é certo que a Teoria dos direitos deve atender as diferenças culturais. Entretanto, na efetivação do direito, surgem os desafios que são proporcionais às diferenças culturais, étnicas e religiosas envolvidas, já que, em tese, a norma jurídica representa as decisões de um legislador local e tendem a ser mais traumáticos quando envolve posições fundamentalistas.

A normatização que se introduz com o Direito surge como um complemento ao déficit da moral daquela comunidade e sua aplicação se constitui um caráter constitutivo em certas interações desprovidas de conteúdo moral. O médium do Direito, portanto, pressupõe uma categoria de direitos, via de regra fundamentais, que asseguram um lócus de proteção aos cidadãos e nesse viés as minorias ofendidas e maltratadas se socorrem do direito positivo para garantir seu processo de afirmação.

O direito moderno fornece um sistema de garantias e proteção dos indivíduos, que pelo princípio da legalidade, esse sistema de garantias impõe ao Estado uma certa limitação e possibilita ao indivíduo uma maior liberdade. O direito deve, precisamente, conter os direitos que os cidadãos estão reciprocamente submetidos em suas regras de convivência.

Esse sistema do direito moderno individualiza aquele detentor de direitos e garantias estabelecidos no sistema normativo e impõe ao Estado uma limitação decorrente do sistema legislativo que certos momentos, poder ser entendidos como retrógados, mas legitimado pelo manto do regime democrático que exige do direito um comportamento legal, tal comportamento confirma sua legitimidade quando garante a todos os jurisdicionados um tratamento isonômico e igualitário. O processo democrático depende de um processo de normatização jurídica, pois exige dos participantes uma participação positiva e com foco na obediência as garantias individuais fundamentais para sua legitimação. Um problema que surge é que o direito Positivo não deve regular as possíveis interações formuladas por sujeitos capazes de falar e de agir, esse papel cabe aos atos regulados pela regra da moral.

Essa busca pela legitimação que é inerente ao processo democrático e que exige a participação positiva dos envolvidos, Habermas (2002) alerta para o problema da “igualação jurídica e do igual reconhecimento”, quando evolvem os grupos multiculturalmente definidos, ao passo em que se busca a proteção dos interesses dos grupos, tende a distinção de coletividades que se destacam entre si, pois na medida em que se busca o reconhecimento, tende a se individualizar mais ainda, quer seja pela vontade de manutenção de suas crenças, tradições, etnias e até mesmo na manutenção de suas identidades, esse processo gera um fator de dificuldade nas comunidades de imigrantes que buscam manter suas tradições e ao mesmo tempo serem incluídos na nova comunidade.

Todavia, a inclusão nessa nova comunidade sem sempre é pacífica e de fato ocorre. A título de exemplo, conforme ocorreu no caso da lei francesa de 2010 que proibiu o uso da burca (véu islâmico) em espaços públicos, tal caso foi levado ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos que confirmou a legitimidade da lei francesa sob o pálio argumento de medidas de segurança para prevenir atentados no território francês. A hostilidade contra a figura do estrangeiro não é nenhuma novidade e ocorre há várias décadas, em especial no continente Europeu, por conta do grande fluxo migratório que ocorre na região decorrente de vários fatores, tais como: ameaça a vida ou a liberdade por conta de questões políticas ou até mesmo fugindo da fome e da miséria em busca de trabalho e de novas oportunidades.

Na definição de uma sociedade acolhedora num processo de migração, Habermas define que:

 

Essa comunidade projetada de modo construtivo não e um coletivo que obriga seus membros uniformizados à afirmação da índole própria de cada um. Inclusão não significa aqui confinamento dentro do próprio e fechamento diante do alheio. Antes, a "inclusão do outro" significa que as fronteiras da comunidade estão abertas a todos- também e justamente aqueles que são estranhos um ao outro - e querem continuar sendo estranhos. (Habermas, 2002, p.8).

 

Invariavelmente, qualquer comunidade que aceite o processo de acolhimento do imigrante, certamente sofrerá interferências e até uma possível mudança cultural, pois ainda que exista uma certa resistência quanto a manutenção da integridade na forma como os cidadãos daquela comunidade acolhedora mantenha sua cultura certamente receberá influências do convívio com o estrangeiro. Habermas (2002) questiona, até que ponto em uma sociedade de direito democrático pode ser possível exigir do exilado ou refugiado que ele assimile os preceitos ético-político da nação que lhe acolhe. Aponta que esse processo de assimilação poderá ocorrer em dois níveis, sendo num primeiro momento o processo da “concordância”, momento em que o acolhido tende a apreender os princípios da constituição daquele espaço de convívio e de interação que está inserido por meio da “autocompreensão ético-política dos cidadãos”, como também pela “cultura política do país” que o acolhe e a obediência as regras aceitáveis daquela comunidade.

O segundo nível ocorre com a “disposição à aculturação” do sujeito que chega ao novo ambiente, e esse processo não quer dizer que seja plástico ou superficial, ele dever ocorrer de maneira introspectiva que altera o modo de viver e de absorver as novas práticas e costumes, ocorrendo uma certa fusão de culturas no indivíduo, por conta do contato continuado que ele está inserido.

Nessa perspectiva, passam a se submeter às normas jurídicas que devem ser respeitadas não somente porque elas coagem, mas sim porque elas são legítimas. Essa legitimidade característica de uma norma jurídica demonstra que, ao mesmo tempo em que está positivada torna cidadãos politicamente autônomos, já que aqueles incluídos nessa comunidade podem compreender-se em conjunto com os demais como autores das leis as quais se submetem como destinatários.

 

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, na modernidade, formas rígidas de vida tornam-se vítimas da entropia. Movimentos fundamentalistas podem ser entendidos como a tentativa irônica de, com meios restaurativos, conferir ultra estabilidade ao próprio mundo vital. O nacionalismo também pode se tornar um fundamentalismo, mas não pode ser confundido com ele. Porém, o fundamentalismo que conduz a uma práxis de intolerância é irreconciliável com o Estado de Direito. Essa práxis apoia-se sobre interpretações religiosas ou histórico-filosóficas do mundo que reivindicam exclusividade para uma forma privilegiada de vida.

Portanto, em sociedades multiculturais, a constituição jurídico-estatal só pode tolerar formas de vida que se articulem no médium de tradições não-fundamentalistas, já que a coexistência equitativa dessas formas de vida exige o reconhecimento recíproco das diversas condições culturais de concorrência do grupo. A integração ética de grupos e subculturas com cada uma das identidades coletivas próprias precisa ser desacoplada do plano de uma integração política abstrata, que apreende os cidadãos do Estado de maneira equitativa.

Nesta perspectiva de análise, a neutralidade do direito em face das diferenciações éticas no interior do Estado pode ser explicada pelo fato de que, em sociedades complexas, não se pode mais manter coesa a totalidade dos cidadãos através de um consenso substancial acerca dos valores, mas tão-somente através de um consenso quanto ao procedimento relativo a ações jurídicas legítimas e ao exercício do poder.

Nos dias de hoje, a hostilidade contra estrangeiros é amplamente difundida nos países da União Europeia. Do ponto de vista filosófico, justifica-se essa política de isolamento contra imigrantes? Pois, a afluência de imigrantes altera a composição da população também sob um ponto de vista ético-cultural. Neste sentido, salienta-se que a integração política, não se estende a culturas imigratórias fundamentalistas. O slogan defensivo “o barco está lotado”, presente na discussão sobre políticas de asilo na Alemanha no início dos anos 1990, permite entrever esta indisposição.

 

REFERÊNCIAS

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AUDARD, Catherine. “Le principe de légimité démocratique et le débat RawlsHabermas”. In: Rainer Rochlitz (Org.) L’usage Public de la Raison. Paris: Presses Universitaire de France, 2002, p. 95-132.

BUBER, Martin. Eu e tu / Martin Buber. Tradução: Newton Aquiles Von Zuben. São Paulo: Centauro, 2001.

FERRY, Jean-Marc. Habermas: l’éthique de la communication. Paris: Presses Universitaires de France, 1987.

HABERMAS, Jurgen & TAYLOR, Charles. Multiculturalismo: lotte per il riconoscimento. Milano: Feltrinelli, 2006.

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NOBRE, Marcos (org). Curso livre de teoria crítica. Campinas: Papirus, 2008.

RICOUER, Paul. Percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2010.

TAYLOR, Charles. A ética da autenticidade. São Paulo: É Realizações Editora, 2011.

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TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1997.

TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre ética. Petrópolis: Vozes, 1997.

 

 

 

 



[1] Doutor em Educação pela Universidade do Porto – Portugal. Professor no Programa de Pós-graduação em Educação – Mestrado e Doutorado - da Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Coordenador do grupo de estudos em Teoria Crítica, Emancipação e Reconhecimento – TECER, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Alagoas – UFAL.

[2]Mestre em Educação Brasileira pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Alagoas – UFAL. Membro do grupo de estudos em Teoria Crítica, Emancipação e Reconhecimento – TECER, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Alagoas – UFAL

[3] Professor efetivo de filosofia - Secretaria de Estado da Educação de Alagoas Possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal de Alagoas (2015), mestrado em Educação pela Universidade Federal de Alagoas (2018) e doutorado em Educação pela Universidade Federal de Alagoas (2022).

[4] NOBRE, Marcos (org). Curso livre de teoria crítica. Campinas: Papirus, 2008, p. 192-198.