A CRISE DA RELAÇÃO DE LEGITIMIDADE ENTRE DIREITO E DEMOCRACIA

déficits de moralidade

Anderson de Alencar Menezes[1]

Universidade Federal de Alagoas

anderufal@gmail.com

Angelina Renata Andrade Ribeiro dos Santos[2]

Universidade Federal de Alagoas

randraderibeiropsico@gmail.com

Gustavo de Melo Silva[3]

Universidade Federal de Alagoas

gustavomelojfal@gmail.com

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo teve por objetivo apresentar a problemática da relação entre direito e democracia no que concerne à concepção de legitimidade, tendo como principal aparato a obra Direito e Democracia de Habermas. Para tal, a questão central que guiou este artigo foi “como se dá a crise entre direito e democracia tendo como produto os déficits de moralidade?”

Pensar a crise da relação de legitimidade entre direito e democracia e seus déficits de moralidade requer pensar a conexão existente entre a definição de direito e democracia e as determinações normativas morais. Para tal, é necessário estabelecer a relação entre direito e moral de tal forma que a autonomia de ambos seja respeitada.

Primeiramente e em sentido amplo, a moral (lat. moralis, de mor-, mos: costume) aparece como sinônimo de ética, teoria dos valores que regem a ação ou conduta humana, tendo um caráter normativo ou prescritivo. Em um sentido mais estrito, a moral diz respeito aos costumes, valores e normas de conduta específicos de uma sociedade ou cultura (Japiassú, Hilton; Marcondes, Danilo, 2006, p. 193). Sendo assim, em seus sentidos, convergem para o conceito de moralidade como qualidade de um indivíduo ou ato considerado quanto a sua relação com princípios e valores morais.

Por conseguinte, o direito é entendido como conjunto de normas ou leis criadas pelos homens como forma de guiar uma sociedade em determinada época. De modo genérico, a relação entre direito e moral é compreendida pelo senso comum como sendo uma relação de subordinação do direito em relação à moral.

Em virtude de suas autonomias, o direito se compromete com resultados e necessita de aparato coercitivo que lhe dê efetividade. Ao contrário da moral, não pode depender apenas da motivação interna de cada indivíduo. Dialogando com Habermas (1997), os exemplos apresentados para uma moral no direito significam apenas que certos conteúdos morais são traduzidos para o código do direito e revestidos com outro modo de validade. Uma sobreposição dos conteúdos não modifica a diferenciação entre direito e moral.

Diante desta perspectiva, cabe ressaltar o terreno conflituoso advindo do embate entre duas concepções de direito: direito positivo e direito natural. Nele, a criação das leis e normas é resultado da própria natureza do homem, visto que o direito é o conjunto de leis necessárias, universais, deduzidas pela razão da natureza das coisas. Tem-se aí um desdobramento no conceito de justiça, compreendido como princípio moral que estabelece o direito como um ideal e exige sua aplicabilidade.

Em busca de justiça, então, as demandas de caráter moral por vezes assumem a forma de direitos fundamentais amparados pelas leis, as quais os legalizam, de modo a positivá-los. Entretanto, essas mesmas demandas de caráter moral apresentam em sua construção indeterminações que dificultam a atribuição ou não do caráter jurídico dos mesmos. Podemos pensar como parte dessas indeterminações, como afirma Lois e Dutra (2007), a falta de uma moral comum no seio de suas construções. Questão essa já anunciada por Habermas ao resgatar a tradição kantiana, compreendendo a moral como o âmbito de atribuição de normas universais.

No mundo da vida, os discursos jurídicos incorporam argumentos das mais variadas ordens. Tanto os discursos pragmáticos quanto éticos e morais são justificados através de negociações reguladas por procedimentos. Sendo assim, sempre está em plano de iminência, o risco de ao ser convidado para resolver dilemas morais, o judiciário autorizar decisões que fazem uso de suas convicções pessoais e de sua constituição enquanto sujeito moral.

Entre direito, democracia e moral, vale ressaltar que os problemas advindos da crise entre legitimidade e legalidade trazem à tona questões do fundamento último do direito. Tensionam o direito de tal forma que traz à discussão a Filosofia do Direito. Esta estaria, portanto, apta a pensar as novas demandas do saber jurídico.

Neste viés, a discussão aqui apresentada ao dialogar com a concepção habermasiana, apresenta como hipótese a ausência de coesão interna entre direito e democracia para a crise da legitimidade. Tal problemática é importante na contemporaneidade, em especial no cenário de crise do Brasil, visto que, como dito anteriormente, as demandas morais se estabelecem por vezes como demandas jurídicas, sendo necessário pensá-las a partir de seus paradoxos.

 

2 A CRISE DA RELAÇÃO DE LEGITIMIDADE ENTRE DIREITO E DEMOCRACIA NA PERSPECTIVA DE HABERMAS

Prima facie, devemos abarcar no presente trabalho uma noção do que é a democracia e como ela se apresenta na visão habermasiana. A explicação etimológica da palavra Democracia exsurge do Grego, onde demos significa povo e kratos, poder. Assim, chegamos ao entendimento que Democracia é o poder que emana diretamente do povo.

Isto posto, seguimos no sentido de que coexistem e consolidaram-se na filosofia do direito basicamente dois caminhos distintos, sendo um modelo processualista ou instrumental e o outro sendo o modelo deliberativo. O primeiro, interligado ao pensamento de Joseph A. Schumpeter, e o segundo relacionado ao pensamento de Habermas.

Para Habermas (1997), a democracia baseia-se precipuamente no princípio da universalidade dos argumentos racionais como uma metodologia de legitimidade utilizada por sobre as decisões políticas daqueles que estão representando o povo, oferecendo uma metodologia de reconstrução da democracia em termos totalmente discursivos.

O que o sistema democrático de Habermas (1997) alvitra é um modelo de democracia intermediário entre o deliberado republicanismo e o liberalismo, ou seja, uma terceira opção distinta para estes modelos. Tal modelo habermesiano absorve fundamentos de ambas as teorias acima descritas, objetivando, assim, a criação de um determinado procedimento exemplar que pudesse ser utilizado amplamente para as tomadas de decisões.

O modelo deliberativo, defendido por Habermas (1997), nos remete a recursos extraídos de ambos os lados e, com isso, os une de uma maneira inovadora e que difere das outras num determinado pensamento de procedimento ideal para as tomadas de decisões. Tal entendimento exteriorizado por Habermas do método democrático tem significações normativas mais categóricas que o modelo liberal, entretanto um tanto quanto aquém das normativas do que o modelo republicano.

A teoria acima advogada por Habermas (1997), assim, apesar de conter grande destaque de um modelo democrático deliberativo, não consegue ser difundida para que possa ter uma representatividade relevante perante a sociedade. Dessa forma, com a organização e estruturação da sociedade em si, passou-se a ter uma necessidade maior de novos olhares acerca das novas problemáticas que dali exsurgiriam.

Com isso, a consolidação da administração do Estado Social trouxe uma obrigação estatal de estruturação e regulamentação política, na qual a lei, na sua modalidade clássica passou a ser insuficiente para as práticas administrativas que deveriam proporcionar uma avançada gestão capaz de assumir tarefas de planejamento e execução de políticas públicas intervencionista nas relações privadas e principalmente em grupos sociais que carecem da presença do Estado.

Como todo e qualquer ato presente numa democracia, necessitam laquear-se de legitimidade. Dentro da filosofia habermesiana, tem-se levantando diversos questionamentos acerca da autonomia pública dos sujeitos e sua relação com o contexto democrático, demonstrando a total ingerência na relação do direito com os aspectos da moralidade.

Nesse contexto, partindo-se de uma premissa democrática, aponta a necessidade de instituir novos paradigmas sociais, uma vez que diante da aceitabilidade racional do conteúdo elencado na norma por todos aqueles que porventura venham a ser afetados, seja direta ou indiretamente, acaba perfazendo um papel e participando ativamente no mecanismo discursivo designado à elaboração do próprio Direito.

A partir deste prisma, Habermas (1997) sustenta que esse novo contexto de sociedade vai se relacionar por intermédio de uma nova fonte legítima de poder, apoiada na relação comunicativa entre os sujeitos que transpõem aos que se intitula de metodologia discursiva, vital para a composição da organização e execução das duas primárias ordens sociais e normativas: a Moral e o Direito.

Nesse quadro, constatou-se que a legitimidade do direito necessita de um procedimento de legislação democrático, no qual o discurso moral empreende uma conduta significativa para a sua fundamentação. Contudo, o fato desse discurso manifestar um papel basilar para a justificação racional, não resulta num vínculo de subordinação entre ambos.

Tal circunstância pode ser facilmente elucidada pela seguinte afirmação de Habermas:

 

[...] uma ordem jurídica só pode ser legítima, quando não contrariar princípios morais. Através dos componentes de legitimidade da validade jurídica, o direito adquire uma relação com a moral. Entretanto, essa relação não deve levar-nos a subordinar o direito à moral, no sentido de uma hierarquia de normas. A ideia de que existe uma hierarquia de leis faz parte do mundo pré-moderno do direito. A moral autônoma e o direito positivo, que depende de fundamentação, encontram-se numa relação de complementação recíproca (Habermas, 1997, p. 140-141).

 

Com isso, tratando-se da estruturação do Estado social, referindo à esfera do direito, fora desencadeada uma verdadeira gama de normas experimentais (temporárias) e leis com arcabouço regulamentar, que, por hora, tais definições indeterminadas acarretaram numa verdadeira insegurança jurídica e institucional, que foram transmitidas para a sociedade num geral.

A consequência deste instituto chamado por Habermas (1997) de “indeterminação do direito” foi parar nos tribunais, no qual as decisões dos juízes passaram a se tornar uma legislação camuflada em ato decisório, pondo em xeque as atribuições legais e originária do direito e principalmente o papel de legitimação do Poder judiciário no cenário de crise.

Essa intervenção do Poder Judiciário acontece, principalmente pela insuficiente regulamentação do ordenamento jurídico administrativo e constitucional onde a relação do Estado com a sociedade passou a ser substituída por uma relação eivada e controlada pelas decisões dos tribunais que muitas vezes afrontam o próprio interesse social.

Isso acontece porque as lacunas normativas existentes no ordenamento jurídico são supridas por intervenções técnico-jurídicas ou o controle de legalidade exercido pelos tribunais locais. O cenário se agrava quando essa intervenção do judiciário parte de uma premissa equivocada, trazendo uma violação aos direitos fundamentais e ao interesse social, gerando uma crise institucional que assola a democracia do país.

Neste cenário, o direito sofre sua principal crítica, quando o Estado Social norteado de atribuições de ordem qualitativa e quantitativa é obrigado a decidir questões eminentemente administrativas, provocado pela ineficiência da lei criada pelo próprio poder legislativo e seu efeito impositivo, gerando uma problemática ainda mais grave que é a intervenção de um poder (Judiciário) no poder executor (Executivo), surgindo uma patente violação na harmonia e separação dos poderes constituídos. Tal argumento sustenta-se através da seguinte citação de Habermas:

 

O pivô da atual crítica ao direito, num Estado sobrecarregado com tarefas qualitativamente novas e quantitativamente maiores, resume-se a dois pontos: a lei parlamentar perde cada vez mais seu efeito impositivo e o princípio da separação dos poderes corre perigo. (Habermas, 1997, p.173)

Os problemas relacionados a segurança jurídica e a submissão da lei no Estado Democrático de Direito no estado social são evidenciados, principalmente quando uma norma idealizada pelo legislador não consegue regular ações complexas e dinâmicas que são exigidas em estados intervencionistas, trazendo a tona o fracasso dos meios de regulamentação tradicional que buscam combater os “riscos concretos” e não a prevenção de políticas públicas voltadas realmente ao interesse social.

A invasão descontrolada e sem precedentes evidenciada no cenário atual de crise institucional evidencia a transferência de competência (atribuição) legislativa para os tribunais, em razão de uma patente renúncia inconsequente do poder legislativo de cumprir o seu papel constitucional de promover os debates necessários objetivando a aprovação de diplomas legais que realmente tragam o fortalecimento do direito e da democracia.

Neste cenário dotado de ricas e intensas interferências entre os poderes constituídos, os partidos políticos que preteritamente eram capazes de influenciar a política e a mídia de massas, utilizando o poder comunicativo, na busca de normas capazes de atender o interesse social, atualmente evidencia-se a utilização do aparelhamento estatal para trazer pessoas não setores da administração, do judiciário, da mídia de massas e outros setores da sociedade que possam favorecer o interesse particular do partido ou de uma singela elite partidária.

Os partidos políticos também utilizam a instrumentalização do Estado, com o objetivo de realizar interferência no poder administrativo, por meio de acordos informais e negociatas partidárias que são objetos de embates sigilosos realizadas nos bastidores e nas veredas do parlamento, que muitas vezes revelam a ausência de interesse social ou aceitação da sociedade nas propostas legislativas que visam o favorecimento pessoal ou de determinadas categorias elitistas.

 

Nascem, assim, normas em total descompasso ao interesse da sociedade, norteados tãosomente na necessidade de criar ou manter normas que garantam a impunidade e o crescimento das injustiças sociais que tanto assolam a sociedade hodierna. Por outro lado, temos o poder judiciário sendo obrigado a tomar decisões judiciais em razão da existência das chamadas “zonas cinzentas” que surgem entre a legislação repleta de omissões e obscuridades e a aplicação do direito.

Contudo, é possível constatar que o direito regulador é dotado de fragilidades, principalmente numa seara em que a administração pública no estado social é repleta de tarefas de regulamentação, sendo inadmissível a execução de leis a luz da interpretação neutra e restritiva, tomando decisões de cunho pragmático.

Na administração moderna, o Estado deve evoluir nas tomadas de decisões, não apenas amparados na suposta alegada eficiência da administração, acarretando uma problemática ligada a legitimação, mas calcados nos argumentos normativos, deve desenvolver formas de comunicação e procedimentos que consolide as condições de legitimidade do estado de direito. Nesta linha de pensamento, cabe citar Habermas:

 

No entanto, práticas de participação na administração não devem ser tratados apenas como sucedâneos da proteção jurídica, e sim como processos destinados à legitimação de decisões, eficazes ex ante, os quais, julgados de acordo com seu conteúdo normativo, substituem atos de legislação ou da jurisdição. (Habermas, 1997, 184-185)

 

Diante da problemática que envolve legitimidade e legalidade, uma indagação deve ser enfrentada. É possível obter a legitimidade por meio da legalidade?

Para Max Weber, a legitimidade depende na fidedignidade da legalidade do exercício do poder. A chamada dominação legal possui um caráter de racionalidade, haja vista que a confiança na legalidade das ordens proferidas não se confunde com a fé na “tradição ou no carisma”. A justificativa de Weber é que a racionalidade reside no direito e que concede a legitimidade do poder exercido. Segundo Habermas (1997), o estudioso Max Weber introduziu uma definição positivista, no qual defendeu o direito como imposição do legislador (democraticamente legitimado ou não) estabeleceu como direito, dentro de um processo juridicamente institucionalizado. Vejamos o pensamento de Habermas:

 

Max Weber interpreta as ordens estatais das sociedades ocidentais modernas como desdobramento da “dominação legal”. Por que a sua legitimidade depende da fé na legalidade do exercício do poder. Segundo ele, a dominação legal adquire um caráter racional, pois a fé na legalidade das ordens prescritas e na competência dos que foram chamados a exercer o poder não se confunde simplesmente com a fé na tradição ou no carisma, uma vez que ela ter a ver com a racionalidade que habita a forma do direito e que legitima o poder exercido nas formas legais (Habermas, 1997, p.193)

 

Max Weber vai além ao aduzir que o direito possui sua racionalidade e que não possui necessariamente ligação com a moral. Assim, o direito e morais obrigatoriamente não estão interligados ou conectados, já que a moral pode comprometer a racionalidade intrínseca do direito. (Habermas, p.193, 1997)

Habermas (1997), em desacordo com a posição de Max Weber, defende o conceito positivismo da lei é insuficiente e vazio do ponto de vista normativo, uma vez que o poder exercido no direito positivo deve a sua legitimidade a um conteúdo implicitamente moral. Assim, deixa claro a importância da moral no processo de legitimação da norma no processo democrático. Nesta perspectiva, o direito moderno não pode ser considerado racional quando a moral é neutra. Vejamos o pensamento de Habermas ao tema:

 

Em sociedades semelhantes à nossa, a legitimidade configurada através da legalidade implica a fé numa legalidade destruída das certezas coletivas da religião e da metafisica apoiada, de certa forma, na “racionalidade do direito”. Todavia não se confirmou a opinião de Weber, segundo a qual uma racionalidade autônoma e isenta de moral que habitava do interior do direito, constitui um fundamento da força legitimadora da legalidade. Um poder exercido na forma do direito positivo deve a sua legitimidade a um conteúdo moral implícito nas qualidades formais do direito. (Habermas, 1997, p. 214)

 

Assim, a legalidade só poderia confeccionar a legitimidade ao ponto em que forem institucionalizados processos de decisões judiciais eivados dos discursos morais, ou seja, a legalidade e legitimidade para manter consonância e coesão obrigatoriamente deverá ser submetida ao crivo da moralidade, pois se completam e entrelaçam simultaneamente.

Neste passo, a legalidade produzirá legitimidade quando a ordem jurídica reagir a obrigatoriedade da fundamentação resultante no direito posto, na medida em que ocorrer a chamada institucionalização do processo decisório na seara jurídica passível no discurso moral. (Habermas, 1997, p.216)

A sustentabilidade da tese habermasiana se dá ao fato de que a legalidade deve surgir de sua legitimidade calcada na racionalidade procedimental de cunho fortemente moral, ou seja a racionalidade defendida por Habermas é resultado de uma junção entre dois processos, já que os argumentos morais são institucionalizados com apoio do ordenamento jurídico pátrio. (Habermas, 1997, p.194)

O próprio Habermas (1997) sustentou a posição de que Max Weber não teve sua opinão confirmada, tendo vista que o poder decisório emanado do direito positivo deve possuir sua legitimidade embasado em um conteúdo moral implícito na formalidade do direito.

Contudo, o alemão adverte que a fonte legitimadora não deve ser galgada apenas com a norma política ou na jurisdição, pois no Estado Social o legislador mais zeloso consegue regular os núcleos da justiça e da administração, perfazendo a utilização da lei do ponto de vista semântico, calhando a obrigatoriedade de um direito regulador.

Destarte, neste cenário surge um pensamento extremamente importante, qual seja: a ideia da imparcialidade na fundamentação da norma e da sua aplicabilidade nas obrigatórias regulações, formando a chamada “ núcleo da razão prática”.

A moral sustentada por Habermas (1997) não paira sobre o direito (suprapositivo), mas emigra para o direito positivo, sem desvincular das questões identitária intrínseca a moral. Desta forma, o direito e a moral podem conviver mutuamente, onde os discursos morais limitam-se metodicamente ao direito em vigor, as provas carreadas e a temporariedade das decisões judiciais.

É através das eleições gerais e da pluralidade de opiniões públicas transformam no chamado por Habermas (1997) de “Poder Comunicativo” no qual possui a capacidade de proporcionar a legitimação do legislador sobre a administração regular ao passo que o direito impositivo é naturalmente mais rigoroso e muitas vezes não atende o interesse social.

Com efeito, compreende, desse modo, que de acordo com o modelo teórico de Habermas (1997), a democracia tem assumido uma sujeição metodológica e de caráter discursivo, na logicidade de que é por intercessão de princípios deontológicos, atrelado as relações comunicacionais que se inicia o processo de construção discursiva da vontade.

Nesse escopo, apenas a razão comunicativa a debutar, num contexto de ideias subjetivas, os vínculos interpessoais será eficaz de oportunizar, por meio, primeiramente, do agir comunicativo e em seguida do discurso, a elaboração de uma vontade pública aquinhoada essencial à composição sistemática das ordens normativas de cunho social, maiormente do Direito e da moral.

Com isso, se faz necessário restaurar para a esfera do poder Judiciário a idêntica viabilidade da elaboração discursiva da vontade que assentou base de alicerce ao Parlamento e, portanto, à formação jurídica normativa. Entretanto, essa laboração discursiva dos indivíduos tem o processo como o âmbito social apropriado e a normatividade que dela germinara, equivalerá ao âmago dos vereditos judiciais legitimamente declamados.

Portanto, o que se alvitra é que no campo de utilidade pública, o poder Judiciário seja conduzido a invocar a integração social e deliberativa dos sujeitos, por intermédio das organizações ativas, de maneira a assegurar que as decisões judicias possuam sua normatividade de modo a revesti-la de total legalidade e legitimidade exigida pelo estado democrático de direito.

Dessa forma o Judiciário será plenamente capaz de mitigar o déficit de legitimação que tanto tem motivado críticas, acercando-se, sobretudo, daqueles sujeitos reconhecidos como os legítimos alvos das decisões emanadas. Por conseguinte, o direito normativo subjugará os indivíduos como autores e destinatários, nesse caso em nexo aos julgamentos proferidos pelo judiciário percorrendo um sistema discursivo que os posiciona a uma situação frente a frente com a Justiça.

No Brasil, como recurso para subsidiar legalidade são lançados mecanismos de regulação de discursos, à exemplo as CPIs (Comissões Parlamentares de Inquérito). Nesse sentido, questões de política ocupam franca visibilidade como questões de direito. A política passa a ser entendida como um jogo de convencimento através de ideias reguladoras de conteúdo normativo. (Alexandre, 2000, p. 4)

Outros contextos podem ser citados, tais como temáticas ambientais, econômicas, de defesa de interesses sociais amplos ou de minorias, os quais apresentam medidas e/ou decisões de pouco impacto, gerando um problema de legitimidade nestas medidas e/ou decisões. Diante de conflitos entre garantia de conquistas e interesses políticos, surge, nas palavras de Habermas (1997), o fenômeno de juridificação da política, onde o mundo da vida torna-se positivado.

Ainda na condição de exemplificar, podemos citar o caso recente com relação à polêmica sobre a sucessivas ordens judiciais de prisão e soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Com o judiciário dividido, a diversidade de representações valorativas abala os alicerces da norma, que passam a ser vistas como valores em si. Neste sentido, de acordo com Alexandre (2000), quando não se percebe que os tribunais têm o papel da adaptação de princípios do direito a valores, e não vice-versa, preferências atraentes são capazes de apresentar interesses nocivos.

Neste cenário de crise institucional, o Poder Executivo vem exaustivamente realizando investidas em desfavor do Judiciário com pressões e até chantagens legislativas, como por exemplo a tentativa de aprovação da Lei de Abuso de Autoridade, onde o legislativo idealizou a aprovação de norma eivada de vício de cunho ideológicos e principalmente sem interesse da sociedade organizada, buscando apenas punir o judiciário que vem tentando exercer o papel constitucional de julgar as lides judiciais.

O ambiente entre esses poderes se torna mais inóspito quando o poder julgador decide questões que contrariam o interesse da classe política, o exemplo clássico é a decretação da prisão cautelar em desfavor de qualquer político. Surge naturalmente a alegação por parte do legislativo de violação as atribuições privativas dos poderes constituídos, ou seja, a suposta atribuição de apreciar ou convalidar eventual pedido de prisão seria do parlamento brasileiro.

Contudo, em razão da omissão do ordenamento jurídico pátrio acerca do tema, bem como do aparente protecionismo ou corporativismo da classe política surge a impunidade e consequentemente a insatisfação da sociedade organizada de clama por um país melhor.

Por outro lado, o Poder Judiciário vem decidindo questões sem competência ou jurisdição funcional, fato que enseja a majoração desta crise institucional de legitimidade dos poderes. Como é cediço, o poder judiciário não possui a legitimidade constitucional de legislar acerca de questões que não foram objeto de lei e quando a Justiça decide lides por omissão da Lei instala no cenário nacional debates e questionamentos acerca do papel dos poderes.

O cenário é agravado quando o Judiciário julga questões sem apoio da sociedade ou decide de forma equivocada, criando um ambiente propício de questionamentos. Podemos citar um dos questionamentos mais comuns acerca do judiciário é a indicação por parte do chefe do executivo dos desembargadores e ministros dos tribunais superiores, ou seja, questionamento que envolve a parcialidade do judiciário frente a questões de interesse político são sempre objeto de críticas da sociedade.

Novamente surge o conflito de legitimidade, uma vez que tensiona a racionalidade do direito e abre perspectivas de reconhecimento de criação de novos valores. A legitimidade da legalidade resulta, nas palavras do filósofo alemão, do entrelaçamento de processos jurídicos e uma argumentação moral que obedece à sua própria racionalidade procedimental (Habermas, 1997, p. 203).

O Tribunal Constitucional Federal tem um papel de grande relevância neste cenário, tendo atribuição de se ocupar com o controle abstrato da norma. Contudo, Habermas (1997) alerta uma preocupação na atuação deste tribunal que deixou de se limitar a suprir as omissões legislativas, desenvolvendo o direito de forma construtiva, no cenário entre os interesses do bem particular do bem comum.

As normas do direito são limitadas pelos princípios, ou seja, pela ordem de valores da Lei Fundamental que pode encadear a chamada insegurança para o direito em razão da instauração de um escalonamento entre a ordem legal e os princípios legitimadores. Habermas sustenta a possibilidade da ocorrência da dissolução do poder legal, ou seja do poder apoiado na legalidade da lei e da medida, através de um “ poder apoiado na legitimidade sancionada por intermédio de juízes”. (Habermas,1997, p.211)

Uma problemática evidenciada por Habermas e facilmente vislumbrada em nosso cotidiano no mundo da vida é a dificuldade de ponderar e valorar esses princípios quando são colidentes e somente as teorias da justiça e da moral norteado no procedimento prometem um processo isento de parcialidade para a fundamentação e avaliação dos princípios. E para o alcance da imparcialidade, é imprescindível o julgamento das questões práticas sob a égide da moral.

Como bem narrado por Denilson Luis Werle em seu artigo “Razão e Democracia - Uso Público da Razão e política deliberativa de Habermas”, a esfera pública tem um papel importante no combate a violação de competências (atribuições) dos poderes constituídos, já que a esfera pública utiliza o campo da mediação dos conflitos por meio de um fluxo comunicacional ideal para comunicação de conteúdos, tomada de decisões. Essa estrutura comunicacional do agir é norteada pelo entendimento.

Essa esfera pública consiste basicamente de grupos sociais fomentadores de opiniões em temas especializados, esses grupos são os sindicatos, instituições culturais, ordens sociológicos e filosóficas, entre outras palavras a sociedade civil organizada que fomentam as bases das estruturas comunicativas do mundo da vida que buscam identificar os problemas e propor soluções convincentes e eficazes. Contudo, o estudioso Werle, alerta:

 

A esfera pública tem o papel de fazer com que complexo formado pelo sistema político institucional, a administração pública e o judiciário se constituam como contextos de justificação que estejam ligados aos contextos de descoberta. A esfera pública só conseguirá desempenhar este papel se estiver enraizada no mundo da vida, ela tem de perceber e tematizar os problemas da sociedade como um todo e, portanto, tem de ser formada a partir dos contextos comunicacionais daqueles potencialmente atingidos. Ela é carregada por um público recrutado da totalidade dos cidadãos. (Werle, p. 175, 2013)

 

Neste sentido, a sociedade organizada tem um papel de extrema relevância na condição de moderador nas relações institucionais dos poderes, exigindo decisões norteadas na moralidade e na ética para que a efetiva legitimidade seja chancelada pela sociedade.

É neste cenário de debates, argumentos, consenso e de diálogo que surge o agir comunicativo fundamentado na racionalidade comunicativa que possui o condão de proporcionar a sociedade o equilíbrio necessário das decisões administrativa dos poderes executivo, legislativo e judiciário, fazendo com que o limites estabelecidos em nossa magna carta constitucional sejam respeitados.

A esfera pública especializada, mais precisamente as universidades públicas têm um papel preponderante nestas relações institucionais, que é a promoção do debate e da concórdia em busca de soluções comunicativas capazes de vencer os litígios sociais.

Assim, como fora dito anteriormente, as universidades públicas são detentoras legítimas da esfera pública intelectual de um país, e possuem responsabilidades inerentes ao seu papel na sociedade como um todo. Uma das atribuições é a instigação e o fomento às medidas de soluções dos litigantes e que infelizmente esse papel vem sendo negligenciado pelas universidades e que todas as sociedades inevitavelmente acabam sofrendo com essa omissão.

Na atual conjuntura, portanto, as universidades não conseguem cumprir com as responsabilidades inerentes ao seu papel na sociedade. Sendo assim um caminho a menos para o alcance da democracia, na medida em que converge para a crise de relação de legitimidade entre direito e democracia, criando um verdadeiro distanciamento da política deliberativa, majorando o déficit de moralidade.

Em suma, entre ações e discursos, as situações e exemplos contemplados neste artigo demonstram que o atual cenário de crise brasileiro representa a não sustentação de uma ordem normativa que alcance a integração social, aprofundando a crise institucional, já que essa legalidade não se legitima no solo do espaço público e no mundo da vida.

 

3 CONCLUSÃO

O intuito deste trabalho foi apresentar a problemática da relação entre direito e democracia pelo viés da legitimidade em Habermas. A proposta de análise tomou como parâmetro a relação entre direito e moral, preservando a autonomia de ambos. Neste sentido, em oposição aos postulados do positivismo jurídico, a relação entre moral e direito deve ser discutida por uma perspectiva que envolva aspectos referentes à filosofia da justiça.

A forçada subordinação entre moral e direito, acarretou em nosso cenário, o que podemos chamar de esgotamento do direito e da moral, onde regras jurídicas e morais buscam tratar dos mesmos problemas de modo que descaracteriza direito e moral em suas distintas concepções. É dentro deste viés que identificamos o objeto de estudo deste artigo, os déficits de moralidade como esgotamento da moral, uma vez que este incompatibiliza a autonomia pública dos cidadãos.

O argumento do texto foi delineado dando destaque que em Habermas, a teoria do discurso do direito busca solucionar o problema da legitimidade do direito a partir da legalidade, fazendo um contraponto a Max Weber. O filósofo parte de uma premissa da teoria da racionalidade comunicativa, o direito e o processo de construção da norma são pautados numa linguagem de cunho moral, ou seja, a norma posta deve possuir uma estreita ligação com a moral e a ausência desta conexão, acarreta a ausência de legitimidade no mundo da vida.

Neste passo, a moral completa o direito no que tange a sua fundamentação jurídica, haja vista que os argumentos morais são garantidores da legitimidade necessária a ponto de que os regramentos jurídicos não podem contrapor os princípios morais, entretanto a moral proporciona um aspecto de efetividade ao direito criando uma complementação. A ausência dessa relação harmoniosa entre o direito, democracia e a moral leva o déficit de legitimidade do direito no mundo da vida, majorando o cenário de crise.

Portanto, não é possível criar uma relação de subordinação entre a moral e o direito já que a criação dos regramentos jurídicos se dá por meio da participação do povo (sociedade) no cenário político e que a democracia possui sustentabilidade quando o arcabouço jurídico não se divorcia da moral, norteando uma esfera pública do dever moral das normas.

Assim, em sua teoria, Habermas representa um retorno à confiança na razão dentre os pensadores críticos, uma vez que espera que conceitos como o de justiça possam ser aplicados tanto globalmente ou em uma dada sociedade desde que incorporadas em instituições solidamente democráticas, sendo o meio para tal a ação comunicativa, cuja força coercitiva e legítima é o direito.

Destarte, a ação comunicativa pressupõe o diálogo, a crítica e o contraste de ideias. Nem sempre será consensual, mas chegará a resultado acordado entre os interlocutores. Nesse debate, a mediação das instituições do direito - seja como ideal na forma de dever-ser, seja como as regras para o próprio debate - têm papel preponderante.

Neste sentido, a teoria habermasiana merece destaque por procurar solucionar os tensionamentos existentes entre democracia e direito enfatizando seus pontos críticos e deficitários. Sendo, portanto, uma pesquisa de caráter filosófica, abre espaços, a partir das reflexões aqui expostas acerca dos déficits de moralidade, para novas questões, tais como os já mencionados durante o texto “déficits de representatividade e legitimidade” no modelo democrático brasileiro. Ademais, pensar à maneira de Habermas tal modelo democrático pautado na representatividade, é um caminho possível para discussões posteriores.

 

REFERÊNCIAS

ALEXANDRE, Agripa Faria. Questão de política como questão de direito: a judicialização da política, a cultura instituinte das CPIs e o papel dos juízes e promotores no Brasil. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas, Florianópolis, v. 1, n. 13, p. 2-13, jan. 2000.

HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume II. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

LOIS, Cecília Caballero; DUTRA, Delamar José Volpato. Modelos de moralização do direito: um estudo a partir de Jürgen Habermas. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, p. 233-252, jan. 2007.

WERLE, Denilson Luis. Razão e democracia: uso público da razão e política deliberativa em Habermas. Trans/Form/Ação, Marília, v. 36, n. spe, p. 149-176, 2013.



[1] Doutor em Educação pela Universidade do Porto – Portugal. Professor no Programa de Pós-graduação em Educação – Mestrado e Doutorado - da Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Coordenador do grupo de estudos em Teoria Crítica, Emancipação e Reconhecimento – TECER, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Alagoas – UFAL.

[2] Possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal de Alagoas (2009) e graduação em Psicologia pelo Centro Universitário CESMAC (2011). Atualmente faz Mestrado em Educação dentro da linha Educação, Culturas e Currículos e grupo de pesquisa Filosofia e Educação/Ensino de Filosofia. Membro do Grupo de Pesquisa Teoria Crítica, Emancipação e Reconhecimento (TeCER) vinculado ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Alagoas.

[3] Possui graduação em Direito pela Faculdade de Alagoas (2008), Bolsista do CNPQ e da FAPEAL na graduação, Pós-graduado em Processo Civil, Pós-Graduando pela UFRN em Jurisdição Inovadora e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Doutorando em educação pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Professor da Graduação e Pós-graduação do Curso de Direito (UNEAL, Estácio e CESMAC) e Diretor da 1a Vara Federal de Alagoas - Justiça Federal de Alagoas.