A racionalidade comunicativa habermasiana

contribuições no processo de aceitação do imigrante e refugiado

 

Virgílio Andrade Neto[1]

Universidade Federal de Alagoas

andradevirgil@gmail.com

Darlan do Nascimento Lourenço[2]

Universidade Federal de Alagoas

darlan.nlourenco@gmail.com

Anderson de Alencar Menezes[3]

Universidade Federal de Alagoas

anderufal@gmail.com

1 INTRODUÇÃO

A discussão acerca da temática envolvendo imigrantes, refugiados e exilados, isto é, pessoas em deslocamento forçado, têm tomado grande relevância na comunidade internacional, sobretudo, do último meio século passado para cá. Há de se notar que muitos dos fatores que colaboram para esse movimento humano coagido refletem um cenário de violência e opressão sofridas por indivíduos que saem de um lugar a outro em busca de proteção, solidariedade e, em muitos casos, nova cidadania.

Nisto, o aumento do contingente de refugiados, apátridas e destituídos de direitos só aumentou com a chegada do século XX, de acordo com Habermas (1997). Esses, somados a parte do espólio da Segunda Guerra mundial, algo que veio contribuir, portanto, com o avanço exponencial do número de expatriados, desabrigados e exilados que perambulam pelo mundo, principalmente pela Europa, cada vez mais dividida e discriminadora; mas também em países em desenvolvimento, como no caso do Brasil.

A onda de migrantes, por sua vez, cresce assustadoramente e os indivíduos são alocados em assentamentos, cuja semelhança remonta aos campos de concentração durante o regime de guerras; ocasião pela qual reforça cada vez mais a falta de zelo pela dignidade da pessoa humana. Como se não bastasse, o sentimento xenófobo aumenta progressivamente com relação aos refugiados e imigrantes. Situação tal que faz tornar-se mais dramático o quadro social vivido por homens, mulheres e crianças em situação de vulnerabilidade.

Nesse ínterim, segundo levantamento da ACNUR150 a população mundial de refugiados e migrantes ultrapassou novo recorde em 2017 com 68,5 milhões de pessoas em deslocamento pelo mundo151. As tentativas políticas de alguns países da Europa, como acontece na Alemanha, Espanha, França entre outros, já não dão conta do fluxo constante de pessoas que diariamente tentam buscar abrigo em suas fronteiras.

Diante disso, o presente estudo tem por objetivo refletir a condição em que estão submetidos fluxos populacionais inseridos na condição de refugiados à luz da teoria habermasiana, em especial, a partir da sua obra Direito e Democracia. Uma vez que no tocante ao debate em torno da democracia e das garantias de direitos humanos básicos, se faz necessário ponderar de que forma indivíduos em situação de vulnerabilidade são tocados por instrumentos democráticos do Estado que ajudem a afirmar sua condição de cidadão socialmente reconhecido na esfera pública? Ou melhor, como se dá a participação democrática do indivíduo refugiado?

Não obstante, é de nosso interesse propor, respaldado através de categorias fundamentais da teoria habermasiana, tais como: racionalidade comunicativa, validade, entendimento, reconhecimento, um diálogo que tenha como meta a superação de discursos hegemônicos, uma vez que estes estão inclinados à reprodução de formas que priorizam a dominação e a instrumentalização das relações humanas. Além disso, compreender o fenômeno dos fluxos migracionais e de refugiados se mostra imprescindível para entender o modo como a sociedade no capitalismo tardio se desdobra em momentos de crises sociais e, também, como a democracia é capaz de lidar com tais situações extremas passadas por cidadãos e cidadãs de várias nacionalidades.

 

2 SITUANDO A PROBLEMÁTICA EM TORNO DA CONDIÇÃO DOS REFUGIADOS SOB A LEITURA HABERMASIANA EM DIREITO E DEMOCRACIA

No segundo volume de Direito e Democracia, Habermas traz a discussão acerca da imigração e da condição dos refugiados a partir de um artigo intitulado: “Imigração e chauvinismo do bem-estar: um debate”. Nele, o autor desenvolve uma série de problematizações, bem como uma argumentação que faz despontar a questão da migração como um dos grandes desafios da contemporaneidade. Muito embora esse tema permaneça sendo fruto de debates acalorados, mesmo distante do ano de 1992, quando do lançamento do livro pelo autor. Mas, é importante frisar que com essa obra, “[...] Habermas se ocupa do problema da legitimidade das instituições do Estado...” (Andrews, 2011, p. 143), e no tocante a esse aspecto, o debate em torno da condição dos refugiados se faz presente.

É possível vislumbrar, por conseguinte, que a intenção do filósofo alemão em relação ao tema na supracitada obra, se encaminha a oportunidade de refletir o mundo a partir do pressuposto fundamental que alicerça todo ator social aos princípios do direito em um estado democrático. Isto é, a urgência de reconhecimento da cidadania e da dignidade da pessoa humana, em que há, por sua vez, a imprescindibilidade de contestar a situação extrema vivida por milhões de indivíduos ao redor do mundo que estão submetidos à condição de refugiados, fora de seus territórios nacionais e convivendo diariamente com intensos ataques seja de ordem social, cultural ou política. Ademais, faz emergir a premência de uma razão comunicativa queauxilie no percurso e possa conduzir a dimensão de validade em que indivíduos possam ser reconhecidos enquanto sujeitos capazes de discursos validados na comunidade.

Por este motivo, segundo Habermas (1997), o fluxo migratório do pós-guerra na Europa atuou como um termômetro constrangedor em face do fracasso do ideal socialista de Estado, com isso, influindo no crescente trânsito de refugiados pelo mundo. Na realidade, esse fenômeno tornou-se um dos principais acontecimentos políticos e sociais que marcou a segunda metade do século XX, devido a um cenário de guerras e miséria, como já previra Hannah Arendt, de acordo com o pensador frankfurtiano.

O interessante a se notar nesse quadro é que os fluxos migratórios representam graves mudanças no cenário geopolítico, econômico e social dos territórios ocupados por esses contingentes populacionais. Dito de outro modo, o problema do fluxo migratório descontrolado, sugere inicialmente dois grandes desafios: o primeiro que é de cunho econômico, já que o aumento da população, com a chegada dos imigrantes e refugiados irá impactar diretamente no consumo das utilidades fornecidas pelo estado; o segundo é de cunho social, pois a população local enfrentará o problema da interação e aceitação dos costumes e tradições trazidas nas bagagens dos novos participantes daquela comunidade.

Neste quesito, Habermas (1997) defende a tese que o problema do refúgio só poderá ser resolvido através de políticas comuns entre os países envolvidos. Quer dizer, se faz necessário medidas que garantam a melhoria de vida nas regiões mais pobres da Europa, ou, de acordo com a perspectiva habermasiana, esta “será invadida por refugiados e imigrantes” (p.297). E, neste ponto, nosso autor dirige uma reflexão para a forma como os Estados Nacionais implicados na questão poderão abrir o debate em torno dessas melhorias das condições de vida; mas, também, levanta o olhar diretamente sobre os países que são rotas de chegada de migrantes, uma vez que a constelação de acontecimentos que rodeiam os sujeitos em condição de deslocamento forçados tende a se tornar cada vez mais imprevisíveis.

Não obstante, outro entrave à condição dos imigrantes e refugiados é a dificuldade de assimilação de suas identidades por parte das populações nativas. Os embates envolvendo a integração política e social das pessoas em estado de refúgio esbarra no dilema em torno da cidadania e, consequentemente, da não aceitação da identidade nacional destes indivíduos, tal que “[...] o não reconhecimento cultural coincide com condições rudes de demérito social...” (HABERMAS, 2002, p.232). Em vista disso, uma crescente reação contrária ao ingresso de estrangeiros na Europa fez tornarem-se mais evidentes ondas radicais em relação à chegada de povos advindos de outras localidades. Nessa perspectiva, Habermas (1997) nos diz:

 

[...] Em toda a Europa aumentaram as reações de radicais da direita contra a infiltração de estrangeiros. E as camadas menos ricas – ameaçadas pelo descenso ou já marginalizadas – identificam-se claramente com a supremacia ideologizada de sua própria coletividade, rejeitando tudo o que é estrangeiro. Este é o outro lado do chauvinismo do bem-estar, que cresce em todas as partes. De sorte que o “problema dos refugiados” traz novamente à tona a tensão latente entre cidadania e identidade nacional. (Habermas, 1997, p. 298)

 

Nesse ínterim, nos é possível atestar a constatação feita por parte do nosso filósofo como sendo fruto de uma ideologia segregadora e etnocêntrica, baseada em discursos de supremacia cultural, e não propriamente, em argumentos que remetam a problemas de ordem econômica simplesmente. Igualmente, tais discursos fazem aumentar o drama suportado por imigrantes que se somam a situação de ao mesmo tempo ter a perda de sua antiga cidadania e, a falta de reconhecimento de uma nova identidade nacional.

Contudo, a questão referente à conquista da cidadania para muitos dos povos refugiados na Alemanha, grosso modo, representa um meio de afirmação e pertença a nova cultura. Assim,

 

[...] Para muitos, a nova cidadania é sinônimo de satisfação etnocêntrica, nascida do fato de não ser mais tratado como um alemão de segunda classe. E, assim, eles esquecem que os direitos do cidadão devem o seu caráter libertário ao conteúdo de direitos humanos universais. [...] Na República Federal da Alemanha, como na maioria dos sistemas jurídicos do Ocidente, a situação jurídica dos estranhos e estrangeiros apátridas foi equiparada ao status de cidadãos. E, uma vez que a arquitetônica da Lei Fundamental é determinada pela ideia dos direitos humanos, todos os habitantes gozam da proteção da constituição. Os estrangeiros têm o mesmo status de deveres e direitos que os cidadãos nativos; com relação ao status econômico, também existe tratamento igual, com poucas exceções. (Id., Ibid.)

 

Nesse quesito, a contenda envolvendo o processo de assimilação e aculturação por parte seja das comunidades nativas, seja das migrantes, respectivamente, faz tornar-se evidente o quão complexa se mostra esta controvérsia. Quer dizer, diante da incerteza de como se darão as relações humanas entre indivíduos em condição de refúgio e nativos das comunidades destino, o que nos vem à tona é qual a forma verdadeiramente democrática de inclusão desses contingentes migracionais, de tal modo que as políticas públicas de inserção social lhes assegurem uma posição legítima na sociedade recém-adotada, de sorte que possam se sentir afirmativamente pertencentes daquele núcleo social sem que haja quaisquer formas de negação de sua cidadania por motivo de ser um estrangeiro.

Há de se considerar outra implicação no tocante ao tema, a saber, uma discussão de ordem teórico-moral baseada no conceito de “special duties”, isto é, enquanto representações de deveres especiais. Com relação a esse ponto, Habermas (1997) discute como estes ‘deveres’ se colocam dentro dos limites sociais de uma comunidade. Entretanto, levanta o questionamento acerca da prioridade entre os deveres especiais sobre as obrigações universais. Nesse arrolar, cinco são os principais pontos trazidos pelo autor que colaboram para o desenvolvimento da argumentação. Todavia, não é de nosso interesse nos aprofundarmos nisto, uma vez que a ordem da questão é poder vislumbrar, em linhas gerais, a problemática em torno do tema da condição dos imigrantes. Haja vista que a conclusão a qual Habermas (1997) chega no artigo aqui discutido, traz consigo considerações que remetem a maneira como o Estado democrático de direito terá de superar, para a perfeita aceitação do refugiado à sua nova pátria, concepções de ordem utilitaristas, individualistas, comunitaristas etc., no intuito de construir uma cidadania democrática que encaminhe à noção de cidadão do mundo, pois, “... no quadro da constituição de um Estado democrático de direito, podem coexistir, em igualdade de direitos, variadas formas de vida.” (Habermas, 1997, p. 304)

 

3 A RACIONALIDADE COMUNICATIVA NO PROCESSO DE ACEITAÇÃO DO MIGRANTE E A CONDIÇÃO À CIDADANIA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Em outro texto na obra, A Inclusão do Outro: estudos de teoria política de 1996, ao rediscutir a questão dos imigrantes, Habermas (2002) desenvolve não apenas um novo olhar sobre a questão; mas, aprofunda alguns dos pontos referentes aos direitos dos estrangeiros em situação de refúgio em busca da cidadania nas sociedades que os acolhem. Neste ínterim, o filósofo lançará mão de uma argumentação de teor jurídico normativo. E é por esse caminho que passaremos a discutir a questão central do presente estudo, além de fomentar uma interrelação entre a condição dos refugiados e a proposta habermasiana situada no uso de uma razão comunicativa enquanto médium de justificação de relações intersubjetivas de atores sociais em interações linguísticas em busca de consensos.

Nessa perspectiva, vale destacar que a condição de cidadania pleiteada por indivíduos em condição de refúgio não se mostra tão simples de ser assimiladas e legitimadas pelos países que os recebem. Nisto, Habermas argumenta do seguinte modo:

 

Da perspectiva da sociedade que acolhe os imigrantes, o problema da imigração suscita a pergunta acerca das condições legítimas de entrada. Negligenciando os graus intermediários do ingresso, podemos centrar a pergunta sobre um de seus aspectos extremos: o ato de naturalização. É com ele que o Estado controla a ampliação da coletividade, definida justamente através dos direitos à cidadania. Sob que condições cabe ao Estado negar a cidadania aos que tornam válida uma pretensão de naturalização? Sem levar em as medidas de precaução usuais (contra a criminalidade, por exemplo), em nosso contexto é especialmente relevante a pergunta sobre em que medida um Estado democrático de direito, em defesa da integridade da forma de vida de seus cidadãos, pode exigir do imigrante que ele se assimile. (2002, p. 257)

 

Sendo assim, a noção de cidadania é uma prerrogativa atinente ao indivíduo que é reconhecida no plano internacional por toda comunidade. E pela ótica do Direito Internacional é um vínculo político-jurídico que relaciona o indivíduo a um Estado. Por conta disso, o indivíduo possui direitos e se vincula em obrigações para com o estado em que passa a pertencer. Habermas (2011) analisa o conceito de cidadania e destaca a ampliação que o conceito sofreu e passa a incluir outros elementos que participam na formação do Estado.

Hoje em dia, no entanto, as expressões “cidadania” ou “citizenship” são empregadas, não apenas para definir a pertença a uma determinada organização estatal, mas também para caracterizar os direitos e deveres dos cidadãos. A Lei fundamental da República Federal da Alemanha não possui similar explícito para a noção suíça de cidadania ativa; porém, apoiada no Art. 33, Seção 1, da Lei Fundamental a doutrina jurídica estruturou o feixe de direitos e deveres dos cidadãos, especialmente os direitos fundamentais, formando um status global entendido de modo semelhante.

 

Frise-se, conforme preceitua Habermas (2011), que a pertença a um Estado como conceito de cidadania, desemboca em subordinação de pessoas sob a égide de um Estado regulador, cuja existência é reconhecida pelo direito internacional, que amplia o conceito para não apenas definir a pertença a uma determinada organização estatal, mas também para caracterizar os direitos e deveres dos cidadãos. Sem necessariamente levar em conta a organização interna do poder do Estado, essa definição de pertença, unida à demarcação do território da pátria, serve para a delimitação social da nação.

Em nosso ordenamento jurídico, a questão da cidadania também é tratada a nível constitucional, já que a Constituição Federal brasileira de 1988 em seu artigo 12 declara que a nacionalidade está associada a um direito personalíssimo (intuito personae) em que o indivíduo poderá exercer livremente, inclusive, abdicar da nacionalidade brasileira em detrimento de outra quando estiver fora do território pátrio. Todavia, não é possível a sua cumulação outro estando em solo brasileiro. Mesmo sendo um direito personalíssimo e podendo ser exercido livremente, tal prerrogativa não está desassociada de suas obrigações enquanto nacional brasileiro. No contexto dos direitos e obrigações, aparece à capacidade de participar do sistema político da nação, este sendo um direito fundamental e o ponto central da cidadania exercida pelo indivíduo.

Daí surge um enorme desafio em todo o mundo, quando envolve aqueles indivíduos que estão submetidos à condição de refugiados ou migrantes, já que “o status de cidadão fixa especialmente os direitos democráticos dos quais o indivíduo pode lançar mão reflexivamente, a fim de modificar sua situação jurídica material” (HABERMAS, 2011 p.286).

Nesse toque, faz emergir a premência de uma disposição a qual sujeitos sociais possam agir de modo a buscarem entendimento recíproco em suas ações. Tal que, conforme Habermas (2012c, p.147), “... o conceito de entendimento remete a um comum acordo almejado pelos participantes e racionalmente motivado, que se mede segundo pretensões de validade criticáveis”. Por este ângulo, a proposta habermasiana de razão comunicativa surge como meio condutor dessa interação que cria condições para auxiliar no percurso para se chegar à dimensão de validade em que indivíduos possam ser reconhecidos enquanto sujeitos capazes de participar das discursões nessas novas comunidades. Logo, a razão comunicativa impõe uma releitura pelo prisma da sociologia, que contrapôs o conceito de mundo vivido (Lebenswelt) com a concepção sistêmica, considerando o discurso dos sujeitos envolvidos no mesmo contexto. A nova razão comunicativa enseja uma mudança de paradigma para considerar o processo de interação dialógica, levando em conta as pretensões de validade dos sujeitos envolvidos e as refutações argumentativas, desta maneira, colaborando com as trocas simbólicas entre sujeitos na comunidade, sejam estes nativos ou não de um território nacional.

Habermas (2012c) inclui em sua teoria da ação comunicativa a elaboração de um novo conceito de razão, que nada tem em comum com a visão instrumental que a modernidade lhe conferiu, mas que também transcende a visão kantiana assimilada por Adorno e Horkheimer (2006), isto é, de uma razão subjetiva, autônoma capaz de conhecer o mundo e de dirigir o destino dos homens e da humanidade. A concepção de razão comunicativa implica uma mudança radical de paradigma, em que a razão passa a ser implementada socialmente no processo de interação dialógica dos atores envolvidos em uma mesma situação. A razão comunicativa se constitui socialmente nas interações espontâneas, mas adquire maior rigor através do que Habermas (2012c) chama de discurso. Na ação comunicativa, cada interlocutor suscita uma pretensão de validade quando se refere a fatos, normas e vivências, e existe uma expectativa que seu interlocutor possa, se assim o quiser, contestar essa pretensão de validade de uma maneira fundada (begründer), isto é, com argumentos (FREITAG, 1993).

Logo, é imperioso se socorrer do conceito de racionalidade comunicativa habermasiana e não na perspectiva do um sujeito isolado e introspectivo. O locus da discursão da inclusão do sujeito na condição de refugiado ou migrante passa a ser um mote ideal e desafiador para essa experiência argumentativa proposta por Habermas, já que exige dos participantes uma postura procedimental e uma interação dialógica para validação, como também de questionamentos de verdades, que serão reformuladas com base no melhor argumento.

Neste sentido, com a racionalidade argumentativa habermasiana, certamente poderemos galgar um ambiente que melhor possibilite uma mudança de comportamento na política migratória dos Estados, numa tentativa de possibilitar uma mínima participação na tomada de decisões, para selecionar quais as estruturas que pretendem conservar, com vistas a promover uma melhoria da adequação dos novos integrantes que, consequentemente, desembocará numa melhoria da sociedade.

Todavia, as recentes práticas nos cenários políticos demonstradas no continente europeu e na América do Norte, mais precisamente no referendo do BREXIT[4] e nas eleições francesa e americana, demonstram claramente um caminho inverso dessa perspectiva de ‘inclusão do outro’ e dos ‘deveres especiais’. Além de ter sido um momento em que fora evidenciado, mais do que nunca, a resistência ao patriotismo, desenvolvida por um novo nacionalismo com dimensões de uma ideologia dominante da exploração do medo do “outro” pelo desconhecido e na estigmatização do estrangeiro.

O que se viu recentemente foi uma grande e significativa guinada nas eleições presidenciais norte americanas[5], que antes havia depositado certa expectativa em um presidente humanista e visionário - Barack Obama - na busca pela intensificação na superação da injustiça social, que não se concretizou efetivamente; para o ressurgimento do sonho americano, “a América grande outra vez”, através de um projeto de campanha centralizador, autoritário e antissolidário em relação ao tema da imigração e do refúgio.

Tanto é que, uma recente pesquisa intitulada: “Além da economia: o medo do deslocamento cultural empurrou a classe trabalhadora branca para Trump” (2017)[6], realizada pelo jornal americano The Atlantic Report e do Instituto de Pesquisa de Religião Pública (Public Religion Research Institute- PRRI) mostra que o medo sobre “os imigrantes e o deslocamento cultural” foram fatores cruciais na escolha pelo presidente Donald Trump. E isso influenciou mais que as preocupações econômicas entre os eleitores brancos da classe trabalhadora, pois 68% relataram uma forte preocupação com a preservação do “estilo de vida americano” e 50% com o medo da influência cultural que representam os estrangeiros chegando a concordar com a afirmação que “as coisas mudaram tanto que muitas vezes me sinto como um estranho no meu próprio país”. Confira-se alguns dos dados da pesquisa a seguir:

 

No geral, o modelo demonstra que, além do partidarismo, os temores sobre os imigrantes e o deslocamento cultural eram fatores mais poderosos do que as preocupações econômicas na previsão do apoio a Trump entre os eleitores brancos da classe trabalhadora. Além disso, os efeitos das preocupações econômicas eram complexos - com fatalismo econômico prevendo apoio a Trump, mas dificuldades econômicas que preveem apoio a Clinton.

[...]

2. Medos sobre o deslocamento cultural. Eleitores brancos da classe trabalhadora que dizem sentir-se frequentemente como um estranho em sua própria terra e que acreditam que os EUA precisam se proteger contra a influência estrangeira tinham 3,5 vezes mais chances de favorecer Trump do que aqueles que não compartilhavam essas preocupações.

3. Apoio para deportar imigrantes que vivem no país ilegalmente. Eleitores brancos da classe trabalhadora que favoreciam deportar imigrantes que vivem no país ilegalmente eram 3,3 vezes mais propensos a expressar uma preferência por Trump do que aqueles que não o faziam.

[...]

É notável que muitas atitudes e atributos identificados como possíveis explicações para o apoio de Trump entre os eleitores brancos da classe trabalhadora não foram preditores independentes significativos. Sexo, idade, região e afiliação religiosa não foram fatores demográficos significativos no modelo. As opiniões sobre os papéis e atitudes de gênero em relação à raça também não foram significativas. Também é notável que nem a medida de envolvimento cívico - participação em eventos cívicos ou serviços religiosos - provou ser um preditor independente significativo de apoio a Trump.

 

O relatório também fornece um perfil aprofundado dos americanos da classe trabalhadora branca, juntamente com a análise da visão de mundo, perspectivas e atitudes deste grupo sobre mudança cultural e política:

Quase dois terços (65%) dos americanos brancos da classe trabalhadora acreditam que a cultura e o modo de vida dos americanos se deterioraram desde os anos 1950.

Quase metade (48%) dos americanos de classe trabalhadora branca diz: "as coisas mudaram tanto que muitas vezes me sinto um estranho em meu próprio país".

Quase sete em dez (68%) americanos da classe trabalhadora branca acreditam que o modo de vida americano precisa ser protegido da influência estrangeira. Em contraste, menos da metade (44%) dos americanos brancos com educação universitária expressam essa visão.

Quase sete em cada dez (68%) americanos brancos da classe trabalhadora - juntamente com a maioria (55%) do público em geral - acreditam que os EUA estão em risco de perder sua cultura e identidade.

Mais de seis em cada dez (62%) americanos brancos da classe trabalhadora acreditam que o crescente número de recém-chegados de outros países ameaça a cultura americana, enquanto três em dez (30%) dizem que esses recém-chegados fortalecem a sociedade. [...]

 

A pesquisa supramencionada mostra uma comunidade pautada pela cultura do consumismo frenético, que se sentindo ameaçada com a presença do estrangeiro, em especial do estrangeiro sem dinheiro, foge totalmente da praticada da racionalidade argumentativa Habermasiana. Ademais, as constatações lançadas, não se limitam na não apenas ao desapego a prática da racionalidade comunicativa Habermasiana, vai além e alcança ainda uma ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana, que está no plano constitucional e é uma conquista do direito moderno, deve sempre caminhar junto na interação entre os sujeitos, que sem sombra de dúvidas, é um avanço no que diz respeito ao bem-estar dos indivíduos. Todavia, o conceito de dignidade da pessoa humana sofre algumas ponderações frente à utopia realista dos direitos humanos, por se tratar de um conceito amplo e aberto.

O Direito surge como um médium para a integração social e com o suporte da teoria da ação comunicativa que se mostra como uma luz no fim do túnel para a reconstrução da legalidade para se criar pelas vias do direito discursivo um espaço de atores sociais, que sejam, de fato, os próprios destinatários das leis por eles criadas, surgindo uma autêntica democracia na forma de acordo normativo, em alternativa ao imperativo coercitivo nas questões jurídicas.

A consequência dessa criação é uma esfera social repolitizada que certamente deverá passar também pelo viés da educação reacoplada, nesse contexto, com a presença do estrangeiro. Essa revitalização da esfera pública não pode ser fundamentada sem a presença da racionalidade comunicacional do agir orientado pelo entendimento e a “reconstrução” do tecido sociopolítico, agora como esfera social irá promover uma releitura na perspectiva crítica da presença do indivíduo estrangeiro, que reacoplada ao mundo da vida desfrutará de maior tolerância e mais flexível, apesar de geralmente vermos nos espaços públicos uma integração prevalente das mídias, que “generalizam” o contexto na prática interessada com desvios políticos.

É necessário fortalecer o discurso democrático e o encorajamento das pessoas, numa postura mais disposta a ouvir no momento da tomada de suas decisões.

 

As relações recíprocas e interpessoais, determinadas pelos papeis do falante, tornam possível uma auto-relação, que não precisa mais pressupor a reflexão solitária do sujeito agente ou cognoscente sobre si mesmo enquanto consciência previa. A auto-referência surge de um contexto interativo. A formação linguística do consenso, através da qual as interações se entrelaçam no espaço e no tempo, permanece aí dependente das tomadas de posições autônomas dos participantes da comunicação, que dizem sim ou não a pretensões de validade criticáveis. (HABERMAS, 1990, p.33)

 

É preciso dar vida aos ensinamentos de Habermas para apreender e promover uma mudança na realidade gritante no que diz respeito ao tema da imigração, pois:

 

Aquilo que brota das fontes do pano de fundo do mundo da vida e desemboca no agir comunicativo, que corre através das comportas da tematização e que torna possível o domínio de situações, constitui o estoque de um saber comprovado na prática comunicativa. (HABERMAS, 2002, p. 96).

 

Logo, o exercício de uma racionalidade comunicativa crítica, sempre será, uma tarefa hercúlea, principalmente quando se tratar de uma perspectiva de inclusão do sujeito, pautada no enfrentamento das “patologias” da sociedade moderna. Isto posto, o problema envolvendo os imigrantes e refugiados representam formas de patologias sociais que o Estado tem de procurar sanar, haja vista que como indivíduos detentores de direitos advindos de sua condição de sujeitos pertencentes a uma comunidade pautada na normatização do direito, há a necessidade de se fazer valer os direitos civis de cada um dos participantes do território nacional, sejam eles nativos ou estrangeiros que fixaram moradia devido sua condição de apatriado, uma vez que, “ [...] o ethos juridicamente ordenado de uma nação que se organize sob a forma de Estado não poderá entrar em contradição com os direitos dos cidadãos [...]” (HABERMAS, 2002, p. 256-257).

Essa interação compreendida nesses termos acaba gerando um poder-dever entre os participantes, uma vez que as pessoas envolvidas passam a assumir encargos recíprocos que influenciarão na atuação harmoniosa e eficiente na vida das pessoas. É certo, que nesse contexto de interações, sempre existiram novas aprendizagens, sempre ocorrem transformações nos envolvidos. E sendo a ação interativa pautada no entendimento recíproco, isso irá tornar o espaço público mais aberto ao debate e voltado para o estímulo das liberdades e garantias dos cidadãos.

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa breve reflexão acerca da racionalidade comunicativa e sua contribuição nas questões que envolvem os seres humanos estrangeiros, foi ancorada no segundo volume da obra Direito e Democracia, cuja discursão trazida por Habermas acerca da imigração e da condição dos refugiados denuncia um problema antigo e que cresce assustadoramente nos dias atuais, não só por problemas econômicos de alguns deles, mas também pela questão da intolerância ideológica, que demonstra cada vez mais a falta de zelo pela dignidade da pessoa humana. O sentimento xenófobo só aumenta com relação aos indivíduos em deslocamento forçado em toda parte do mundo e isso continua sendo um dos um dos grandes desafios da contemporaneidade.

Habermas (2002) na perspectiva da racionalidade comunicativa deixa claro ser possível se estabelecer um padrão mínimo de racionalidade para permitir uma comunicação pautada em relações éticas, em que tem como ponto central o medo e a intolerância do estrangeiro. A racionalidade comunicativa se mostra como uma grande possibilidade para ser aplicada nessa nova razão moderna pautada no medo e na intolerância.

O postulado da racionalidade comunicativa habermasiana é fundamental para compreender estas percepções atuais, pois sua teoria é considerada uma Teoria Crítica da sociedade em que analisa o sistema do dinheiro e do poder considerado como forma de ação estratégica, que domina e disciplina o mundo das interações sociais, que é chamado por Habermas de mundo da vida.

Não obstante o discurso político das grandes nações estarem inclinados à reprodução de formas que priorizam a dominação e a instrumentalização das relações humanas. O enfrentamento do problema causado pelo fenômeno dos fluxos migratórios se mostra imprescindível para entender o modo como a sociedade no capitalismo tardio se desdobra em momentos de crises sociais e, também, como a democracia é capaz de lidar com tais situações extremas passadas por cidadãos e cidadãs de várias nacionalidades.

E pelos ensinamentos de Habermas, encontramos um fio de esperança contra os impactos dessa racionalidade instrumental, que é o potencial existente na racionalidade comunicativa, para fazer com que os sujeitos ocupem seus papeis de pessoas presentes, mobilizadas por ações de interações que revelam sua presença na busca do entendimento mutuo, amparadas por procedimentos éticos, em especial no enfrentamento do problema da migração que influencia na formação do conhecimento das gerações presentes e futuras. Esses procedimentos são ofertados por Habermas na utilização da razão comunicativa que “encontra seus critérios nos procedimentos argumentativos de desempenho diretos ou indiretos das pretensões de verdade proposicional, justeza normativa, veracidade subjetiva e adequação estética” (HABERMAS, 1990, p.437)

Pois é nesse ambiente, que a espécie humana transita entre o meio natural e orgânico entre o meio social e da cultura, que é ambiente próprio para o desenvolvimento da racionalidade comunicativa que busca na intersubjetividade, o fio condutor capaz de conduzir ao entendimento e ao respeito mútuo. Sobretudo, numa realidade em que o discurso político está centrado em técnicas e instrumentos. Logo, é imprescindível a utilização da hermenêutica habermasiana como uma dimensão para interpretar a aceitação do estrangeiro, possibilitando que os indivíduos descubram a dinâmica dos sentidos que ali atuam.

É possível vislumbrar ainda, que a questão migratória possibilita uma oportunidade de refletir o mundo a partir do pressuposto fundamental que alicerça todo ator social aos princípios do direito em um estado democrático. Isto é, a urgência de reconhecimento da cidadania e da dignidade da pessoa humana, em diversas circunstâncias, em especial daqueles seres humanos ao redor do mundo que estão submetidos à condição de migrantes e refugiados, fora de seus territórios nacionais e convivendo diariamente com intensos ataques seja de ordem social, cultural ou política. Assim, a racionalidade habermasiana nos oportuniza um ambiente melhor com possibilidade de mudanças de comportamentos na política e interação com os estrangeiros, para, quiçá numa tentativa de possibilitar uma mínima participação na tomada de decisões, para selecionar quais as estruturas que pretendem conservar, com vistas a promover uma melhoria da adequação dos novos integrantes que, consequentemente, desembocará numa melhoria da sociedade.

Essa mudança, certamente trará uma nova esfera social repolitizada, com a presença do estrangeiro. E esse novo espaço da esfera pública estará revitalizado pela racionalidade do agir comunicativo na “reconstrução” do tecido sociopolítico, agora com essa nova esfera social teremos uma releitura na perspectiva crítica da presença do indivíduo estrangeiro, que reacoplada ao mundo da vida desfrutará de maior tolerância e mais flexível, sem a prevalência midiática intimidadora na prática interessada com desvios políticos.

A prática de uma racionalidade comunicativa crítica, sempre será difícil, principalmente em se tratando da perspectiva de inclusão do sujeito, contaminada pelas “patologias” da sociedade moderna.

Isto posto, nossa proposta foi vislumbrar, em linhas gerais, a problemática em torno do tema da condição dos seres humanos em deslocamentos forçados que hoje se encontram em todo o planeta, como uma das formas de patologias sociais que o Estado tem de procurar sanar, haja vista que como indivíduos detentores de direitos advindos de sua condição de sujeitos pertencentes a uma comunidade pautada na normatização do direito, há a necessidade de se fazer valer os direitos civis de cada um dos participantes do território nacional, sejam eles nativos ou estrangeiros.

 

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

ANDREWS, Christina W. Emancipação e legitimidade: uma introdução à obra de Jürgen Habermas. São Paulo: Editora Unifesp, 2011.

FREITAG, Bárbara. A teoria crítica ontem e hoje.4 ed.,São Paulo: Brasiliense, 1993.

HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução: George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002.

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HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume II. Trad. de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

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HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990

HABERMAS, Jürgen. Sobre a constituição da Europa: um ensaio. São Paulo: Ed. Unesp, 2012b.

HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo1: racionalidade da ação e racionalidade social. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012c.



[1]Mestre em Educação Brasileira pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Alagoas – UFAL. Membro do grupo de estudos em Teoria Crítica, Emancipação e Reconhecimento – TECER, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Alagoas – UFAL

[2] Licenciado em Filosofia pela Faculdade São Tomás de Aquino (FACESTA). Mestre em Educação Brasileira pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Alagoas (PPGE/UFAL). Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Alagoas (PPGE/UFAL).

[3] Doutor em Educação pela Universidade do Porto – Portugal. Professor no Programa de Pós-graduação em Educação – Mestrado e Doutorado - da Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Coordenador do grupo de estudos em Teoria Crítica, Emancipação e Reconhecimento – TECER, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Alagoas – UFAL.

[4]2 Sigla utilizada para referenciar a saída da Inglaterra do bloco de países que compõem a União Europeia, ou propriamente, a zona econômica do Euro.

[5] O ponto aqui referido dá conta das mais recentes eleições nos Estados Unidos da América para a sucessão do governo do ex-presidente Barack Obama ocorrida no ano de 2016. Tendo como vencedor do pleito o candidato do Partido Republicano norte americano Donald Trump para o mandato de 2017 a 2021.

[6] Beyond Economics: Fears of Cultural Displacement Pushed the White Working Class to Trump (2017). Cf. https://www.prri.org/research/white-working-class-attitudes-economy-trade-immigration-election-donaldtrump/.