A INEFICÁCIA DO POSITIVISMO JURÍDICO NA REDUÇÃO DOS LITÍGIOS SOCIAIS EM FACE DA AUSÊNCIA DE RECONHECIMENTO

 

Anderson de Alencar Menezes[1]

Universidade Federal de Alagoas

anderufal@gmail.com

Gustavo de Melo Silva[2]

Universidade Federal de Alagoas

gustavomelojfal@gmail.com

 

O mundo da vida é induvidosamente o pano de fundo das interações comunicativas nela contidas por parte dos sujeitos contidos de uma situação de fala, que acataria a interpretação reciproca de suas pretensões de validade.

            O mundo da vida é composto do entendimento entre o falante e o ouvinte. É a partir deste mundo detentor de notável complexidade nas relações interpessoais que as pessoas necessitam alcançar o entendimento, por meio de um conjunto de sentidos que passam a definir a compreensão, as interpretações e as ações dos interlocutores no mundo. (Melo Neto, 2011, p. 87)

Por isso, Habermas confere ao mundo da vida o pano de fundo da ação comunicativa, especialmente os sujeitos se movimentam, intersubjetivamente, nesta seara quase-transcendental[3] em que os falantes e ouvintes se acham e podem concordar com o mundo (objetivo, subjetivo e social) ou censurar as pretensões de validade, decidir suas divergências e avizinhar-se a um consenso. Notemos a posição de Habermas em sua obra Teoria do Agir Comunicativo (2016):

[...] O mundo da vida constitui, pois, de certa forma, o lugar transcendental em que os falantes e ouvintes se encontram; onde podem levantar, uns em relação aos outros, a pretensão de que suas exteriorizações condizem com o mundo objetivo, social e subjetivo; e onde podem criticar ou confirmar tais pretensões de validade, resolver seu dissenso e obter consenso. [...] ( 2016, Vol. 2, p.231)

 

Nesta linha de interlocução, surge a importância do “saber” como parte integrante do pano de fundo do mundo da vida, vez que é por meio do saber que os sujeitos podem alcançar um acordo acerca de algo no mundo (objetivo, social ou subjetivo), correspondendo respectivamente as tradições culturais, os ordenamentos sociais e as estruturas de personalidade, onde o alemão atribui como elementos fundamentais do mundo. (Boufleuer, 2001, p. 46)

            Assim, Habermas busca combater às patologias existentes neste mundo, procurando a preservação das interações sociais guiadas pela solidariedade, configurando um pano de fundo de uma teoria não mais fundada pelas lutas de classes, mas norteada pela racionalidade comunicativa e a linguagem como um medium da ação social, na busca das junções solidárias, justas e cooperativas. Citamos a professora Edna Brennand, no seu texto apresentado e publicado no XIV Colóquio Habermas:

 

O autor defende a premissa básica de que a linguagem é o medium da ação social, o ponto de referência principal, por meio da qual os coletivos humanos constroem espaços para encontros e diálogos com os quais podem criar laços solidários, justos, cooperativos e aprendentes.

 

Deste modo, a situação de crise ocorre e se funda quando o mundo sistêmico dotado de uma linguagem voltada para o poder econômico, coloniza a seara do mundo da vida, restringindo a força da reprodução simbólica, designando o que Habermas define como “patologias sociais”.

Essa colonização interior do mundo da vida, também conceituada de “irracionalismo” é norteada pela racionalidade instrumental e pelo tecnicismo dominante na sociedade atual, trazendo à baila uma grande problemática estudada pelos frankfurtianos caracterizada como a reificação e coisificação da sociedade.

Essas patologias do mundo da vida descritas por Habermas, podem ser influenciadas por eventos fatídicos como guerras, miséria, corrupção, epidemia, inanição, e outras forças do mundo sistêmico, que possuem o condão de reduzir a força da comunicação mediada pela linguagem e permutar por outros meios que manipula e aliena, como por exemplo o poder econômico.

Logo, o dissenso é consequência das interações sociais criadas no mundo da vida e que não deve ser totalmente repelida, haja vista que em face dos diversos enfoques que dispõe o mundo da vida, coligado ao fato de que as influências da mídia, as desigualdades sociais, a busca pelo poder e pelo êxito econômico sem precedentes e sobretudo da deficiência na comunicação são circunstâncias que agravam os conflitos sociais, dando ensejo aos litígios existentes.

            Na visão de Filho (2012, p.25), as interações sociais de uma sociedade se constroem por intercessão de duas modalidades, quais sejam: a cooperação e o conflito. A primeira espécie caracteriza-se pelo cumprimento voluntário das obrigações e no respeito aos limites exatos de legitimidade do outro para exercer seus direitos. Os conflitos sociais (leia-se: dissensos ou contraposição de ideias) têm seu nascedouro com a negação da cooperação e do consenso.

            E para o nascimento do dissenso no mundo da vida, basta a oposição de ideais com resultado insatisfação e a pretensão de combater o pensamento posto, gerando muitas vezes uma contenda judicial. Essa insatisfação tem uma natureza mais subjetiva, visto que na grande parte das situações cotidianas, ficam limitadas ao âmbito interior do indivíduo, apenas no campo das emoções do homem e não evolui para o palco da pretensão. 

Logo, a pretensão nada mais é que a intensão de externar a insatisfação causada pela contrariedade ou oposição existente. Já a lide surge com a conjuntura dos conflitos, insatisfações, pretensões de oposição e a resistência de limitar ou eliminar a pretensão do outro tido como adversário. Neste passo, o litígio é um conflito que teve seu nascimento no âmbito subjetivo que evoluiu para uma pretensão resistida.

Para administrar esses litígios sociais, o judiciário é instado a interferir nesta relação social, por meio de um processo judicial lento, protocolar e dotado de todos os regramentos positivados.

O processo passa a ser uma instrumentalização do judiciário para buscar resolver a disputa suscitada por um dos sujeitos processuais, por meio de um jogo de interesses particulares. Neste sentido, o professor Jovino Pizzi afirma:

 

Em outras palavras, o direito – ou o âmbito jurisdicional – tem o encargo de fazer justiça. Em uma sociedade individualista, trata-se de nutrir a perspectiva egocentrista, ou seja, o processo concerne ao jogo dos interesses particulares. Afinal, a predominância dos interesses individuais exige, do sistema judiciário como tal, um comportamento voltado a responder às preocupações e exigências particularistas. (2005, p.5)

 

Esse processo de judicialização é dotado de todo o arcabouço jurídico e regramentos que são calcados num complexo de normas jurídicas construídas ao longo da história de um país e são aplicadas de forma geral e universal para todos os indivíduos, sem levar em consideração a individualidade do sujeito e sua intersubjetividade.

É neste cenário que Habermas critica positivismo por recusar a reflexão e pautar o método cientifico como única verdade, onde o conhecimento passa a ser identificado como ciência, ou seja, constituir-se uma fé na validade exclusiva da ciência empírica.

O positivismo prefere uma investida teórica, que torna supérfluo o princípio da interpretação subjetiva dos fatos, portanto, um panorama de comunicação linguística não seria imperativo; seria sempre satisfatório a observação ao invés de uma compreensão problemática de sentido.

Uma crítica de Habermas ao positivismo é o fato da utilização de leis criadas sem observância a realidade do mundo da vida, a partir do desenvolvimento de técnicas para tentar solucionar problemas sociais. As leis são criadas para antecipar regularidades e gerir ações controladas pelo seu sucesso. Assim, as ciências empírico-analíticas são conduzidas por um interesse cognitivo técnico, não atendendo os interesses sociais e a complexidade das relações interpessoais que ladeiam o piso do mundo da vida.

Habermas sustenta também que a visão positivista predominante na técnica e ciência que se estabeleceu desde a modernidade, é norteada de contradições e limitações do próprio positivismo, diagnosticando as patologias da modernidade e explicando os mecanismos ideológicos que regem as consciências dos indivíduos na sociedade capitalista.

O positivismo, segundo Habermas, é um método científico neutro, sem qualquer relação com aspectos normativos e históricos, essa neutralidade é calcada na possibilidade de o método garantir por meio de regras lógico-formais o acesso à verdade.

Contudo, o frankfurtiano adverte que o positivismo se torna ineficaz, principalmente ao desconsiderar o sujeito e sua individualidade, ou seja, cada indivíduo é detentor de sua particularidade e heterogeneidade. Assim, o mundo da vida se torna um terreno dotado de complexidade das relações intersubjetivas dos sujeitos que devem ser analisados e interpretados de forma individual, entretanto dentro de um contexto comunicativo.

O positivismo apresenta um tipo de aplicação mecânica e uma ordem artificial para os casos de baixa complexidade e, para os casos difíceis, uma aplicação baseada na discricionariedade do estado Juiz, sendo que onde há arbítrio do juiz não há lei.

Vejamos o pensamento de Habermas:

 

As decisões políticas se servem das formas de regulamentação do direito positivo para se tornarem efetivas em sociedades complexas em geral. Mas com o médium do direito nos defrontamos com uma estrutura artificial que implica determinadas decisões normativas prévias. O direito moderno é formal porque se baseia na premissa de que tudo o que não é explicitamente proibido é permitido. Ele é individualista porque transforma a pessoa individual em portadora de direitos subjetivos. É um direito coercitivo porque é sancionado pelo Estado e se aplica apenas aos comportamentos legais ou conformes à regra — por exemplo, ele pode deixar à escolha de cada um o exercício da religião, mas não pode prescrever nenhuma consciência moral. É um direto positivo porque remonta às decisões — modificáveis — de um legislador político; e, por fim, ele é um direito estabelecido em termos procedimentais porque é legitimado por meio de um procedimento democrático. O direito positivo somente exige, é claro, o comportamento legal, mas ele precisa ser legítimo: embora ele nos dispense dos motivos da obediência ao direito, ele precisa estar constituído de maneira tal que a qualquer momento possa também ser obedecido pelos destinatários em virtude do respeito à lei. (2012, p. 359)

 

A falência do sistema positivo e coercitivo evidenciado por Habermas é constatado ao analisar os dados estatísticos do Conselho Nacional de Justiça que demonstra no período de 2009 a 2017 (Figura 1), a taxa de crescimento médio da judicialização foi de 4% ao ano. O crescimento acumulado no período 2009-2017 foi de 31,9%, ou seja, acréscimo de 19,4 milhões de processos.

 

files/conteudo/imagem/2018/08/61e2bed3be75ae4d629795e72273b9e5.pngFigura 1 – Série histórica dos casos novos e processos baixados

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A Justiça Estadual concentra a maior parte do estoque de processos: 63.482 milhões, o que equivale a 79% dos processos pendentes. A Justiça Federal concentra 12,9% dos processos, e a Justiça Trabalhista, 6,9%. Os demais segmentos, juntos, acumulam 1% dos casos pendentes.

Em 2017, cada juiz brasileiro julgou, em média, 1.819 processos, o que equivale a 7,2 casos por dia útil - esse é o maior índice de produtividade desde 2009. Vejamos:

 

Figura 2 – Série histórica do índice de produtividade dos magistrados

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O positivismo não oferta respostas admissíveis aos problemas jurídicos hodiernos e que devemos extrapolar os perímetros auto-impostos pelo sistema positivista. A definição de demarcações para liberdade dos sujeitos é uma condição necessária à vida em sociedade, e esse é o papel do Direito nas sociedades atuais. Contudo, no Estado Democrático de Direito, uma reserva arbitrativa aos direitos de liberdade e igualdade não pode ser acolhida no mundo jurídico: ela pode ser aplicada nas leis, mas não acolhida no Direito. Neste passo, para serem legítimas, as decisões tomadas pelo poder legislativo (representantes do povo) devem ser aceitáveis pela sociedade e está de acordo com os princípios morais, e para serem eficazes é necessário que a norma produza o efeito no mundo da vida, atingido a sua finalidade. Neste sentido, calha citar, mais uma vez, Habermas em sua obra “A Inclusão do Outro”: O direito positivado em termos políticos, para ser legítimo, precisa ao menos estar de acordo com princípios morais que reivindicam uma validade universal para além de uma comunidade jurídica concreta. ( p. 408)

Nesta perspectiva, o pensamento habermasiano nos impõe duas notáveis críticas ao sistema positivado, primeiramente é fato de que a construção de normas não atendem a complexidade das relações interpessoais constante no piso do mundo da vida e a outra crítica reside do fato de que a norma não é dotada da legitimidade necessária para atende sua finalidade e produzir a eficácia necessária, notadamente em razão do déficit de moralidade que ladeia o poder legislativo, ou seja, o poder originário com a atribuição constitucional de produzir uma norma capitaneada pela moral não é capaz de produzir uma norma que consiga aglutinar o direito e a moral.

Para Habermas, em sua obra a inclusão do outro, aduz:

 

Porém, uma vez que a ordem jurídica legítima também precisa poder ser seguida por razões morais, a posição legítima das pessoas de direito privadas é definida pelo direito a iguais liberdades subjetivas de ação. Por outro lado, esse médium exige, como direito positivo ou codificado, o papel de um legislador político segundo o qual a legitimidade da legislação pode ser explicada a partir de um procedimento democrático que assegura a autonomia política dos cidadãos. ( 2018,  p. 142)

 

Por isso, podemos afirmar que, a luz do pensamento habermasiano, o positivismo se caracteriza, principalmente, pela separação entre direito e moral. Com tal pensamento, o direito passa a ser explicado seja de forma completamente autônoma de qualquer teoria moral seja, em sua quintessência, por algum tipo de positivismo moral, como aquele sustentada por Kelsen.

Criando um contraponto ao positivismo, o alemão estatui o procedimento moral e ético como padrão de correção do processo positivista estabelecido, ou seja, o procedimento moral deve nortear o campo gravitacional dos atos decisórios, vinculando o direito a uma racionalidade moral. Urge citar Habermas: “O direito positivo temporalizado — no sentido de uma hierarquia de leis — deveria permanecer subordinado ao direito moral válido de modo eterno e receber dele suas orientações permanentes.” (Habermas, P. 422.)

 A consequência de um sistema coercitivo, positivado e neutro de normas é a inobservância da profundidade da diversidade e dos conflitos de valores nas sociedades pluralistas, o desafio reside na criação de normas que protejam o multiculturalismo existente na sociedade, promovendo a igualdade e os valores democráticos de uma sociedade que se reconhece reciprocamente.

A confecção de normas com a capacidade de promover o ideal de igualdade em diferentes grupos sociais é um desafio quase que intransponível para o direito positivado, notadamente pela dificuldade de criação de regramentos capazes de agenciar a defesa da opressão, a marginalização e o desrespeito a grupos minoritários étnicos e culturais.

O direito na concepção habermasiana deve respeitar a identidade individual de cada sujeito, independente de sexo, raça ou procedência étnica. Assim, embasado em Taylor, Habermas sustenta que por meio das interações intersubjetivas e dialogais os sujeitos passam a ser reconhecidos como tais.

 

REFERÊNCIAS

BOUFLEUER, José Pedro. Pedagogia da ação comunicativa. Uma leitura de Habermas. 3. ed. Rio Grande do Sul: Unijui, 2001.

BRENNAND, Edna Gusmão de Góes. A Ciberdemocracia como movimento para racionalizar e descolonizar o mundo da vida. 15. Colóquio Habermas. 5. Colóquio de Filosofia da Informação. Anais... Rio de Janeiro: Salute. 2018.

FILHO, Humberto Lima de Lucena. A constitucionalização da solução pacífica de conflitos na ordem jurídica de 1988. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2012.

HABERMAS. Jürgen. A inclusão do outro. São Paulo. Editora Uniesp. 2018.

HABERMAS. Jürgen Teoria do agir comunicativo: sobre a crítica da razão funcionalidade, volume I. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.

HABERMAS. Jürgen Teoria do agir comunicativo: sobre a crítica da razão funcionalidade, volume II. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.

MELO NETO, José Francisco de. Diálogo em educação (Platão, Habermas e Freire). João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2011.

MENEZES. Anderson de Alencar. Educação e emancipação: por uma racionalidade ético-comunicativa. Maceió: Edufal, 2014. 

MENEZES. Anderson de Alencar. Habermas: com Frankfurt e além de Frankfurt. Instituto Salesiano de Filosofia. Recife: Faculdade Salesiano do Nordeste, 2006.

PIZZI, Jovino. O conteúdo moral do agir comunicativo. Uma análise sobre os limites do procedimentalismo. São Leopoldo: Unisinos, 2005.



[1] Doutor em Educação pela Universidade do Porto – Portugal. Professor no Programa de Pós-graduação em Educação – Mestrado e Doutorado - da Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Coordenador do grupo de estudos em Teoria Crítica, Emancipação e Reconhecimento – TECER, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Alagoas – UFAL.

[2] Possui graduação em Direito pela Faculdade de Alagoas (2008), Bolsista do CNPQ e da FAPEAL na graduação, Pós-graduado em Processo Civil, Pós-Graduando pela UFRN em Jurisdição Inovadora e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Doutorando em educação pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Professor da Graduação e Pós-graduação do Curso de Direito (UNEAL, Estácio e CESMAC) e Diretor da 1a Vara Federal de Alagoas - Justiça Federal de Alagoas.

[3] O pensamento habermasiano define o conhecimento como sendo o instrumento de autoconservação da espécie, entretanto, transcendendo a mera autoconservação. Para o mestre da linguagem, o interesse não é exclusivamente transcendental, como em Kant, nem puramente empírico como afirma Comte. Ele advoga uma virada pragmática antropológica na filosofia transcendental de Kant, chamada de pragmática quase-transcendental, nascendo a ideia da ação instrumental e ação comunicativa. É nesta perspectiva que a teoria da ação comunicativa demonstra o surgimento da ética discursiva com suas pretensões de validade. A ética do discurso lançar-se como sendo uma reformulação do Imperativo Categórico kantiano, ao permutar a consciência (subjetividade) pela linguagem (intersubjetividade). (LODEA, 2005, p. 175)