A CRITICIDADE NA CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS EMANCIPATÓRIAS E ANTIMONUMENTOS DE MEMÓRIA

 

Anderson Matheus Alves Arruda[1]

Universidade Federal de Pernambuco, UFPE

amatheus.aarruda@gmail.com

Anna Raquel de Lemos Viana[2]

Universidade Federal de Pernambuco, UFPE

annaraquellemoss@gmail.com

Paulo Ricardo Silva Lima[3]

Defensoria Pública do Estado de Alagoas, DPEAL

pauloricardo.admpublic@gmail.com

Májory Karoline Fernandes de Oliveira Miranda[4]

Universidade Federal de Pernambuco, UFPE

majory.oliv@ufpe.br

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Resumo

Teorias científicas constroem um conjunto de argumentos para compreender fenômenos no mundo, compreendendo ações e elaborando prognósticos com base em conexões significativas. A partir do movimento de reflexão com epistemologias que questionam o projeto de ciência ocidental hegemônica com o objetivo de pensar o sentido da crítica na construção de antimonumentos da memória. A pesquisa será configurada da seguinte forma: quanto aos objetivos de caráter exploratório, utilizando como suporte teórico a investigação bibliográfica; quanto à natureza dos dados, a pesquisa configura-se como qualitativa. O trabalho se apresenta a partir de um enfoque epistemológico e posicionado, refletindo a articulação entre a ciência/academia, a produção do conhecimento e a prática política. Tensiona os conceitos principais acerca de antimonumentos, teoria crítica e memória, além da contextualização de caso. Existe uma relação entre a racionalidade, a criticidade e a construção de antimonumentos de memória para possibilitar e potencializar uma narrativa emancipatória.

Palavras-chave: Teoria crítica. Criticidade. Antimonumentos. Memória.

THE ROLE OF CRITICALITY THINKING FOR THE CONSTRUCTION OF EMANCIPATORY NARRATIVES AND ANTI-MONUMENTS OF MEMORY

Abstract

Scientific theories build a set of arguments to understand phenomena in the world, understanding actions and making predictions based on significant connections. From the movement of reflection with epistemologies that question the hegemonic western science project with the objective of thinking about the sense of criticism in the construction of antimonuments of memory. The research will be configured as follows: regarding the exploratory objectives, using bibliographic research as theoretical support; as for the nature of the data, the research is characterized as qualitative. The work is presented from an epistemological and positioned focus, reflecting the link between science/academy, knowledge production and political practice. It tensions the main concepts about antimonuments, critical theory and memory, in addition to case contextualization. There is a connection between rationality, criticality and the construction of anti-memory monuments to enable and enhance an emancipatory narrative.

Keywords: Critical theory. Criticality. Antimonuments. Memory.

1          INTRODUÇÃO

As dinâmicas de produção científica buscam, a partir das teorias, indicar como as coisas se mostram no mundo. Isto implica dizer que as teorias científicas constroem um conjunto de argumentos para entender fenômenos no mundo, compreendendo ações e elaborando prognósticos com base nessas conexões significativas encontradas nas pesquisas, podendo ser refutada ou confirmada, caso os prognósticos se mostrem corretos ou incorretos.

Algumas concepções tradicionais e hegemônicas argumentam a neutralidade e autonomia na atividade da ciência, defendendo-a enquanto uma esfera diferenciada de produção do conhecimento. Por outro lado, as teorias críticas se pautam pela negação da ordem estabelecida e da busca de uma sociedade mais justa e humana, estando o fazer ciência na perspectiva crítica enquanto supressão dessa parcialidade, tendo a consciência concreta das limitações e refletindo sobres os pressupostos que ao invés de serem neutros são valorativos.

Dito isto, o trabalho discute, a partir de um enfoque epistemológico e posicionado, a articulação entre a ciência/academia, a produção do conhecimento e a prática política. Apoiando-se no movimento de reflexão com epistemologias que questionam o projeto de ciência ocidental hegemônica (HARAWAY,1995; HARDING, 2016), objetivando pensar o sentido da crítica na construção de antimonumentos da memória.

Este artigo alicerça-se, metodologicamente, a partir da revisão da literatura, que permite investigar os conceitos, contextos, resultados, discussão sobre memória e a teoria crítica na construção de antimonumentos dentro do contexto da Ciência da Informação. Legitimando a opção metodológica escolhida, Fonseca (2002, p. 32) aponta que “a pesquisa bibliográfica é feita a partir do levantamento de referências teóricas já analisadas, e publicadas por meios escritos e eletrônicos”.

E é neste domínio que busca-se a compreensão do objetivo enunciado, analisado sob diferentes percepções. Sendo assim, a pesquisa será configurada da seguinte forma: quanto aos objetivos, possui caráter exploratório, utilizando como suporte teórico a investigação bibliográfica; quanto à natureza dos dados, a pesquisa configura-se como qualitativa.

 

 

2  MONUMENTOS, ANTIMONUMENTOS, CRITICIDADE E MEMÓRIA

Seligmann-Silva (2016) escreve sobre o antimonumento a partir da perspectiva crítica da criação artística na exposição Totemonumento, especificamente na abordagem de quatro monumentos históricos. À priori da crítica, pensa-se monumento de acordo com a percepção de Riegl (2014), em seu livro O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem, como uma obra que foi criada através “do homem e elaborada com o objetivo determinante de manter sempre presente na consciência das gerações futuras algumas ações humanas ou destinos (ou a combinação de ambos)”.

Entende-se, portanto, o monumento como fruto da criação do ser humano, com poder simbólico e representativo que possibilite a criação de uma narrativa de base constitutiva da história, a fim de criar na consciência um marco temporal da memória de suas ações, ou das ações como um todo, podendo interferir em seu destino.

Débora Morato Pinto, em Consciência e Memória (2013), traça um panorama de abordagens filosóficas acerca da consciência sob um recorte histórico de teorias que permeiam diversas áreas do conhecimento e que caracterizam a consciência em torno da descoberta dos sentidos profundos do pensamento, de sua efetividade quanto ao tempo e da retomada de uma subjetividade - a memória - que marcou a cena cultural no final do século XIX. Abordado em três pilares de análise histórica, a autora afere três dimensões analíticas acerca da construção da consciência. A consciência, então, seria mais do que o pensar e a memória é mais do que o lembrar.

Desta forma, a memória baseia-se na repetição das impressões e reproduz ideias junto com suas figurações vívidas, fiel à sua aquisição, como uma “capacidade humana capaz de retomar a ordem em que as apreendemos” (PINTO, 2013, p. 31). Ou seja, ela representa as impressões que foram recebidas sem alteração de como se originou, como um lugar possibilitador de repetição dessas impressões, sendo essencial na formação dos nossos juízos e crenças.

A memória, na Teoria de Hume, se firma como uma ferramenta de representação do passado. Em Bergson, Pinto (2013) percebe relações acerca das formas de consciência como memória, baseada na multiplicidade de interpenetrações que existem nos sujeitos, em nós. O que existe em nós, é uma “formação de uma totalidade dinâmica em que cada momento que se segue é incorporado ao mesmo tempo que recebe dela seu sentido próprio” (p. 40).

Alargando essa discussão sobre memória e suas múltiplas possibilidades de incorporações, Le Goff (1990, p. 366) enfatiza que a “A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas.” É a partir dos registros gravados em alguns elementos (monumentos, escrita, música, etc.) que potencializam a rememoração de fatos e acontecimentos pretéritos. Esse registro em apetrechos possibilitam a manutenção da memória para que esta não caia no esquecimento, pois a capacidade biológica humana não viabiliza a recordação completa de fatos e acontecimentos, e quando registrados podem ser acessados e recordados, como também inibe que estes sejam reescritos com contornos diversos.

 Outrossim, faz-se necessário destacar que a vasta literatura no domínio da Ciência da Informação e áreas afins reconhece que há várias linhas de discussão e definições de sentidos da memória e o seu papel na órbita social. As dimensões da memória social se entrelaçam em diversas perspectivas, como individuais, coletivas, históricas, culturais e ambientais.

A memória individual está pautada nas experiências do indivíduo no contexto coletivo, as quais podem contribuir para a compreensão do mundo como ele é ou deveria ser.  Chauí (2003, p. 138) define-a como “[...] uma forma de percepção interna chamada introspecção, cujo objeto é interior ao sujeito do conhecimento [...]”. Essa memória se manifesta a partir das experimentações individuais e seus registros (pinturas, diários, blogs, etc.).

Na perspectiva coletiva, Erll (2012) destaca que a memória coletiva é uma construção sociocultural, uma relação do passado que se constrói a partir de vivências e experiências comunicadas e os meios institucionais. Seguindo esse entendimento, Le Goff (1990) enfatiza que a perda desse tipo de memória (voluntária ou não) pode gerar perturbações graves à identidade coletiva. A exemplo disso, destaca-se o incêndio do Museu Nacional que culminou na perda de informações históricas, sociais e culturais brasileiras.

Em relação a memória histórica, comumente, os estudos científicos destacam os eventos e acontecimentos importantes na história, como as Guerras, Revoluções e Movimentos Sociais que impactam na construção da identidade coletiva. Essa tipologia de memória fortalece a identidade e o papel de grupos e movimentos sociais, impactando assim na construção de memórias políticas, nas investigações de Green (2014), por exemplo, observa-se a importância do Movimento de Gays e Lésbicas no enfrentamento da ditadura militar brasileira de 1964, registrado em imagens e documentários daquele período. São duas memórias (histórica e política) que se cruzam em diversos momentos, pois, ações coletivas revolucionárias possuem o condão de reescrever a história política.

Já a memória cultural é a memória social dos elementos culturais da comunidade, como música, literatura, dança, arte e arquitetura, englobando também "rupturas, conflitos, inovações, restaurações e revoluções" (ASSMANN, 2006). É a partir dela que é possível preservar e transmitir a cultura para as comunidades sociais, possuindo também relações dinâmicas com as questões políticas. A própria Constituição Brasileira de 1988 destaca a importância da memória cultural enquanto patrimônio de natureza material e imaterial, os quais são portadores de referências à identidade, à ação, e à memória dos variados grupos sociais. Logo, os folguedos locais, as pinturas, as fotografias, as músicas e os são formas de externalização da memória cultural.

Quanto à memória ambiental, esta refere-se aos espaços de memória social dos lugares e paisagens que são significativos para a comunidade. Nessa dimensão da memória social estão inseridos os locais históricos, monumentos, parques e outras áreas naturais. Contudo, é correto afirmar que essa cultura pode sofrer processos de ressignificação pela própria coletividade. Hoje, por exemplo, os campos de concentração de Auschwitz utilizado pelos nazistas alemães durante a 2ª Guerra Mundial para torturar e matar pessoas, hoje é concebido como símbolo do Holocausto. Nessa linha de raciocínio sobre resignificação, Machado (2016, p.6) compreende que o Museu Nacional de Auschwitz-Birkenau, enquanto ambiente de memória, não deve ser analisado apenas como um ambiente de signos “[...] mas de signos que possuem caráter reestruturador enquanto ressignificação do trauma ao dar voz e gerar sentimentos de empatia para com as vítimas por meio da informação”.

Nessa costura de memórias sociais e múltiplas relações, percebe-se que há inter-relações entre suas dimensões, isto é, não é possível dissociar uma da outra em algumas situações. A imersão no Museu Théo Brandão em Alagoas (memória ambiental), por exemplo, possibilita ao visitante ter contato com as peças de comunidades indígenas (memória cultural e coletiva) e conhecer figuras políticas que tiveram algum destaque no desenvolvimento do estado alagoano e do Brasil (memória histórica). Logo, a memória social é tomada para esta pesquisa como os traços do passado que se entrelaçam com o presente, possibilitando reflexões e novas impressões a partir de processos crescentes de ressignificações.

Percebe-se, portanto, que as ideias que permeiam a anterioridade da consciência apresentam interligações remetentes à caracterização de uma memória, que possui caráter acumulativo e de consulta, influenciando não apenas no passado ou no presente, mas em narrativas futuras que ainda se constroem. A construção do futuro, baseada em um conjunto de memórias e na construção de uma consciência prévia, segue sendo influenciada por essas construções e se elabora nessas bases.

A crítica de Seligmann-Silva, supracitada, parte primeiramente de um episódio relacionado à Oscar Niemeyer, onde foi construído em 1989 um monumento com a seguinte frase gravada “Um monumento àqueles que lutam pela justiça e pela Igualdade” e que, no dia seguinte à sua inauguração, foi atingido por uma bomba que acabou partindo-o ao meio. Prontamente o monumento foi modificado, preservando suas ruínas, mas adicionando-se a frase “Nada, nem a bomba que destruiu esse monumento, poderá deter os que lutam pela justiça e liberdade".

Em um segundo momento, lembra-se do Massacre do Eldorado de Carajás, quando a Polícia Militar do Estado do Pará assassinou dezenove sem-terras, e que teve a construção de um memorial para as vítimas e para memória do acontecimento na cidade de Marabá. Esse monumento sofreu represálias e foi destruído poucos dias após sua inauguração. Relembra-se também do Monumento à Zumbi dos Palmares, construído na cidade do Rio de Janeiro em 1986, localizado na Praça Onze e possui um histórico anual de vandalismo sofrido nas datas de comemoração à consciência negra.

Essas realidades são contrapostas ao triângulo da memória, localizado no Parque Ibirapuera em São Paulo, composto pelo Monumento às Bandeiras, pelo Obelisco Mausoléu aos Heróis de 32 e pelo Monumento Álvares Cabral, que seguem inabaláveis em seus locais de instalação.

Destaca-se que o Monumento às Bandeiras ergue-se para representar os bandeirantes que desbravaram o país no período colonial, assim como o Monumento Álvares Cabral, que celebra um passado violento, pela ideia racista de que o Brasil foi descoberto, passando por cima da história e dos corpos dos povos originários.

Os antimonumentos se apresentam nesse contexto como narrativas contra hegemônicas de sistematização e ressignificação dos monumentos de memórias violentas que são erguidos para perpetuar histórias coloniais e violentas, principalmente para parcela da população que é condicionada à subalternidade. Não se origina na metáfora ou na narrativa, mas no “princípio do índice, da coleção de ruínas, de restos, de traços: de pegadas” (SELIGMANN-SILVA, 2016, p. 21).

Os antimonumentos visam, ainda de acordo com o autor, a elaboração de uma memória específica, que muitas vezes é associada ao trauma, marcada por uma literalidade, pelo hiper-realismo que as fragmentam e a transformam em ruínas, em suas substituições por outras realidades ou memórias que ressignifique traumas.

A ideia da criação de antimonumentos, das memórias ressignificadas ou de outras narrativas além do trauma, se entrelaça com a ideia da criação de consciência e do acesso à ideias que permeiam uma anterioridade, afim de moldar ou influenciar na construção de um presente, de um futuro ou de um destino. Como podemos não pensar em ressignificar memórias relacionadas às pessoas negras e indígenas, a parcela da população que vive até hoje com o trauma colonial, que convivem com os símbolos que fazem apologia ao seu próprio genocídio?

Assim, a relação entre antimonumentos e memória é muito estreita, uma vez que ambos estão relacionados à construção e à preservação da memória coletiva. Enquanto os monumentos tradicionais têm como objetivo perpetuar uma versão oficial da história, os antimonumentos buscam desconstruir essa narrativa, trazendo à tona outras vozes e perspectivas que foram marginalizadas ou esquecidas.

Os antimonumentos são uma forma de manter viva a memória de eventos traumáticos e de períodos sombrios da história, como regimes autoritários, guerras e genocídios. Eles também são uma forma de lutar contra a amnésia histórica e a negação da memória, uma vez que questionam a ideia de que certas coisas devem ser esquecidas ou não mencionadas na construção da memória coletiva.

Dessa forma, os antimonumentos são uma forma de expressão artística e política que tem como objetivo subverter a ideia tradicional de monumento e questionar a narrativa oficial da história, trazendo à tona outras vozes e perspectivas que foram marginalizadas. Eles são uma forma de manter viva a memória de eventos traumáticos e lutar contra a amnésia histórica e a negação da memória.

 

2.1TEORIA CRÍTICA À MEMÓRIA

A Teoria Crítica apresenta um conjunto sistemático de posições teóricas e científicas junto à fundamentação dialética da problemática teoria e prática para investigar e analisar as relações sociais adotando uma postura interdisciplinar para o desenvolvimento da atividade científica e política  contra o desenvolvimento hegemônico da sociedade burguesa industrial, envolvendo ações sociais engajadas e direcionadas para articular a produção de sujeitos capazes de intervir e mudar a ordem social (BEZERRA, 2018).

A crítica implica enxergar na realidade os elementos que impedem a realização desses potenciais melhores, ou seja, ao olhar o mundo na perspectiva de um mundo melhor, conseguir enxergar os obstáculos para realização dessas potencialidades, destacando as diferenças e a capacidade de decidir com fundamento. A lógica dessa dialética é a recusa determinada de ser conformado (a) com o estabelecido e na busca positiva de fazer de outro modo, alcançando resultados realmente emancipatórios (HOOKS, 2020).

Jota Mombaça, em seu texto O mundo é meu trauma, publicado em 2017, discorre sobre sua existência a partir da crítica às relações de poderes, de controle e normativas vigentes. Nas notas, que antecipam o manifesto, é possível entender que existe um local de rebelião contra impedimentos ocasionados pela própria premissa de sua existência, seja ela representada de forma individual ou coletiva, onde o corpo, a carne política, é “feita de especulação e memória, de força e matéria”.

Mesmo não precisando escrever sobre saídas dos locais que atravessam sua existência, Mombaça (2017) escreve na criticidade desses locais e como essas forças moldam as possibilidades de sua própria existência - ou da existência de outras (os). E ao identificar seu lugar de locução, invoca - acerca dos outros - que “eles virão para nos matar, porque não sabem que somos imorríveis. Não sabem que nossas vidas impossíveis se manifestam umas nas outras”.

A escrita de Mombaça (2017) nos impõe o pensamento acerca do entendimento dos locais de locução, da existência de locais propícios para algumas locuções e não para outras. Conseguimos, então, potencializar uma criticidade de entendimento do pensamento, problematizando suas lacunas e seus jogos de poderes. Ao se identificar, ao mostrar quem se é e a quem se representa, invoca-se o local da construção coletiva que vai além da carne, que permeia uma construção de consciência e memória que possibilita a própria existência uma nas outras, apesar dos processos que não as possibilitem.

A memória e a consciência se apresentam como esse local de construção coletiva que possibilita o existir. É preciso entender criticamente os espaços de memória e como eles são construídos. Somos produtos do nosso meio, moldados pelo tempo-lugar de nossa existência. Ao entendermos os jogos de poderes nessas relações, adotando uma postura combativa aos meios de controle e normativas vigentes, percebemos que existem narrativas propícias à construção de lugares que beneficie apenas a ideia de um sujeito universal - que usufrui, molda e possui privilégios universais - e a construção de um outro sujeito, que não se encaixa nesses pressupostos.

É necessário perceber a condição do sujeito enquanto agente histórico de produção de seus contextos de vida e das relações sociais submetidas, a fim de criar circunstâncias capazes de mobilizá-los para uma ação transformadora. Não basta apenas dizer como as coisas funcionam, é importante analisar o seu objeto central, à luz de uma emancipação verdadeiramente possível. A realização concreta da liberdade, igualdade e uma efetiva compreensão das relações sociais, com a finalidade de diagnosticar a realidade social, negando o estabelecido pela ordem dominante e criando um ambiente de práxis social capaz de intervir na mudança (HOOKS, 2017).

Evidencia-se, desta forma, o pensamento de Paulo Freire (1968) acerca da conscientização não como um fim, mas como uma soma a uma práxis significativa. É necessário que exista uma relação entre a consciência e a práxis, uma vez que ela não é uma ação cega, mas uma ação e reflexão. Dessa maneira, dando sentido para ação, nos aproximamos mais ou não deste mundo melhor que está inscrito nesse mundo presente, se confirmando na prática transformadora, a qual envolve embates e conflitos políticos ou sociais atribuindo um sentido emancipatório.

 

2.2 A CRITICIDADE E O ANTIMONUMENTO DE MEMÓRIA

No sentido tradicional, a teoria se opõe à prática. Inaugurado por Immanuel Kant (1781), a prática assume um sentido de teoria aplicada, ou seja, a prática é aquilo que a teoria mostra como as coisas são, e como deveriam ser - e não ser -, revelando um conjunto de princípios que devem agir para moldar a vida. Nesse contexto, quando vemos a teoria com uma aplicação prática, nós eliminamos a possibilidade de que as coisas sejam diferentes do que elas são.

Incluir a crítica significa, também, incluir as potencialidades do que as coisas podem ser. Não é uma ação cega, sem conhecimento, mas não se limitando a um conhecimento vazio. A partir da categoria crítica conseguimos separar a restauração rígida entre teoria e prática (NOBRE, 2004).

Pode-se questionar: O que o mundo traz nele mesmo como potencial? Quais as possibilidades que não são realizadas? E referente ao contexto desta pesquisa, interpela-se: Para além da dos monumentos, quais as outras possibilidades? Seria os antimonumentos uma ação emancipatória?

Entre 1957 e 1963, foi construído em Santo Amaro, um bairro de São Paulo, uma escultura de 10 metros de altura pesando 40 toneladas, que veio a ser conhecida como Monumento à Borba Gato, em homenagem ao bandeirante de mesmo nome, com autoria do artista Júlio Guerra (1912-2001). Entende-se o próprio monumento como um lugar de memória local, onde existe uma relação com o imaginário à identidade paulista ligada aos trajetos percorridos pelos bandeirantes em busca do progresso e desenvolvimento.

O papel dos bandeirantes na história é amplamente discuto, ora retratados como heróis, que ajudaram a expandir o território do estado de São Paulo na pós-colônia; ora vilões que provocaram o genocídio e escravização da população negra a indígina em nome do progresso. É possível separar essas duas faces?

Entender a memória e a história a partir da criticidade aos acontecimentos, possibilita a criação de uma consciência e a vontade de alternância de poder. A memória habita a consciência, a consciência histórica existe em um jogo de poderes situados na sociedade. É possível homenagear, criar monumentos, símbolos escravagistas e genocidas? A quem a narrativa histórica proporciona poderes e quais poderes são esses?

Em 24 de julho de 2021, um grupo de ativistas, denominado Revolução Periférica, ateou fogo ao Monumento à Borba Gato e disponibilizaram imagens do ato na internet. Utilizando pneus e líquidos inflamáveis, o fogo consumiu o monumento e o mergulhou em fumaça preta. O ato tomou as redes sociais e virou tópico de discussão sobre sua legitimidade, ganhando defensores e acusadores.

O ato ocorre em consonância com o movimento de ressignificação do imaginário, dos lugares de memória, por uma reconstrução da própria memória e da história perpetuada, que acontece nos últimos anos nas grandes cidades do mundo. O Monumento à Borba Gato é percebido como um monumento que existe para exaltar a memória da branquitude e da busca ao progresso que aconteceu à custa do sangue e da carne de povos historicamente subalternizados. Processos de genocídio e subalternização que ressoa historicamente até os dias atuais.

Não basta apenas derrubar ou renomear, é necessário que se crie uma memória que ponha em cheque a consciência existente, à própria memória coletiva, para que se fomente um entendimento e uma criticidade dos signos históricos e suas representações.

Silvio Almeida, em comentário no twitter sobre a repercussão do ato, critica a ideia de anacronismo, levantada por Mary del Priore, em uma reportagem que foi ao ar no mesmo dia, defendendo a aceitação da história, especificamente da violência acometida pelos bandeirantes à população indígena e negra por acreditar que ocorreram em outros tempos, em outros contextos.

“Uma coisa é compreender o contexto em que as coisas se dão; outra, bem diferente, é justificar o imobilismo do presente com uma pretensa preservação da memória. Anacronismo é querer impedir que novas leituras sobre o passado ressignifiquem o presente. Pelo que sei, a história olha o passado para interpretá-lo e compreendê-lo, e não para glorificar as desgraças do tempo presente” (ALMEIDA, 2021).

A criticidade, proposta por Paulo Freire (1968), se ancora em uma perspectiva antropológica que pode se articular com a própria dimensão lógica ou epistemológica, ética, política e educacional. Quando pensamos em interpretar e compreender a história para ressignificar lugares de memórias violentas, atribuindo-lhes novos sentidos, contribuímos para construção de antimonumentos memoriais, contrapartidas da memória para reconstrução de uma consciência. Entender as representações impostas por um monumento de significados violentos, que perpetua jogos de poderes e ideias hegemônicas, é entender o próprio lugar de existência.

 

3  CONSIDERAÇÕES FINAIS

A racionalidade deve ser substituída por uma reflexão objetiva sobre os mecanismos e as consequências sociais da racionalidade dos meios dessa prática. A construção de antimonumentos indicam as  possibilidades de soluções e orientam para construção de um mundo mais justo e correto, é uma prática social orientada para negar a ordem social danificada e transformá-la, a crítica deve estar presente tanto para conhecimento produzido, quanto para a realidade que esse conhecimento pretende apreender.

Antimonumentos são estruturas que surgiram como uma forma de questionar o papel e a representação dos monumentos na sociedade. Enquanto os monumentos tradicionais costumam homenagear figuras importantes e glorificar eventos históricos, os antimonumentos têm como objetivo provocar a reflexão crítica e gerar debates sobre temas relevantes, muitas vezes ignorados ou negligenciados.

A importância dos antimonumentos reside em sua capacidade de subverter a narrativa histórica hegemônica e confrontar a falta de representatividade e inclusão presentes nos monumentos tradicionais. Ao destacar figuras marginalizadas e eventos históricos negligenciados, os antimonumentos tornam visíveis histórias e perspectivas alternativas, e convidam a uma reflexão mais ampla sobre a complexidade da história e da memória coletiva.

Outra importante função dos antimonumentos é a de sensibilizar a população para as questões sociais e políticas contemporâneas, especialmente aquelas relacionadas às questões de raça, gênero, classe e identidade. Através de sua presença física e visual, os antimonumentos são capazes de chamar a atenção do público e gerar discussões em torno de questões sociais importantes, contribuindo assim para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Atualmente, em meio aos discursos de negação histórica, os antimonumentos assumem uma importância fundamental. Eles têm o papel de evidenciar e denunciar um período sombrio da nossa história, marcado pela censura, repressão, tortura, mortes e desaparecimentos políticos. De fato, o passado é constantemente objeto de disputas simbólicas entre diferentes setores da sociedade, o que se manifesta em debates acerca da contestação e da derrubada de monumentos, assim como sobre o que deve ser considerado como "memória nacional" e preservado como tal.

REFERÊNCIAS

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SELIGMANN-SILVA, Márcio. Por uma estética do precário: antimonumentos e a arte de ‘desesquecer’. Fórum Permanente, 2016. Disponível em: http://www.forumpermanente.org/revista/numero-7/conteudo/politicas-do-esquecimento/por-uma-estetica-do-precario-antimonumentos-e-a-arte-de-2018desesquecer2019. Acesso em: 25 nov. 2021.

 



[1] Bacharel em Biblioteconomia - UFAL. Mestre e doutorando em Ciência da Informação - PPGCI/UFPE.

[2] Doutoranda em Ciência da Informação - PPGCI/UFPE. Mestra em Ciência da Informação - PPGCI/UFPB.

[3] Doutorando em Ciência da Informação - UFPE. Mestre em Ciência da Informação pela UFAL.

[4] Professora Associada 1, do Dept. de Ciência da Informação da UFPE. Doutorado em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais/Ciência da Informação na Universidade do Porto (FLUP). Bacharel em Biblioteconomia (2004) - UFPE