DOI: https://doi.org/10.21728/logeion.2023v9nesp4.p5-21

 

A CONCEPÇÃO DE LIBERDADE EM HABERMAS

um contraste com Kant

 

Charles Feldhaus1 Universidade Estadual de Londrina charlesfeldhaus@yahoo.com.br

 

Es liegt nahe, die bioethische Debatte über mögliche Folgen des technischen Eingriffs in das menschliche Genom im Licht der Dialektik der Aufklãrung zu betrachten; denn darin geht es auch um Grenzen einer praktischen Verfügbarmachung der subjektiven Natur. (HABERMAS, J. ZNR, 2005, 207)

 

1   INTRODUÇÃO

 

A posição habermasiana é freqüentemente vinculada e, ás vezes até considerada, herdeira da filosofia de Kant sobre vários aspectos, contudo, a conferência principal sobre a eugenia liberal veio explicitar mais algumas diferenças e semelhanças entre estes dois pensadores. No que diz respeito à concepção normativa exposta por Habermas em Die Zukunft der menschlichen Natur, é possível identificar semelhanças entre os posicionamentos de Kant em relação ao dever de beneficência e o dever indireto para com a parte irracional da natureza, os animais2. Mas, no que diz respeito à liberdade, o tópico principal do presente estudo, convém ressaltar que Kant, em particular na Crítica da Razão Pura, defende uma noção de liberdade transcendental, ás vezes até é acusado de se comprometer com um tipo de dualismo ontológico. Para Kant, a liberdade é um pressuposto necessário da razão para que ela possa ser pensada como prática. Na Critica da Razão Pura, Kant tenta apenas mostrar que a liberdade não é impossível de ser pensada e consiste apenas numa idéia regulativa e não constitutiva, na Crítica da Razão da Prática, Kant tenta mostrar que a validade da noção de liberdade é imanente ao prático e nesse campo tem realidade objetiva demonstrada por um Faktum der Vernunft. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant apresenta um argumento de bi-implicação entre liberdade e moralidade. Convém ressaltar ainda que na Religião dentro dos limites da simples razão, Kant apresenta uma concepção de liberdade claramente distinta da noção de liberdade moral com que parecia estar mais diretamente preocupado nos dois últimos textos supra citados. Esta concepção de liberdade enfatiza a


1 Doutor em Educação pela Universidade do Porto – Portugal. Professor no Programa de Pós-graduação em Educação – Mestrado e Doutorado - da Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Coordenador do grupo de estudos em Teoria Crítica, Emancipação e Reconhecimento – TECER, vinculado ao Programa de Pós- graduação em Educação da Universidade Federal de Alagoas – UFAL.

2 Não explorarei esta hipótese em maior detalhe no presente estudo.

 

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necessidade da razão na determinação da eficácia causal de tudo aquilo que se inclui no termo kantiano ‘inclinação’. Esta última noção de liberdade, por sua vez, é eminentemente neutra moralmente uma vez que relaciona a escolha livre do arbítrio do ser humano com a determinação ou causação de suas ações.3 Habermas, por sua vez, sustenta, com correção, que a biotecnologia moderna está transformando algo que na filosofia de Kant era uma pressuposição transcendental em uma noção totalmente destranscendentalizada. Ela está tornando disponível aquilo que era, até então, indisponível. A liberdade deixa de ser uma propriedade de ‘seres inteligíveis em um mundo númenico’ para tornar-se uma propriedade de seres humanos na medida em que não tem seu patrimônio genético manipulado.

Embora existam certas divergências quanto ao estatuto da liberdade entre Habermas e Kant no que diz respeito ao texto O Futuro da Natureza Humana. A caminho da eugenia liberal? E as principais obras, nas quais Kant aborda tal tema, é inegável a influência kantiana nesse próprio texto em vários aspectos. Primeiramente, Habermas parte da distinção entre justo e bem, uma distinção cuja autoria é constantemente atribuída à Kant4, além disso, ele

recorre aos valores da universalidade e do respeito à humanidade da pessoa humana ou da

pré-pessoa no caso do embrião ao avaliar esta nova tecnologia.                                                             

2  O CONTRASTE PROPRIAMENTE DITO

Habermas seria devedor da ética de Kant quando afirma que a biotecnologia moderna, em alguns de seus usos, seria um tipo de instrumentalização da pessoa humana ou da vida humana do individuo geneticamente manipulado. Consistiria em um tipo de atitude para com a pré-pessoa do embrião a ser geneticamente modificado semelhante à atitude que empreendemos quando lidamos com objetos não portadores do direito de respeito e consideração, a saber, (no jargão kantiano) não dotados de ‘dignidade’. Habermas vai mais longe, em seu kantismo, ao adotar inclusive a distinção tratar ‘como um meio’ e ‘tratar apenas como um meio’. O primeiro tipo de tratamento não é necessariamente imoral, mas sim, o segundo, uma vez que o agente não adota a perspectiva de consideração e respeito pelos fins ou intenções da outra pessoa (no caso a pessoa do embrião), mas o trata como um objeto (HABERMAS, 2001, 97). E essa é a idéia central do princípio moral kantiano que “exige de

3 Abordei as contribuições dessa noção moralmente neutra de liberdade à atribuição de responsabilidade moral em minha dissertação de mestrado.

4 A favor disso, conta o próprio testemunho de Habermas no Prefácio: “parto da distinção entre a teoria kantiana da justiça e a ética do ser si mesmo”. HABERMAS, J. ZMN, 2001, 9.


cada um que renuncie à perspectiva da primeira pessoa em favor de uma perspectiva do ‘nós’, partilhada intersubjetivamente” (HABERMAS, 2001, 97). Habermas, nessa passagem, inclusive cita a própria formula da humanidade kantiana na integra e, sustenta, com base nela, a necessidade de adotar uma perspectiva inclusiva para com o embrião a ser fertilizado. É preciso dar voz no discurso prático aos concernidos, e neste caso uma vez que é impossível um diálogo real com a pessoa futura em que o embrião se tornará, se faz necessário imaginar- se no lugar do mesmo e tentar concluir que tipos de intervenções seriam ou não aceitas.

Habermas concorda com a filosofia kantiana também ao vincular a justificação ou não da imputabilidade das ações humanas a certa identidade ou continuidade auto-imposta pelo indivíduo. Kant, na Religião dentro dos limites da simples razão, sustenta que as ações humanas são imputáveis e, por isso, possíveis de se atribuir responsabilidade por poderem ser atribuídas a um caráter inteligível de escolha de máximas. Contudo, a natureza do ato tem status diferente nos dois, uma vez que Habermas parece entendê-lo de modo destranscendentalizado e Kant, por sua vez, de modo transcendental.5 Habermas inclusive

sustenta que a biotecnologia moderna tem implicações para imputabilidade e a atribuição de responsabilidade, pois a pessoa geneticamente modificada poderia ser incapaz de realizar uma‘autocompreensão revisória’ e incluir as intenções alheias presentes na manipulação em seu ‘poder ser si mesmo’ (Kierkgaard). Por causa disso, a disputa entre Habermas e Dworkin poderia em parte ser considerada uma discussão acerca dos efeitos da biotecnologia moderna às liberdades individuais, cuja solução, em parte, depende da possibilidade ou não de harmonização entre as intenções alheias e as próprias. A possibilidade de haverem casos dissonantes leva Habermas a jogar o ônus da prova para quem defende a tecnologia além do clínico ou corretivo (HABERMAS, 2001, 106).

A discussão desse ponto suscita a questão das semelhanças e diferenças entre a educação e a manipulação genética. Segundo Habermas, a manipulação genética não abre espaço de comunicação nos moldes de uma segunda pessoa, o que a impede de compreender- se como única autora de seu projeto de vida. Nem toda atitude instrumental é moralmente censurável, apenas aquela que trata a pessoa humana ‘apenas como um meio’. A impossibilidade de harmonizar intenções do que realiza a manipulação genética e do geneticamente modificado pode ser um problema não apenas para a eugenia positiva, mas


5 Embora o ato seja de natureza não transcendental, é preciso ressaltar que o argumento habermasiano assume um estatuto transcendental, pois atenta para as condições de possibilidade da moralidade convencional ou da concepção moderna da mesma.


 

também, para aquela que visa à correção genética. Ainda mais se supõe como o faz Habermas, que é difícil saber até mesmo se uma correção genética seria ou não aceitável pela pessoa manipulada.

Habermas tratando da relação entre a estrutura discursiva da racionalidade e da liberdade, em Wahrheit und Rechtfertigung, define e diferencia a liberdade:

 

A auto-relação prático moral do agente que atua comunicativamente exige uma atitude reflexiva em relação às próprias ações reguladas por normas, do mesmo modo que a auto-relação existencial exige uma atitude reflexiva em relação ao próprio projeto de vida no contexto de uma história individual entrelaçada com formas de vida coletivas dadas. Que uma pessoa, nessas distintas dimensões, possa distanciar-se de si mesma e de suas manifestações é, além do mais, uma condição necessária da liberdade (HABERMAS, 2005).

 

 

Habermas identifica a atitude reflexiva como conditio sine qua non da ação livre independentemente da esfera à que ela se aplique. As esferas citadas por Habermas são: liberdade de reflexão (teórica), liberdade do arbítrio (pragmática), liberdade da vontade (moral) e liberdade ética (ética). Kant, por sua vez, trata do tema da liberdade da Wille e da Willkür em diversas obras, entre as quais é conveniente ressaltar a Critica da Razão Pura, a Crítica da Razão Prática, a Critica do juízo, A Fundamentação da Metafísica dos Costumes (MS), Metafísica dos Costumes e A Religião dentro dos limites da simples razão. Na primeira Critica, Kant trata da liberdade no Cânon enquanto um problema de filosofia prática e no terceiro conflito transcendental como um problema cosmológico; na segunda Critica, Kant trata da liberdade na analítica como dotada de realidade objetiva imanente ao prático e intimamente relacionada com o Faktum der Vernunft ao passo que na dialética ela se torna um dos postulados da razão pura prática; na Fundamentação, ele trata da liberdade como co- dependente ou recíproca com o principio supremo da moralidade, a saber, o imperativo categórico; na MS, a liberdade é abordada da perspectiva político-jurídica liberal; na Religião, finalmente, Kant empreende um esclarecimento e um nítido deslocamento entre dois sentidos da liberdade atribuídos respectivamente a duas faculdades volitivas ou do querer, a saber, a Wille e a Willkür. Liberdade como autonomia é uma propriedade da Wille e a liberdade como um tipo de espontaneidade prática consiste em uma propriedade da Willkür.

Ao tratar do problema da liberdade, Habermas retoma o debate entre Adorno e a filosofia prática kantiana, embora os apontamentos habermasianos a respeito da liberdade em Kant dirigem-se particularmente a concepção de liberdade kantiana desenvolvida na Critica da Razão Pura e particularmente a terceira antinomia da razão pura. Ao fazer essa ressalta,


 

quanto ao foco dos apontamentos de Habermas a respeito do tratamento da liberdade em Kant, não se pretende nem realizar nenhum juízo de valor a respeito das considerações habermasianas, mas apenas delimitar o escopo de sua discussão claramente.

Para reconstruir a visão habermasiana acerca da liberdade focar-se-á na conferência principal de Die Zukunft der menschlichen Natur (ZMN) e Zwischen Naturalismus und Religion (ZNR), no que diz respeito a este último livro principalmente os capítulos 6 Liberdade e Determinismo (ZNR6) e 7 – ‘Eu mesmo sou um bocado de natureza’ – Adorno sobre o enlaçamento entre razão e natureza. Considerações sobre a relação entre liberdade e indisponibilidade (ZNR7). Em ZMN, Habermas deriva algumas conseqüências dos avanços tecnológicos no campo da engenharia genética para a questão filosófica da liberdade, se bem que ele oscile quanto ao que entende por liberdade neste texto. Em ZNR6, ele critica as estratégias reducionistas a respeito da liberdade da vontade discutindo os experimentos de Libet evidenciando a herança epifenomenalistas destas abordagens e tenta avaliar o debate da liberdade da vontade concentrando-se na questão a respeito da correta maneira de naturalização do espírito humano. A questão a respeito da correta naturalização do espírito

humano tem implicações normativas para o debate bioético alvo central do presente estudo,      

pois a engenharia genética implica certa compreensão da mente humana naturalista da qual

Habermas discorda e remete a posições criticas anteriores de Habermas relacionadas com a crescente dominação da razão instrumental e da técnica nas sociedades complexas contemporâneas. Essa tendência precisa ser freada ou ao menos limitada, para Habermas. A relação intima entre a crítica de Habermas em relação à eugenia liberal e sua posição anterior a respeito da ciência e da técnica fica mais evidente quando este retoma o debate empreendido por Adorno com a filosofia kantiana, no qual a noção corpo, fundamental em sua objeção à eugenia positiva, ocupa papel predominante na concepção de liberdade condicionada e encarnada na natureza adorniana. Em ZNR7, Habermas reconstrói o debate de Adorno com a filosofia kantiana no que diz respeito à liberdade da vontade, introduz um conceito fenomenológico de liberdade condicionada e enraizada na natureza e por fim retoma o debate a respeito da eugenia liberal à luz destas considerações.

Em ZNR6, Habermas discute as implicações filósofos para a temática da liberdade da vontade de tentativas de explicação reducionista da liberdade da vontade e sua respectiva tese de que a liberdade da vontade constitui um tipo de auto-engano. Ele busca mostrar que as tentativas reducionistas não são bem sucedidas à medida que não cumprem aquilo que prometem e, além disso, sua tentativa de naturalizar a mente ou espírito humano é inconciliável com a auto-compreensão cotidiana de sujeitos capazes de agir, o que ele


 

evidencia pelo exame pragmático dessa auto-compreensão intuitiva. Outro problema apontado por Habermas com as tentativas de reduzir a mente naturalisticamente é que elas não evitam as dificuldades do dualismo ontológico, do qual Kant é acusado, sem que se comprometam com algum tipo de epifenomenalismo. Além disso, para Habermas, tais posições não fazem jus à evidência de nossa consciência que acompanha performativamente nossas ações, a saber, à nossa consciência da liberdade da vontade. Deste modo, ele propõe um naturalismo fraco ou mitigado, não cientificista, a fim de lidar com as dificuldades inerentes ao problema da vontade livre.6

Diferentemente de Kant, Habermas entende a liberdade à luz não da filosofia da consciência, mas sim partindo do linguistic turn empreendido na filosofia por Wittgenstein. Conseqüentemente, a liberdade não consiste numa propriedade de sujeitos capazes de conhecer e agir de modo monológico e solipcista, supostamente comprometidos com algum tipo de linguagem privada, mas sim o resultado de um processo entre sujeitos dialógico. Por esta razão, a liberdade é fortemente vinculada por Habermas à capacidade de argumentar.

Para Habermas, também a liberdade e a imputabilidade tem um escopo mais amplo do que na

visão de Kant, pois se aplicam não apenas a ações morais propriamente ditas, mas a vários    

tipos de ações tais como ações instintivas, habituais, episódicas, etc. Desde que “todas as

ações realizadas conscientemente podem ser examinadas retrospectivamente, tendo em vista sua imputabilidade” (HABERMAS, 2005, 160).

O tratamento habermasiano do tema da liberdade pretende obstaculizar a concepção naturalista cientificista. Para Habermas, a pretensão cientifica de naturalizar a mente e a própria liberdade assim como projetos científicos com implicações similares tal como a engenharia genética e sua pretensão de gerar seres humanos ao modo de um supermercado genético compartilham uma concepção de fundo equivocada. Por isso, para Habermas, não é que “todas as operações do espírito dependem de um substrato orgânico (...) o motivo da controvérsia tem a ver, antes, com o modo correto de naturalização do espírito (...) tem de fazer jus (...) ao caráter normativo de suas operações orientadas por regras” (HABERMAS, 2005, 7).

Em sua conferência sobre a eugenia liberal, Habermas tece várias considerações a respeito da questão filosófica fundamental acerca da liberdade. A consideração de fundo mais importante talvez seja a contida na seguinte passagem em que se refere à filosofia de Kant:


6 Este naturalismo fraco ou mitigado foi primeiramente desenvolvido por Habermas em VWahrheit und Rechtfertigung.


 

 

 

Aquilo que Kant incluíra no ‘reino da necessidade’ transformouse com a visão teórico-evolucionista num ‘reino do acaso’. A técnica genética está deslocando a fronteira entre essa base natural indisponível e o ‘reino da liberdade’. A distinção entre essa ‘ampliação da contingência’, relativa à natureza interna, e as ampliações semelhantes da nossa margem de opção está na circunstância de a primeira ‘modificar a estrutura geral da nossa experiência moral’. (HABERMAS, 2001, 52)

 

 

Em outras palavras, os efeitos da engenharia genética para o tema da liberdade são tão catastróficos, que poderia ser incluído entre eles a modificação da estrutura geral de nossas convicções normativas modernas. Os efeitos, a esta estrutura, vão desde o deslocamento da esfera de livre atuação humana, geralmente situada entre necessidade e contingência, acaso e natureza, etc. até implicações mais especificas como a necessidade de alterar a maneira como é compreendida a responsabilidade num contexto em que a eugenia liberal se tornasse algo corriqueiro.

Quanto à eugenia liberal, Habermas sustenta que a liberdade envolvida na eugenia não

é a liberdade reprodutiva e sim a liberdade ética da pessoa geneticamente manipulada. Embora se tenha que reconhecer que essa tese de Habermas é dotada de um calcanhar de

Aquiles consequencialista, como ressaltou Kersting (KERSTING, 2005, 95), porque depende     

da comprovação de nexos causais controversos. Entretanto, além de excluir a liberdade reprodutiva do foco central do debate bioético a respeito da eugenia liberal, Habermas também, mesmo que ainda na esteira da filosofia kantiana, distancia-se da concepção de liberdade de Kant, ao torná-la dependente do substrato orgânico e do corpo.

Mas, mesmo distanciando-se de Kant em alguns aspectos, Habermas ainda permanece preso à intenção transcendental de Kant, quando busca encontrar base pragmática e indiscutível para a liberdade. A liberdade, ao menos a normativamente entendida, apresenta- se como uma das condições de possibilidade do uso da linguagem direcionada ao entendimento, se bem que apenas da perspectiva do participante e não do observador. A liberdade assim compreendida exige permitir todos os concernidos pela norma controversa ter voz, contudo, essa regra estaria sendo violada pela prática da eugenia, uma vez que “os programas genéticos não dão a palavra aos nascidos” (HABERMAS, 2001, 123).

Habermas situa o debate entre determinismo e liberdade na questão da maneira correta de naturalizar o espírito. Para Habermas, a vinculação com argumentos é a característica distintiva da ação livre (HABERMAS, 2005, 159). Além disso, liberdade para Habermas assim como para Kant não é uma liberdade no vazio ou de indiferença. Para Kant, a vinculação com máximas de conduta é conditio sine qua non da determinação da ação por


 

móbeis ou motivos (tese da incorporação). 7 Para Habermas, a ponderação de argumentos é a conditio sine qua non da liberdade e da causação implicada nela. Tanto Kant quanto Habermas parecem compreender a liberdade como um tipo de causalidade da vontade. Ou seja, “o momento da abertura da decisão não exclui sua ‘condicionalidade’ racional” (HABERMAS, 2005, p. 161). Kant entende que a liberdade embora exija a independência causal de eventos anteriores na determinação da vontade na realização da ação, não exclui algum tipo de causação, pois exige a causação por liberdade. A liberdade ainda é orientada por regras, mas não pela natureza. É necessária a independência motivacional para Kant, para a liberdade ser salva, e não a independência de qualquer tipo de lei. A liberdade consiste na autoimposição de leis ou regras de conduta. Habermas também parece compreender a liberdade como auto-imposição de mediante o uso discursivo da razão, entretanto, ele reconhece ser difícil entender o papel dos argumentos na motivação da ação se o modelo de causação for o mesmo das ciências naturais, a saber, por um estado anterior (HABERMAS, 2005, 161). Por isso, para ele, as concepções reducionistas que tentam derivar todos os processos mentais de influências causais recíprocas e ignoram o papel dos argumentos nas

ações por liberdade são tão dogmáticas como as posições idealistas. É preciso reconhecer que    

a esfera da cultura e da sociedade influencia nos processos mentais e consequentemente nas

ações livres (HABERMAS, 2005, 170). Habermas considera mais atraente um dualismo de perspectivas que subtrai a liberdade da perspectiva das ciências da natureza, mas não da perspectiva da teoria da evolução natural. Ele pretende conciliar as intuições normativas kantianas a respeito da liberdade da vontade com a teoria darwiniana da seleção natural e com a conseqüente explicação evolutiva do surgimento das faculdades humanas que permite aos seres humanos moralizar e atribuírem se mutuamente liberdade e responsabilidade. Entretanto, ao contrário do que Kant, a liberdade da vontade não é algo transcendental, mas “deve ter sido fruto de um processo de aprendizado evolucionário e deve ter conseguido comprovarse na disputa cognitiva do homo sapiens com os desafios de um entorno repleto de riscos” (HABERMAS, 2005, p. 171).

Habermas recorre à diferença na adoção de papéis que ocupamos ao buscar aprender algo a respeito do mundo para explicar melhor o seu dualismo. A perspectiva do observador e a perspectiva do participante, que são as duas abordagens distintas sob as quais podemos apreender algo sobre o mundo, a da ciência e a de participantes em práticas sociais e


7 A tese da incorporação foi formulada por Henry Allison, como chave interpretativa para a concepção de liberdade exposta por Kant na Religião dentro dos limites da simples razão.


 

comunicativas. Para ele, “as condições de entendimento, as quais são acessíveis apenas performativamente, isto é, na visão de participantes de práticas de nosso mundo da vida, não podem ser alcançadas cognitivamente com meios das ciências naturais, ou seja, não podem ser objetivadas completamente” (HABERMAS, 2005, p. 175). A liberdade inclui-se nessa categoria também, pois não é acessível da perspectiva do observador.

Habermas trata do tema da liberdade à luz das considerações adornianas acerca do mesmo tema. Segundo Habermas, Adorno discutindo com a solução kantiana à terceira antinomia da razão pura recusa a solução idealista e sugere uma materialista compreendida como a pesquisa causal das patologias sociais nas quais se manifesta uma supressão estrutural da liberdade (HABERMAS, 2005, p. 199-200). A discussão habermasiana da posição adorniana evidencia a origem da terminologia ‘natureza interna’ e ‘natureza externa’ utilizada por Habermas em Die Zukunft der menschlichen Natur na avaliação da eugenia liberal. Distinção naquela oportunidade apenas utilizada, mas não quer justificada quer explicada. É interessante ressaltar que Habermas ao discutir novamente esta distinção reconhece que nela está implícito algum tipo de resquício de uma normatividade jusnaturalista discreta.

No caso da eugenia liberal, Habermas identifica aquilo que Adorno sob influência de     

Benjamin e Luckacs denomina de natureza exterior com o corpo (Körper) embrionário de

uma pessoa futura e natureza subjetiva como o organismo desenvolvido a partir do embrião, ou seja, o soma (Leib). O tópico da distinção entre estes tipos de natureza tem como pano de fundo a temática mais ampla pertencente à escola de Frankfurt da critica ao domínio crescente da razão instrumental nas sociedades contemporâneas. O incremento da dominação por parte do ser humano mediante avanço científico da natureza tem como contraparte a diluição da natureza subjetiva dos seres humanos. A intervenção genética que visa ao aperfeiçoamento genético diluiria a autocompreensão normativa e ética que de certo modo constitui essa natureza subjetiva de sujeitos modernos capazes de agir e julgar moral e juridicamente.

Em ZMN, a noção de liberdade em Habermas assume diversos significados, uma vez que o herdeiro da Escola de Frankfurt oscila em diferentes níveis de reflexão ao tratar do intrincado tema da eugenia liberal. Num nível mais abstrato, a liberdade assume o sentido de uma esfera de ação em que o homem é capaz de agir com independência da necessidade natural, do destino ou até mesmo do acaso. Liberdade é uma atitude de auto-reflexão diante da necessidade causal e dos condicionamentos externos. Esse sentido parece estar presente no momento em que Habermas retoma o insight dworkiano que a engenharia genética torna disponível aquilo que até então era fruto do acaso ou destino, por isso não livre. Liberdade é ai entendida como escopo de atuação da intervenção humana. Num outro nível, no que diz


 

respeito aos efeitos da intervenção genética à estrutura normativa da sociedade democrática liberal moderna, a liberdade assume um sentido normativo. A liberdade é entendida aqui como propriedade de todos os cidadãos das sociedades democráticas contemporâneas. Sentido eminentemente normativo do termo. É uma norma, uma orientação geral de conduta dirigida e atribuída a todos os membros da comunidade a de respeitar e ter respeitado a liberdade. Todavia, num outro nível ainda, mas ainda referida aos cidadãos ou futuros cidadãos das sociedades democráticas contemporâneas assume a liberdade um sentido quase físico. Habermas entende que a manipulação genética que adentra no terreno dos conteúdos das concepções racionais de vida da pessoa futura são nãopermissíveis e até devem ser proibidas. A exigência de respeitar este tipo de concepção das pessoas, o direito às liberdades privadas ou subjetivas burguesas, é sem soma de dúvida normativa, entretanto a caracterização da manipulação genética que visa ao aperfeiçoamento como uma limitação, um fato que se torna um obstáculo ao espaço de livre atuação da pessoa futura, sugere uma base física ao uso da liberdade. Deste modo, diferentemente de Kant, para Habermas, a liberdade é destranscendentalizada e recebe até mesmo uma base física. O corpo e o soma são para ele a

base física da liberdade. Base esta que deve permanecer indisponível à intervenção humana. É possível identificar uma lacuna na estratégia argumentativa habermasiana. Essa lacuna pode ter sido o motivo de certa linha de objeções à estratégia habermasiana em ZMN, a saber, a objeção de certo comprometimento do filósofo com a sacralização da natureza humana. Assumindo que o corpo e a soma é a base do uso ético da liberdade ainda é preciso mostrar que apenas a eugenia positiva é questionável, caso contrário se incorre na posição que   a naturalidade do patrimônio genético é valiosa em si mesma. Habermas recorreu ao critério do consentimento presumido. O problema é que Habermas parece estar extrapolando usando a noção de corpo como uma noção normativa, quando ela parece figurar mais adequadamente como uma questão fática. É um fato, uma questão discutível pela ciência, se o corpo delimita ou não o escopo de atuação do indivíduo. Portanto, essa é uma tese sobre fatos e não sobre normas e valores. Contudo, é evidente que se o corpo limita o escopo de ação e ação humana pode intervir na determinação do corpo, pelo critério normativo da não intervenção na liberdade ética, a prática pode ser proibida.

Habermas acredita haver um parentesco entre suas pressuposições idealizadoras fundadoras da ética discursiva e os conceitos ou idéias transcendentais kantianas. À idéia cosmológica da unidade do mundo de Kant, corresponde à suposição pragmática de um mundo objetivo comum existente independente da mente; à idéia transcendental e postulado da liberdade de Kant, corresponde a suposição pragmática da racionalidade dos atores


 

imputáveis; ao movimento totalizador ou a visão da razão como faculdade unificadora, corresponde à incondicionalidade das pretensões de validade no agir comunicativo; à visão da razão como tribunal, corresponde ao discurso racional enquanto fórum iniludível das justificações possíveis (HABERMAS, 2005, p. 135).

Na terceira antinomia da razão pura, Kant busca refutar a posição que defende o monopólio explicativo causal da causalidade segundo leis naturais buscando evidenciar que a liberdade embora não teoricamente suscetível de ser conhecida pode, contudo ainda ser sustentada ser possível ou ao menos não impossível de ser pensada. 8Por conseguinte, o resultado da reflexão kantiana na primeira critica tem efeito apenas negativo, ou seja, em nada estende o conhecimento do supra-sensível evidenciando a possibilidade da liberdade como um tipo de causalidade. Na segunda Critica, por sua vez, Kant empreende uma extensão se não do conhecimento ao supra-sensível ao menos do uso das categorias defendendo um acesso a um objeto supra-sensível no campo teórico, mas imanente à perspectiva prática. A liberdade é com a lei moral evidenciada e postulada pela lei moral como um fato da razão.

A proposta habermasiana em Liberdade e Determinismo busca fazer jus à evidência

incontestável da intuição da liberdade que acompanha performativamente todas as nossas    

ações assim como à necessidade de uma imagem coerente do universo, em outras palavras,

dar algum tipo de solução a Terceira Antinomia de Kant. Habermas tenta conciliar tal como Kant a causalidade por liberdade com a causalidade por natureza. A solução kantiana, para Habermas, teria incorrido num tipo de dualismo ontológico, que Habermas pretende evitar. A solução habermasiana é um tipo de pragmatismo que pretende conciliar Kant com Darwin e um tipo de naturalismo mitigado ou fraco já previamente desenvolvido em Wahrheit und Rechtfertigung. Habermas pretende dar prosseguimento ao debate a respeito da liberdade e do determinismo kantiano, reinterpretando-o nos termos de uma controvérsia que versa sobre a maneira correta de naturalizar o espírito humano (HABERMAS, 2005, p. 156).


Habermas, como havia feito em RE, ressalta a diferença fundamental entre o contexto de discussão da engenharia genética na Europa e nos EUA, só que agora estende a diferença ao naturalismo cientificista que serve de pano de fundo àquele mesmo debate. Para Habermas, os pressupostos do naturalismo cientificista não conseguiram lançar raízes tão profundas na Alemanha, por exemplo, quanto lançou nos EUA, mesmo que a Europa constitua-se de nações em que a visão secular obteve predomínio. Habermas intitula-se porta- voz de uma reconciliação entre Darwin e Kant que faria mais jus ao contexto europeu da

8 Kant distingue entre ‘pensar’ e ‘conhecer’.


 

discussão da biotecnologia moderna e do tema da liberdade em tela aqui (HABERMAS, 2005, p.187-188).

Habermas nega a liberdade de indiferença, ou a do asno de Buridán, pois é necessário o contato com argumentos. Esta negação da liberdade de indiferença existente na proposta habermasiana ecoa a recusa de Kant da liberdade de indiferença contida em A Religião dentro dos limites da simples razão. Para Kant, é sempre necessária a vinculação a regras na conduta humana, ou seja, não há ação alguma sem alguma lei mesmo que subentendida. A estas regras Kant denominara de máximas ou princípios subjetivos do querer que explicitem como o sujeito agente agiu ou pretende agir.

Habermas circunscreve a validade do principio da causalidade natural (HABERMAS, 2005, p. 175). Além disso, Habermas parece compartilhar com Kant a solução aporética da terceira antinomia, pois julga impossível entender como a causalidade da natureza pode entrar em ação recíproca com a causalidade por liberdade (HABERMAS, 2005, p. 179). Kant também circunscreveu a validade do principio da causalidade ao campo de toda experiência humana possível, ou seja, todos os eventos da experiência humana estão causalmente

conectados a eventos anteriores que se denominam suas causas, entretanto, Kant ainda não    

tinha a sua disposição a noção somente introduzida no jargão filosófico de ‘jogos de

linguagem’ apenas possível pela guinada lingüística. Por isso, Kant recorreu à ‘metáfora’ do dualismo de perspectivas: mundo inteligível e mundo sensível. No mundo sensível o monopólio explicativo é do principio da causalidade, mas no mundo inteligível a liberdade de alguma maneira é capaz de iniciar uma cadeia causal e interagir com a causalidade natural, embora como isso ocorra não seja possível de ser explicado. Todavia, mesmo que Kant recorra à metáfora dos dois mundos ou dois pontos de vista ou perspectivas, que na segunda Crítica, claramente se tornam a perspectiva teórica e prática respectivamente, é possível defender uma leitura não ontologicamente carregada, como o faz, Allison. Allison defende interpretar a pressuposição da liberdade como uma pressuposição conceitual e não como um dualismo ontológico, uma vez que a defesa do dualismo ontológico implicaria um tipo de retorno de Kant a filosofia anterior ao seu empreendimento critico, ao seu criticismo (ALLISON, 1996, p. 142).

Deste modo, a proposta habermasiana de um dualismo metódico, não ontológico não se distancia tão radicalmente quanto Habermas pretende do dualismo de perspectivas kantiano. Se considerarmos não apenas a primeira Critica, mas principalmente a segunda Critica de Kant, é possível perceber a validade circunscrita das explicações causais naturais e por liberdade na mesma linha defendida por Habermas nos textos discutidos aqui.


 

Diferentemente de Kant, que entende a constituição física do indivíduo suas inclinações como obstáculos à liberdade no sentido moral, Habermas entende que a constituição física do indivíduo “não são mais considerados como causas externas que podem influenciar ou irritar a formação da vontade ou da consciência” (HABERMAS, 2005, p. 166). Em vez de obstáculos ao livre exercício da vontade, a constituição orgânica torna-se para Habermas condição de possibilidade desse. A base orgânica somente torna-se um obstáculo à liberdade ética do indivíduo na medida em que uma intenção alheia é adicionada a esta e uma intenção cuja aceitação posterior por parte do indivíduo geneticamente manipulado é duvidosa, como no caso da eugenia positiva. Nas próprias palavras de Habermas:

 

A fenomenologia da autoria responsável conduziu-nos, no entanto, para o conceito de uma liberdade condicionada enraizada no organismo e numa história de vida, o qual é incompatível com a doutrina cartesiana das duas substâncias e com a doutrina kantiana dos dois mundos (HABERMAS, 2005, 166).

 

Deste modo, para Habermas a liberdade e a responsabilidade, à luz das considerações de Adorno e dele mesmo em ZMN, assumem uma dimensão tal que as torna incompatíveis

com a concepção de liberdade cartesiana das Meditações Metafísicas e de Kant na Critica da     

razão pura. Descartes havia distinguindo entre diferentes substâncias o universo e o próprio ser humano e discute a liberdade do arbítrio para isentar Deus do erro cometido pelos seres humanos ao não manterem sua vontade dentro dos limites da clareza e distinção. Kant, como visto, recorre a um dualismo entre perspectivas, ao qual atribui os nomes de mundo inteligível e sensível. Entretanto, mesmo que Habermas tenha superado a filosofia do sujeito, da qual tanto o pensamento de Descartes quanto o de Kant são partidários, não parece tão evidente em que medida o dualismo metódico habermasiano supera o dualismo de perspectivas kantiana, caso esse não seja carregado das conotações ontológicas frequentemente atribuídas a ele.

Para Adorno, como para Habermas em ZMN, o substrato orgânico (Leib) e a própria história de vida constituem ponto de referência da ação imputáveis e responsáveis. Deste modo, ao contrário do que sugere em ZMN, a fonte real da concepção de liberdade encarnada habermasiana na discussão da eugenia liberal não é Plessner, mas no fundo a própria escola de Frankfut da qual é herdeiro, em particular a discussão adorniana com Kant a respeito da liberdade da vontade.

Habermas re-formula o problema da terceira antinomia kantiana da seguinte maneira: para superar este conflito de idéias transcendentais seria preciso estabelecer uma relação


 

compreensível entre a auto-experiência do ato de decisão realizado intuitivamente e o evento que ocorre de modo simultâneo e objetivo no substrato do corpo (Leib) (HABERMAS, 2005, 198). Ou seja, seria preciso construir uma ponte entre filosofia e ciência. Para Habermas, Adorno recua diante deste desafio de uma perspectiva externa reformulado da terceira antinomia, contudo considera-o de uma perspectiva interna e tenta resolvê-lo defendendo a liberdade. Empreende uma solução materialista que visa identificar as patologias sociais em que se manifesta algum tipo de supressão estrutural da liberdade.

Para sintetizar a concepção normativa de Habermas recorrerse-á a Warren, que, em The self in discursive democracy, explora a concepção do eu na filosofia habermasiana, em particular a relação entre o eu e a autonomia. Suas considerações podem auxiliar na reconstrução da concepção normativa de liberdade habermasiana. Para Warren, (WARREN,

M. E., 172) a autonomia em Habermas é um ideal normativo, ou seja, não é algo dado aos indivíduos pela natureza, também não é uma pressuposição lógica nem uma precondição da democracia, mas uma possibilidade que pode ser desenvolvida nas relações sociais. É importante ressaltar que o foco de Warren é the self na democracia habermasiana e não o

intrincado debate bioético a respeito da eugenia liberal. Contudo, as considerações    

habermasianas a respeito da eugenia liberal oscilam em diversos níveis, inclusive no nível

político quando ele discute as implicações da aceitação da eugenia positiva às próprias instituições políticas liberais.

Segundo Warren, a primeira característica distintiva do autonomous self na concepção normativa habermasiana é “aquele que pode identificar-se como um indivíduo que mantém certa continuidade no tempo e que é distinguido por uma única história de vida”. Coincidentemente, esta concepção normativa do eu e da liberdade enquanto autonomia se repete em Die Zukunft der menschlichen Natur, pois o principal motivo da recusa de Habermas da eugenia positiva consiste na impossibilidade do ser geneticamente manipulado compreender-se como autor indiviso e responsável de sua própria história de vida. Ele não seria capaz de “localizar-se em termos de projeções biográficas (‘projetos’) e retrospecções” (WARREN, M. E, 173).

A segunda característica distintiva do autonomous self é a capacidade de agir, ou seja, a habilidade de iniciar projetos, trazer a existência idéias, coisas e relações. O que, por sua vez, também implica algum controle sobre sua própria história de vida (WARREN, M. E, 173). Mais uma vez o paralelo com o debate a respeito da eugenia liberal é frutífero, pois embora a pessoa geneticamente manipulada não seja incapaz de agir no sentido estrito do termo, ela, todavia, tem seu espaço de ação restringido pela escola pré-natal dos progenitores, na medida em que selecionar uma determinada característica genética limita o espaço de opções de vida boa do individuo. Desde que seja assumido o pressuposto fático da influência do corpo e do


 

substrato orgânico, no qual incluiríamos o material genético, na formação da identidade.

 

 

A terceira característica distintiva do autonomous self é a capacidade de distanciar a identidade do eu das circunstâncias ao mesmo tempo em que se localiza este eu nos termos destas circunstâncias. Ou seja, autonomia consiste num tipo de liberdade, que implica internamente que se possa adotar uma atitude reflexiva para com seus próprios impulsos internos, interpretando, transformando, censurando, etc. externamente, no que diz respeito ao mundo social, a autonomia ou liberdade implica poder distanciar-se das tradições e das opiniões predominantes. Portanto, autonomia é uma capacidade de julgamento critico (WARREN, M. E, p. 173).

 

 

Deste modo, “a identidade do eu autônomo desenvolve-se dentro de uma fábrica intersubjetiva da razão que através da quais os eu são apresentados aos outros” (WARREN,

M. E, p. 174). Numa razão destranscendentalizada, autonomia exige o caráter público. Por isso, Warren acrescenta ainda uma quarta característica distintiva, a saber, “a autonomia do eu depende da capacidade de um indivíduo de participar em processos intersubjetivos de dar razões e resposta” (WARREN, M. E., p. 174). Ou seja, exige competências comunicativas. O que é vetado, segundo Habermas, no caso da manipulação genética, pois a futura pessoa não

recebe o direito a voz, não é ouvida, ao menos no sentido figurado do termo. A saber, é    incapaz de poder dizer sim ou não, visto que essa possibilidade não é nem mesmo cogitada.

Como resultado da quarta característica surge uma quinta, a saber, é necessário à participação autônoma na interação lingüística o reconhecimento recíproco das identidades dos falantes (WARREN, M. E, p. 174). Esse traço da autonomia é retomado por Habermas no debate bioético atual, quando ele ressalta que, a atitude dos pais que realizam a intervenção genética implica um tratamento instrumental que não permite um reconhecimento recíproco da pré-pessoa do embrião, que se tornará um individuo, ele não é tido como igual.

A última característica distintiva do autonomous self consiste em que autonomia implica em certa medida ao menos responsabilidade. No que diz respeito à responsabilidade, ele sustenta que a eugenia liberal cria uma situação de co-responsabilidade, na qual seria possível uma atitude de negação por parte do ser geneticamente modificado do patrimônio genético escolhido e este nunca poderia se compreender como autor indiviso de seu projeto racional de vida.

 

3  CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Para concluir: qual o estatuto da liberdade para Habermas? Para responder essas perguntas se faz necessário delinear algumas características da liberdade expostas.


 

Primeiramente, Habermas explicitamente afirma introduzir um conceito fenomenológico de liberdade de ação; segundo, é um conceito não idealista, ou seja, não parte da distinção moderna entre sujeito representador e objeto representado; terceiro, a consciência dessa liberdade é obtida pragmaticamente nos moldes das condições a priori das pretensões embutidas no uso comunicativo da linguagem voltada ao entendimento; quarto, assim como para Kant não consiste numa liberdade no vazio ou de indiferença, mas sim numa liberdade vinculada a argumentos (eles explicitam os porquês das ações); quinto, não é uma liberdade cuja causalidade implicada na motivação racional embutida nela seja nos moldes de um evento observável causado por outro evento anterior também observável, a única coação relacionada com o ato livre é a do melhor argumento; sexto, não é um tipo de liberdade sem nenhum tipo de condições, ou seja, não é uma liberdade incondicionada, pois “o caráter condicionado de minha decisão não me incomoda” (para Kant, a condição ou exigência da explicação da ação livre e responsável implicava o condicionamento da ação livre por uma máxima adotada, que incorporava algum móbil de proveniência empírica ou racional); quanto a este aspecto tanto em Kant quanto em Habermas a condicionalidade não implica o monismo

ontológico, a saber, a inclusão da liberdade na esfera dos entes causalmente ordenados em    

uma única série; sétimo, para Habermas assim como o era para Kant, a explicação racional

de uma ação não exclui a presença da liberdade e da imputabilidade; oitavo, o conceito de liberdade habermasiano tanto em ZMN quanto em ZNR vincula-se com a possibilidade de identificação do agente com seu próprio corpo e com sua própria história de vida; em síntese, a liberdade é em Habermas um conceito normativo, contudo, tem uma base física.


 

REFERÊNCIAS

 

ALLISON, H. Idealism and freedom. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, 240 p.

 

BUCHANAN, A. From chance to choice: genetics and justice. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, 397 p.

 

HABERMAS, J. Consciência moral e agir comunicativo. Trad. Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, 236 p.

 

HABERMAS, J. Wahrheit und rechfertigung: philosophische Aufsätze. Frankfurt: Suhrkamp, 1999, 336 p.

 

HABERMAS, J. O futuro da natureza humana. A caminho de uma eugenia liberal? Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004, 159 p.

 

HABERMAS, J. Die Zukunft der menschlichen natur. Auf dem weg zu einer liberalen eugenik? Suhrkamp Verlag: Frankfurt, 2001, 125 p.

 

HABERMAS, J. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, 399 p.

 

HABERMAS, J. Zwischen naturalismus und religion. Philosophie Aufsätze. Frankfurt:

Suhrkamp Verlag, 2005, 372 p.                                                                                                                 

KANT, I. Kants Werke. Akademie Berlin, Walter de Gruyter & Co., 1968.

 

KANT, I. Crítica da razão pura. Trad. Valério Rodhen e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Nova Cultural, 1996, 511 p.

 

WARREN, M. E. ‘The self in discursive democracy’. In: S. K. White (ed.). The Cambridge Companion to Habermas. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 167-201.