Habermas e a sociologia da saúde

 

Charles Feldhaus[1]

Universidade Estadual de Londrina

charlesfeldhaus@yahoo.com.br

1  INTRODUÇÃO

Em 2001, Habermas publicou Der Zukunft der Menschlichen Natur, desenvolvendo uma estratégia argumentativa sui generis contra o que se convencionou denominar de eugenia liberal. A eugenia liberal consiste na liberação ao mercado da livre concorrência e às escolhas particulares das pessoas (em geral dos pais) a decisão a respeito de que tipos de intervenções genéticas aplicadas à medicina reprodutiva devem ser realizados ou não. Em outras palavras, o Estado deixa de não intervir baseado seja por uma questão de direito à liberdade reprodutiva, uma vez que se interpreta o debate nos mesmos parâmetros do debate acerca do aborto (conflito entre dignidade humana e autodeterminação da mulher), seja por uma questão pragmática relacionada com a introdução de novas tecnologias (os imperativos normativos não conseguiram frear os imperativos sistêmicos da técnica, a pesquisa via continuar em algum lugar e as pessoas começaram a usar mesmo que de modo clandestino).

Embora a estratégia argumentativa de Habermas dirija-se principalmente à eugenia liberal, a saber, a introdução das novas tecnologias genéticas sem controle estatal, ele procura traçar distinções e discriminar entre tipos de intervenções. Ele distingue entre eugenia positiva e eugenia negativa, contudo de modo distinto do que fora feito no passado, quando se idealizou as práticas eugênicas (particularmente, o primo de Charles Darwin, Francis Galton), a eugenia positiva no passado era a promoção da reprodução dos considerados aptos; a negativa, a tentativa de evitar que os considerados então inaptos se reproduzissem; no cenário atual, a eugenia negativa consiste na realização da intervenção genética com objetivo de evitar ou curar doenças; a eugenia positiva consiste no aperfeiçoamento genético propriamente dito; além dessa distinção Habermas cita outras intervenções como clonagem humana, diagnóstico de pré-implantação e pesquisa com células tronco embrionárias.

O argumento principal do texto recorre ao que ele denomina de ética da espécie [Gattungsethik] ou à autocompreensão normativa de nossa moral convencional, a única segundo a qual seria possível nos compreendermos como autores indivisos de nosso projeto racional de vida[2] e situados simetricamente. Esse argumento parece assumir aspectos quase transcendentais porque Habermas parece entender que recorrer à ética da espécie não seria meramente adentrar no campo do que poderíamos denominar de conteúdos (ou questões de vida boa), mas sim garantir a manutenção das condições de possibilidade de uma moral autônoma.

A estratégia argumentativa de Habermas sustenta que a eugenia positiva é proibida moralmente pela impossibilidade de presumir o consenso da pessoa afetada pela intervenção genética, a saber, o individuo no qual o embrião manipulado se tornará. Para Habermas, esse consenso somente pode ser suposto de forma contrafactual no caso de intervenções terapêuticas ou que visam à cura (o que Habermas denomina de lógica da cura [Logik des Heilens]). O problema é que Habermas ao desenvolver esse argumento parece fortemente dependente de uma concepção de saúde, com forte aspecto normativo e não restrita apenas ao biológico, embora ele não desenvolva em lugar algum essa concepção. Por essa razão o presente estudo pretende tecer algumas considerações sobre o que poderia ser a visão de Habermas a respeito da noção de saúde e doença, um tema muito discutido no campo do que se costuma chamar de sociologia da saúde e da doença e, além disso, se pretende aqui aplicar alguns conceitos centrais da concepção de sociedade de Habermas a alguns casos rotineiramente abordados na sociologia médica.

 

2 SOCIOLOGIA E A NOÇÃO DE SAÚDE

Antes de qualquer coisa, é preciso especificar o que significa perspectiva sociológica em relação ao tema da saúde e da doença. A sociologia é um estudo de base empírica que busca demonstrar como a doença pode ser entendida de modo diferente e que tipos de fatores produzem a condição de doença mediante fatores sociais e não apenas algo proveniente da natureza, da biologia e das escolhas de estilos de vida pelas pessoas. A sociologia parte da suposição que conhecimento não é axiologicamente neutro e, por conseguinte, o conhecimento produzido pelos profissionais da saúde não é distinto nesse sentido. O sociólogo da saúde e da doença recusa-se a aceitar a visão predominante segundo a qual ser saudável é estar funcionando de modo ‘normal’ no contexto de um indivíduo da espécie humana. O conhecimento médico e a interação médico e paciente refletem aspectos estruturais da sociedade na qual eles estão inseridos.

O campo da sociologia da saúde e da doença cobre amplo espectro de questões e busca principalmente problematizar concepções reducionistas de doença e saúde, identificar quais são as principais variáveis que influenciam na produção e distribuição de doenças na sociedade, tais como classe social, gênero, etnia etc. Além disso, esse campo procura examinar a maneira como os profissionais na área de saúde e demais envolvidos definem as condições consideradas como doença e como saúde. Os principais pensadores discutidos na sociologia médica são Marx, Parsons e Foucault, somente para citar alguns. Cada um deles concebe a sociedade, a doença e o papel do profissional da área da saúde de maneira diversa. Para Marx, a sociedade capitalista como sendo prioritariamente exploradora e conflituosa (entre a burguesia e o proletariado), e a ausência de saúde como oriunda da priorização da busca do lucro, em outras palavras, em Marx, se pode dizer que as doenças resultam da comodificação dos serviços de saúde, que transforma os pacientes em clientes e consumidores, transformando o objetivo primário da medicina na maximização do lucro e não na cura de doença e no bem-estar do paciente. Para Parsons, a sociedade consistindo de um conjunto estável e harmonioso de papéis e estruturas sociais inter-relacionadas, e as doenças como resultantes das tensões sociais ocasionadas pelo embate das demandas dos diferentes papéis sociais. Para Foucault, a sociedade é compreendida como uma complexa rede de relações de poder, com nenhuma fonte dominante de poder (um conceito difuso), cuja finalidade é a vigilância administrada dos corpos e das populações. Para ele, as doenças são rótulos utilizados para segregar a população facilitando o controle social. A noção de normalização ocupa papel predominante nos estudos orientados pela perspectiva de Foucault na sociologia da medicina, pois é pela caracterização do que se considera normal ou anormal na sociedade que os profissionais da área da saúde exercem poder de controle social sobre os indivíduos (poder disciplinar) e sobre a população (biopoder). Além desses teóricos, as feministas também ocupam papel predominante nos estudos sociológicos na medicina, as quais compreendem a sociedade como sendo exploradora e repressiva da mulher e impregnada por uma visão patriarcal do papel social da mulher e em que o papel da medicina consiste prioritariamente na medicalização da mulher em torno do papel reprodutivo (maternidade)[3] . Após essa breve caracterização das contribuições de alguns dos principais expoentes do pensamento sociológico à medicina, pode-se perguntar qual seria a principal contribuição de Habermas? Como ele compreende a sociedade? Qual o potencial crítico de suas considerações sociológicas a esse campo?

Apesar das diferentes abordagens resultantes no campo da sociologia da medicina, é possível traçar algumas questões centrais e tendências nesse campo de investigação. Primeiramente, há uma tendência a se compreender as noções de saúde e doença de modo não reducionista ao biológico, uma vez que as doenças são produzidas e distribuídas socialmente e, por conseguinte, não são apenas uma parte da natureza e da biologia humana. Em outras palavras, “reduzir a explicação da condição dos indivíduos a um denominador comum da biologia, a explicação genética sistematicamente exclui uma explicação sociológica, e funciona para desviar nossa atenção da maneiras nas quais a vida social forma nossa experiência da saúde”[4] . Em segundo lugar, os pensadores nesse campo sociológico buscam inverter a ordem dos fatores de uma inferência causal recorrente no discurso sobre a saúde e a doença, a saber: “as pessoas são doentes porque são pobres e não pobres porque são doentes”[5] , ou seja, não é a condição de ser doente que transforma as pessoas em pobres, não é porque a doença torna alguém menos apto no mercado de trabalho da livre concorrência que alguém ser torna pobre, mas sim que o fato de estar em uma condição de partida já pobre favorece o desenvolvimento de certas doenças. A concepção inversa, amplamente difundida é um elemento central tanto das concepções biologicistas quanto das liberais. A visão reducionista da biologia, principalmente quando tenta derivar valores de fatos, assume que alguns são mais aptos que outros e, portanto menos suscetíveis a incidência de doenças. A visão liberal busca sistematicamente atribuir a responsabilidade pela condição social de uma pessoa a suas escolhas individuais.

Como já dito, diferentes abordagens da sociologia da saúde e da doença ocasionam análises distintas do papel do conhecimento médico e das causas sociais de doenças. Há amplo espectro de posições nesse cenário: marxistas, parsonianas, foucaultianas e feministas. As contribuições de Habermas, não obstante, parecem não ter fincado raízes ainda nesse campo de investigação, pois comparado com a influência de outros pensadores, os estudos sobre Habermas ainda estão em fase inicial na sociologia da saúde e da doença.

3 AS CONTRIBUIÇÕES DE HABERMAS À SOCIOLOGIA DA SAÚDE E DA DOENÇA

Scambler et al. em Habermas, Critical Theory and Health busca identificar algumas contribuições do arcabouço teórico de Habermas à sociologia da saúde e da doença. Cabe, contudo, ressaltar que esse livro devota-se apenas a aplicar as considerações de Habermas a esse campo de investigação anteriores a publicação de Der Zukunft der Menschlichen Natur. Nem mesmo os textos menores de Die Postnationale Kostellation cuja relevância ao debate sobre a natureza da noção de saúde e doença pretende-se aqui enfatizar foram incluídos.

Segundo Scambler & Britten[6], as relações entre médico e paciente somente podem ser teorizadas de modo abrangente se for levado em consideração o contexto e as estruturas sociais relevantes ao caso. Por exemplo, um paciente com acesso de dor muscular resultante (problema pessoal) oriundo de uma condição de trabalho geradora de doenças (questão contextual) realiza uma visita a um médico mas afirma explicitamente seu desejo de continuar trabalhando, apesar do desconforto, o médico brinca com o senso de responsabilidade e ambivalência do paciente, porém facilita que o paciente continue a trabalhar, exprime com isso a ideologia da responsabilidade individual pela condição doentia, prescrevendo apenas narcóticos, alguns instrumentos de correção postural, algumas pausas durante o dia de trabalho etc. desse modo, o profissional em saúde marginaliza as questões do contexto social do paciente e permanece ausente a crítica as exigências do trabalho.

Em o ZMN[7], Habermas recorre a sua teoria da ação social, em que distingue ação instrumental e ação comunicativa, para avaliar normativa a nova prática. Os recentes avanços científicos estão cada vez mais prevalecer os imperativos sistêmicos de uma única forma de racionalidade e ação, a ação instrumental. Esse avanço da biotécnica, segundo Habermas, traz à memória a lógica da ação médica e essa mesma lógica denunciada aqui por Habermas é fortemente criticada pelos principais expoentes da sociologia da saúde e da doença. Em grande parte, a justificação das pesquisas e dos recursos investidos no campo da engenharia genética se dá pelos imperativos sistêmicos e objetivos biopolíticos[8]. O avanço da biotécnica inclusive teria efeito de colonizar o mundo vivido de tal modo que não seria mais possível distinguir o que é produzido e o que é resultado da natureza[9] .

Um ponto rotineiramente ressaltado no campo da sociologia da saúde e da doença é a sobreposição de imperativos sistêmicos sobre a prática da medicina com o crescente avanço da biotécnica. Esses imperativos sistêmicos obscurecem e ocultam a verdadeira meta da medicina, que é curar doenças. Os imperativos em questão são os da economia, do mercado e da própria técnica. A medicina ao impregnar-se desse outros imperativos sistêmicos encobre sua especificidade, a cura de doenças.

Para Habermas, a sociedade é compreendida tanto como sistema quanto como mundo vivido. O sistema é caracterizado pela racionalidade estratégica e o mundo vivido pela racionalidade comunicativa. Na interação entre médico e paciente, por exemplo, os imperativos sistêmicos podem prejudicar a efetividade do tratamento e comprometer o caráter significativo da compreensão própria de sua condição por parte do doente. A colonização do mundo vivido leva a todos os tipos de problemas sociais: a) redução do sentido compartilhado; b) a erosão dos laços sociais; c) carência de pertença a um grupo; d) um sentimento de desmoralização; e e) a desestabilização da ordem social.

O mundo vivido é compreendido como um tipo de ação comunicativa (frequentemente denominada voz do mundo vivido em sociologia médica) e o sistema, como um tipo de ação estratégica. A ação comunicativa visa à interação linguística orientada ao acordo ou entendimento ao passo que a ação estratégica visa ao sucesso ou êxito. No que diz respeito à relação entre sistema e mundo vivido, Habermas chama a atenção para um aspecto importante, a saber, a colonização do mundo vivido pelo sistema, que “cada vez mais separa as estruturas sociais mediante as quais a interação social ocorre”.[10] Na medicina essa separação crescente e colonização do mundo vivido pelos sistemas do dinheiro, do estado, da voz da medicina (que privilegia a concepção biomédica de saúde e doença e busca atribuir a responsabilidade exclusiva ao usuário por sua condição de doença), o que pode levar a uma perda de identidade e a uma redução do sentimento de pertença social.

Segundo Nicholas Rose,[11] Habermas em Die Zukunft der menschlichen Natur estaria comprometido com o modelo biologicista de saúde e doença baseado em uma nota na qual ele faz referência à concepção adotada por Buchanan et al. em From Chance to Chocie. Justice & Genetics,[12] para os quais a noção de funcionamento normal serve de critério normativo para elaborar uma lista de bens naturais primários (intervenções genéticas), que o Estado deveria fornecer aos seus cidadãos a fim de garantir a igualdade equitativa de oportunidades. Não obstante, essa citação e o comprometimento de Habermas com a ideia reguladora de que as intervenções genéticas restritas ao que ele denomina ação clínica [klinischen Handelns] e lógica da cura [Logik des Heilung], uma vez que somente nesse caso seria possível presumir o consentimento [Einverständnis] do afetado, ainda assim defende-se aqui que ele está comprometido com uma concepção de doença e saúde mais complexa que integra a visão biologicista e a visão axiologicamente carregada.

 

4 A CONCEPÇÃO DE SAÚDE E DOENÇA A PARTIR DE ZMN

A favor dessa leitura (que integra elementos culturais e biológicos) de Habermas podem ser apresentadas as seguintes evidências:

a)    Em Die postnational Konstellation, Habermas defende em sua tréplica a Dierter E. Zimmer que “a biologia não pode nos tirar das mãos a reflexão moral. E a bioética não deveria dotar-nos de descaminhos biologistas sobre isso”,[13] ou seja, ele critica qualquer tipo de reducionismo nesse pequeno escrito, devemos recorrer apenas a categorias morais quando decidindo sobre questões relativas aos recentes e futuros avanços no campo da engenharia genética aplicada à medicina reprodutiva. A decisão deve pautar-se em categorias morais, para Habermas de cunho kantiano, como liberdade e responsabilidade e não em elementos fáticos (não devemos cometer o que rotineiramente se denomina navalha de Hume, ou em sua formulação mais recente, falácia naturalista tal como a entende Moore).

b)     No mesmo texto, Habermas defende claramente que a definição da noção de mal [Übel] depende de critérios culturais, citando inclusive que no passado a pertença a uma ‘raça inferior’ fora considerada como um ‘mal’.[14] Como o argumento do consenso ou consentimento contrafactual aplica-se contra a eugenia positiva ou ao aperfeiçoamento genético, quando Habermas reconhece que existe uma variabilidade cultural da definição de mal, somos levados a interpretar-lhe como decidindo previamente pela proibição categórica da intervenção genética aperfeiçoadora, não obstante deixando ao escrutínio do debate democrático os casos permitidos, mas não prescritos de intervenção terapêutica. Se há variação cultural, o respeito à perspectiva do mundo vivido e à concepção de democracia deliberativa elaborada em Faktzität und Gelgung, exige deixar aos concernidos deliberar e decidir o que sua sociedade considera como permitido e o que não.

 

Além disso, se a noção de mal ou evitação do mesmo serve de base justificadora das intervenções negativas ou curativas, e entende-se mal [Übel] como contraponto a saúde [Heilung], ou seja, é não saudável ou doente quem sofre de algum mal, então a noção de doença após Die Zukunft der menschlichen Natur envolve valores, pois envolve uma noção variável culturalmente, a noção de mal. O ônus de compreender a saúde e a doença como carregados axiologicamente concerne a um enfraquecimento do argumento principal de Habermas contra a eugenia positiva, uma vez que a base do argumento é a possibilidade de traçar claramente a distinção entre o que é denominado de aperfeiçoamento genético e o que é denominado de tratamento genético cujo critério diferenciador é a lógica da cura, a qual pressupõe que seja possível delimitar claramente o que é doença e o que é saúde. Mas, se saúde e doença são axiologicamente carregadas e variam culturalmente, como determinar o que é aperfeiçoamento e o que está restrito à lógica da cura?

A reconstrução e aplicação do sistema de Habermas à sociologia da saúde e da doença tal como desenvolvida por Scambler et al. e outros evidencia que concepção de sociedade entendida tanto como sistema quanto como mundo vivido, a critica a crescente monopolização do mundo vivido pelo sistema, a distinção entre ação estratégica e ação comunicativa, e a noção de comunicação sistematicamente distorcida implicam uma concepção de saúde e doença em Habermas não reducionista ao biológico e comprometida com a valorização do simbólico e valorativo oriundo do mundo vivido. O que, por sua vez, suscita a questão a respeito da possibilidade de uma mudança de posição de Habermas em Die Zukunft der menschlichen Natur em relação aos textos anteriores, como diz Mendieta, uma nova guinada no seu pensamento. Mendieta sugeriu um novo giro neoaristotélico, aqui talvez se pudesse defender um novo giro revogando seu antireducionismo, uma vez que seu argumento é fortemente dependente de uma noção de saúde e doença com forte viés biologicista, caso contrário o argumento parece perder a plausibilidade. Entretanto, defende-se aqui que talvez o espectro de posições a respeito da saúde e da doença seja maior que a dicotomia entre cultura ou biologia. E a posição de Habermas estaria muito mais na zona central desse espectro do que em qualquer uma das duas margens.

Em outra oportunidade defendi que Habermas com a publicação de Die Zukunft der menschlichen Natur ressalta o aspecto biológico de uma concepção de liberdade dual, que se afasta da concepção transcendental de Kant. Em textos anteriores, como Pensamento pós-metafísico, Habermas abordou o aspecto intersubjetivo do desenvolvimento da liberdade e da autonomia individual, ou seja, é preciso a interação com o outro para tornar-se autônomo, pois liberdade não é um atributo de um sujeito monológico, mas exige a interação linguística. Assim como sua concepção de liberdade não se reduz nem ao biológico nem ao simbólico, defende-se aqui que é bastante plausível acreditar que sua concepção de saúde e doença também não se reduz nem a uma visão biologicista nem a uma visão estritamente valorativa ou axiológica. O que, consequentemente, mina a objeção de impotência do argumento principal de baseado no consenso presumido ou contrafactual contra a eugenia positiva e liberal.

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em síntese, buscou-se mostrar aqui que o argumento de Habermas contra a eugenia liberal desenvolvido em Die Zukunft der menschlichen Natur depende de uma noção não desenvolvida por ele sistematicamente. No entanto, a aplicação de algumas das noções centrais do sistema habermasiano evidenciam uma visão de saúde e doença não reducionista, nem a biologia nem a cultura, mas dual, que integra ambas. Apesar de Habermas citar a obra de Buchanan et al. que se compromete com uma concepção de saúde com forte viés biológico, entendida como funcionamento normal da espécie, foi possível observar mediante o exame de textos contemporâneos ao seu argumento contra a eugenia liberal, que sua visão está comprometida com elementos que favorecem uma interpretação de saúde e doença como carregadas axiologicamente e não apenas uma descrição do funcionamento normal da espécie. Não obstante, o comprometimento de Habermas com uma concepção axiologicamente carregada de saúde poderia enfraquecer o argumento principal baseado no consenso contrafactual contra a eugenia liberal e positiva. No entanto, foi enfatizado que o espectro de visões de saúde e doença contém mais matizes do que apenas o estritamente biológico e o estritamente cultural e que Habermas se situa com certeza em uma posição intermediária que integra elementos biológicos e culturais em sua concepção de saúde e doença e, por conseguinte, o argumento contra a eugenia poderia manter seu poder de discriminar os casos proibidos (eugenia positiva) dos permitidos, mas não obrigatórios (eugenia negativa) com base numa noção de doença dual (cultura e biologia).

 

REFERÊNCIAS

BUCHANAN, A. From chance to choice: genetics and justice. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.

CHRISTIANSEN, K. The silencing of Kierkgaard in Habermas’ critique of genetic enhancement. Med Health Care and Philos, n. 12, p. 147-156, 2009.

COKERHAM, W. C. The blackwell companion to medical sociology. Massachusetts: Blackwell Publishers, 2001.

FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

HABERMAS, J. A crise de legitimação no capitalismo tardio. Trad. Vamireh Chacon. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.

HABERMAS, J. A Sketch of L’avenir de la nature humaine. Philosophy and Medicine, vol. 03, n. 1, 2003, p. 155-157.

HABERMAS, J. Die Zukunft der menschlichen natur: auf dem weg zu einer liberalen eugenik? (ZMN) Suhrkamp Verlag: Frankfurt, 2002.

HABERMAS, J. Faktizität und geltung: beiträge zur diskurstheorie des rechts und des demokratischen rechtsstaats. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1992.

HABERMAS, J. Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln. Frankfurt: Suhrkamp, 1983.

HABERMAS, J. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? (FHN) Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

HABERMAS, J. Wahrheit und rechfertigung: philosophische Aufsätze. Frankfurt: Suhrkamp, 1999.

MENDIETA, E. Comminicative freedom and genetic engineering.

MENDIETA, E. Habermas on human cloning. The debate on the future of the species. Philosophy & Social Criticism, vol. 30, n. 5-6 (2004), p. 721-743.

SCAMBLER, G. Habermas, critical theory and health. London: Routledge, 2001.

WHITE, K. An introduction to sociology of health and illness. London: Sage Publications, 2002.

 



[1] Professor Associado C da Universidade Estadual de Londrina. É professor permanente do Programa de Pós-graduação em filosofia - Mestrado - da Universidade Estadual de Londrina. Graduado em Filosofia - Bacharel (2002) - Licenciatura Plena (2003) - pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Filosofia - área de concentração - Ética e Filosofia Política - na Universidade Federal de Santa Catarina (2004). Especialista em Biossegurança (2004) - pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Filosofia - área de concentração - Ética e Filosofia Política - pela Universidade Federal de Santa Catarina (2009). Posdoutorado em filosofia pela Martin Luther Universität Halle Wittenberg (2015) com apoio financeiro da CAPES.

[2] Entendo que o termo plano racional de vida é utilizado por Habermas de maneira similar a Rawls em A Theory of Justice e em Political Liberalism. Rawls supõe que os cidadãos de uma sociedade democrática contemporânea possuem um plano racional de vida, ou seja, algo “à luz do qual eles planejam seus esforços mais importantes e alocam seus vários recursos (inclusive os mentais e corporais, tempo e energia) a fim de perseguir sua concepção do bem durante uma vida inteira, se não do modo mais racional, então ao menos de um modo sensato (ou satisfatório)”. RAWLS, J. Political Liberalism, 177 (minha tradução). Em Theory, Rawls sustenta o seguinte: “primeiro, o plano de vida de uma pessoa é racional se, e apenas se, (1) é um dos planos que é consistente com os princípios da escolha racional quando esses são aplicados a todos os aspectos relevantes de sua situação, e (2) é aquele plano entre aqueles que se encontram nessa condição que seria escolhido por ele com racionalidade deliberativa plena, isto é, com consciência plena dos fatos relevantes e depois de uma consideração cuidadosa das consequências. (...) Segundo, os interesses e os objetivos de uma pessoa são racionais se, e apenas se, eles devam ser encorajados e munidos pelo plano que é racional para ela.” RAWLS, J. A Theory of Justice, 408-409 (minha tradução).

[3] WHITE, K. An Introduction to the Sociology of Health and Illness.

[4] WHITE, K. An Introduction to the Sociology of Health and Illness, 3.

[5] WHITE, K. An Introduction to the Sociology of Health and Illness, 3.

[6] SCAMBLER, G. Habermas, Critical Theory and Health, 50.

[7] HABERMAS, J. ZMN, FNH, 64.

[8] Segundo Foucault, História da sexualidade I.

[9] HABERMAS, J. FHN, 65;

[10] HABERMAS, J. TAC2, 154.

[11] Cf. CHRISTIANSEN, K. ROSEN, N. The Politics of Life, 2007.

[12] HABERMAS, J. FHN, 72; ZMN, 91.

[13] HABERMAS, J. KPN, 249 (minha tradução).

[14] HABERMAS, J. KPN, 252.