Considerações sobre habermas e o projeto kantiano de uma paz perpétua

Charles Feldhaus[1]

Universidade Estadual de Londrina

charlesfeldhaus@yahoo.com.br

1  INTRODUÇÃO

Habermas aborda o projeto de Kant de uma paz perpétua em várias oportunidades em sua obra publicada, a saber, Der gespaltene Westen, Die Einbeziehung des Anderen e Zwischen Naturalismus und Religion: Philosophische Aufsätze No segundo livro supracitado, Habermas contém uma capítulo escrito em função da comemoração dos duzentos anos da publicação de Zum Ewigen Frieden de Immanuel Kant, em que procura mostrar que o projeto de uma ordem mundial cosmopolita contém premissas que precisam ser revistas e que alguns elementos da proposta, por essa razão, precisam ser reformulados; ao passo que o primeiro livro supracitado busca avaliar o projeto original do filósofo de Königsberg à luz das recentes tensões internacionais termina apresentando o dilema do direito internacional contemporâneo: Kant ou Karl Schmitt? Habermas acredita que algumas premissas empíricas da proposta de Kant de uma ordem mundial cosmopolita, de uma liga de Estados (repúblicas), são refutadas à luz dos eventos históricos ocorridos desde a sua formulação no final do século XVIII. No capítulo final do terceiro e último livro supracitado, Habermas retoma as considerações feitas em Der gespaltene Westen a respeito do projeto kantiano de uma paz mundial e reitera a necessidade de reformular a proposta de Kant à luz de dificuldades conceituais e inadequação da mesma com nossas experiências históricas recentes.

Habermas critica o recurso de Kant à analogia do estado de natureza ao referir-se à passagem do direito internacional clássico ao direito cosmopolita. Segundo o herdeiro da Escola de Frankfurt, os cidadãos dos Estados nacionais já percorreram um longo processo de formação, por causa disso, estão de posse de um bem político, as liberdades fundamentais garantidas juridicamente, e o colocariam em risco, caso aceitassem uma restrição do poder estatal que visa garantir o estado de direito. O que não acontece com os habitantes fictícios não formados de um estado de natureza bruto, em que os mesmos não tinham nada a perder exceto o medo e o horror do embate de suas liberdades naturais, garantidas apenas pela força, e como ninguém poderia se outorgar o estatuto de mais forte em tal situação, suas liberdades seriam sempre incertas. O que leva Habermas a defender que a analogia é errônea, pois tal transição não é de modo algum análoga, mas antes complementar aos direitos que os cidadãos possuem no Estados democráticos de direito. Habermas afirma ainda que o modelo de uma república mundial é errôneo assim como é falso a afirmação de Kant de que três tendências naturais indubitavelmente estão impulsionando a espécie humana a uma paz mundial, a saber: a natureza pacífica das repúblicas, a força geradora de comunidades do comércio internacional, e a função política da esfera pública. Habermas busca mostrar que, embora seja verdade que as repúblicas (que ele entende como democracias) sejam mais pacíficas entre si, não é verdade que façam menos guerras que outros regimes políticos; além disso, a ONU inclui hoje tanto países democráticos quanto de outros regimes políticos; o comércio mundial aproxima as nações, mas é causa não apenas de paz entre nações, mas pode ele mesmo ser tornar um estopim para a guerra; a esfera pública, que inicialmente era um espaço de discussão política de ideais e de critica do poder político, se tornou ela mesma um meio de manipulação das massas, o que Kant não previu. Habermas, com base na identificação da implausibilidade de certas premissas do projeto 27 kantiano, afirma que uma reformulação conceitual básica se faz necessária. Ele ataca a inconsistência da proposta de Kant de uma federação livre ou aliança de Estados pacíficos por considerar a mesma insuficiente, a ordem cosmopolita tem que garantir ao menos o comportamento exterior adequados dos membros, o que não parece possível numa federação de Estados livres; Habermas defende uma constitucionalização do direito internacional, algo mais forte do que pensara Kant. Para Habermas, o estágio em que se encontra o direito internacional atual já teria superado em alguns aspectos a visão de Kant, uma vez que a soberania dos Estados membros em parte pode ser limitada por acordos internacionais e regulamentações, o que novamente implica em revisão conceitual básica, dado que Kant mantinha a soberania absoluta dos Estados, os mesmos deveriam apenas abandonar o direito à guerra; além do mais, como a ONU hoje inclui Estados democráticos e não democráticos, é preciso revisar a visão de Kant de que a paz ocorre mediante uma expansão das repúblicas. Conforme Habermas, a própria compreensão do que se entende por paz precisa ser modificada, Kant entendia a paz apenas num sentido negativo, como ausência de guerra (de conflito bélico ou de disposição para tal), todavia, Habermas acredita que garantir a paz exige não apenas intervenções de caráter militar, mas também intervenções humanitárias visando exercer influência interna aos Estados nacionais tornando possível que os mesmos sejam autossustentáveis, a participação política dos cidadãos, a tolerância cultural, entre outras coisas. Garantir a paz pode exigir estratégias não militares até mesmo como as sanções econômicas, não obstante de maneira explícita e não camuflada. Por conseguinte, o presente estudo pretende reconstruir as ideias centrais do projeto de Kant e as principais considerações críticas de Habermas nos dois livros supracitados e tentar realizar uma avaliação crítica das mesmas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Professor Associado C da Universidade Estadual de Londrina. É professor permanente do Programa de Pós-graduação em filosofia - Mestrado - da Universidade Estadual de Londrina. Graduado em Filosofia - Bacharel (2002) - Licenciatura Plena (2003) - pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Filosofia - área de concentração - Ética e Filosofia Política - na Universidade Federal de Santa Catarina (2004). Especialista em Biossegurança (2004) - pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Filosofia - área de concentração - Ética e Filosofia Política - pela Universidade Federal de Santa Catarina (2009). Posdoutorado em filosofia pela Martin Luther Universität Halle Wittenberg (2015) com apoio financeiro da CAPES.