Habermas e o expressivismo de normas de Allan Gibbard

Charles Feldhaus[1]

Universidade Estadual de Londrina

charlesfeldhaus@yahoo.com.br

1  INTRODUÇÃO

Habermas, nos últimos anos, tem se manifestado a respeito da relação entre a filosofia moral ou ética e a biologia. Em Nicht die Natur verbietet das Klonen. Wir müssen selbst entscheiden, em seu livro Die Postnationale Konstellation, Habermas afirma categoricamente que questões normativas (políticas, morais e éticas da espécie) como a discussão a respeito da permissão ou não da clonagem humana, da nova eugenia ou eugenia liberal, do uso de células embrionárias para pesquisa devem ser decididas com base argumentos de ordem normativa e não de ordem empírica, como é o caso das leis da biologia evolutiva. Em Die Zukunft der menschlichen Natur, ele empreende uma estratégia argumentativa baseado em uma ética da espécie porque supõe que a moral convencional é fortemente afetada pela modificação do limite entre acaso e escolha resultante da normalização da prática da eugenia liberal.[2] Essas intervenções marcam o forte antireducionismo habermasiano no diz respeito às questões éticas e com isso, ao menos em parte, o filósofo alemão concorda com a necessidade de se evitar reduzir valores morais ou decisões morais, a questões fáticas. O que é a despeito da visão habermasiana de que não se deve separar completamente indagações filosóficas e mais empíricas da sociologia, por exemplo, uma posição que permite aproximar as objeções habermasianas ao emprego de argumentos biológicos na reflexão moral da crítica mooreana ao naturalismo na ética e na identificação do principal erro lógico cometido por esse tipo de abordagem à ética, a saber, a falácia naturalista (um tipo de erro categorial identificado por G. E. Moore em Principia Ethica). Entretanto, essas abordagens supracitadas tratam da relação entre questões normativas concretas com a biologia, ao passo que, no primeiro capítulo de seu livro Die Einbeziehung des Anderen, - Eine genealogische Betrachtung zum kognitiven Gehalt der Moral - Jürgen Habermas discute questões relativas à própria gênese da ética, principalmente adentrando em tópicos da metaética. Ele busca defender uma concepção metaética cognitivista, diante do que denomina de não cognitivismo forte e não cognitivismo fraco. Ao contrário de grande parte dessas vertentes da metaética, Habermas desenvolve uma concepção metaética e de ética normativa que tenta dar conta da compreensão da práxis ética que transcende os valores compartilha dos do mundo da vida, a saber, advoga uma concepção de cunho universalista e cognitivista, embora antirealista (uma vez que ele evita qualquer comprometimento ontológico forte com alguma entidade independente da mente humana à que se refiram os enunciados normativos ou avaliativos).

Para Habermas, a melhor alternativa entre as possíveis, como explicação da gênese da ética é aquela que dá conta desse aspecto, a saber, da fenomenologia moral cotidiana. Entretanto, ao fazer isso, Habermas se defronta com algumas variantes bastante sofisticadas do empirismo, quais sejam, o expressivismo de normas de Allan Gibbard, tal como desenvolvido em Wise Choice, Apt Feelings, e o contratualismo moral de Ernest Tugendhat, tal como desenvolvido em Vorlesungen über Ethik. O presente estudo pretende reconstruir e examinar o expressivismo de normas de Gibbard assim como as considerações críticas de Habermas a respeito de uma abordagem empírica como a dele que tenta explicar o funcionamento da ética à luz da biologia. À luz disso tudo tentar-se-á dar alguma resposta à seguinte questão: que tipo de contribuição a biologia poderia oferecer à ética? Quais as vantagens e desvantagens de recorrer à teoria da evolução para explicar de maneira funcionalista o papel da ética no processo evolutivo dos seres humanos?

 

2 A EXPLICAÇÃO EXPRESSIVISTA DA MORALIDADE DE ALLAN GIBBARD

A análise expressivista de normas apresentada por Allan Gibbard, em seus livros Wise Choices, Apt Feelings: A Theory of Normative Judgment, Thinking How to Live e Reconciling Our Aims. In Search of Bases for Ethics busca explicar a natureza da moralidade, contudo, faz de uma maneira que se diferencia da adotada por G.E. Moore, em seu livro Principia Ethica, por exemplo, que busca examinar se seria possível encontrar uma definição para ‘bom’ e critica fortemente a vinculação da ética com estudos empíricos que pretendem identificar o conteúdo de enunciados avaliativos morais com propriedade físicas ou metafísicas. A estratégia de Gibbard procura explicar o significado dos termos morais explicando que tipo de estado mental esse termo é usado para expressar. Gibbard, portanto, parte do uso ordinário das palavras morais, mas seu escrutínio não se restringe a uma explicitação da moralidade de senso comum. Ele introduz em sua reflexão metaética elementos da teoria da evolução humana e hipóteses especulativas psicológicas. Obviamente, recorrendo à biológia como estratégia explicativa, Gibbard também se situa entre aqueles que recusam a identificação de enunciados avaliativos morais com propriedades metafísicas, a saber, sua posição não implica nenhum comprometimento ontológico com entidades morais independentes da mente humana.[3]

A fim de explicar o significado dos termos morais, particularmente buscando mostrar que eles consistem em expressões de estados mentais, Gibbard procura diferenciar dois termos comumente associados por algumas correntes tradicionais da reflexão acerca da moral: racional e moral. Ele quer saber o que racional significa. Ele quer entender a fala sobre moralidade, e, o que são questões morais, no final das contas. O que elas significam e o que elas têm a ver com racionalidade. Ao examinar ‘racional’ ele não pretende apresentar as condições para que uma ação possa ser considerada racional, mas sim, o uso do termo. Chamar alguma coisa de racional é endossá-la.[4] Quem endossa algo, o aceita. Por causa disso, Gibbard buscará, a fim de esclarecer o significado de racional, distinguir a aceitação de normas da mera internalização das mesmas.

Segundo Gibbard, haveria na história da filosofia ocidental duas concepções acerca da relação entre a moralidade e a racionalidade. A primeira que entende a racionalidade no sentido mais pleno e sustenta uma identidade entre moral e racional; uma outra, mais estrita, em que um ato pode ser irracional sem, contudo, ser incorreto. Gibbard adota a concepção de racionalidade mais estrita, segundo ele, adotada também por J. S. Mill em seu livro Utilitarismo.[5] Portanto, nessa visão chamar algo de moralmente errado implica sanções legais, de opinião pública e da consciência. Desse modo, quando se aceita uma norma, se expressa certos sentimentos ou estados mentais por parte do agente e dos observadores da sua ação. A culpa (sanção da consciência) por parte do agente e o ressentimento (sanção da opinião pública, por exemplo) por parte do observador.

Com o intuito de explicar as normas morais, sua relação com a racionalidade e, em que sentido, elas expressam estados mentais, Gibbard sustenta que não pretende apenas “elucidar conceitos ordinários e crenças, mas usá-los como guias”.[6] Ele enfatiza que a moralidade do senso comum reconhece que as normas morais são motivadoras até certo ponto, ao menos. Gibbard introduz uma distinção entre dois sistemas de controle normativo: o sistema de controle animal e o sistema de controle infundido linguisticamente e busca ressaltar qual o papel que a linguagem ocupa na motivação humana. A tese central de Gibbard é que a linguagem tem, no caso humano, a função biológica de coordenar comportamentos e expectativas. Mas, por que a linguagem tem essa função? Que tipo de explicação ou justificativa pode-se oferecer para isso? Segundo Gibbard, a capacidade da linguagem influenciar a maneira como as pessoas se comportam, tem a ver com a evolução humana. A capacidade de ser influenciado por normas obtidas mediante discussão normativa é resultado de pressões seletivas e isso confere certas vantagens adaptativas. A capacidade da linguagem influenciar as ações humanas não se restringe à eliminação de desacordos baseados em diferentes percepções dos estados de coisas no mundo, pois nem todo descordo moral é baseado em desacordo acerca da melhor descrição de um determinado estado de coisas. A linguagem tem outras funções, além da de transmitir informação acerca dos estados de coisas do mundo. A linguagem pode ser usada para criticar, exortar e incitar sentimentos e emoções nas pessoas. Ou seja, com a linguagem não apenas se dizer ‘algo’, mas também se pode influenciar alguém a fazer algo, ao se dizer algo. Esse é o caráter performativo do uso da linguagem, ao contrário do caráter declarativo que restringe-se a diz algo, a passar uma informação. Obviamente, esses dois aspectos da linguagem raramente se encontram sempre misturados e na prática cotidiana geralmente são encontradas tipos mistos, em parte declarativos e em parte performativos, não obstante, não é tema desse estudo adentrar nesse complexo tema de teoria da ação linguística.

Gibbard desenvolve sua explicação expressivista da aceitação de normas considerando o caso da ‘fraqueza da vontade’. Ele cita o exemplo de uma pessoa que acha que deve parar de comer nozes porque considera que isso é algo que faz sentido, ou seja, essa pessoa aceita a norma que deve parar de comer nozes, por razões de melhorar a sua saúde, por exemplo, não obstante, continua a comer nozes. A questão que surge disso é: como compatibilizar a fraqueza da vontade com a tese da psicologia moral ordinária que a aceitação de normas é motivante, ao menos até certo ponto? Que tipo de explicação expressivismo de normas pode oferecer a esse fenômeno? Para explicar isso, Gibbard recorre à distinção entre os dois sistemas de controle normativo: o animal e o linguisticamente infundido. À luz da teoria da evolução, ele ressalta que esses dois sistemas de controle normativo, assim como outros sistemas na biologia podem estar compartilhando a mesma função e agindo de modo independente um do outro, e levando os seres humanos a adotar caminhos de ação antagônicos.

Gibbard exemplifica a função dos sistemas de controle normativo buscando mostrar certa congruência entre as regras de convivência que seres humanos denominam de morais e as vantagens para aqueles que as respeitam. Todavia, não parece adequado sustentar um tipo de egoísmo aqui ou auto-interesse esclarecido, mas sim a existência de um mecanismo que permite aos seres da espécie homo sapiens sapiens obter vantagens mútuas, entre as quais se poderia ressaltar,, as vantagens reprodutivas que aumentam a probabilidade de manutenção da própria espécie humana. Para ilustrar isso, Gibbard cita a coordenação entre vendedor e comprador em que ambos são beneficiados. Ou seja, as regras morais de certa forma melhoram as condições do vendedor e do comprador.

Mas, o conflito pode acontecer também entre normas e não apenas entre normas e apetites, como alguns entendem que seja o caso da fraqueza da vontade.[7] Um conflito entre a regra que se aceita e outras normas sociais. Aqui Gibbard ilustra esse conflito mediante o experimento de Stanley Milgram. Nesse experimento algumas pessoas ficam encarregadas de aplicar choques elétricos, os quais podem ser significativamente dolorosos e até mesmo letais em outros seres humanos, na medida em que esses não acertam a resposta a certas questões. O objetivo do teste não é avaliar o conhecimento daqueles a quem as perguntas são dirigidas, mas , até que ponto as pessoas, que estão aplicando os choques elétricos, obedecem a ordem de aplicar o choque elétrico. O resultado do experimento mostrou que as pessoas continuavam a aplicar o choque até um nível que poderia significar até mesmo a morte daquele que o estava sofrendo. Além do mais, mesmo aqueles que pareciam relutantes a ir tão longe terminavam por seguindo a ordem de aplicar o choque elétrico assim que lhes era dito que o experimento deveria continuar mais ou menos nos seguintes termos: ‘você se comprometeu em cooperar com experimento então continue’. Mas, se há um conflito entre normas nesse experimento, quais seriam essas normas? Para Gibbard, aquele que aplica os choques reconhece e endossa a norma ‘Não devemos causar dano ou dor a seres humanos inocentes’, mas também reconhece normas sociais de cooperação como ‘obedeça e faça tudo que for necessário para cooperar em algo que se engajou’, nesse caso, com o experimento.

Como a diferença entre ‘aceitar’ e ‘internalizar’ normas pode ser utilizada para explicar o comportamento daquele que é considerado dotado de uma ‘fraqueza da vontade’? A aceitação de uma norma envolve endossá-la, mas o ser humano com vontade fraca aceita a norma moralmente correta, a endossa, contudo, age ou de acordo com um apetite contrário ou de acordo com outra norma social. Todavia, no quadro expressivista de normas de Gibbard, ao contrário do que aconteceria na ética kantiana, por exemplo, não existem normas rígidas e meramente racionais que entrariam em conflito com nossas inclinações.[8] No quadro expressivista, a moralidade está intimamente relacionada com os sentimentos e emoções e inclusive é a posse de certos sentimentos e emoções (culpa e ressentimento) que serve para determinar o certo e o errado. A sensibilidade, uma faculdade pretensamente não cognitiva, serve para determinar o certo e o errado. Desse modo, a fraqueza da vontade num quadro expressivista consiste principalmente em agir contrariamente àquilo que o agente considera como o melhor julgamento moral diante das circunstâncias.

Não obstante, ainda precisa ser esclarecido por que o ser humano com vontade fraca não realiza a ação moral que endossa ou aceita, mas outra ação contrária. Como foi ressaltado acima, para explicar esse fenômeno moral, Gibbard9 sustenta que o ser humano participa de dois sistemas de controle normativo: o sistema controle animal, compartilhado por outros animais, que vivem em grupos, e o sistema de controle infundido linguisticamente. No caso do ser humano com vontade fraca, ele concorda no âmbito do sistema de controle infundido linguisticamente, a respeito de qual é a norma correta, entretanto, o faz apenas da perspectiva de um observador independente (detached observer). Diante da situação real da ação, ele não parece ser influenciado pelo reconhecimento que uma determinada norma se sobrepõe ou tem mais peso do que as outras, entre as quais se encontra aquela que está violando. Isso somente pode acontecer, porque “internalizar uma norma é igualmente uma questão de coordenar propensões, mas as propensões são de um tipo diferente: elas trabalham independentemente da discussão normativa.”[9] Ou seja, o ser humano participa de dois sistemas de controle e dependendo das circunstâncias os mesmos podem não promover a mesma alternativa de ação. Porém, dado que fora apresentado alguns traços gerais da proprosta expressivista de normas de explicar a moral à lua biologia evolutiva, agora se faz necessário um exame mais criterioso da plausibilidade desse tipo de explicação da moralidade de um ponto de vista eminentemente funcional. O que Habermas pensa desse tipo de estratégia explicativa da moralidade? E a essa questão que esse estudo procurará agora oferecer uma resposta.

 

3 CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS DE HABERMAS A RESPEITO DA EXPLICAÇÃO EXPRESSIVISTA DE NORMAS

Habermas,[10] em Eine genealogische Betrachtung zum kognitiven Gehalt der Moral, sustenta que o empirismo clássico, em suas duas vertentes principais, a filosofia moral escocesa baseada na teoria dos sentimentos morais e o contratualismo moral baseado na noção de interesse enfrentam o mesmo tipo de dificuldade, a saber, não conseguem explicar com base apenas nos motivos racionais à obrigatoriedade dos deveres morais que remetem para além da obrigatoriedade oriunda da inteligência, racionalidade entendida nesse contexto meramente como razão instrumental ou racionalidade dirigida a fins.[11]

Segundo Habermas,[12] o empirismo baseado nos sentimentos morais não é adequado como uma explicação da moral, uma vez em que em sociedades complexas, como é o caso das sociedades contemporâneas em que vivemos, é difícil, senão impossível manter a coerência no julgamento moral baseado apenas na simpatia e na confiança. Além disso, Habermas[13] considera que não é possível provar a validade de uma teoria normativa da moral com base apenas em considerações de psicologia moral, o que equivaleria a cometer o que Moore já denomina de falácia naturalista em Principia Ethica. Habermas considera que os sentimentos morais são uma base insuficiente para a solidariedade entre os membros de sociedades complexas, particularmente porque em tais sociedades há uma diversidade de concepções de vida entre os indivíduos e os mesmos não podem evitar interações com pessoas ou grupos de pessoas estranhas aos que partilham sua própria visão de vida boa.[14]

O contratualismo moral, por sua vez, abandona completamente o aspecto da solidariedade, uma vez que baseia a fundamentação normativa em interesses egoístas e dirige a atenção aos direitos e não aos deveres. Com isso, equipara o acordo a respeito das normas morais a seguir a um contrato do direito privado. E, por isso, Habermas[15] afirma, tal estratégia de fundamentação está sujeita a duas objeções: 1) a assimilação de questões morais a de justiça política, o que torna difícil justificar uma moral universalista; 2) o problema do oportunismo, em que alguns indivíduos consideram-se vinculados as normas morais apenas na medida em que as percebem como vantajosas para os mesmos, portanto, “um acordo entre interesses não pode per se fundamentar obrigações.”[16]

Habermas[17] entende que à luz do fracasso das duas tentativas de fundamentar a moralidade de maneira empírica, surgiram novas tentativas de dar conta da fenomenologia moral das normas vinculantes em bases ainda empíricas, a saber, o expressivismo de normas de Allan Gibbard, desenvolvido na obra Wise Choices, Apt Feelings, e o contratualismo moral de Ernest Tugendhat, desenvolvido na obra Vorlesungen über Ethik.

Para Habermas,[18] é ponto comum às estratégias de Tugendhat e Gibbard que “toda moral do ponto de vista funcional resolve problemas de coordenação dos atos entres seres que dependem da interação social” e que nossos sentimentos morais regulam a observâncias das normas morais. A diferença entre ambos é que Tugendhat opta por um tipo de contratualismo moral e Gibbard segue o caminho objetivante de uma explicação funcional baseada na biologia e na psicologia. Nas próprias palavras de Habermas:

 

Gibbard emprega a norma para todas as espécies de padrões que dizem por que é racional para nós ter uma opinião, externar um sentimento ou agir de determinada maneira.[19]

 

Gibbard denomina morais as normas que fixam, para uma comunidade, quais as classes de atos que merecem reprovação espontânea. Elas determinam em que casos é racional para os membros sentir vergonha ou culpa ou indignar com o comportamento de outrem.[20]

Entretanto, diz Habermas,[21] a proposta oferecida por Gibbard carece de uma noção de racionalidade (provavelmente Habermas aqui está pensando na racionalidade comunicativa) para explicar a normatividade das normas que possa ser reconhecida pelos participantes da perspectiva performativa e não apenas da perspectiva do observador. A autoridade das normas morais se explica apenas da perspectiva do observador com base no valor reprodutivo das normas internalizadas com seus respectivos sentimentos. Mas, para Habermas, ainda permanece a tarefa específica de estabelecer uma conexão plausível entre o que é funcional do ponto de vista do observador, do ponto de vista de uma explicação em bases de biologia evolutiva, e o que é racional aos próprios participantes de uma perspectiva perfomativa. Esse problema se torna mais evidente quando se passa a discussão explicíta de “quais são as normas que devem ser admitidas como válidas”.

Para Habermas,[22] Gibbard até reconhece o papel da linguagem como importante meio de coordenação das ações dos membros da espécie Homo Sapiens Sapiens, a qual entraria em ação principalmente “quando o consenso normativo de fundo desmorona e novas normas precisam ser elaboradas”, o que ele chama de discurso normativo baseado então na aceitação de normas e não na mera internalização das mesmas. Não obstante, diz Habermas,[23] é obscuro que tipo de considerações podem ser utilizadas como apoio a um instrução normativa nesse tipo de discurso. Nas próprias palavras de Habermas:

 

Não podem ser bons motivos, pois esses derivam sua força racionalmente motivadora de padrões internalizados, a respeito dos quais se pressupõe que perderam sua autoridade - caso contrário não teria surgido à necessidade de um entendimento discursivo.[24]

 

Do que Habermas[25] conclui que “Gibbard não poderia compreender o entendimento discursivo” a respeito das normas controversas conforme o padrão de uma busca cooperativa da verdade, o que faz a ética do discurso, por exemplo, mas como um processo de “mútua influenciação retórica”. Os participantes podem apenas tentar contagiar seus interlocutores mas não convencer, o que leva Habermas a dizer que “o convencimento mútuo é substituído por algo assim como uma harmonização recíproca”[26]. E por causa disso, Habermas sustenta que não se poderia falar em fundamentação moral partindo do ponto de vista do expressivismo de normas de Gibbard.

É importante enfatizar que, ao tratar da discussão normativa, Gibbard faz ferência à teoria discursiva de Habermas em nota de rodapé. Nesse contexto, ele trata especificamente dos padrões de resolução de desacordos morais. Ele afirma que ao enfatizar a discussão e a obtenção de um consenso está seguindo o caminho de Habermas. Porém, a obra a que Gibbard faz referência aqui não é e inclusive nem conta nas Referências Bibliográficas Consciência Moral e Agir Comunicativo, mas A crise de legitimidade no capitalismo tardio, a qual é claramente uma obra de teoria política e não de filosofia moral. Gibbard[27] acrescenta nessa nota que nada do que ele diz está em desacordo com a ideia de Habermas de uma comunidade de comunicação em uma busca cooperativa orientada pela verdade. Ele discorda apenas de Habermas quanto à estória espistemológica que Habermas conta, a saber, “que juizes competentes são aqueles que têm alcançado um consenso em uma busca cooperativa pela verdade”; Gibbard recorre à ideia de influência mutua no lugar de uma busca cooperativa pela verdade, e por isso, diz:

 

Nessa leitura discordo: uma pessoa pode, sem confusão pensar algo racional, mas ter uma estória do que torna [um] julgamento normativo competente que não é a de Habermas.[28]

 

Enfim, para Habermas,[29] Gibbard:

 

Gibbard precisa explicar por que, sob condições de comunicação pragmaticamente excelentes, elas deveriam encontrar anuência justamente nas normas que demonstram ser as melhores do ponto de vista funcional de seu ‘valor de sobrevivência’, objetivamente elevado e específico.[30]

 

Ou seja, tem que enfrentar o problema de compatibilizar os resultados obtidos da perspectiva do observador baseado na biologia evolutiva darwinista com os resultados que os participantes da discussão se convencem e consideram sensatos da sua própria perspectiva enquanto participantes dos debates normativos orientados ao consenso[31]. Uma saida para Gibbard, segundo Habermas em nota ao final da seção, seria mediante a apropriação pelos participantes das descrições biológicas, contudo, para Habermas: tal autodescrição objetivante ou destruiria a autoconsciência prática dos sujeitos capazes, ou, no caso da mudança do observador, mudaria essencialmente o seu sentido da perspectiva dos participantes.[32]

 

REFERÊNCIAS

DALL’AGNOL, D. Valor Intrínseco: metaética, ética normativa e ética prática em G. E. Moore. Florianópolis: UFSC, 2005.

DUTRA, D. J. V. Seria a Eugenia liberal míope? Natureza humana e autocompreensão moral em Habermas. Revista Ethic@, v. 4, n. 3, p. 327-337.

DUTRA, D. J. V. Razão e consenso em Habermas: a teoria discursiva da verdade, da moral, do direito e da biotecnologia. Florianópolis: Editora da UFSC, 2005.

GIBBARD, A. Wise choices, apt feelings: a theory of normative judgment. Oxford: Oxford University Press, 1990.

GIBBARD, A. Thinking how to live. Cambridge: Harvard University Press, 2003.

GIBBARD, A. Reconciling our aims: in search of bases for ethics. New York: Oxford University Press, 2008.

HABERMAS, J. Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln. Frankfurt: Suhrkamp, 1983.

HABERMAS, J. Consciência moral e agir comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

HABERMAS, J. Die Einbeziehung des Anderen. Studien zur politischen Theorie. Frankfurt: Suhrkamp, 1996.

HABERMAS, J. A Inclusão do outro: estudos de teoria política. Trad. George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

HABERMAS, J. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

HABERMAS, J. Die Zukunft der menschlichen natur: auf dem weg zu einer liberalen eugenik. Frankfurt: Suhrkamp, 2002.

HABERMAS, J. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. Trad. Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Littera Mundi, 2001.

HABERMAS, J. Die postnationale konstellation: politische essays. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1998.

HARE, R. The language of moral. Oxford: Oxford University Press, 1952.

MILL, S. O Utilitarismo. Trad. Alexandre Braga Massella. São Paulo: Iluminuras, 2000.

MOORE, G. E. Principia ethica. A revised edition. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.

PUTNAM, H. Ethics without ontology. London: Harvard University Press, 2004.



[1] Professor Associado C da Universidade Estadual de Londrina. É professor permanente do Programa de Pós-graduação em filosofia - Mestrado - da Universidade Estadual de Londrina. Graduado em Filosofia - Bacharel (2002) - Licenciatura Plena (2003) - pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Filosofia - área de concentração - Ética e Filosofia Política - na Universidade Federal de Santa Catarina (2004). Especialista em Biossegurança (2004) - pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Filosofia - área de concentração - Ética e Filosofia Política - pela Universidade Federal de Santa Catarina (2009). Posdoutorado em filosofia pela Martin Luther Universität Halle Wittenberg (2015) com apoio financeiro da CAPES.

[2] Em outra oportunidade busquei mostrar que Habermas pode ter herdado uma pressuposição equivocada de Ronald Dworkin, a qual o teria levado a escolher o caminho de uma ética da espécie em vez de uma avaliação diretamente moral da eugenia liberal. FELDHAUS, C. Teria Habermas recorrido a uma suposição dworkiana equivocada em Die Zukunft der menschlichen Natur? In: Clóvis Ricardo Montenegro de Lima (Org). Mudança Estrutural na Esfera Pública 50 anos depois. João Pessoa: Editora da UFPB, 2012, pp. 301-316.

[3] É importante ressaltar que, embora Moore, em sua obra Principia Ethica, seja um forte crítico da identificação de termos e enunciados avaliativos com propriedades físicas ou metafísicas, no final das contas, ele compromete-se com uma metafísica inflacionada, como Hilary Putman afirma em seu livro Ethics without Ontology (2004, p. 17-8), uma vez que Moore considera ‘bom’ no sentido moral como uma propriedade sui generis que seria apreendida por uma faculdade peculiar, a saber, pela intuição.

[4] GIBBARD, A. Wise Choices, Apt Feelings, 1990, p. 6.

[5] GIBBARD, A. Wise Choices, Apt Feelings, 1990, p. 41.

[6] O emotivismo e o descritivismo afirmam que a moralidade diz respeito a estados mentais, a saber, ao enunciar termos morais a pessoa está expressando apenas suas emoções e seus sentimentos em relação aos atos que está observando e, por causa disso, um enunciado avaliativo consiste senão numa descrição dos estados mentais daqueles que proferem esse tipo de proposição. Por conseguinte, aquele que enuncia um juízo avaliativo está apenas comunicando as próprias preferências e sugerindo alternativas de ação. Os juízos normativos conforme esse tipo de compreensão dos enunciados avaliativos perdem a prescritividade, um das características peculiares dos enunciados normativos para um filósofo que defende o prescritivismo moral como é caso de Richard Hare, em sua obra The Language of Moral.

[7] GIBBARD, A. Wise Choices, Apt Feelings, 1990, p. 56-61. Kant e Santo Agostinho, por exemplo, acreditavam que a fraqueza da vontade implicava um conflito entre uma norma ou regra moral adotada e inclinações contrárias.

[8] O termo ‘inclinação’ é usado por Kant para referir-se a toda a gama de sentimentos e emoções que podem influenciar o agente a agir diferente do único móbil moral propriamente dito, o respeito pela lei moral.

[9] GIBBARD, A. Wise Choices, Apt Feelings, 1990, p. 56.

[10] GIBBARD, A. Wise Choices, Apt Feelings, pp. 75.

[11] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 23; “Die schottische Moralphilosophie (...) Der Kontraktualismus (...) Beide Theorie stossen am Ende auf dieselbe Schwierigkeit: sie können die über die Bindungskraft der Klugheit hinausweisend Verbindlichkeit moralischer Verpflichtungen nicht allein mit rationalen Motiven erklären.” Die Einbeziehung des Anderen, 1996, p. 23-4.

[12] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 22; “Nachdem die religiöse Geltungsgrundlage entwertet ist, kann der kognitive Gehalt des moralischen Sprachspiels nur noch mit Bezugnahme auf Willen und Vernunft seiner Teilnehmer rekonstruiert werden.” Die Einbeziehung des Anderen, 1996, p. 22-3.

[13] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 24; “Komplexe Gesellschaften können nicht allein durch Gefühle, die wie Sympathie und Vertrauen auf den Nahbereich eingestellt sind, zusammengehalten werden.” Die Einbeziehung des Anderen, 1996, 24.

[14] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 24; “Aber eine normative Theorie bewährt sich nicht an Fragen der Moralpsychologie; sie muss vielmehr den normativen Vorrang von Pflichten erklären.” Die Einbeziehung des Anderen, 1996, 25.

[15] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 13; “Wir verstehen diese Äusserungen eben nicht als : Ausdruck bloss subjektiver Empfindungen und Präferenzen.” Die Einbeziehung des Anderen, 1996, p. 13.

[16] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 25; Die Einbeziehung des Anderen, 1996, p. 26.

[17] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 26; “dass eine Vereinbarung zwischen Interessenten nicht per se Verpflichtungen begründen kann.” Die Einbeziehung des Anderen, 1996, 27.

[18] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 27; Die Einbeziehung des Anderen, 1996, p. 28.

[19] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 28; “Gibbard den Begriff der Norm für alle Arten von Standards, die sagen, warum es für uns rational ist, eine Meinung zu haben, ein Gefühl zu äussern oder in bestimmer Weise zu handeln”. Die Einbeziehung des Anderen, 1996, p. 28

[20] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 28; “Moralisch nennt Gibbard sodann die Normen, die für eine Gemeinschaft festlegen, welche Klassen von Handlungen spontane Missbiligung verdienen. Sie bestimmenm in welchen Fällen es für die Angehörigen rational ist, sich zu schämen oder schuldig zu fühlen oder sich über das Verhalten anderer zu empören”. Die Einbeziehung des Anderen, 1996, p. 29.

[21] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 29.

[22] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 30.

[23] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 30.

[24] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 30.

[25] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 30; “Die diskursive Verständigung über moralische Normen kann Gibbard nicht nach dem Muster kooperativer Wahrheitsuche begreifen, sondern als Prozess der gegenseitigen rhetorischen Beeinflussung.” Die Einbeziehung des Anderen, 1996, p. 31.

[26] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 30.

[27] GIBBARD, A. Wise Choices, Apt Feelings, 1990, p. 195, nota.

[28] GIBBARD, A. Wise Choices, Apt Feelings, 1990, p. 195, nota.

[29] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 31.

[30] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 31; “Gibbard muss deshalb erklären, warum unter den pragmatisch ausgezeichneiten Kommunikationsbedingungen genau die Normen Zustimmung finden sollten, die sich unter dem funktionalen Gesichspunkt ihres objetiv hohen artspezifischen “Überlebenswerts” als die besten herausstellen”, Die Einbeziehung des Anderen, 1996, 32.

[31] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 31.

[32] HABERMAS, J. Inclusão do Outro, 2002, p. 31, nota.