A resposta de Habermas à crìtica de Arendt à noção de direitos humanos

Charles Feldhaus[1]

Universidade Estadual de Londrina

charlesfeldhaus@yahoo.com.br

1  INTRODUÇÃO

Essa pretensão cosmopolita significa que o papel dos direitos humanos não pode se esgotar na crítica moral das relações injustas de uma sociedade mundial altamente estratificada. Os direitos humanos dependem de sua incorporação institucional em uma sociedade mundial constituída politicamente. (Habermas, Sobre a constituição europeia, 2012, p. 5).

 

O tema dos direitos humanos é recorrente no pensamento de Jürgen Habermas. Em sua principal obra de filosofia do direito - Faktizität und Geltung (1992) - ele reconstrói o sistema de direitos moderno baseado em sua concepção discursiva de racionalidade desenvolvida em Teoria da Ação Comunicativa (1981). Ele afirma que uma reconstrução adequada do direito moderno exige lidar de forma adequada com a tensão entre direitos humanos e autonomia política. Em Faktizität und Geltung, Habermas reconstrói esse conceito de direito moderno num debate com os clássicos da filosofia do direito, entre os quais convém ressaltar aqui, Kant, Hobbes e Rousseau. Habermas critica a fundamentação de Hobbes do estado, apontando para sua insuficiência e critica Rousseau e Kant por falta de êxito na tentativa de conciliar as duas liberdades de Benjamin Constant, a saber, a liberdade dos antigos e as liberdades dos modernos. Habermas identifica a liberdade dos antigos com a autonomia política e a liberdade dos modernos com os direitos humanos; ele considera que Kant não conseguiu conciliar adequadamente essas duas noções porque teria comprado uma interpretação moral dos direitos humanos, a saber, teria derivado os direitos subjetivos modernos da moral e com isso subordinando o direito à moral. Rousseau, por sua vez, teria sido até mais bem sucedido em sua concepção política ao fundar o estado na vontade geral, porém essa tentativa carece de aplicabilidade em uma sociedade marcada pelo pluralismo de concepções de bem (para usar o termo de Rawls) como são a grande maioria das sociedades contemporâneas, em particular aquelas a que Habermas se dirige. A fim de resolver essa tensão entre direitos humanos e autonomia política, Habermas desenvolve seu próprio sistema de direitos. Ele deriva esse sistema de direitos de sua concepção discursiva, a saber, o sistema de direitos surge da aplicação do princípio do discurso neutro (ou seja, não se trata da versão ética do mesmo) à forma jurídica e disso resultam cinco categorias de direitos básicos. Porém, os direitos humanos têm recebido críticas de diversas vertentes do pensamento político contemporâneo e entre os principais críticos se encontram os comunitaristas e os realistas políticos. Mas Hannah Arendt também ocupa um lugar central entre as pensadoras críticas em relação à noção de direitos humanos. Ela compreende que existe uma contradição na noção de direitos humanos, uma vez que, por definição, eles deveriam ser direitos que protegem todos aqueles que pertencem à espécie humana, contudo esse não tem sido o caso na história recente e atual. Seres humanos que não pertencem a uma determinada comunidade política acabam ficando sem nenhum tipo de proteção, por conseguinte, os direitos humanos protegem os seres humanos apenas na medida em que eles fazem parte de uma comunidade política.

 

2 A CRÍTICA DE HANNAH ARENDT À NOÇÃO DE DIREITOS HUMANOS

Em O declínio do Estado nação e o fim dos direitos do homem, na obra Origens do Totalitarismo (1950), Hannah Arendt se devota à questão dos direitos humanos e aponta diversas contradições e perplexidades na noção tradicional de direitos humanos. Os direitos humanos são geralmente compreendidos como portadores de valor absoluto, embora a dignidade humana seja rotineiramente respeitada apenas de modo relativo. Os direitos humanos não têm evitado que diversos grupos de pessoas fossem oprimidos, particularmente aquelas pessoas que não possuem nenhuma nacionalidade tem sido deixadas desprotegidas. Os direitos humanos têm protegido apenas aqueles seres humanos que pertencem a uma determinada comunidade política. O recurso aos direitos humanos tem tido o efeito perverso de transformar os beneficiários dos direitos humanos em vítimas e com isso situados essas pessoas na condição de seres sem fala e seres humanos de segunda categoria. Direitos humanos têm sido compreendidos como direitos de segunda ordem, aos quais se recorre apenas quando os direitos civis, garantidos pelas ordens constitucionais vigentes são ineficientes. Embora o discurso oficial seja que os direitos humanos são inalienáveis, na prática eles são inaptos a serem exigidos coativamente, uma vez que não existe nenhuma instituição capaz de fazer isso atualmente. Os direitos humanos, embora pensados como direitos que pertencem aos seres humanos apenas em função de pertencerem à espécie humana, são violados até mesmo numa democracia. Os direitos humanos são carentes de fundamentação, uma vez que a história e a natureza não podem servir como fundamento. Além disso, não é claro como a ideia de humanidade possa servir de fundamento aos direitos humanos, dado que, quando um ser humano deixa de ser cidadão de uma comunidade nacional e torna-se apenas humano, ele perde todo tipo de proteção aos seus direitos e isso abre caminho para que seres humanos sejam inclusive privados da condição de humanos.

Como solução às perplexidades encontradas na noção de dignidade humana e de direitos humanos, Hannah Arendt propõe a noção de um “direitos a ter direitos”, o qual ela compreende entre outras coisas como o direitos a pertencer a uma comunidade política. Como diz ela em Origens do Totalitarismo, os eventos de desrespeito sistemático à dignidade humana ocorridos no século XX “demonstram que a dignidade humana precisa de nova garantia, somente encontrável em novos princípios políticos e em uma nova lei da terra, cuja vigência desta vez alcance toda a humanidade, mas cujo poder deve permanecer estritamente limitado, estabelecido e controlado por entidades territoriais novamente definidas” (Arendt, 60 1989. p. 13). Obviamente, Arendt era cética em relação à instituição de uma ordem mundial baseada na ideia de direitos humanos, porém não deixa de ser relevante investigar em que medida uma proposta de constitucionalização do direito internacional, tal como proposta por Habermas sob a influência do projeto de Immanuel Kant de uma federação de estados livres em Zum ewigen Frieden, poderia resolver ao menos alguns dos problemas apontados por Arendt em relação a noção de direitos humanos.

 

3 A SOLUÇÃO DE ARENDT AO PROBLEMA DOS DIREITOS HUMANOS

Em Conclusion: The Political Instituitions of Rights to Have Rights em Hannah Arendt and Human Rights (2006, p. 132-142), Peg Birminghan reconstrói o que Arendt diz em alguns textos, a fim de responder a questão a respeito de que tipo de instituições seria necessário para garantir o “direito a ter direitos”, como substituto à noção de direitos humanos, ou seja, em vez dos direitos humanos, teríamos um único direito pertence ao ser humano apenas em função de ser humano, o direito a pertencer a uma comunidade política. Primeiramente, Arendt também compreende que o respeito aos direitos humanos é prejudicado pelo vínculo entre direitos humanos e soberania nacional. Razão pela qual ela defende que a noção de soberania nacional é obsoleta como um conceito básico da filosofia política, dado que os estados nacionais atualmente não são mais capazes de garantir nem mesmo aos seus próprios membros a proteção dos direitos humanos, quem dirá dos imigrantes e dos refugiados. Por isso é preciso uma nova compreensão do que seja um estado nação e do que seja um cidadão. Porém ela também tem todo cuidado em evitar a alternativa de uma saída mediante o direito internacional em substituição ao nacionalismo. Por causa disso ela diferencia entre política global e política internacional. A política global supõe um colapso dos estados nacionais. Ela se opõe à política global e defende um tipo de estrutura política federada mundial, contudo, a proteção dos direitos humanos, ou de seu substituto, o direito a ter direitos exige organizações regionais. Como veremos, a alternativa oferecida por Habermas não incorre no que Arendt chama aqui de uma política global, uma vez que ele não defende a eliminação dos estados nacionais tal como hoje existentes, mas muito mais a expansão das instituições de cunho democrático à esfera internacional. Mas agora primeiramente consideremos como Habermas trata do direito de imigração, o direito daqueles que não são protegidos pela constituição de seu estado nacional de origem ou foram forçados a deixar seu estado nacional de origem na Alemanha da década de 1990, mas que consiste 61 num tema bastante atual, dado a crise que passa hoje a Europa diante do fluxo constante de imigrantes adentrando em seus territórios.

 

4 HABERMAS E O DIREITO À IMIGRAÇÃO

Habermas trata do direito à imigração em A luta por reconhecimento no Estado democrático de direito, em A Inclusão do outro (1996). O tema central é a reação adversa da maioria da população alemã e europeia em relação ao crescimento da imigração, o que inclusive levou a aprovação de leis mais restritivas na Alemanha em 1993 em relação ao direito de asilo político. Habermas, por conseguinte pergunta: “justifica-se essa política de isolamento contra imigrantes?” (1997, p. 26). Habermas afirma que pretende discutir a questão, primeiramente, de maneira mais abstrata e, posteriormente, dedicar ao caso específico do debate alemão a respeito do asilo político em 1992 e 1993, que levou à reformulação da lei de asilo político. A questão mais abstrata diz respeito à relação entre a imigração e a autocompreensão ético política da nação. A presença crescente de imigrantes numa sociedade como uma questão fática altera a maneira como a população de uma sociedade é composta no que diz respeito à autocompreensão ético-cultural da respectiva sociedade. Se isso é caso, alguém podería sustentar que a imigração coloca em risco a identidade cultural da sociedade e com isso “não esbarra justamente no direito de uma coletividade política a manter intacta sua forma de vida político cultural?” (1997, p. 257). Nesse cenário também surgem questões como: “Sob que condições cabe ao Estado negar a cidadania aos que tornam válida uma pretensão de naturalização?” (Habermas, 1997, p. 257).

Habermas distingue dois níveis de assimilação: a) concordância com os princípios da constituição; b) uma disposição à aculturação; “só é preciso esperar dos imigrantes que eles se disponham arraigar-se na cultura política de sua nova pátria, sem que por isso tenham de renunciar à forma de vida cultural de sua origem” (Habermas, 1997, p. 258). “Quem, no entanto, realmente tem direito à imigração?” (Habermas, 1997, p. 259). Habermas defende uma ampliação da definição de refugiado, a fim de incluir, por exemplo, a defesa das mulheres contra atos de estupros coletivos, de refugiados de locais marcados por guerras civis, trabalhadores imigrantes e fugitivos da pobreza, que buscam escapar de condições miseráveis de existência humana em seus países de origem (Habermas, 1997, p. 259-260). Habermas sustenta que é preciso superar a perspectiva apenas dos imigrantes como 62 destinatários de direitos e buscar assumir a perspectivas daqueles que procuram a salvação mediante a imigração e à luz disso então tentar responder a questão se existe um direito legítimo à imigração. Habermas ressalta que a Europa historicamente foi favorecida pelos fluxos migratórios nos séculos XIX e XX (1997, p. 260-261), se bem que essas razões “não bastam para justificar a garantia de um direito individual à imigração” (1997, p. 261). Habermas defende que não se deveria limitar os contingentes de imigração com base nas carências econômicas dos países que acolhem esses imigrantes, mas com base em critérios que seriam aceitáveis de um ponto de vista todos os afetados (Habermas, 1997, p. 261-262). Por causa disso, Habermas considera que não pode ser justificado do ponto de vista normativo o acordo que ocorreu na Alemanha em 1992 e 1993, que levou à alteração da lei de asilo do país, porque ele compreende que existem três erros nas premissas do respectivo acordo: a) regulamentação se limita ao asilo político, mas precisa também incluir outras opções jurídicas aos imigrantes, como aquele decorrente da pobreza; b) se destrói o teor essencialmente individualista do direito ao asilo político, uma vez que joga o ônus de imigração a outros países da Europa oriental; c) recusa dupla cidadania aos estrangeiros já residentes. Habermas também ataca a visão de que a Alemanha não seria um país de imigração à luz de dados estatísticos do último século que contrariam essa afirmação e ressalta a necessidade uma “mudança dolorosa da autocompreensão nacional dos alemães” (Habermas, 1997, p. 264).

 

5 OS DIREITOS HUMANOS EM FAKTIZITÄT UND GELTUNG

Como já dito, em Faktizität und Geltung Habermas reconstrói o conceito de direito moderno e sustenta que os direitos humanos são direitos fundamentais de estados democráticos de direito. As três primeiras categorias de direitos abstratas são: 1) “direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação”, na qual se incluem a dignidade, a liberdade, a integridade física e a inviolabilidade da pessoa; 2) “o status de membro”, em que se incluem os direitos de pertencer a um Estado – a cidadania e a proibição de extradição; 3) “possibilidade de postulação judicial”, em que se incluem os meios de salvaguarda da autonomia privada de civis como a proibição do efeito retroativo, do tribunal de exceção, entre outros. 4) “à participação, em igualdade de chances, em processos de formação da opinião e da vontade”; e, finalmente, 5) “a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente [...] para um aproveitamento, em igualdade de chances, dos direitos”. (HABERMAS, 1992. p. 155-157). Em seu livro Era das Transições, Habermas 63 reapresenta as categorias dos direitos fundamentais: 1) liberdades subjetivas; 2) de status de membro; 3) de proteção individual; 4) igualdade de condições na participação política. Contudo, Habermas não cita novamente a quinta categoria que trata especificamente dos direitos sociais (HABERMAS, 2003, p. 169).

Nesse contexto ele interpreta os direitos humanos como direitos fundamentais [Grundrechte] dos Estados democráticos constitucionais modernos e não como direitos morais propriamente ditos. O que, obviamente, não significa que esses direitos possam violar valores morais, mas apenas que não podem ser identificados com direitos morais no sentido estrito do termo sob pena de uma fundamentação moral do direito. Como veremos, Habermas vincula os direitos humanos não a uma interpretação moral dos mesmos, mas a noção moderna de direitos subjetivos, a saber, direitos capazes de ser exigidos coativamente; ou seja, vincula os direitos humanos à tradição do direito liberal moderno de Locke e Rousseau. Entretanto, após a publicação de Faktizität und Geltung, Habermas começa a abordar o tema de uma expansão desse sistema de direitos a uma ordem cosmopolita, ao direito internacional e não apenas restrita a um estado democrático constitucional. Um texto importante quanto a esse ponto é aquele que ele escreve em comemoração ao bicentenário da publicação de Zum ewigen Frieden de Immanuel Kant, A ideia kantiana de paz perpétua - à distância histórica de 20 anos, publicado na obra A inclusão do outro (1996) Em sua obra de 2011, Sobre a Constituição da Europa, ele vincula a discussão dos direitos humanos com a temática da dignidade humana. Habermas discute a tese de que o conceito jurídico de dignidade humana surge muito mais tardiamente que o conceito moral de dignidade humana após o Holocausto (Habermas, 2012, p. 10). Não obstante Habermas pretendeu mostrar que havia um vínculo conceitual entre ambos esses conceitos desde o início.

Em suas próprias palavras, ele pretende mostrar “a origem dos direitos humanos a partir da fonte moral da dignidade humana explica a força política explosiva de uma utopia concreta” (2012, p. 12). Enfim, não pretendo adentrar mais nesse texto, ressalto apenas que Habermas quer dar a entender, que a dignidade humana é aquilo através do qual o conteúdo igualitário universalista da moral migra ao direito e que a tomada de consciência disso seria algo tardio.

 

6 A RESPOSTA DE HABERMAS A OBJEÇÃO DE HANNAH ARENDT EM ZUR VERFASSUNG EUROPAS

Habermas (2012, p. 30, nota) responde explicitamente, porém de forma muito breve, à crítica de Arendt aos direitos humanos numa nota de rodapé ao texto O conceito de dignidade humana e a utopia realista dos direitos humanos, em Sobre a constituição da Europa. Ele sustenta que a suposta contradição apontada por Arendt entre os direitos humanos e os direitos dos cidadãos não poderia ser resolvida apenas pela expansão dos estados globais somada à noção arendtiana de “um direito a ter direitos”, a saber, um direito a pertencer a uma comunidade política. Habermas acredita que essa contradição poderia ser resolvida por uma condição jurídica cosmopolita que superasse o estado de natureza internacional do direito internacional clássico e pela ampliação da noção de identidade coletiva para além dos limites dos estados nacionais existentes. Essa expansão da ideia kantiana de uma ordem mundial cosmopolita é desenvolvida por Habermas num debate com a projeto de uma paz duradoura de Kant e com a constitucionalização do direito internacional europeu no processo de formação da União europeia.

Em A ideia kantiana de paz perpétua à distância histórica de 200 anos, em A Inclusão do Outro, Habermas critica três aspectos da proposta de Kant:

1) Natureza Pacífica das Repúblicas;

2) Força Geradora de Comunidades do Comércio Internacional;

3) Função Política da Esfera Pública.

Para Habermas, os três foram falsificados; o que revelaria que as premissas subjacentes à visão a de Kant, válidas para as condições históricas do século XVIII, no século XX já não podem mais ser consideradas corretas, se bem que ele acredite que "elas também depõem em favor de que uma concepção do direito cosmopolita, reformulada de acordo com os novos tempos [...] bem poderia aplicar-se" (HABERMAS, 2002, p. 192).

Habermas (2002, p. 200) acredita que o projeto kantiano original precisa ser revisado quanto aos seguintes aspectos: a soberania externa dos Estados nacionais precisa ser restringida, ao menos no que diz respeito ao direito de iniciar a guerra e no que diz respeito à proteção dos direitos humanos; o caráter relações interestatais deve ser modificado; a soberania interna dos Estados nacionais pode ser limitada, por exemplo, no caso de flagrantes violações dos direitos humanos; as restrições normativas da política clássica devem ser 65 abandonada, uma vez que a manutenção da paz não deve ser promovida apenas com base no equilíbrio de forças; a compreensão do que seja 'paz' deve ser alterada, de modo a que ações possam ser tomadas no intuito de evitar a guerra antes que as mesmas aconteçam. Após terminar o exame crítico da proposta de Kant à luz de 200 anos de história, Habermas afirma: “A reformulação da ideia kantiana de uma pacificação cosmopolita da condição natural entre os Estados [...] inspira [...] esforços enérgicos em favor da reforma das Nações Unidas” (Habermas, 2002, p. 210). Mas que tipo de reformas pensa Habermas que sejam necessárias?

1) Instalação de um Parlamento Mundial;

2) Ampliação da Estrutura Jurídica Mundial;

3) Reorganização do Conselho de Segurança.

Quanto ao Parlamento Mundial, Habermas afirma que é necessário criar um tipo de Senado Federal e que o mesmo deve partilhar suas competências com uma Segunda Câmara. Quando houverem países que se neguem a permitir a eleição de deputados mediante a democracia, os representantes desses respectivos estados poderiam ser organizações não estatais designadas pelo próprio Parlamento Mundial, e que poderiam ser, por exemplo, representantes das populações oprimidas. (Habermas, 2002, p. 210).

Quanto à ampliação da estrutura jurídica internacional, Habermas afirma que: é preciso modificar as competências do Tribunal Internacional, da tal maneira que “a jurisdição penal, que até hoje só se instalou ad hoc para processos específicos de crimes de guerra, teria que institucionalizar-se de forma permanente”. (Habermas, 2002, p. 211). Quanto à reorganização do conselho de segurança, Habermas afirma que é necessário se fazer adaptações à nova situação mundial, a fim de que ao lado das potências mundiais seja concedido o direito de voto aos regimes continentais, e também deveria ser suprimida a exigência de voto unânime entre os membros permanentes e no lugar do mesmo seria preciso introduzir o voto por (Habermas, 2002, p. 211). Ainda a respeito do conselho de segurança, Habermas defende que é preciso reforma-lo de tal maneira que funcionasse segundo o modelo do Conselho de Ministros de Bruxelas, a fim de permitir que o poder executivo fosse capaz de desempenhar funções policiais (HABERMAS, 2002, p. 211).

 

7 A RESPOSTA DE HABERMAS ÀS OBJEÇÕES REALISTAS POLÌTICAS AOS DIREITOS HUMANOS

Além disso, Habermas se devota a responder algumas objeções céticas em relação aos direitos humanos, em particular aquelas oriundas do pensamento político realista de Carl Schmitt: o humanismo, a visão defensora dos direitos humanos, “tem suas raízes na hipocrisia de um pacifismo jurídico que pretende fazer ‘guerras justas’ sob o signo da paz e do direito cosmopolita” (Habermas, 2002, p. 212). Acredito que essa resposta de Habermas ao realismo político poderia ser ao menos em parte utilizada também como resposta a alguns dos aspectos da crítica de Arendt à noção de direitos humanos, uma vez que tanto o realismo político quanto as críticas de Arendt aos direitos humanos compartilham algum pessimismo em relação à noção de direitos humanos.

Segundo Habermas (2002, p. 212), o realismo político quando se dirige ao discurso dos direitos humanos, entende que “a política de uma organização mundial que se inspira na ideia kantiana de paz perpétua e que visa à construção de uma condição cosmopolita obedece à mesma lógica: o paninterevencionismo leva obrigatoriamente a uma pancrimininalização, e, com isso, à perversão dos objetivos aos quais ela se propõe servir”. Diante disso, Habermas afirma que “gostaria de tratar do argumento em geral e chegar, passo a passo, ao cerne do problema” (HABERMAS, 2002, p. 212), que ele divide em duas asserções: a) “a política dos direitos humanos ocasiona guerras que, disfarçadas de ações policiais - assumem qualidade moral”; b) “a moralização classifica opositores como inimigos, de modo que essa criminalização dá rédeas largas à desumanidade”. Segundo Habermas (2002, 213), esses dois ‘enunciados parciais’ da visão de Schmitt, contém duas premissas: a) “a política dos direitos humanos serve à imposição de normas que são parte de uma moral universalista”; b) “juízos morais obedecem ao código de ‘bem’ e ‘mal’, a valoração moral negativa (de um oponente político ou) de um opositor bélico destrói a limitação juridicamente institucionalizada do combate militar”.

Habermas defende que a primeira premissa é falsa e que a segunda sugere um pressuposto falso (HABERMAS, 2002, 213). Primeiramente, ele afirma que os direitos humanos remontam à cartas constitucionais (1776, 1789) e que essas cartas são inspiradas no conceito de direito racional de Locke e Rousseau e, por conseguinte, “os direitos humanos só assumem uma figura concreta no contexto das primeiras constituições [...] como direitos fundamentais garantidos no âmbito de uma ordem jurídica nacional”. A despeito de sua proveniência jurídica, acredita Habermas, os direitos humanos têm uma ‘caráter duplo’ [uma face de Janus]: enquanto normas constitucionais tem validade positiva, mas como direito que se vincula a cada ser humano (não apenas aos cidadãos de um estado em particular) eles tem validade também suprapositiva; portanto, tem uma face voltada ao direito e outra voltada à moral universalista. Enfim, a respeito da natureza moral dos direitos humanos, suposta na objeção realista, Habermas diz: “Os direitos humanos são já a partir de sua origem de natureza jurídica. O que lhes confere aparência de direitos morais não é seu conteúdo, nem menos ainda sua estrutura, mas um sentido validativo que aponta para além das ordens jurídicas características dos estados nacionais” (Habermas, 2002, p. 214).

Entretanto, Habermas com isso não pretende cair no que denomina de um ‘malentendido positivista’ acerca dos direitos humanos, qual seja, que qualquer que seja o conteúdo dos direitos humanos que for estabelecido pelo legislador isso seria suficiente, embora ele tenha que reconhecer que como direitos jurídicos não se pode evitar que possam ser alterados ou suspensos com a mudanças do regime de governo (Habermas, 2002, p. 214). Não obstante, diz Habermas, como são direitos jurídicos de ordens constitucionais democráticas, eles gozam de um duplo sentido de validade: como normas positivadas baseadas na capacidade de sanção ao não cumprimento [Gültigkeit] e como normas que reivindicam legitimidade ideal, passíveis de serem justificadas racionalmente [Legitimität] (HABERMAS, 2002, p. 214) Além disso, Habermas chama a atenção à especificidade dos direitos fundamentais [Grundrechte] em relação aos demais direitos constitucionais. Diz ele: “os direitos fundamentais liberais e sociais tem a forma de normas genéricas endereçadas aos cidadãos em sua qualidade de seres humanos [als Menschen] e (não de integrantes do Estado [als Staatsangehörige])” (Habermas, 2002, p. 214). E, segundo Habermas (2002, p. 215), seria essa especificidade dos direitos humanos, como Grundrechte de estados democráticos, que aproxima a validade dos direitos humanos das normas morais, diz ele: “É essa validação universal, voltada a seres humanos como tais, que os direitos fundamentais tem em comum com as normas morais.” Ou seja, embora os direitos humanos sejam jurídicos em sua origem, sua validade transcende a validade das normas jurídicas ordinárias. Habermas acrescenta ainda que pela sua especificidade esses Grundrechte somente podem ser fundamentados com argumentos morais, ao contrário das demais normas morais que aceitam fundamentos de origem ético-política ou pragmática. A razão dessa restrição quanto ao tipo de fundamentação diz respeito ao tipo de interesse que esse tipo de direito pretende proteger. Nas próprias palavras de Habermas (2002, p. 215): “o asseguramento [die Gewährleistung] de regras como 68 essas despertam em igual medida o interesse de todas as pessoas na sua qualidade de pessoas em geral [acrescente: não apenas enquanto pessoas de um determinado estado], ou ainda, por que elas são igualmente boas para todos mundo.”

Habermas acredita que essa exigência de fundamentação específica não prejudica a natureza jurídica desses direitos e nem os transforma em normas morais. Habermas acredita que as normas jurídicas recebem sua especificidade da estrutura que possuem e não do seu conteúdo (fundamentado com argumentos morais no caso de Grundrechte). Como direitos subjetivos eles abrem um espaço de discricionariedade em que os indivíduos podem agir segundo preferências próprias. (Habermas, 2002, p. 215).

Habermas entende que o direito moderno, do qual os direitos humanos [Menschenrechte] também surgem, resultam de uma mudança de perspectiva empreendida por Hobbes que abandona a moral deontológica e busca fundar o Estado no auto-interesse esclarecido dos indivíduos. Com essa mudança “tudo que não é explicitamente proibido por leis gerais de restrição da liberdade é permitido” (Habermas, 2002, p. 216). Além disso, no próprio direito moderno, Habermas sustenta (o que considero controverso) que Kant deriva todos os direitos humanos do direito inato (não adquirido) da liberdade na Doutrina do Direito, primeira parte de A Metafísica dos Costumes. O caráter controverso dessa derivação dos direitos humanos do direito inato à liberdade de Kant é que não é evidente que o filósofo de incluiria muitos direitos humanos atuais como direitos derivados do direito inato. Enfim, embora os direitos humanos tenham um teor moral, o que a objeção de Arendt parece supor, uma vez que o sistema de referência dos direitos humanos é a humanidade como um todo e não apenas os cidadãos de um estado nacional em particular, eles exigem “o status de direitos fundamentais cuja observância se deve assegurar no âmbito de uma ordem jurídica subsistente, seja ela nacional, internacional ou global.” (Habermas, 2002, p. 217). Com isso Habermas acredita ter respondido ao primeiro enunciado parcial de Schmitt, desde que teria mostrado que direitos humanos não seriam morais desde sua origem, como a objeção realista supõe, uma vez que Schmitt entende que: “a imposição global dos direitos humanos seguiria uma lógica moral e, portanto, conduziria a intervenções apenas disfarçadas em ações policiais” (Habermas, 2002, p. 217).

Habermas acredita que ao mesmo tempo também é abalado o segundo enunciado, a saber: “que a política intervencionista teria de degenerar em uma ‘luta contra o mal’", por que ele supõe que o direito internacional clássico seria suficiente, restrito apenas a conflitos comedidos, para dar um rumo civilizado aos conflitos militares. Mesmo que isso fosse correto(o que é controverso) - uma organização mundial com poder policial seria mais apta a isso (Habermas, 2002, p. 217) E porque seria uma solução mais civilizada? Por que “o estabelecimento de uma situação cosmopolita significa que as violações dos direitos humanos não são julgadas e punidas imediatamente sob pontos de vista morais, mas sim perseguidas como ações criminosas no âmbito de uma ordem jurídica estatal - e segundo procedimentos institucionalizados” (Habermas, 2002, p. 217). Habermas procura então oferecer uma resposta ou um argumento metacrítico contra a posição realista (2002, p. 218). Ele afirma que é preciso desnudar, ou seja, tornar visível, a teoria de fundo subjacente a esse realismo político e avançar até o núcleo central do argumento. A primeira vista, o argumento visa civilizar a guerra por meio do direito internacional clássico (retornando a ele); e, preservar a ordem internacional já assegurada, o que seria colocado em perigo pelo discurso dos direitos humanos. Habermas ressalta que Schmitt procura refutar a distinção entre ‘guerra de ataque’ e ‘guerra de defesa’, com isso implicando um conceito moralmente neutro de guerra e buscando desresponsabilizar as pessoas individuais pelo que acontece na guerra, uma vez que declará-la seria uma prerrogativa dos estados como sujeitos do direito internacional clássico. Não se trata aqui ainda das consequências desastrosas do universalismo moral, mas apenas de uma oposição à limitação da atividade bélica. Disso Schmitt conclui que é necessário retornar a um status quo ante ‘da guerra delimitada’, uma vez que seria mais realista a alternativa de ‘uma pacificação cosmopolita da condição natural entre os estados’. Habermas (2002, p. 219) considera utópico esse objetivo de civilizar a guerra e por isso coloca em dúvida o realismo dessa sugestão. O equilíbrio de potências historicamente mostrou-se um fracasso nesse ponto, para Habermas, uma vez que houveram guerras totais. Enfim, Habermas acredita que: “As sanções e intervenções de uma comunidade de povos organizada ainda podem domesticar essas forças melhor que um apelo (juridicamente inócuo) ao discernimento dos governos soberanos” (2002, p. 219). Dado a fragilidade dessa posição realista, Habermas acredita que isso é um indício de que a argumentação jurídica é uma fachada que oculta restrições de outro tipo. Habermas parece aqui remeter a Historikerstreit em que se envolveu logo após a Segunda Guerra mundial, uma vez que vincula a posição de Schmitt a uma tentativa de buscar diferenciar os crimes de guerras já existentes no direito internacional clássico e aquelas atrocidades (O Holocausto). Ele pensa que o realista político queria que deixassem de ser crimes a guerra de agressão e também a ruptura civilizacional do extermínio de judeus.

 

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desse modo, Habermas (2002, p. 225) compreende que objeções realistas desse tipo somente fazem sentido quando se parte de “uma moralização não-mediatizada da política”, mas uma vez que existem instituições internacionais adequadas a cumprir as exigências de um tribunal que sentencie de modo imparcial essas objeções perdem muito em força. O mesmo poderia ser dito em alguma medida das objeções de Arendt, uma vez que houvessem instituições internacionais competentes para julgar e proteger os direitos humanos, a contradição da noção de direitos humanos poderia desaparecer. Além disso, Habermas sustenta que o argumento de que uma comunidade política com identidade própria pressupõe uma língua comum, uma história comum, e uma tradição comum não resiste a uma verificação mais precisa (2006, p. 79). Esse tema é importante à discussão do direito de imigração, uma vez que a questão da imigração muitas vezes é colocada como contraposta ao direito da manutenção de uma identidade coletiva como base de uma comunidade política. Entretanto, Habermas compreende que a ideia de identidade coletiva e a ideia de solidariedade são também frutos de um processo de construção, o que não impediria de se constituir uma nova identidade coletiva além dos estados nacionais e que permitisse compreender todos os seres humanos como membros da mesma identidade coletiva e, por conseguinte, da mesma comunidade política internacional. Desse modo, os direitos humanos seriam os direitos fundamentais de uma comunidade política mundial e por isso todos os seres humanos apenas pela condição de serem humanos seriam membros dessa comunidade política e teriam sua dignidade protegida. Para concluir, cito Habermas:

 

Para o funcionamento de uma organização mundial, que inclua todos os estados e não permita mais uma delimitação social entre ‘ins’ e ‘outs’, basta, na medida em que ela se restrinja às funções da política de direitos humanos e da garantia de paz, uma base de legitimação estreita. Para a solidariedade entre cidadãos do mundo basta a indignação moral, consensual em relação a violações flagrantes da proibição do uso de força e dos direitos humanos. (HABERMAS, 2006, p. 83).

 

REFERÊNCIAS

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BAXTER, H. Habermas: the discourse theory of law and democracy. Standford: Standford University Press, 2011.

BIRMINGHAM, P. Hannah Arendt and Human Rights. The Predicament of Common Responsability. Indianapolis: Indiana University Press, 2006.

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[1] Professor Associado C da Universidade Estadual de Londrina. É professor permanente do Programa de Pós-graduação em filosofia - Mestrado - da Universidade Estadual de Londrina. Graduado em Filosofia - Bacharel (2002) - Licenciatura Plena (2003) - pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Filosofia - área de concentração - Ética e Filosofia Política - na Universidade Federal de Santa Catarina (2004). Especialista em Biossegurança (2004) - pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Filosofia - área de concentração - Ética e Filosofia Política - pela Universidade Federal de Santa Catarina (2009). Posdoutorado em filosofia pela Martin Luther Universität Halle Wittenberg (2015) com apoio financeiro da CAPES.