HABERMAS, ESTADO DE DIREITO E POLÍTICA DO RECONHECIMENTO

Charles Feldhaus[1]

Universidade Estadual de Londrina

charlesfeldhaus@yahoo.com.br

1  INTRODUÇÃO

Em 1993, Habermas publica o texto Struggles of Recognition in the democratic Constitutional State na coletânea Multiculturalism: Examining the Politics of Recognition, organizado por Gutman. Em 1996, esse mesmo texto é publicado como capítulo no livro A inclusão do outro. Este texto de alguma forma é uma resposta de Habermas à posição de Charles Taylor a 49 liberais contemporâneas. Taylor sustenta que o liberalismo clássico é incapaz de atender esse tipo de demandas, razão pela qual sugere uma concepção alternativa de liberalismo que deixe de ser cego às exigências dos movimentos sociais a favor de direitos de ordem cultural, em particular ao direito de coletividades a terem sua autonomia e autenticidade respeitada. Taylor defende que o liberalismo, ao menos na forma alternativa proposta, deveria admitir a promoção de metas coletivas fortes e ser mais respeitoso à diversidade das identidades coletivas (Cooke, p. 260). Habermas, por sua vez, pretende mostrar em A luta por reconhecimento no Estado democrático de direito que é possível integrar numa concepção de direito talhada na linguagem dos direitos individuais as reivindicações por reconhecimento. A concepção de direito moderno, inclusive aquela reconstruída por Habermas em Facticidade e Validade, é ancorada na ideia de direitos fundamentais de cidadãos individuais, entretanto, os novos movimentos sociais e as novas reivindicações por igualdade nas sociedades democráticas e liberais contemporâneas exigem o reconhecimento não apenas da igualdade social de direitos dos cidadãos individuais, mas também de grupos ou coletividades assim como a mudança do padrão cultural de pano de fundo. Não obstante, a exigência de que o Estado democrático de direito não apenas tolere as diferentes concepções de vida boa e de identidades coletivas, mas também as fomente como uma questão de justiça social exige ao menos algum tipo de explicação a respeito da compatibilidade, a fim de supostamente garantir a neutralidade ética do Estado de direito. O que geralmente se apresenta como uma exigência que é feita ao Estado de direito moderno. Habermas defende que não existe um conflito entre uma concepção de direito baseada numa teoria individualista e as demandas por reconhecimento, uma vez que “questões ético políticas são um componente inevitável da política” e, por conseguinte, batalhas culturais e demandas por reconhecimento contra culturas majoritárias é algo com que sociedades democráticas e liberais precisam conviver rotineiramente. Da mesma forma, ele entende que a ideia de neutralidade ética do estado é algo difícil, uma vez que toda efetivação dos direitos fundamentais em comunidades éticas concretas é impregnada de algum conteúdo ético. Além disso, ele procura mostrar que a noção de identidade nacional é algo construído e não um fato natural, o que favorece um tratamento mais igualitário das identidades coletivas que ingressam nos estados nacionais com a presença dos imigrantes, por exemplo, e por isso o respeito e o reconhecimento dessas identidades é algo plenamente compatível com o estado democrático de direito baseado numa teoria do direito individualista, desde que compreendida da forma adequada.

 

2 O DESAFIO TAYLORIANO AO LIBERALISMO CLÁSSICO

Em A luta por reconhecimento no estado democrático de Direito, Habermas se devota a avaliar a compatibilidade entre o estado de direito moderno, baseado na noção de direitos subjetivos e individuais, e as reivindicações de direitos coletivos, uma prática, poderíamos dizer sem medo de errar, comum, nos dias atuais. Estas reivindicações pelo reconhecimento de direitos coletivos têm sido costumeiramente denominadas de política do reconhecimento e concentra-se, não apenas, mas principalmente num suposto direito de proteção às identidades do indivíduo e formas de ação ou visões peculiares de mundo ou identidades coletivas. Este tipo de exigência possui um significado ambíguo, uma vez que ás vezes parece dizer respeito à exigência de respeitar ou reconhecer o caráter distintivo de alguns indivíduos pertencentes a alguns grupos específicos, como os homossexuais. Às vezes parece dizer respeito à exigência de reconhecer que certos grupos de indivíduos precisam de algum tratamento diferenciado, a fim de receber um tratamento igualitário, como por exemplo, as mulheres, que muitas vezes exigem legislação especial no mercado de trabalho, na disputa por cargos políticos, etc. Às vezes parece dizer respeito à proteção de certas identidades coletivas como se fossem espécies em extinção, como por exemplo, o reconhecimento das identidades culturais de tribos indígenas e grupos de pessoas que pertencem a comunidades tradicionais como comunidades ribeirinhas ou similares.

Charles Taylor, em A política do reconhecimento, defende que o liberalismo clássico seria incapaz de assimilar as demandas por reconhecimento das sociedades contemporâneas atuais, razão pela qual ele propõe uma nova versão do liberalismo, que seja capaz de atender esse tipo de demandas. O liberalismo tradicional abstrai das particularidades das identidades e formas de vida, razão pela qual não seria capaz de atender as demandas por reconhecimento que parecem exigir uma atenção especial às particularidades. O liberalismo tradicional exige uma neutralidade do estado diante das concepções de vida boa ou abrangentes das pessoas e coletividades. A exigência que uma concepção de justiça para uma sociedade pluralista como são as sociedades democráticas e liberais contemporâneas que se recorra apenas a argumentos que poderiam ser aceitos por todos e não a elementos específicos de concepções abrangentes de vida boa. Entretanto, Taylor dá a entender que a neutralidade exigida não é apenas normativamente equivocada, é até mesmo impossível garantir que o estado de direito democrático e liberal seja neutro do ponto de vista ético. Embora existam vários pontos de desacordo entre a concepção de Taylor e Habermas a respeito de como responder às demandas por reconhecimento, Habermas concorda com Taylor que o estado de direito democrático não é axiologicamente neutro. A suposta neutralidade ética do estado de direito moderno é de certa forma uma ficção.

 

3 CONTRA UM MODELO ALTERNATIVO DE LIBERALISMO

O modelo de liberalismo defendido por Taylor defende que juntamente com as garantias dos direitos fundamentais e individuais deveria haver garantias de status que restringe esses direitos quando entrarem em conflito com direitos coletivos. Para ilustrar seu ponto de vista, Taylor recorre ao caso canadense do Quebec, em que de alguma forma se tenta proteger a identidade coletiva da população francofônica diante da maioria anglofônica. Não obstante, Habermas sustenta que “uma teoria dos direitos se entendida de forma correta, jamais fecha os olhos para as diferenças culturais” (p. 234). Além disso, Habermas ressalta que apenas uma leitura paternalista do liberalismo tradicional, que ignora a co-originariedade entre direitos humanos e autonomia política, entre autonomia privada e pública, o que seria uma característica básica do conceito de direito moderno na reconstrução habermasiana em Facticidade e Validade. Segundo Habermas (p. 235), “um sistema de direitos não fecha os olhos nem as condições de vida sociais desiguais, nem muito menos as diferenças culturais”. Por causa disso, Habermas sustenta (p. 235) que, contrariamente ao que pensa Taylor, não é necessário um novo modelo de liberalismo que corrige o viés individualista do sistema de direitos liberal, mas apenas uma realização coerente do sistema de direitos liberal tradicional. Esse sistema coerente parece implicar um sistema que preste a devida atenção ao caráter intersubjetivo de formação da identidade individual e coletiva. Em outras palavras, Habermas dá a entender que o sistema de direitos fundamentais reconstruído em Facticidade e Validade pode dar conta, sem acréscimos, das novas demandas por reconhecimento das sociedades democráticas e liberais contemporâneas.

 

4 ELUCIDAÇÃO MEDIANTE AS DEMANDAS FEMINISTAS POR IGUALDADE SOCIAL

Habermas (2002, p. 235) sustenta que o caso das demandas feministas pode ser considerado como um modelo para tratar das questões relativas à dialética entre igualdade de direitos e igualdade de fato. Habermas trata das demandas feministas em Facticidade e Validade e em Inclusão do outro. Ele recorre ao caso das demandas feministas por igualdade, a fim de evidenciar a falência de dois outros paradigmas jurídicos e mostrar a vantagem do paradigma jurídico procedimentalista reconstruído em Facticidade e Validade (Cap. III e IV). Os dois paradigmas jurídicos criticados são o liberal e o do bem-estar social. O paradigma liberal simplesmente ignora completamente as demandas feministas por igualdade e entende que a igualdade formal é suficiente. O paradigma do bem-estar social reconhece o problema da dialética entre igualdade de direito e igualdade fática em relação às mulheres, contudo, apresenta uma solução inadequada ao problema. O paradigma liberal entende que a igualdade legal e formal de chances a homens e mulheres garante a existência de uma situação igualitária, porque ignora as especificidades das mulheres na luta por cargos e salários no mercado de trabalho, por exemplo. Principalmente, ignora que a igualdade formal de tratamento leva a uma desigualdade no tratamento factual das mulheres. Por causa disso, muitas feministas acabaram exigindo algum tipo de regulamentação especial para as mulheres. O paradigma do bem-estar social reconheceu esse tipo de demandas e criou regulamentações específicas para as mulheres. O problema aqui não é a existência de regulamentações específicas para as mulheres em si, mas a maneira como as mesmas foram elaboradas. O paradigma jurídico do bem-estar social adota uma atitude paternalista em relação às mulheres e por causa disso deixa de levar em consideração a co-originariedade entre direitos humanos e autonomia política. As mulheres afetadas pelas regulamentações especiais são consideradas apenas como destinatárias de direitos e não como autoras de direitos. O paradigma jurídico procedimentalista exige que, primeiramente, exista um debate público a respeito da interpretação adequada das carências ou necessidades das mulheres que precisam de reparação ou regulamentação especial (Habermas, 2002, p. 237).

 

5 DIREITOS COLETIVOS COMO UMA ANOMALIA JURÍDICA

Habermas (2002, p. 238) sustenta que uma compreensão democrática dos direitos fundamentais pode corrigir a forma seletiva da maneira como a teoria dos direitos, ao menos na leitura do paradigma liberal clássico, interpreta o exercício de direitos, entre os quais o direito à igualdade perante a lei. Por causa disso, Habermas acredita que não se faz necessário adotar a estratégia de solução defendida por Taylor, a saber, contrapor dois modelos de liberalismos, para lidar com o problema da dialética entre igualdade de direito e igualdade de fato. Não se faz necessário incluir uma categoria de direitos coletivos no ordenamento jurídico, a fim de poder atender as demandas por reconhecimento de certos movimentos sociais, como as feministas. Habermas acredita que introduzir uma nova categoria de direitos coletivos pode ser um problema adicional e não uma solução. Os direitos coletivos seriam uma categoria estranha num sistema talhado no vocabulário dos direitos individuais e haveria grande dificuldade em conciliar num mesmo sistema de direitos, os coletivos e os direitos individuais. Como decidir qual deveria ter precedência no caso de conflito entre essas duas categorias de direitos? A solução de Habermas parece passar por uma melhor especificidade dos direitos individuais, a fim de atender as demandas por reconhecimento como violações do princípio da igualdade legal. Aqui se poderia dizer existir alguma concordância entre a posição de Habermas e a posição de Axel Honneth, que também é relutante em aceitar uma nova esfera do reconhecimento, a fim de atender as demandas dos direitos coletivos e culturais (Fraser & Honneth, pp. 161-170). As demandas por reconhecimento, mesmo aquelas oriundas de grupos supostamente baseados em direitos culturais, poderiam ser compreendidas como demandas por reconhecimento numa das três esferas: amor, direito e realização ou até em mais do que uma. Contudo, não tratarei da posição de Honneth diante das demandas do multiculturalismo no presente estudo, esse será tema de outro estudo.

 

6 UMA TAXONOMIA DAS DEMANDAS POR RECONHECIMENTO

A seguir, Habermas se devota à questão do fenômeno propriamente dito das demandas por reconhecimento e afirma a necessidade de evitar confundir práticas, que ele considera (Habermas, 2002, p. 238) aparentadas entre si, mas não idênticos, a saber: feminismo, multiculturalismo, nacionalismo e a luta contra a herança eurocêntrica do colonialismo. O ponto em comum esses diferentes movimentos diz respeito à existência de uma luta pelo reconhecimento de sua identidade específica por parte das mulheres, das minorias étnicas e das minorias culturais diante de uma cultura majoritária, mas as reivindicações dizem respeito não apenas às questões de ordem cultural, mas também às questões sociais e econômicas. O feminismo se dirige principalmente contra uma cultura dominante que coloca as mulheres numa posição de assimetria e que dificulta o exercício da igualdade de direitos. Além disso, contra uma cultura que não leva em consideração as experiências peculiares ao gênero feminino na luta por uma maior escolaridade, por um emprego, por um salário melhor, etc. Por isso, Habermas (2002, p. 238) entende que a política por reconhecimento no casoespecífico das mulheres tem a ver com uma luta pela interpretação dos interesses e realizações peculiares dos gêneros. O que Habermas (2002, p. 239) acredita que é diferente no caso das lutas por reconhecimento das minorias étnicas e culturais que reivindicam um reconhecimento de sua identidade coletiva e pelo fim do que consideram uma cisão social ilegítima. Além disso, existe falta de unidade entre estes diferentes tipos de movimentos. Alguns desses movimentos são endógenos, a saber, são grupos que se originaram dentro da própria sociedade e que por algum motivo podem vir a deixar de existir ou sua existência está ameaçada por algum fator. Alguns desses movimentos são de grupos que surgiram na sociedade a partir de fora, pela imigração, por exemplo, o que levanta a questão do respeito e do reconhecimento dos valores das comunidades das quais esses grupos são oriundos. O processo de integração dos imigrantes pode exigir que os imigrantes respeitem os valores das sociedades em que estão ingressando, que respeitem os princípios da constituição, mas não poderia exigir que os imigrantes abandonem completamente suas identidades existentes previamente ao ingresso na nova sociedade. A ideia é que para permanecer o imigrante precisa dominar o idioma num nível mínimo específico e a cultura da nova sociedade em que ingressou, além de respeitar os princípios constitucionais, precisa adentrar numa nova identidade nacional. E o nacionalismo é o próximo grupo que Habermas (2002, p. 239) se dedica a analisar. Os nacionalistas, que inclusive não poucas vezes acusam a imigração de ser uma ameaça à identidade nacional, baseiam-se em grande medida na noção de um passado histórico comum e numa comunidade de ascendência comum. A demanda por reconhecimento nesse caso diz respeito à manutenção de grupos étnicos homogêneos linguisticamente e com ascendência comum. Aqui também Habermas ressalta a falta de unidade nos grupos que fazem esse tipo de demandas assim como a maneira como se formaram diferentes estados na Europa ou fora dela. Alemanha e Itália são as nações mais tardias da Europa. Outros estados como França e Inglaterra teriam surgido pela via republicana após a Revolução Francesa. Outros nascem pela queda de grandes impérios como o Reino Otomano e União Soviética. Habermas (2002, pp. 255-262) volta ao tema do nacionalismo na seção V - Imigração, cidadania e identidade nacional, particularmente vai discutir a política de asilo da Alemanha na década de 1990 para criticar as suposições daqueles que se opõem a um direito de imigração mais amplo. Ele (Habermas, 2002, p. 252) critica a ideia que culturas sejam algo fixo e que precise ser preservado em sua forma original. Culturas, diz ele, “só sobrevivem se tiram da crítica e da cisão a força para uma autotransformação” (Habermas, 2002, p. 252). Ele acredita que o tradicionalismo, ou aquelesque procuram defender a permanência de culturas em sua suposta forma original de uma origem comum e de um idioma comum, tem uma autocompreensão errônea e falta a essas visões de mundo a consciência da falibilidade (Habermas, 2002, p. 252). Habermas (2002, p.240) trata ainda do eurocentrismo e do predomínio da cultura ocidental num nível supranacional, da correção política e da dificuldade de alcançar acordos mútuos entre culturas. Mas não aprofundaremos esses temas aqui.

 

7 AS ESPECIFICIDADES DO CONCEITO DE DIREITO MODERNO

Habermas (2002, p. 242) apresenta as características básicas do direito moderno, de alguma forma já desenvolvidas principalmente em sua obra Facticidade e Validade, a fim de preparar o caminho para discutir um dos temas centrais dessa conferência, a saber, a questão da neutralidade ética do estado de direito democrático. O direito moderno é formal, abstrai dos conteúdos e considera permitido tudo que não é explicitamente proibido; é individualista, situa o indivíduo como o único portador de direitos; é coercitivo, exige apenas comportamento conforme a norma, ou seja, pode exigir apenas o agir conforme o dever e não o agir por dever, na terminologia de Immanuel Kant na Fundamentação da metafísica dos costumes; é positivo, uma vez que remete às decisões de um legislador político e não a direitos naturais, pré-existentes ao ordenamento jurídico; e finalmente, é procedimental, legislado mediante o processo de tomada de decisão democrática. Essa última característica do direito moderno é algo mais controverso, uma vez que filósofos que tentaram reconstruir o direito moderno, como Hart, na obra O conceito de direito, sustentam apenas a existência de uma regra de reconhecimento como garantidora da legitimidade das decisões que criam normas ou direitos. Mas a norma de reconhecimento, ao menos em Hart, não precisa ser idêntica ao procedimento de tomada de decisão democrática. Contudo, não me dedicarei mais a esse tema aqui.

8 A SUPOSTA NEUTRALIDADE DO ESTADO DE DIREITO EXAMINADA

Chega o momento então de confrontar a questão central ao texto de Taylor, a questão relativa à neutralidade ética do estado de direito democrático. Aqui Habermas (2002, p. 243) retoma o caso da disputa canadense a respeito do Quebec. A concepção de liberalismo que Taylor defende exige que o Estado “se empenhe em favor da sobrevivência e fomento de uma determinada nação, cultura ou religião” (Habermas, 2002, p. 244). Entretanto, esse tipo de posição parece em contradição com a precedência dos direitos em relação aos bens coletivos e essa seria a característica marcante de uma teoria dos direitos baseada no conceito de direito moderno. Essa alternativa oferecida por Taylor num viés comunitarista supõe que a teoria dos direitos do liberalismo clássico precisa de uma correção, a fim de não ignorar formas culturais de vida e identidades coletivas. Habermas não ignora a necessidade dos estados de direito moderno levar em consideração às demandas por reconhecimento dos grupos que exigem respeito a sua identidade coletiva, não obstante, ele entende que o apelo a fins coletivos não deve destruir a própria estrutura da forma jurídica como tal (Habermas, 2002, p. 245). A estrutura a que se refere Habermas parece dizer respeito à precedência dos direitos individuais em relação aos fins coletivos ou supostos direitos coletivos. Razão pela qual ele agora se dedica a tentar mostrar que a presença de elementos oriundos de razões éticas, a saber, de concepções de vida boa, de visões abrangentes, não apenas não são contraditórios com a estrutura da forma jurídica moderna, mas que costumeiramente “desempenham um papel nos aconselhamentos e justificações de decisões políticas” (Habermas, 2002, p. 245). Sustenta ainda que são um componente inevitável da política numa ordem jurídica moderna e um elemento propulsor do processo de efetivação dos direitos fundamentais. Uma ordem jurídica moderna é simultaneamente um espelhamento do teor universalista dos direitos fundamentais, mas também a expressão de uma forma de vida concreta. A posição político-jurídica de Habermas se situa aqui entre o universalismo e o particularismo. Habermas recorre ao exemplo da constituição alemã e das garantias institucionais da mesma em relação à família para ilustrar seu ponto. A maneira como é concebida a família pelo ordenamento jurídico alemão, apesar da existência no mesmo ordenamento do direito ao livre exercício de crença religiosa, certos tipos de parcerias entre seres humanos recebem um status diferenciado sob a proteção da lei. O que Habermas está dizendo aqui pode ficar ainda mais claro quando se pensa na posição de Honneth a respeito de tema similar. Honneth defende que a luta por reconhecimento das especificidades dos membros homoafetivos da sociedade, por exemplo, diz respeito ao menos a uma disputa pela interpretação do princípio da igualdade legal na esfera do direito, ou seja, a igualdade legal formal concedida apenas às famílias tradicionais supõe como digna de reconhecimento legal apenas a certos tipos de parcerias entre humanos, não todas. Isso evidencia uma impregnação ética do estado de direito em favor de certos grupos religiosos, que entendem que família consiste apenas na união entre um homem e uma mulher.

Habermas, por conseguinte, entende que a teoria dos direitos não proíbe que se validade de alguma forma no âmbito da ordem estatal alguma concepção de vida boa ou ética, o que “se proíbe (...) no interior do Estado, que se privilegie uma forma de vida em detrimento de outra” (Habermas, 2002, p. 248). No caso das demandas por reconhecimento dos nacionalistas, ele (Habermas, 2002, p. 247) afirma que é preciso levar em consideração quando se altera o conjunto básico de cidadãos de uma sociedade são desenvolvidos outros discursos e são almejados outros fins.

 

9 A INUTILIDADE E INCOERÊNCIA DE UMA CATEGORIA DE DIREITOS COLETIVOS

Habermas considera que esses direitos não são apenas desnecessários, a fim de atender as demandas por reconhecimentos geralmente vinculadas a valores ou identidades culturais, são até mesmo questionáveis. Ele acredita que há um tipo de transposição do discurso de proteção das espécies ameaçadas, às quais atribuímos algum tipo de valor intrínseco na continuidade de sua existência, para o discurso a respeito da conservação das identidades coletivas. O problema é que essa transposição tem uma suposição equivocada a respeito de como se formam e se desenvolvem as identidades coletivas, sejam de grupos sociais específicos, sejam de estados nacionais ou nações. Talvez a metáfora melhor não seja a da conservação das espécies biológicas, mas da luta pela sobrevivência natural diante das pressões seletivas. O tradicionalista gostaria de impedir que o processo natural de desenvolvimento da identidade coletiva ocorresse com a criação de direitos coletivos, a fim de promover a sobrevivência independente das pressões externas da identidade. Habermas, por sua vez, entende que se modificar e se aperfeiçoar-se diante das pressões externas é algo benéfico às identidades coletivas.

Por conseguinte, se poderia dizer, como faz Cooke (p. 229), que a concepção de direito de Habermas em Facticidade e Validade é sensível ao problema do reconhecimento das diferenças específicas aos grupos e inclusive seria um sistema que teria muitas vantagens no tratamento desse tipo de questões, uma vez que reconhece que o processo de formação da identidade seja do indivíduo, dos grupos e dos estados nacionais é um processo intersubjetivo de enfrentamento com outras concepções de mundo, com a ciência, as exigências legais de respeito a outras concepções diferentes, etc. A concepção de direito de Habermas também reconhece que a impregnação ética do estado de direito democrático é parte natural do processo de desenvolvimento de uma sociedade democrática e que a questão no fundo não é se o direito deve ser impregnado eticamente, mas de que forma deve ser impregnado eticamente. Cooke (p. 275) sustenta que Habermas tem tornado no decorrer dos anos menos rígida sua distinção entre moralidade e ética, o que provavelmente teria implicações para a questão da prioridade da autonomia e para a neutralidade do estado de direito. Ele considera que os três mais importantes desenvolvimento são: a) a introdução de uma categoria de discursos éticos; b) a insistência que os discursos éticos tem uma posição importante na política; c) o reconhecimento da impregnação ética do estado constitucional. Esses três elementos ocupam um papel central na resposta de Habermas a proposta de Taylor de uma interpretação alternativa do liberalismo como condição necessária para enfrentar as recentes demandas por reconhecimento na política (Cooke, p. 275).

 

10 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como foi possível observar, Habermas defende que o surgimento daquilo que se costuma de chamar de política do reconhecimento não necessariamente exige uma reformulação do liberalismo clássico, com a criação de direitos coletivos, que supostamente protegeriam de forma mais adequada às especificidades das demandas por igualdade e à diversidade de concepções de vida boa ou identidades reinantes nas sociedades democráticas e liberais modernas. Ele entende que uma compreensão adequada do conceito de direito moderno, principalmente se percebendo que uma teoria do direito modelada com base em direitos individuais não é cega às demandas por reconhecimento das especificidades das identidades coletivas, uma vez que sejam entendidas que essas demandas podem ser interpretadas como violações dos direitos de sujeitos individuais. Além disso, Habermas compreende que a suposta neutralidade do estado de direito e sua compatibilidade com as demandas por reconhecimento precisa considerar que toda concretização dos direitos fundamentais carrega consigo a expressão de uma determinada forma de vida concreta. A questão não é no fundo se o Estado de direito é impregnado ética ou não, a questão é que tipo de discurso ético recebe uma expressão concreta com o ordenamento jurídico. Acredito que a percepção do caráter eticamente impregnado do direito carrega implicitamente intuições básicas que vão dar origem a teoria do reconhecimento de Axel Honneth, a saber, o estado de direito, que diz respeito à segunda esfera do reconhecimento do sistema teórico de Honneth, pode ser impregnados em concepções de vida boa, quando determina que tipos de parcerias são consideradas uniões protegidas legalmente e que tipos de parcerias não, pensando aqui nas demandas dos homossexuais; o estado de direito pode mediante julgamentos de crimes procurar regras comportamentos considerados adequados e que comportamentos não e assim por diante. Por fim, Habermas critica até mesmo a concepção de desenvolvimento das identidades individual, coletiva e nacional. As identidades são o resultado de um processo intersubjetivo e um processo falível e sujeito à revisão e não algo como uma espécie em extinção que precise ser preservada num laboratório ou num museu.

 

REFERÊNCIAS

BAXTER, H. Habermas. The discourse theory of law and democracy. Standford: Standford University Press, 2011.

COOKE, Maeve. Autenticity and autonomy: Taylor, Habermas and the Politics of Recognition. Political Theory, vol. 25, n. 2, 1997, pp. 255-288.

DUTRA, D. J. V. & FELDHAUS, C. Habermas e interlocuções. São Paulo: DWW, 2012.

FRASER, Nancy & HONNETH, Axel. Redistribution or Recognition? A political philosophical Exchange. London: Verso, 2003.

HABERMAS, J. Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechtes und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992.

HABERMAS, Jurgen. A luta por reconhecimento no Estado democrático de direito. In: Habermas, Jurgen. A inclusão do outro. Estudos de teoria política. Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

KANT, I. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. Stuttgard: Reclam, 2011.

TAYLOR, Charles. The Politics of Recognition. In: GUTMAN, Amy. Multiculturalism. Examining the politics of recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994.

 



[1]Professor Associado C da Universidade Estadual de Londrina. É professor permanente do Programa de Pós-graduação em filosofia - Mestrado - da Universidade Estadual de Londrina. Graduado em Filosofia - Bacharel (2002) - Licenciatura Plena (2003) - pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Filosofia - área de concentração - Ética e Filosofia Política - na Universidade Federal de Santa Catarina (2004). Especialista em Biossegurança (2004) - pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Filosofia - área de concentração - Ética e Filosofia Política - pela Universidade Federal de Santa Catarina (2009). Posdoutorado em filosofia pela Martin Luther Universität Halle Wittenberg (2015) com apoio financeiro da CAPES.