A concepção genealógica habermasiana dos direitos humanos

Charles Feldhaus[1]

Universidade Estadual de Londrina

charlesfeldhaus@yahoo.com.br

 

Minha investigação consistiu em ampliar ou corrigir a trilha aberta por Habermas rumo a uma concepção do social calcada nas relações de comunicação pela orientação mais rígida de uma teoria do conflito.  (Axel Honneth)

 

1  INTRODUÇÃO

Em O conceito de dignidade humana e a utopia realista dos direitos humanos (2012), Habermas adota uma abordagem em relação aos direitos humanos que se distancia da abordagem eminentemente normativa de obras como Faktizität und Geltung e outros estudos que aborda este tema no campo da teoria política. Ele opta por tratar dos direitos humanos de um ponto de vista genealógico, procura identificar um tipo de fio condutor na maneira como novas categorias de ou novos direitos humanos surgiram na história da humanidade. O que pode suscitar a alguns estudiosos do pensamento de Habermas a questão da compatibilidade entre a posição que o mesmo defende em obras em que trata dos direitos humanos de uma perspectiva eminentemente normativa com base em sua concepção de sociedade baseada numa concepção de dinâmica social orientada pelo paradigma discursivo, em que a distinção entre sistema e mundo vivido, democracia deliberativa, princípio da democracia, direitos fundamentais de estados nacionais ocupam um papel central e a mais recente posição baseada numa perspectiva genealógica. Em especial porque ele parece identificar um valor moral como base da própria dinâmica de surgimento dos direitos humanos, a saber, a dignidade humana. Alguém poderia sustentar que, se no fundo é o valor da dignidade humana e não a prática discursiva que determina os conteúdos dos direitos humanos, que papel em última análise teria o paradigma discursivo na explicação desta mesma dinâmica. Se o modelo discursivo não ocupasse mais nenhum papel, poderia isto ser considerado uma evidência a favor quer do reconhecimento de Habermas da falência do modelo ou ainda da adoção de um modelo alternativa, embora ainda não reconhecido. Eu acredito que este não é caso. Habermas nem reconheceu a falência do modelo, nem adotou um modelo alternativo de teoria crítica. Se bem que defenderei que o contato com um novo modelo de teoria crítica, em particular o modelo da terceira geração da teoria crítica pode ser uma explicação plausível para esta aparente guinada de Habermas na direção de uma explicação genealógica dos direitos humanos. O contato com o paradigma do reconhecimento de Axel Honneth e da concepção genealógica de Hans Joas podem ter contribuído em alguma medida para uma guinada, se assim podemos chamar, do tratamento de Habermas dos direitos humanos. Neste estudo tratarei mais especificamente da relação entre Habermas e Honneth, mas num estudo futuro não está excluída a possibilidade de uma comparação entre as concepções de direitos humanos de Hans Joas, uma abordagem eminentemente genealógica, e a abordagem normativa e genealógica de Habermas.

Ao adentrar numa perspectiva genealógica a respeito dos direitos humanos, Habermas defende que “as experiências da dignidade violada promovem uma dinâmica conflituosa de indignação que dá um impulso renovado” à instituição global dos direitos humanos (HABERMAS, 2012, p. 5). Desta maneira se poderia dizer que a hipótese geral de O conceito de dignidade humana e a utopia realista dos direitos humanos de Habermas é que desde o começo existia um vínculo conceitual implícito entre direitos humanos e dignidade humana (HABERMAS, 2012, p. 10). Contudo, surge então a questão que o filósofo e sociólogo alemão se dedica a procurar entender porque na esfera jurídica o discurso a respeito dos direitos humanos precedeu o discurso a respeito da dignidade humana (HABERMAS, 2012, p. 9). Outra hipótese central é que a dignidade humana funciona como um tipo de fonte moral a partir da qual os direitos humanos extraem o seu conteúdo (HABERMAS, 2012, p. 11). O conteúdo dos direitos humanos são, por sua vez, respostas às experiências de desrespeito à dignidade humana, que se manifestam como algum tipo de opressão, humilhação ou arbitrariedade (HABERMAS, 2012, p. 10). Estas experiências de desrespeito ou violação da dignidade humana tem no desenvolvimento das diferentes gerações de direitos humanos a função de descoberta. A ideia básica aqui é que em cada momento são atualizadas novas dimensões de sentido da dignidade humana (HABERMAS, 2012, p. 14). Ele cita inclusive diferentes casos de violações da dignidade humana, a saber: a marginalização das classes sociais empobrecidas; o tratamento desigual entre homens e mulheres no mercado de trabalho; a discriminação dos estrangeiros, das minorias culturais, das minorias linguísticas, das minorias religiosas ou raciais (HABERMAS, 2012, p 14). Com base nestes diferentes tipos de violações da dignidade humana teriam surgido as distintas gerações de direitos humanos que conhecemos atualmente: os direitos econômicos, os direitos culturais, os direitos sociais, os direitos ecológicos e genéticos (HABERMAS, 2012, p. 15). Habermas, por assim dizer, emprega diversas metáforas para se referir a este papel da dignidade humana na gênese de novos direitos humanos. A dignidade humana é a fonte (2012, p. 11), é o catalisador (2012, p. 12), é a cortina de fumaça (2012, p. 13), é o sismógrafo (2012, p. 17), é a porta (2012, p. 17), é a dobradiça conceitual (2012, p. 17), é a promessa moral (2012, p. 18) que conecta a moral igualitária e a moral do respeito igual ao direito e ao conteúdo dos direitos humanos em particular e “que pode ser traduzida no medium do direito coercitivo” (HABERMAS, 2012, p. 18-9).

É importante destacar que com esta guinada genealógica a respeito dos direitos humanos Habermas (2012, p. 19, nota) não acredita que seja necessário qualquer revisão conceitual na introdução originária dos direitos humanos em Faktizität und Geltung. Ele acrescenta ainda que naquele tempo não havia levado em consideração dois pontos: a. Não tinha observado que “as experiências cumulativas de dignidade violada formam um fonte de motivação moral” às práticas constitucionais de institucionalização de novos direitos em um ordenamento jurídico, em particular de novas categorias de direitos humanos; b. Não tinha observado que “a noção geradora de status social do reconhecimento social da dignidade do outro” consiste numa ponte conceitual da moral do respeito igual à forma jurídica; ele parece acreditar ainda que a inclusão destes novos elementos não parece afetar a sua interpretação deflacionada do princípio do discurso. Acredito que Habermas está respondendo aqui às críticas de Axel Honneth em obras como Crítica ao poder. Uma vez que a dimensão do conflito e da luta social parece substituir o papel do consenso no modelo genealógico dos direitos humanos uma vez que “a reivindicação e a imposição dos direitos humanos raramente transcorre de modo pacífico” (HABERMAS, 2012, p. 28).

 

2 AS CRÍTICAS DE HONNETH À CONCEPÇÃO DE ESFERA PÚBLICA HABERMASIANA

Oliver Voirol, em A esfera pública e as lutas por reconhecimento: De Habermas a Honneth (2008), identifica quais são as principais críticas de Axel Honneth em obras como Crítica do poder ao modelo de esfera pública habermasiano. Entre as principais críticas de Honneth à concepção de Habermas encontram: a. A concepção de mundo da vida habermasiana opera sem nenhum tipo de relação de poder; é importante lembrar aqui que Honneth reabilita uma certa concepção de poder oriunda do pensamento de Michel Foucault; b. Na concepção habermasiana a noção de lutas sociais parece não ocupar um papel muito claro, se algum papel ocupa; aqui acredito que o problema seria que uma concepção de esfera pública e poder focada apenas no consenso, que ignorasse o dissenso ou desacordo frequente nos debates a respeito da gênese de categorias de direitos novas, no que diz respeito aos direitos humanos, e em debates a respeito de questões de justiça básica, seria uma descrição inadequada da própria dinâmica social. Além disso, a concepção discursiva habermasiana reconstrói o processo de desenvolvimento da dinâmica social orientando por uma pragmática universal que se concentram em elementos comunicativos, que do ponto de vista de Honneth seria uma abordagem muito abstrata, que deixaria de lados alguns elementos importantes da dinâmica social, em outras palavras, o modelo baseado na pragmática universal seria muito abstrato. O modelo baseado na pragmática universal estaria orientado apenas pelo emprego adequado das competências linguísticas no exercício de uma tomada de decisão política na esfera pública informal, buscando evitar o empregos não legítimos de participação na esfera pública como uso da coerção neste tipo de interação, mas estaria ignorando, por exemplo, que o discurso na esfera pública possui uma dimensão moral e não se orienta apenas a uma busca da autonomia mas também de uma relação positiva dos sujeitos da interação para consigo mesmos, por uma luta por reconhecimento, para empregar o termo central do paradigma de Honneth. Os sujeitos da interação na esfera pública não estariam apenas levantando expectativas de justificação de suas pretensões de validade criticáveis, mas também estariam esperando de alguma forma que sua pessoa fosse considerada de maneira positiva no espaço público. Com isso, o que Honneth está sugerindo é uma definição alargada das relações intersubjetivas e das interações sociais no âmbito da esfera pública. As interações na esfera pública não diriam respeito apenas a questões relativas ao emprego adequado da linguagem, mas também de aspectos relacionadas com experiências de falta de reconhecimento. Deste modo, se poderia dizer com Voirol (2008, p. 46), que “as condições comunicativas do entendimento sem coerção [...] [da] pragmática universal não esgotam o conjunto de condições da interação social”. O modelo da dinâmica da esfera pública centrado nas competências linguísticas precisa ser complementado por um modelo centrado na integridade de si na visão de Honneth. Eu arriscaria a dizer que Habermas parece concordar com esta necessidade de complementação, uma vez que em O conceito de dignidade humana e a utopia realista dos direitos humanos ele inclui alguns elementos em sua maneira de tratar do tema dos direitos humanos que são análogos ou similares a maneira como uma concepção centrada no paradigma do reconhecimento faz ao tratar da dinâmica social e das lutas por direitos. Apenas para fins de comparação, em Faktizität und Geltung, Habermas trata das demandas feministas por igualdade, um tema também tratado pelo modelo do reconhecimento e poderíamos empregar este caso para comparação.

No capítulo IX de Faktizitat und Geltung, Paradigmas do direito, Habermas procura mostrar como três modelos ou paradigmas distintos do direito tratam com a questão da dialética entre igualdade de direito e igualdade de fato presente nas demandas feministas. Habermas sustenta que o primeiro modelo, o modelo liberal de direito, costuma ignorar completamente as demandas específicas ao gênero feminino, uma vez que compreende que, quando ocorre um tratamento igual de todos perante a lei, a igualdade teria sido respeitada. O problema do primeiro modelo é que ignora as diferenças específicas ao gênero completamente. Ele ignora que um ordenamento jurídico pode ser discriminatório em relação a grupos específicos, mesmo quando trata a todos de forma igual perante a lei. Tratar aqueles que são diferentes de forma igual, já dizia Aristóteles, obviamente num outro contexto, é tratar as pessoas de forma não igual, por isso, um tipo de injustiça. O segundo modelo ou paradigma do direito é o do Estado de bem-estar social. Diferentemente do modelo liberal, este segundo modelo reconhece que podem existir diferenças relevantes entre indivíduos ou grupos que podem exigir um tratamento diferenciado do ordenamento jurídico. O problema com este segundo modelo jurídico tem a ver com a solução que ele oferece ao problema. Este modelo adota uma atitude paternalista em relação aos membros discriminados ou marginalizados da sociedade. Na crítica a este segundo modelo fica mais evidente o foco do terceiro paradigma discursivo nas competências linguísticas. Habermas entende que o modelo discursivo consegue lidar de forma mais adequada do que os dois primeiros modelos com as demandas feministas porque concede um direito à voz a todos os concernidos pela norma ou regra controversa. O modelo discursivo evita o erro do modelo liberal, ao também reconhecer a existência de demandas legítimas de grupos, neste caso das feministas, mas também evita o erro do modelo do bem-estar social, ao evitar monopolizar as decisões a respeito de como resolver o tratamento não igualitário das mulheres na mão de homens e mulheres de classes privilegiadas. As principais afetadas pelas regulações específicas às mulheres não são nem os homens e nem as mulheres de uma elite política, mas as mulheres de classes sociais menos abastadas, muitas vezes com filhos e solteiras, sem contar que outros tipos de discriminações podem se sobrepor a estas como fazer parte de um grupo étnico alvo de preconceito social. Em síntese, os dois primeiros modelos comentem o mesmo erro: “oprime as vozes daquelas que são as únicas capazes de enunciar as razões relevantes para a igualdade ou desigualdade de tratamento” (HABERMAS, 1997, Vol. II, p. 161). No paradigma do reconhecimento de Axel Honneth, todas as demandas sociais podem ser incluídas como demandas por reconhecimento em três diferentes esferas do reconhecimento. A primeira esfera do reconhecimento se orienta pelo princípio do cuidado, a esfera do amor. A segunda esfera do reconhecimento se orienta pelo princípio da igualdade, a esfera do direito. A terceira esfera do reconhecimento se orienta às vezes pelo princípio do mérito, mas nem sempre, pois também é chamada às vezes de solidariedade, é a esfera da realização. Para fins de comparação, a segunda esfera é mais promissora, se bem que seja necessário ressaltar que Honneth entende que as demandas sociais podem dizer respeito a mais de uma esfera. Se Honneth hipoteticamente tratasse do tema que Habermas trata, da falência dos paradigmas jurídicos, ele concordaria com Habermas que o paradigma liberal é cego às desigualdades, uma vez que ignora desigualdades fáticas de tratamento tal como o caso das demandas feministas. Talvez o motivo não fosse exatamente o mesmo para este diagnóstico, uma vez que acredito que Honneth empregaria aqui a ideia de que o sistema jurídico é carregado moralmente e que, por isso, a suposta neutralidade do paradigma liberal não é neutra, mas uma posição moral camuflada de neutra. Confesso não ter certeza do que Habermas diria a respeito deste ponto agora. Mas avançando na comparação e contraste entre modelos. Habermas critica ambos os modelos por questões de participação na interação linguística na esfera pública. Em Consciência moral e agir comunicativo, Habermas desenvolve as suposições do emprego da linguagem orientada ao entendimento e sustenta na regra (3.3), por exemplo, que não é permitido impedir algum falante por qualquer tipo de coerção interna ou externa ao discurso de participar da interação linguística (HABERMAS, 1989, p. 112). O erro do paradigma de bem-estar social consiste como já dito, é impedir a todas as mulheres de participação da gênese de direitos relativos às diferentes específicas de seu gênero no mercado de trabalho e na sociedade em geral. Habermas obviamente não exclui explicitamente ao menos a natureza litigiosa da participação das mulheres na esfera pública, mas ao menos neste momento não incluí este aspecto no modelo discursivo do direito. Honneth é mais explícito quanto a este ponto, uma vez que entende desde o início que a participação dos grupos sociais excluídos na esfera pública é de natureza conflituosa. O motor da dinâmica social é o conflito a respeito da interpretação dos princípios de cada esfera de reconhecimento. No caso aqui discutido, a interpretação do princípio da igualdade é o motivo do conflito. São as experiências de desrespeito ou falta de reconhecimento que surgem como a motivação moral das demandas por igualdade social. As experiências de violência psíquica, de exclusão da coletividade e de humilhação pública que motivam o surgimento dos movimentos sociais a favor do direito a um tratamento igualitário perante a lei das mulheres. O problema da abordagem focada apenas nas habilidades linguísticas dos falantes é que fracassa em “tentar dar conta da riqueza de experiências sociais da vida cotidiana” assim como não chega a dar conta da dinâmica das lutas sociais (VOIROL, 2008, p. 47). Além disso, a concepção de Honneth dá a entender que a expressão pública dos sentimentos de injustiça pode se encontrar abafada por algum tipo de forma de repressão simbólica e por causa disso o modelo de esfera pública habermasiana não consegue dar conta de “experiências não organizadas linguísticamente em um sistema de convicções morais explícitas” (VOIROL, 2008, p. 49). A concepção genealógica dos direitos humanos, que Habermas desenvolve em O conceito de dignidade humana e a utopia realista dos direitos humanos, situa estas experiências no centro do processo de desenvolvimento das diferentes categorias dos direitos humanos.

 

3 ELEMENTOS CENTRAIS DA CONCEPÇÃO GENEALÓGICA HABERMASIANA DE DIREITOS HUMANOS

Ao desenvolver sua concepção genealógica dos direitos humanos, Habermas sustenta que existe uma vinculação forte entre os direitos humanos e a noção moral de dignidade humana. Habermas (2012, p. 10) entende que desde o início, mesmo que de forma ainda não explícita, esta vinculação existe. Diz ainda que os direitos humanos “sempre surgiram primeiro a partir da oposição à arbitrariedade, opressão e humilhação” que são compreendidas como diferentes formas de violação da dignidade humana. Eu arriscaria dizer como hipótese interpretativa, obviamente falível, que Habermas atribui ao conceito de dignidade humana função similar à noção de reconhecimento no paradigma de Honneth. Diferentes experiências de injustiça sociais contidas nas diferentes gerações de direitos humanos (direitos liberais de liberdade, direitos de participação democrática, direitos sociais e econômicos, direitos culturais, direitos a um meio ambiente saudável, direitos a um patrimônio genético não modificado) possuem uma mesma base moral comum, o valor da dignidade da pessoa humana. Estas diferentes categorias de direitos resgatam uma promessa moral de respeito à dignidade humana (HABERMAS, 2012, p. 15). Nesse novo modelo genealógico, ocupam um papel importante as experiências de sofrimento, exclusão e discriminação (HABERMAS, 2012, p. 16). Habermas sustenta inclusive que a noção de dignidade humana funciona como um sismógrafo (o texto é carregado de metáforas) que “mostra o que é constitutivo para uma ordem jurídica democrática” (HABERMAS, 2012, p. 17). Mais adiante afirma ainda que o mesmo conceito é como uma porta (mais uma metáfora) mediante a qual o conteúdo de uma moral igualitária universalista é importado da moral ao direito (HABERMAS, 2012, p. 17). Outra metáfora ainda na mesma página surge. A dignidade humana funciona como um tipo de dobradiça conceitual que conecta uma moral do respeito universal com o direito positivo (HABERMAS, 2012, p. 17). Habermas procura ainda mostrar no texto a razão pela qual a vinculação explícita entre dignidade humana e direitos humanos teria ocorrido apenas de forma tardia. Ele mostra como um conceito que se referiu originalmente em certo momento apenas ao status privilegiado de um grupo dentro da sociedade se torna um status privilegiado a todos os seres humanos. Um conceito que originalmente tinha mais a ver com honra social, sociedades tradicionais e sociedades hierárquicas termina se referindo a uma dignidade atribuída a todos os membros da sociedade. O surgimento do direito moderno teve papel preponderante nesta passagem de um conceito particular para um conceito universal de dignitas. Por fim, Habermas reconhece a dimensão conflituosa e baseada em experiências de violação da dignidade humana, o que se enquadra perfeitamente nos problemas apontados por Honneth em Crítica ao poder. Os direitos humanos são o resultado de lutas por reconhecimento social e lutas revolucionárias e não apenas de consensos. Deste modo, acredito que não se trata de um modelo contraditório ao modelo normativo de direitos humanos, mas de um modelo complementar. O que Habermas diz mais próximo ao fim do seu texto sugere que ele reconhece que está respondendo às críticas de Honneth, uma vez que defende que a origem conflituosa dos direitos humanos “explica apenas em parte” (HABERMAS, 2012, p. 29) o caráter polêmico dos direitos humanos. É preciso reunir a origem conflituosa, baseadas nas experiências de sofrimento, humilhação, falta de reconhecimento, e a carga moral explosiva do conceito de dignidade humana. Deixarei de lado por ora ao menos se a concepção de Honneth não contém esta dimensão moral, mas acredito que Habermas reconhece mesmo que implicitamente ao tratar dos direitos humanos de uma perspectiva genealógica, que o modelo normativo precisava ser complementado.

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como foi possível observar, Habermas desenvolve uma concepção genealógica dos direitos humanos mais recentemente, o que para alguns pode parecer com algum tipo de guinada radical no pensamento do filósofo e sociológico alemão, contudo, acredito que se trata muito mais de uma complementação do modelo desenvolvido em obras anteriores do que exatamente algo novo. Honneth havia sustentado que antes da década de 1970 Habermas possuía um modelo de esfera pública mais inspirado em Hegel do que em Kant e que tal modelo seria melhor para tratar dos problemas aqui discutidos como, por exemplo, de um mundo da vida carente de conflitos e de um papel maior para as lutas sociais no modelo. Não tenho como responder a esta sugestão de Honneth aqui e fazer isso exigiria um estudo mais aprofundado das obras iniciais de Habermas do que tenho feito recentemente, mas talvez se possa pensar numa continuidade, no sentido de uma retomada deste modelo anterior no texto discutido aqui e não numa ruptura.

REFERÊNCIAS

HABERMAS, Jurgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução Guido A de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

HABERMAS, Jurgen. Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Berlin: Suhrkamp, 1992.

HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia. Entre facticidade e validade (Vol. I e II). Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1997.

HABERMAS, Jurgen. Zur Verfassung Europas. Ein Essay. Berlin: Suhrkamp, 2011.

HABERMAS, Jurgen. O conceito de dignidade humana e a utopia realista dos direitos humanos. In: Habermas, J. Sobre a constituição da Europa. São Paulo: Editora Unesp, 2012.

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2003.

HONNETH, Axel. Critica del poder. Fases en la reflexión de un Teoría Crítica de la sociedad. Tradução ao espanhol de Germán Cano. Madrid: Machado Libros, 2009.

HONNETH, Axel. Reconhecimento entre estados. Sobre a base moral das relações internacionais. Civitas, v. 10, n. 1, Porto Alegre, 2010, pp. 134-152.

HONNETH, Axel. Direito da liberdade. Tradução de Saulo Krieger. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

VOIROL, Olivier. A esfera pública e as lutas por reconhecimento: de Habermas a Honneth. Cadernos de Filosofia Alemã, n. 11, Jan-jun 2008, p. 33-56.

 



[1]Professor Associado C da Universidade Estadual de Londrina. É professor permanente do Programa de Pós-graduação em filosofia - Mestrado - da Universidade Estadual de Londrina. Graduado em Filosofia - Bacharel (2002) - Licenciatura Plena (2003) - pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Filosofia - área de concentração - Ética e Filosofia Política - na Universidade Federal de Santa Catarina (2004). Especialista em Biossegurança (2004) - pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Filosofia - área de concentração - Ética e Filosofia Política - pela Universidade Federal de Santa Catarina (2009). Posdoutorado em filosofia pela Martin Luther Universität Halle Wittenberg (2015) com apoio financeiro da CAPES.