A IDEIA DE RAZÃO PÚBLICA SEGUNDO JOHN RAWLS

 

Ana Flávia Rossi[1]

Universidade Estadual de Londrina

anaflaviarossi2@gmail.com

Charles Feldhaus[2]

Universidade Estadual de Londrina

scharlesfeldhaus@yahoo.com.br

1  INTRODUÇÃO

A origem da ideia de razão pública está intimamente ligada à concepção de sociedade democrática constitucional bem-ordenada. Isso porque, de acordo com John Rawls, é da cultura de livres instituições, característica básica dos regimes democráticos, que resulta um pluralismo de visões abrangentes e conflitantes que dificulta o consenso mútuo entre os cidadãos. No intuito de fazê-los honrar a estrutura dessa sociedade, consentindo com as leis nela promulgadas, é que surge a razão pública tal como pensada por Rawls.

Nesse sentido, o presente texto busca explorar, inicialmente, o conflito entre doutrinas abrangentes razoáveis e conflitantes que levou ao surgimento da ideia de razão pública, da qual também serão discutidos o conceito, a forma e o conteúdo, o que será feito a partir de uma reconstrução do texto A Ideia de Razão Pública Revista, publicado como apêndice da obra O Direito dos Povos e da edição expandida de Liberalismo político, sendo abordados também os requisitos por que uma doutrina é considerada razoável e a questão da substituição das doutrinas abrangentes de verdade e direito pela ideia do politicamente razoável na razão pública.

Na sequência, serão tratados individualmente os cinco aspectos diferentes atribuídos por Rawls à razão pública, reconstruindo o que Rawls chamou de critério da reciprocidade e como este serve de base para a ideia de legitimidade política. Também serão abordados conceitos como fórum político público, além de devidamente analisada a separação feita pelo autor entre ideia e ideal de razão pública e discutidos os três sentidos que delimitam o porquê a razão é considerada pública, contrapondo-a as razões não públicas presentes no que o autor denominou cultura de fundo, a fim de responder, por fim, de que maneira é possível fazer com que os cidadãos respeitem a estrutura do regime democrático constitucional e aquiesçam às leis e aos estatutos nele decretados quando questões de justiça básica e elementos constitucionais essenciais estejam em jogo.

 

2 DA IDEIA DE RAZÃO PÚBLICA SEGUNDO JOHN RAWLS

2.1 ORIGEM, CONCEITO E CONTEÚDO DE IDEIA DE RAZÃO PÚBLICA

Uma sociedade democrática constitucional bem-ordenada, assim como é chamada por Rawls, abarca necessariamente uma pluralidade de visões abrangentes de todos os tipos, que, apesar de consideradas razoáveis, podem vir a conflitar entre si. Assim é que a democracia tem como uma de suas características mais elementares o que o autor chamou de pluralismo razoável, traduzido nas numerosas doutrinas abrangentes, sejam elas de cunho religioso, filosófico ou moral, razoáveis e conflitantes entre si, que surgem normalmente a partir da cultura democrática das livres instituições.

Nesse sentido, a ideia, o conteúdo e a forma da razão pública fazem parte da própria ideia de democracia, vez que é diante desse conflito de doutrinas que os cidadãos, ao perceberem a impossibilidade de compreensão mútua e, por consequência, de se chegar a um acordo, precisam ponderar acerca de quais razões podem fornecer uns aos outros, de maneira razoável, quando estão sendo discutidas questões políticas fundamentais[3] (RAWLS, 2004, p. 174).

É na razão pública, então, que Rawls propõe serem as doutrinas abrangentes de verdade ou direito substituídas por uma ideia do politicamente razoável dirigido aos cidadãos como cidadãos, passo este que, segundo o autor, é imprescindível para que seja estabelecida uma base de raciocínio político passível de compartilhamento entre todos os cidadãos, na condição de livre e iguais entre si (RAWLS, 2004, p. 224).

O politicamente razoável, então, ao contrário do que ocorre com as doutrinas abrangentes razoáveis e conflitantes, pode ser compartilhado por todos os cidadãos, aqui considerados pessoas razoáveis, livres e iguais[4] , munidos dos poderes morais referentes à capacidade de uma concepção de justiça e à capacidade de uma concepção do bem (RAWLS, 2005), de modo que representa uma solução do autor à impossibilidade de consenso mútuo até então verificada.

É necessário entender que uma sociedade democrática constitucional abrange incontáveis e diferentes doutrinas, todas em atividade e dotadas de certa influência, e que tais doutrinas podem divergir quando de uma para outra sociedade (RAWLS, 2004, p. 174). Todavia, não são todas as que se consideram razoáveis – para isso, a doutrina precisa aceitar um regime democrático constitucional e, por conseguinte, a ideia de lei legítima que o acompanha.

Assim, se a doutrina abrangente rejeita a concepção de sociedade democrática constitucional, resta também preterida a própria ideia de razão pública nela inclusa. Segundo o autor, são criticadas, portanto, apenas as doutrinas incompatíveis com os componentes essenciais do regime político-democrático acima listados e, consequentemente, da razão pública em si.

Define-se a ideia de razão pública, então, como a razão de cidadãos iguais que integram um corpo coletivo e, mediante decisões, exercem poder político uns sobre os outros (RAWLS, 2005, p. 213), evidenciando os valores morais e políticos que devem estabelecer a relação entre o governo democrático constitucional e seus cidadãos e destes entre si, auxiliando-os na deliberação a respeito de quais razões devem ofertar uns aos outros, a fim de buscar um entendimento comum, quando estão em jogo perguntas políticas consideradas fundamentais. Nesse tocante, explica Denis Coitinho Silveira:

 

A razão pública não opera com as ideias de verdade ou correção que seriam inferidas de doutrinas abrangentes, mas, antes, faz uso da ideia do politicamente razoável que afirma valores morais-políticos normativos a partir do critério de reciprocidade, a saber: dever de civilidade, que implica a defesa da virtude de amizade cívica e de um ideal de cidadania democrática, que toma por base a legitimidade da lei, o que significa a defesa dos princípios de tolerância e liberdade de consciência, assegurando os direitos, liberdades e oportunidades básicas dos cidadãos na estrutura básica da sociedade (SILVEIRA, 2009, p. 13).

 

Aos valores morais políticos normativos citados por Rawls, como o dever de civilidade mútua (duty of civility), a amizade cívica (civic friendship) e o ideal de cidadania democrática (democratic citizenship), é conferida uma espécie de valor inerente, isto é, não constituem apenas obrigações jurídicas dos cidadãos, mas sim deveres cujo caráter é absoluto e intrinsecamente moral, como, por exemplo, os deveres políticos, e, portanto, possuem significação própria, independentemente de suas relações com outras coisas, de modo que as liberdades e direitos básicos sejam defendidos a partir dos princípios da tolerância e da liberdade de consciência.

Assim é que a ideia de razão pública esclarece que, a partir de um consenso sobreposto (overlapping consensus) entre diversas doutrinas abrangentes razoáveis, são endossados, por todos os cidadãos, valores políticos a partir dos quais se afirmam as questões de justiça política fundamental – que mais adiante serão divididas em elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica (basic justice), de modo que sejam estabelecidas condições políticas mínimas e se priorize a justiça, visando sempre ao bem comum (SILVEIRA, 2009, p. 2).

Outrossim, as liberdades religiosas e artísticas, o ideal de equidade, solidariedade e bem comum são expressos em termos de valores políticos e, assim, constituem princípios substantivos de justiça, que, por sua vez, integram a família de concepções políticas de justiça que compõe o conteúdo da razão pública (SILVEIRA, 2009, p. 12).

Pode-se dizer, dessa forma, que ao deliberar acerca de uma concepção política razoável, utilizando-se para isso de valores políticos compartilhados pelos demais cidadãos que são livres e seus iguais, o cidadão fará uso da ideia de razão pública, satisfazendo, assim, o mencionado critério de reciprocidade[5]. Nesse sentido, a ideia de razão pública faz referência ao “tipo de razões em que os cidadãos baseiam seus argumentos políticos no processo de justificação de normas que, referidas a elementos constitucionais essenciais e a questões de justiça básica, invocam o emprego efetivo da coerção pública pelo poder político” (ARAÚJO, 2011, p. 4-5).

As condições históricas e sociais da sociedade podem, contudo, provocar alterações no conteúdo da razão pública, vez que esta deve sempre abarcar e discutir temas que, naquele determinado tempo e espaço sociais, tenham sido reivindicadas, de modo a conferir não só a estabilidade social, como, também, a segurança do estabelecimento dos princípios de justiça (BONFIM;e PEDRON, 2017, p.10).

 

3 ASPECTOS DA IDEIA DE RAZÃO PÚBLICA

A estrutura da ideia de razão pública comporta cinco aspectos bem definidos, que, caso ignorados, fazem com que sua aplicação pareça inverossímil. Os aspectos listados por Rawls são: i) as questões políticas fundamentais a que a razão pública se aplica; ii) as pessoas a quem a razão pública se aplica, mais especificamente os funcionários do governo e os candidatos a cargos públicos; iii) o conteúdo da razão pública, dado por uma família de concepções políticas razoáveis de justiça; iv) a aplicação dessas concepções em discussões de normas coercitivas a serem decretadas na forma de lei legítima para um povo democrático; e v) a verificação pelos cidadãos de que os princípios derivam das suas concepções de justiça que satisfazem o critério de reciprocidade (RAWLS, 2004, p. 175).

A respeito do primeiro aspecto, isto é, das questões políticas fundamentais às quais a ideia de razão pública se aplica, Rawls discorre que estas se dividem em elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica. Estas últimas compreendem não só questões em matéria de justiça social e econômica, como, também, matérias não disciplinadas em uma constituição, enquanto os primeiros abrangem direitos e liberdades de cunho político, que podem estar inclusos em uma constituição (BONFIM e PEDRON, 2017, p. 11). A razão pública estaria limitada, portanto, por aquilo que, depois de obtido mediante consenso mútuo, se constata nos princípios constitucionais.

Não estão abarcadas, porém, todas as discussões políticas de questões fundamentais, e sim apenas aquelas a que chamou fórum político público (RAWLS, 2004, p. 176). Tal fórum restou dividido em três partes, em razão de a ideia de razão pública não ser aplicada da mesma maneira aos três casos discutidos, nas quais será tratado o segundo aspecto da ideia de razão pública – as pessoas a quem esta é aplicada, em um âmbito público, incluindo funcionários do governo (poderes legislativo, executivo e judiciário) e candidatos a cargos públicos.

A primeira parte diz respeito ao discurso dos juízes em suas discussões e, especialmente, dos juízes de um tribunal supremo, aos quais a ideia de razão pública é especialmente aplicada, de modo mais estrito (RAWLS, 2005, p. 216). Isso porque no poder judiciário, em particular o Supremo Tribunal, os magistrados precisam sempre fundamentar suas decisões de acordo com a constituição – circunscrevendo as sentenças, portanto, a questões constitucionais essenciais – com os estatutos relevantes e com os precedentes judiciais, estão sempre envolvidas também as questões de justiça básica, de modo a exemplificar perfeitamente a aplicação da ideia de razão pública.

Nesse sentido, Vinícius Silva Bonfim e Flávio Quinaud Pedron sustentam:

 

[…] ao Judiciário caberia, sobretudo, garantir o devido processo constitucional. Isso significa que, entre os processos de efetivação de direitos, em um ordenamento jurídico composto por normas – regras e princípios –, a atividade jurisdicional não pode ser discricionária; quer dizer, não podem as convicções pessoais do decisor, por mais que sejam determinadas por um horizonte histórico de sentidos, definir subjetivamente o conteúdo da decisão. É preciso que se atente a todo um contexto de aplicação e de justificação das normas no ordenamento jurídico. Nesse sentido, cada vez mais a doutrina tem encontrado amparo em princípios constitucionais que regem a atividade jurisdicional, haja vista o dever da fundamentação das decisões, hoje, ser compreendido como norma constitucional2 primeiro, por expressa disposição; segundo, por ser um desenvolvimento do princípio do contraditório – que desde muito sob a lógica da cooperação, mostra-se como verdadeiro dever de participação e influência sobre a decisão –, além de estar conectado com os princípios da eficiência, da não surpresa, do duplo grau de jurisdição e com os princípios institutivos do processo, entre tantos outros (BONFIM; PEDRON, 2017, p. 2).

 

O papel da deliberação é fundamental, portanto, quando se trata das decisões de um tribunal, vez que estas tem de ser tomadas a partir da reflexão sobre valores políticos de justiça e razão pública (AFONSO DA SILVA, 2009, p. 209). Os magistrados não podem levar em consideração ideologias pessoais, religiosidades, ou ainda, suas próprias moralidades na justificação e fundamentação das sentenças, razão por que o tribunal é, por excelência, o local da deliberação racional e da aplicação da ideia de razão pública.

A segunda parte faz referência aos discursos dos funcionários do governo, em especial aqueles que ocupam funções executivas, como, no caso do Brasil, o presidente da república, e também os que são membros do poder legislativo. Nesse tocante, em que pese a razão pública não opere no sentido de determinar ou solucionar questões que aludam especificamente a leis ou políticas públicas, é ela quem estipula as razões que devem ser utilizadas ao serem tomadas decisões no âmbito das instituições públicas (BONFIM e PEDRON, 2017, p. 17).

A deliberação e a exigência de que sejam apresentadas as razões que fundamentaram tais decisões é o atestado de que as estruturas das instituições estão sujeitas à inspeção e a verificação de que os valores políticos que as norteiam não tenham sido distorcidos. A justificação pública tem por objetivo, portanto, delimitar a ideia de justificar apropriadamente as concepções políticas de justiça em uma sociedade democrática constitucional marcada pela pluralidade de doutrinas abrangentes razoáveis. Seu endereçamento é, sempre, “aos outros que discordam de nós e, consequentemente, deve sempre proceder para algum consenso, isto é, para premissas que nós e os outros publicamente reconhecemos como verdadeiras” (SILVEIRA, 2007, p. 2). Nesse sentido:

 

A exigência de dar razões na justificação pública coloca frontalmente a pessoa política diante da construção e da concepção de um regime democrático e do sentido político de justiça, que prevê a participação política do cidadão, o diálogo e uma interação pública na construção dos sentidos normativos (BONFIM e PEDRON, 2017, p. 9).

 

A terceira parte, por fim, alude ao discurso dos candidatos a cargos públicos e de seus chefes de campanha, mormente no discurso público, nas plataformas de campanha e declarações políticas (RAWLS, 2004, p. 176). Ainda, é de se ressaltar que, nessa subdivisão, o autor traça um limite entre a) candidatos, b) administradores de campanha e c) cidadãos politicamente engajados em geral, estabelecendo que os dois primeiros devem ser considerados responsáveis pelo que é dito ou feito em nome dos candidatos, enquanto estes últimos não.

No que se refere ao terceiro, quarto e quinto aspectos da ideia de razão pública, Rawls especifica duas características especiais da relação política fundamental de cidadania presente nas sociedades democráticas constitucionais, quais sejam: a relação que os cidadãos possuem com a estrutura básica da sociedade e a relação de cidadãos livres e iguais. Na visão do autor, tais características seriam responsáveis por dar início ao questionamento a respeito de como cidadãos assim relacionados poderiam honrar a estrutura da democracia constitucional em que vivem, aquiescendo aos estatutos e leis nela promulgados, quando questões políticas fundamentais estão em pauta?

É de se ressaltar que o pluralismo razoável de doutrinas abrangentes acaba por fomentar ainda mais essa discussão, uma vez que, como já explicitado, as diferenças entre os cidadãos podem fazer com que suas visões sejam conflitantes e, por conseguinte, impedir que se reconciliem e cheguem a um consenso. No intuito de responder à questão, Rawls entende que os cidadãos, compartilhando igualmente o poder político último que lhes é conferido, devam delimitar mediante quais princípios ou, mais precisamente, por quais ideias deverão exercer tal poder a fim de que as decisões políticas estejam justificadas de forma minimamente razoável para todos (RAWLS, 2004, p. 179).

Nesse sentido, as razões serão consideradas razoáveis quando ofertadas pelos cidadãos que, inseridos em um sistema de cooperação social durante algumas gerações, e enxergando a todos como livres e seus iguais, ofertam uns aos outros termos de cooperação justos, de acordo com aquilo que entendem a concepção mais razoável de justiça. Ademais, isso também é verificado se, à custa de seus interesses particulares, os cidadãos acordam agir na medida dos termos escolhidos.

O conteúdo da razão pública, então, conforme preconiza o terceiro aspecto, é dado por uma família de concepções políticas de justiça, na qual são inclusas, também, visões religiosas, como as já citadas ideias de bem comum e da solidariedade, desde que estas estejam traduzidas em termos de valores políticos. Sobre o tema, Rawls discorre:

 

[…] doutrinas abrangentes razoáveis, religiosas ou não-religiosas, podem ser introduzidas na discussão política pública, contanto que sejam apresentadas, no devido tempo, razões políticas adequadas – e não razões dadas unicamente por doutrinas abrangentes – para sustentar seja o que for que se diga que as doutrinas abrangentes introduzidas apoiam. Refiro-me a essa injunção de apresentar razões políticas adequadas como proviso, e ela especifica a cultura política pública em contraste com a cultura de fundo. É importante também observar que a introdução na cultura política pública de doutrinas religiosas e seculares, contanto que o proviso seja cumprido, não mude a natureza e o conteúdo da justificativa na própria razão pública. Essa justificativa ainda é dada em função de uma família de concepções políticas razoáveis de justiça (RAWLS, 2004, p. 200-01).

 

Tais concepções políticas, usadas nas discussões acerca das perguntas políticas fundamentais, no fórum político público, possuem três características: (i) seus princípios têm aplicação na estrutura básica da sociedade; (ii) podem ser apresentados de forma autossustentada (sem fundamentação em doutrinas abrangentes); (iii) podem ser elaborados a partir de ideias fundamentais da cultura política de um regime constitucional (SILVEIRA, 2009, p.12).

De acordo com o quinto e talvez mais importante aspecto da razão pública, os cidadãos devem, posteriormente, verificar se os princípios que derivam de suas concepções de justiça satisfazem o critério de reciprocidade, que, por sua vez, ordena que os cidadãos, ao ofertarem os termos de cooperação justa que considerem ser os mais razoáveis, levem em conta que estes também o sejam para outros cidadãos, que, como eles, na condição de livres e iguais, possam aceitá-los, sem que estejam sofrendo qualquer forma de dominação, manipulação ou pressão referente a ocuparem posição política ou social tida como inferior (RAWLS, 2004, p. 180).

Em que pese os cidadãos possam vir a discordar acerca das concepções políticas que pensem ser as mais razoáveis, o critério de reciprocidade garante, então, que todas sejam minimamente razoáveis para todos, de modo que seu aceite seja política e moralmente obrigatório aos cidadãos, vez que, como todos expuseram e votaram suas visões daquilo que era considerado, no mínimo, razoável por todos, o dever de civilidade foi cumprido e, também, a ideia de razão pública foi honrada.

Se todos os cidadãos pensam, portanto, como se legisladores fossem, e todos os funcionários governamentais seguem e agem de acordo com a ideia de razão pública quando estão em debate perguntas políticas fundamentais, aquilo que, disposto juridicamente, denote a opinião da maioria, será considerado lei legítima (RAWLS, 2004, p. 181). Isso porque se acredita que o exercício do poder político restou adequadamente demonstrado e suficientemente fundamentado a partir das razões ofertadas, o que serve de base, dessa forma, para a ideia de legitimidade política.

Sobre o critério de reciprocidade, pode-se dizer que seu papel seria o de delimitar a amizade cívica como sendo a natureza da relação política existente em uma sociedade democrática constitucional, além de estabelecer valores como a cidadania democrática e a ideia de lei legítima de uma maneira mais profunda na democracia deliberativa, vez que, ao deliberar sobre determinada questão política pública, os cidadãos debatem suas razões que, naturalmente, denotam suas diferentes opiniões (SILVEIRA, 2009, p. 12).

Ainda, Luiz Bernardo Leite Araújo explica que a razão pública pensada por Rawls não acusa a necessidade de os cidadãos se desfazerem de demais valores que prezam, como os religiosos, ao adentrarem o fórum político público a fim de discutir perguntas políticas fundamentais (ARAÚJO, 2011, p. 5). É necessário, apenas, que a avaliação por eles realizada seja restrita ao que se considere por argumento passível de ser aceito sem supor a verdade de qualquer concepção de vida boa ou abrangente, isto é, tido como, no mínimo, razoável, pelos demais cidadãos.

Se aos cidadãos, portanto, não se confere a oportunidade de apresentação dos fundamentos, isto é, das razões que consideram ao menos razoáveis, resta violado o critério de reciprocidade, essencial à ideia de legitimidade política presente na democracia deliberativa. As manifestações que ocorrem nos fóruns políticos públicos, em que os cidadãos explicitam suas razões, é a base para a construção da legitimidade da ideia de razão pública.

Outra distinção importante trazida por Rawls é a entre a ideia de razão pública e o ideal de razão pública. Este último, diferentemente da razão pública estruturada a partir dos cinco aspectos já discutidos, é concretizado quando os funcionários governamentais, juízes, membros principais do executivo e do legislativo e, também, os candidatos a cargos públicos, pensam e, consequentemente, agem em conformidade com a ideia de razão pública, explicando aos demais cidadãos sobre que razões suas posições políticas fundamentais se sustentam, levando-se em consideração a concepção política que acreditam ser a mais razoável (RAWLS, 2004, p. 178-179).

As ações em consonância com a ideia de razão pública devem ser mostradas de maneira contínua, não só na conduta diária dos juízes, membros do executivo e legislativo e candidatos, como, também, nos discursos que proferirem, de forma a satisfazer o já mencionado dever de civilidade mútua e para com os cidadãos.

O ideal de razão pública também pode ser satisfeito pelos cidadãos que não ocupam cargos governamentais, na medida em que, ao discutirem e decidirem questões políticas a respeito de interesses essenciaisdevem

 

[…] pensar em si mesmos como se fossem legisladores, e perguntar a si mesmos quais estatutos, sustentados por quais razões que satisfaçam o critério de reciprocidade, pensariam ser mais razoável decretar. Quando firme e difundida, a disposição dos cidadãos para se verem como legisladores ideais e repudiar os funcionários e candidatos a cargo público que violem a razão pública é uma das raízes políticas e sociais da democracia, e é vital para que permaneça forte e vigorosa, Assim, os cidadãos cumprem o seu dever de civilidade e sustentam a idéia de razão pública fazendo o que podem para que os funcionários do governo mantenham-se fiéis a ela. Esse dever, como outros direitos e deveres políticos, é um dever intrinsecamente moral (RAWLS, 2004, p. 179).

 

Cabe, portanto, aos cidadãos, uma espécie de verificação do cumprimento da ideia de razão pública, questionando sempre se o critério de reciprocidade é satisfeito por determinada lei ou estatuto e se os representantes políticos, por sua vez, a seguem ao justificar suas posições em função da concepção política que consideram como a mais razoável.

Assim restará cumprido o dever de civilidade, impedindo que os funcionários governamentais se afastem da ideia de razão pública e, por conseguinte, que as concepções sejam distorcidas. Pode-se dizer, portanto, que a defesa do ideal de razão pública por parte dos cidadãos, numa sociedade democrática constitucional, ocorre não por motivos de disputa política e, sim, em razão de suas doutrinas razoáveis (SILVEIRA, 2009, p.4).

O ideal de razão pública concretizado por meio dos cidadãos deve ser entendido, portanto, como aquele em que as discussões a respeito de perguntas políticas fundamentais sejam conduzidas em conformidade com o que cada um deles considera como concepção política de justiça baseada em valores de cunho político, ofertando razões que todos considerem minimamente razoáveis e que, portanto, são passíveis de aceitação coletiva.

 

4 POR QUE A RAZÃO É PÚBLICA?

Segundo Rawls, são três as maneiras por que a razão é considerada pública, quais sejam: i) como razão de cidadãos livres e iguais, é razão do público; ii) seu tema é o bem público na medida em que diz respeito a questões políticas fundamentais, isto é, aos elementos constitucionais essenciais e às questões de justiça básica; e iii) sua natureza e seu conteúdo são públicos (RAWLS, 2004, p. 175).

Assim é que, como razão do público, a ideia de razão pública faz menção ao corpo coletivo formado pelos cidadãos que, iguais entre si, exercem o poder político último que possuem uns sobre os outros ao discutirem questões políticas fundamentais. Nesse sentido, apenas valores de cunho político devem ser utilizados nesses atos decisórios, que buscam esclarecer e delimitar, por exemplo, perguntas como quem teria direito ao voto, ou ainda, como deve ser garantida a igualdade equitativa de oportunidades – questões fundamentais que, por si só, já especificam qual o objeto da razão pública.

A razão pública não é, portanto, delimitada por uma concepção política em particular, e sim por uma variedade de concepções políticas variável no tempo e no espaço, que buscam atender demandas sociais de uma determinada época. A proposta é que a estrutura e o conteúdo das bases sociais fundamentais sejam caracterizados, então, pela própria ideia de razão pública, por cidadãos que, unidos em um corpo coletivo, compartilham condições iguais de cidadania. Nesse sentido:

 

A razão pública capacita a democracia constitucional a reconhecer direitos e a legitimar a formação política das instituições públicas. Ela se configura como a razão dos cidadãos, que, como corpo coletivo, exercem o poder político uns sobre os outros ao aprovar leis e emendar sua Constituição, aplicando-se somente a questões que envolvem os elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica (BONFIM e PEDRON, 2017, p. 10).

 

No intuito de diferenciar e delimitar ainda mais a ideia de razão pública, é importante registrar a separação que Rawls faz entre a razão pública e as razões não públicas. Segundo o autor, ainda que a ideia de razão pública e as inúmeras formas de razões não públicas sejam compatíveis, estas últimas são aquelas compartilhadas no interior das diversas associações presentes na sociedade civil (RAWLS, 2004, p. 205).

A razão pública, como já dito anteriormente, é aplicada estritamente ao que Rawls denominou fórum político público, quando estão em jogo questões de justiça básica e elementos constitucionais essenciais – o que implica dizer que somente se aplica à cultura política pública, e não à cultura de fundo (background culture), que, conforme será explicado, abarca as numerosas razões não públicas.

Nesse sentido, as razões não públicas podem ser definidas como aquelas de caráter social, englobando, portanto, as razões das igrejas, das organizações da sociedade civil, das universidades e demais instituições de aprendizado de todos os níveis, como, por exemplo, as escolas profissionais e as sociedades científicas, e, também, dos grupos profissionais. Não são, entretanto, consideradas privadas, vez que constituem a cultura de fundo da sociedade e, assim, fornecem os valores e princípios da cultura política pública. Esta, por sua vez, constitui o objeto das deliberações públicas e da aplicação da própria ideia de razão pública.

Acerca das razões não públicas, Silveira explica que estas

 

[…] utilizam critérios e métodos diferentes e dependem da maneira de interpretar a natureza, o problema e o objetivo de cada associação e as condições com que procuram alcançar os seus fins. Rawls ressalta que em uma sociedade democrática os cidadãos, considerados como livres e iguais, endossam visões abrangentes, quer sejam religiosas, filosóficas ou morais, e isto está no âmbito da competência política, especificada por direitos e liberdades constitucionais que fundamentam a concepção política liberal (SILVEIRA, 2009, p. 4).

 

Assim é que as razões não públicas fazem parte do âmbito cultural que é pano de fundo da sociedade democrática constitucional. A cultura de fundo, portanto, se encontra apartada do fórum político público, ao qual, como visto, a ideia de razão pública é aplicada. O que se entende por cultura política não pública é responsável, outrossim, pela mediação entre a cultura política pública e a cultura de fundo (RAWLS, 2004, 177).

É natural, também, que em uma sociedade democrática constitucional, berço das mencionadas e numerosas doutrinas abrangentes razoáveis, o pluralismo de agentes e associações que compõem a vida interna seja assegurado por uma estrutura legal, em que são protegidas as liberdades de expressão e, obviamente, de associação. Por esse motivo, é nítido que a cultura de fundo não é guiada por ideias ou princípios centrais, de caráter político ou religioso.

Em que pese já se tenha afirmado que a ideia de razão pública é passível de aplicação apenas no debate de questões naquilo que se chamou fórum político público, é importante frisar que aquela não se aplica à cultura de fundo, tampouco possuindo aplicação no que tange aos meios de comunicação de todo e qualquer tipo que nela se encontram abarcados, sejam eles jornais, revistas, televisão, rádio etc.

Nesse sentido:

 

Uma outra característica fundamental da razão pública é que seus limites não se aplicam às deliberações e reflexões individuais sobre as questões políticas, isto caracterizando a cultura de fundo de uma sociedade, aplicandose especificamente aos cidadãos, quando atuam em uma argumentação política em um fórum público (SILVEIRA, 2009, p. 3).

 

A importância da cultura de fundo se manifesta na medida em que as discussões envolvendo a ideia de bem e interesses comuns dificilmente se iniciam no âmbito legislativo, ou, ainda, político – é na sociedade civil que tais debates se desenrolam de forma livre, como, por exemplo, dentro das universidades, no espaço jornalístico e, ainda, nas próprias comunidades religiosas, componentes estes que, primariamente, sustentam o valor cultural (HOLLENBACH, 1994).

O motivo dessa não aplicação da ideia de razão pública está explicitado no simples fato de que as diversas doutrinas abrangentes, seguidas e praticadas nos espaços que lhes são conferidos pela sociedade civil, possuem diferentes conceitos do que seja o bem, e assim, os cidadãos, nesse âmbito intersubjetivo, advogam em prol de interesses específicos e particular que prescindem de justificação pública, a qual, por sua vez, não pode ser reduzida apenas à argumentação considerada válida, e sim ser entendida como a argumentação que se dirige ao outro (RAWLS, 2005, p. 465).

A justificação que ocorre no espaço do fórum político público, como já mencionado, deve ser por meio de razões que todos os cidadãos possam, ao menos considerar razoáveis e, por conseguinte, cogitem aceitá-las – dessa forma, é dirigida ao outro que, apesar de ostentar igual status de cidadania, diverge quanto à questão política fundamental em discussão. Mais que claro, portanto, o porquê de não ser aplicada às manifestações das razões não públicas que integram a cultura de fundo, em que o interesse é a defesa de um ponto de vista subjetivo, ainda que a argumentação utilizada para tal possa ser considerada válida.

 

5 CONCLUSÃO

As sociedades democráticas constitucionais naturalmente asseguram diversas liberdades, como a de expressão e a de livre associação, de modo que os diferentes agentes que a integram acabam por professar diferentes doutrinas abrangentes razoáveis, sejam elas de cunho religioso, filosófico ou moral, além, obviamente, das demais doutrinas irrazoáveis, não abarcadas na Ideia de Razão Pública Revista por se adotar uma concepção normativa ideal de governo democrático, isto é, em que a conduta e os princípios seguidos pelos cidadãos considerados razoáveis sejam predominantes.

Em que pese sejam razoáveis, as diferentes doutrinas abrangentes adotadas pelos cidadãos de uma sociedade democrática constitucional podem ser irreconciliáveis, impedindo, portanto, que estes se aproximem de um consenso mútuo. A ideia de razão pública surge, portanto, como uma espécie de solução ao problema da persistência natural em uma sociedade sob instituições livres da impossibilidade de se alcançar um acordo unânime ou uma conciliação nas doutrinas abrangentes razoáveis, buscando atingir a concordância a partir de um mínimo politicamente razoável que, ofertado por meio de termos de cooperação, é passível de aceitação por todos os cidadãos. A ideia de razão pública, todavia, permite um tipo de acordo no que diz respeito aos valores políticos que fazem parte das doutrinas ou concepções abrangentes razoáveis, a que Rawls chama de consenso sobreposto.

Não é, de nenhuma forma, uma tentativa de apagar as doutrinas abrangentes razoáveis que florescem na cultura de fundo da sociedade civil, em componentes como as instituições de ensino e as comunidades religiosas, que constituem importante valor cultural, na medida em que iniciam os debates acerca do que são considerados interesses e bem comuns. É, por outro lado, assumir que tendo todos os cidadãos exposto e votado de maneira minimamente razoável, ofertando termos de cooperação que consideravam os mais razoáveis, a decisão jurídica tomada a partir da opinião expressa da maioria ostentará a qualidade de legítima.

Portanto, em que pese cada qual individualmente possa discordar acerca de qual razão é a mais legítima e, ainda, sustentar internamente que aquela por ele ofertada deveria ter sido escolhida pelos demais, todos, na forma de corpo coletivo que exerce um poder político último, concordarão com a obrigatoriedade moral e política da decisão tomada, porquanto tenha sido deliberada em conformidade com a ideia de razão pública e satisfeito o critério de reciprocidade.

Assim é que os cidadãos, quando do debate referente às questões de justiça básica e aos elementos constitucionais essenciais, respeitarão e honrarão a estrutura da sociedade democrática constitucional, e, por conseguinte, aquiescerão aos estatutos e leis nela promulgados.

 

REFERÊNCIAS

AFONSO DA SILVA, Virgílio. O STF e o controle de constitucionalidade: deliberação, diálogo e razão pública. Revista de Direito Administrativo, n. 250, 2009, p. 197-227.

ARAÚJO, Luiz Bernardo Leite. John Rawls e a visão inclusiva da razão pública. Dissertatio, Pelotas, n. 34,2011, p. 91-105.

BONFIM, Vinícius Silva; PEDRON, Flávio Barbosa Quinaud. A razão pública conforme John Rawls e a construção legítima do provimento jurisdicional no STF. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 54, n. 214, abr./jul. 2017, p. 203- 223. Disponível em: https://goo.gl/sVz2P7. Acesso em: 12 fev. 2021.

HOLLENBACH, David. Civil society: beyond the public-private dichotomy. Responsive Community 5 (Winter, 1994-95), p. 15-23.

RAWLS, John. A ideia de razão pública revista. In RAWLS, John. O direito dos povos. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

RAWLS, John. Political liberalism. New York: Columbia University Press, 2005.

SILVEIRA, Denis Coitinho. A justificação por consenso sobreposto em John Rawls. Philósophos. 12 (1): 11-37, jan./jun. 2007. Disponível em: http://www.revistas.ufg. br/index.php/philosophos/article/view/4764. Acesso em: 10 fev. 2021.

SILVEIRA, Denis Coitinho. O papel da razão pública na Teoria da Justiça de Rawls. Filosofia Unisinos, v. 10, n. 1, p. 65-78, jan./abr. 2009. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/filosofia/article/view/5005/2258. Acesso em: 16 maio 2017.

 



[1] Discente do curso de Direito pela Universidade Estadual de Londrina/PR (UEL). Realiza pesquisas nas áreas de Filosofia Política e Direito Internacional Público, com ênfase nos seguintes temas: Doutrina da Guerra Justa em John Rawls, Direitos Humanos e Convenções de Genebra de 1949.

[2]Professor Associado C da Universidade Estadual de Londrina. É professor permanente do Programa de Pós-graduação em filosofia - Mestrado - da Universidade Estadual de Londrina. Graduado em Filosofia - Bacharel (2002) - Licenciatura Plena (2003) - pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Filosofia - área de concentração - Ética e Filosofia Política - na Universidade Federal de Santa Catarina (2004). Especialista em Biossegurança (2004) - pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Filosofia - área de concentração - Ética e Filosofia Política - pela Universidade Federal de Santa Catarina (2009). Posdoutorado em filosofia pela Martin Luther Universität Halle Wittenberg (2015) com apoio financeiro da CAPES.

[3] Ver item 2.2.

[4] É cediço que em uma sociedade democrática também existam diversas doutrinas consideradas irrazoáveis; todavia, no texto A Ideia de Razão Pública Revista o autor adota uma concepção normativa ideal de governo democrático, em que se pressupõe que as condutas adotadas pelos cidadãos razoáveis e os princípios por estes seguidos não só sejam predominantes, como, também, estejam no controle.

[5] O critério de reciprocidade será discutido mais adiante, por ocasião dos cinco aspectos da razão pública listados pelo autor, no item 2.2.