CRISE DE LEGITIMIDADE E PANDEMIA EM HABERMAS
Charles Feldhaus[1]
Universidade Estadual de Londrina
All societies are full of emotions.
Liberal democracies are no exception.
Martha Nussbaum
1 INTRODUÇÃO
Em sua obra A crise de legitimação no capitalismo tardio, Jurgen Habermas trata das tendências de crise que surgem em sociedades capitalistas avançadas principalmente pelo beco sem saída que se encontram os Estados democráticos de direito contemporâneos diante da incapacidade de controlar completamente os fatores que influenciam a dinâmica econômica e política numa sociedade globalizada e plural. Esse tipo de problema vai levar com que Habermas defenda a internacionalização dos procedimentos de tomada de decisão democrática em obras publicadas depois de Facticidade e Validade. Isso porque o Estado perdeu, se algum dia teve completamente sob seu controle, o poder de controlar fatores que influenciam significativamente a lealdade das massas. Crises econômicas costumam gerar déficit de legitimação e redução da lealdade das massas. O mundo vive desde ao menos 2008 uma das maiores crises econômicas e a mesma tem influenciado a legitimidade dos governos, reduzido lealdade das massas e até mesmo trazido de volta posições políticas conservadoras e extremistas em respostas aos problemas da crise econômica, política e sociocultural. Em alguns casos, governos extremistas têm conseguido retornar ao poder e minar significativamente as condições do bom funcionamento de sociedades democráticas menos consolidadas, mas em outros, até mesmo em democracias que se acreditava mais consolidadas como a norte-americana extremistas chegaram ao poder. Não obstante, a pandemia do COVID 19 parece ter ajudado a restabelecer as bases democráticas em países em que os extremistas tinham obtido êxito e trazido à tona um outro fator geralmente desconsiderado na política e ressaltado por Habermas em sua entrevista sobre a pandemia, a saber, a solidariedade. Um tipo de sentimento que parece ocupar um papel importantíssimo na abertura de perspectivas mais igualitárias e inclusivas no debate político público. O que chama a atenção para as bases não apenas racionais do Estado de direito democrático, mas também das bases emocionais. Aqui parece importante trazer ao debate a posição de pensadoras como Martha Nussbaum em obras como Emoções políticas. Por que o amor importa para a justiça? em que ela chama a atenção para necessidade de fomentar sentimentos inclusivos favoráveis a uma debate mais amplo para garantir o bom funcionamento da democracia. Obviamente que produzir esses sentimentos não é simples, mas a condição de exceção de uma pandemia promove a empatia entre os seres humanos dos mais diversos lugares do mundo e amplia a solidariedade. Este estudo pretende discorrer sobre a relação entre tendências de crise e os efeitos da pandemia na legitimidade democrática.
Como já dito, a sociedade mundial contemporânea tem experienciado um crescimento do pensamento político conservador, o que inclusive tem levado à eleição de políticos extremamente contrários a certos direitos fundamentais pertencentes aos cidadãos das sociedades democráticas, como o devido processo legal, à igualdade de tratamento legal, entre outros. Explicar como esse tipo de pensamento ganhou força não é tarefa fácil, mas esse tipo de situação tem criados uma bipolarização social acentuada em alguns países como Brasil e Estados Unidos da América, em que alguns grupos apoiam aberta e fortemente certos políticos conservadores, ao passo que outros apoiam grupos políticos que defendem abertamente a igualdade social em seus diferentes níveis. Esse tipo de polarização e principalmente o crescimento de segmentos políticos conservadores, que não raramente questionam abertamente as próprias regras do sistema político democrático, é evidência de uma crise de legitimidade da sociedade contemporânea. Se bem que as tendências de crise não sejam, conforme o diagnóstico de pensadores como Habermas em A crise de legitimação no capitalismo tardio, algo historicamente situado apenas em momento em que certos grupos políticos questionam a legitimidade das regras do sistema político democrático, porém, algo que se tornou permanente, uma tendência, a partir do momento que os sistemas políticos acabam assumindo funções que pertencem a outros sistemas como a economia e a cultura. O que não deixa de apontar para o caráter paradoxal do que se propõe aqui, uma vez que adentrar no âmbito do cultivo de sentimentos favoráveis à democracia é adentrar no âmbito da cultura e, por conseguinte, uma ingerência do sistema político na esfera da cultura.
Mas retornemos à questão da crise de legitimidade. Esse tipo de situação é bastante evidente naquilo que Habermas chama de sociedades capitalistas avançadas ou que possuem algum tipo de “capitalismo regulado pelo Estado”, em que o aparato administrativo do Estado assume funções que em etapas anteriores das formações sociais eram tidas como naturais, como a própria dinâmica econômica. Habermas entende que essas crises têm a ver com uma falta de similaridade estrutural entre o sistema administrativo do Estado e áreas da cultura, o que inibe a capacidade do sistema administrativo do Estado gerar legitimidade. Todavia, o problema central relacionado com as tendências de crise não se restringe aos déficits de legitimidade persistentes nesse tipo de sociedade, o problema central é a incapacidade principalmente do sistema administrativo do Estado democrático de direito conseguir responder às crises de racionalidade, legitimidade entre outras e possibilitar que o Estado de direito consiga lidar de maneira mais apropriada com essas tendências de crise. Habermas em obras posteriores como Teoria da ação comunicativa e Facticidade e Validade oferece uma explicação mais sofisticada para a questão da racionalidade em seu conceito dual de sociedade como sistema e como mundo vivido e que com certeza pode oferecer um diagnóstico mais apropriado com base no que vai chamar de colonização do mundo vivido pelo sistema em Teoria da ação comunicativa e déficit de legitimidade resultante de um tratamento inadequado da cooriginariedade da autonomia privada e pública, dos direitos humanos e da soberania popular em Facticidade e Validade. Mas esse modelo dual de sociedade está apenas ganhando corpo quando ele escreve a obra A crise de legitimação no capitalismo tardio, todavia, mesmo o modelo mais desenvolvido à partir da publicação da obra magna Teoria do agir comunicativo e da obra Facticidade e validade será alvo de críticas de pensadores como Axel Honneth que chama a atenção para a gramática dos conflitos sociais, o déficit sociológico da teoria crítica habermasiana, e que prestar atenção ao processo de gestação dos conflitos e as suas motivações morais e bases emocionais seria também parte importante da teoria crítica da sociedade. Confesso que também não considero ainda completamente nítido quando é relevante a inclusão da dimensão emocional em teorias da justiça, não obstante, acredito que o que Nussbaum diz poderia começar a lançar mais alguma luz na questão a respeito das possíveis contribuições de um papel mais amplo das considerações das emoções numa teoria crítica da sociedade e com isso a teoria crítica parece se aproximar com autores da primeira geração como Adorno que parecem atribuir um papel mais substantivo à estética na reflexão sobre justiça do que Habermas teria feito.
No que segue pretende reconstruir, primeiramente, os aspectos centrais da obra Crise de legitimação no capitalismo tardio (i); em segundo lugar, ressaltar alguns aspectoscentrais da entrevista A solidariedade é a única cura (ii); em terceiro lugar, chamarei atenção para alguns aspectos da obra de Martha Nussbaum Emoções políticas. Por que o amor importa para a justiça? (iii); por fim, meu objetivo aqui é apenas suscitar a reflexão, sem pretender esgotar o tema ou oferecer uma resposta definitiva, se seria necessário complementar a abordagem das tendências de crise de legitimidade habermasiano através das considerações levantadas por Nussbaum na obra supracitada, a saber, seria necessário pensar uma dimensão emocional como complemento para explicar a teoria da crise e responder às tendências de crise.
2 O PROBLEMA DA CRISE DE LEGITIMIDADE NO CAPITALISMO TARDIO
A obra de 1973 A crise de legitimação do capitalismotardio de Habermas poderia ser incluída entre outras obras como Trabalho e interação em que ele procura empreender algum tipo de atualização da teoria crítica da sociedade, em particular ele procura examinar em que medida se poderia pensar uma teoria da crise inspirada na teoria marxista sem, contudo, cair em alguns reducionismos e também trava um debate com algumas teorias da crise funcionalista baseada na teoria dos sistemas. Como Habermas está preocupado com a questão do interesse emancipatório e esse foi um dos pontos fortes de Conhecimento e Interesse, ele procura desenvolver a partir de uma análise do conceito de verdade entendido de maneira discursiva uma saída aos problemas dessas abordagens. Habermas ao tratar do problema da crise busca mostrar como certos tipos de organização social possuem uma dinâmica interna própria e pelo surgimento de crises precisam ser substituídas por outros tipos de organização social. O primeiro tipo de sociedade é a primitiva (que é baseada no sistema de parentesco e émarcado por uma indistinção entre normas e visões de mundo); o segundo tipo de sociedade é a tradicional (que é baseada no princípio de organização como dominação de classe); o terceiro tipo de sociedade é a capitalista liberal clássica (cujo princípio de organização é o relacionamento de trabalho assalariado e capital); e finalmente, a sociedade pós-capitalista ou capitalismo avançado ou tardio (cujo princípio de organização é uma economia mais planificada em que o Estado assume a função de evitar as crises). De alguma forma, a análise da mudança entre esses tipos de formações sociais serve como laboratório da nova concepção de evolução social que vai surgir poucos anos depois com Teoria da agir comunicativo, baseada na relação entre sistema e mundo vivido e particularmente como o sistema vai gradativamente assumindo funções que em formações sociais anteriores era preenchida pelos valores compartilhados, pelo mundo vivido e como isso será uma das fontes principais do déficit de legitimidade em Facticidade e validade, uma vez que a erosão do mundo vivido de alguma forma torna mais difícil lidar com a tensão entre valores e fatos. A reconstrução do sistema de direitos em sua obra madura vai tentar operacionalizar um modo de lidar com essa tensão aplicando o modelo discursivo à forma jurídica e mostrando como a legitimidade pode de alguma forma resultar da legalidade jurídica de um procedimento discursivo e inclusivo de formação da vontade. O respeito aos procedimentos de tomada de decisão orientados pelo ideal da situação ideal de fala fornece uma maneira de lidar com o déficit de legitimidade do direito. Habermas, obviamente, em 1973 ainda não tem desenvolvido todo esse arcabouço teórico que vai lhe permitir desenvolver a solução ao problema da crise de legitimidade, mas ao menos sinaliza o caminho discursivo através de uma análise da questão da verdade.
Não obstante, é preciso tecer algumas considerações, a fim de entender o título da obra e do que exatamente Habermas está falando. A fim de elucidar o que entende por 'crise', Habermas faz referências aos conceitos médico, dramático e sociológico da crise, uma vez que a problemática que ele pretende enfrentar está relacionada com a dimensão social da crise e não com a dimensão individual da crise, o que, por sua vez, chama a atenção para a guinada linguística no pensamento humano. A crise não é entendida como propriedade de um sujeito isolado, mas como parte de um processo interativo entre sujeitos ou entre entidades sociais como o Estado nesse caso. Na área médica, um paciente se encontra em crise quando está numa fase da doença em que se considera que a situação do paciente é tal que não tem mais “os poderes de autocura do organismo [...] suficientes para recobrar a saúde” (HABERMAS, 2002, p. 11). No caso do conceito dramático de ‘crise’, existe uma contradição entre um ou mais personagens e o contexto dramático em que está inserido, entre a ‘combinação catastrófica do conflito’ e as ‘personalidades dos principais caracteres’ (HABERMAS, 2002, p. 12). Acredito que o que Habermas pensa como crise aqui se assemelha ao momento na tragédia, por exemplo, para ficar com o caso de Aristóteles, na Poética, em que o ator trágico percebe o drama trágico e é como que a uma tomada de consciência da realidade e isso leva ao desfecho da trama numa outra direção. A narrativa que o ator trágico tinha de sua própria trajetória deixa de sustentar-se com base na percepção da contradição entre ela e a nova informação. O ‘reconhecimento’ ou a anagnórisis “é a passagem do ignorar ao conhecer [...] das personagens” (ARISTÒTELES, 1993, p. 61) e essa passagem faz com que a narrativa exatamente como era pensada pelo ator trágico não se sustente porque baseada na ignorância de fatos importantes da situação e para superar essa crise é preciso a “formação de novas identidades” (HABERMAS, 2002, p. 12) considerando agora o que se ignorava e isso naturalmente tem consequências para o desfecho da trama dramática. Embora Habermas faça referência aos conceitos médico e dramático de crise, em última análise seu interesse é “introduzir sistematicamente um conceito científico social útil sobre crises” (HABERMAS, 2002, p. 13). O conceito social de crise compreende que as crises “surgem quando a estrutura de um sistema social permite menores possibilidades para resolver o problema do que são necessários para a contínua existência do sistema” (HABERMAS, 2002, p. 13). No caso específico da legitimidade política, Habermas vai chamar a atenção para o fato que a expansão da legitimidade pode ter o efeito colateral não desejado de permitir à população cada vez mais fazer um escrutínio crítico do sistema político e aumentar ainda mais a pressão sobre o Estado por parte dos cidadãos. Mas no que diz respeito ao problema da crise, o fato é que ela “priva o sujeito de alguma parte de sua soberania normal” (HABERMAS, 2002, p. 12). Ao aplicar a noção de crise de legitimidade à noção de crise no capitalismo tardio, Habermas se devota a três subsistemas: o sistema econômico, o sistema político administrativo e o sistema sociocultural. Contudo, para esclarecer o problema de legitimação que surge em sociedades capitalistas avançadas, Habermas precisa mostrar qual é traço característico do capitalismo tardio ou das sociedades capitalistas avançadas em relação a outras formas de organização social e por isso ele distingue entre diferentes tipos de formações sociais, tal como foram apresentadas acima e mostra que no caso específico das sociedades capitalistas avançadas ou tardias, o Estado, contrariamente àquilo que era ideia básica da concepção liberal de Estado das sociedades capitalistas clássicas, começa a assumir a função de tentar controlar a economia exatamente porque a sociedade liberal clássica entra em contradições e em crise e leva ao surgimento do Estado de bem-estar social e quando tenta assumir esse tipo de funções o Estado assume “imperativos mutuamente contraditórios” (HABERMAS, 2002, p. 83), que levam a tendências de crise econômicas, políticas e socioculturais. As crises econômicas geralmente levam a crises de racionalidade, as crises políticas levam a crises de legitimidade e a perda da lealdade das massas, e a crises socioculturais levam a crises de motivação e ao surgimento de alguns tipos de privatismo, em que os cidadãos perdem a motivação de participar da vida pública e se concentram apenas na busca de seu próprio interesse na esfera privada. Não por acaso ao falar da distinção entre moral e direito em Facticidade e Validade Habermas vai defender que o direito precisa suprir alguns déficits da moralidade moderna numa sociedade marcada pelo que John Rawls vai chamar em Liberalismo político de pluralismo razoável de cosmovisões. Habermas fala em déficits organizacionais e motivacionais, por exemplo. A perda do pano de fundo da justificação cultural do ordenamento jurídico acarreta a necessidade de o Estado empregar a coerção para fazer valer o que antes era baseado em acordos morais de pano de fundo do mundo vivido.
Nas sociedades capitalistas avançadas, o Estado assume a responsabilidade de impulsionar a economia e quando ele não consegue alcançar isso, o que é muito comum de acontecer, surgem crises de racionalidade. Mesmo assumindo para si esse tipo de função é interessante como, a fim de evitar precisar assumir a responsabilidade por possíveis danos ou perdas econômicas dos seus cidadãos durante a sua gestão da economia, o Estado vincula à dimensão econômica um caráter anárquico e que por causa disso os efeitos negativos à propriedade privada e aos bens dos seus cidadãos não podem ser considerados efeitos direto de uma má gestão da crise econômica, que tem uma dinâmica anárquica por natureza. Além das funções de gerir a economia, os aparatos estatais também assumem a função de gerar valores socioculturais. Com isso, “o sistema político assume tarefas de planejamento ideológico [...] [contudo,] o sistema cultural é especialmente resistente ao controle administrativo” (HABERMAS, 2002, p. 92) Isso é o que Habermas chama de dissimilaridade estrutural entre a ação administrativa do Estado e as áreas de tradição cultural e ao buscar resolver o déficit de legitimidade através da manipulação consciente dos elementos culturais através de recursos da racionalidade instrumental se obtém o efeito colateral da necessidade legitimação do poder político, uma vez que cada vez mais entra em xeque a lealdade das massas. (HABERMAS, 2002, p. 93) A tentativa de solução de Habermas para essas aporias passa por uma discussão do conceito de ética e verdade. Habermas busca mostrar que enunciados avaliativos morais podem ser portadores de verdade e com isso empreende um tratamento da ética de maneira ainda bastante breve na linha do que vai fazer de maneira mais sistemática e abrangente em Consciência moral e agir comunicativo. Diz ele (HABERMAS, 2002, p. 141): “nossa excursão no discurso da ética contemporânea foi ensejada para apoiar a afirmação que as questões práticas admitem a verdade. [...] as normas justificáveis podem ser distinguidas das normas que meramente estabilizam relações de força.” É como se quisesse ecoar Liberalismo político de Rawls e se referir a estabilidade pelas razões corretas, a legitimidade de uma ordem social não uma questão apenas de força e imperativos da razão instrumental. O que também parece abrir campo semântico para a concepção normativa que vai desenvolver depois em Facticidade e Validade, uma vez que emprega a discussão sobre a possibilidade da verdade nos enunciados morais para defender a possibilidade de basear uma ordem social em interesses generalizáveis e num consenso racional. Diz ele (HABERMAS, 2002, p. 141): “um acordo, se ocorrer sob condições de equilíbrio de poder entre as partes envolvidas”.
3 HABERMAS E A PANDEMIA
Em abril de 2020 Habermas publicou uma entrevista a respeito da pandemia de COVID 19 com o título A solidariedade é a única cura. A primeira coisa que Habermas enfatiza é que a pandemia aproxima o raciocínio das pessoas leigas ao dos especialistas. Antes da pandemia atual, o raciocínio a respeito de certas questões como triagem, decisão sobre quando encerrar, aumentar ou retomar o distanciamento social em condições de incerteza, que era restrito apenas aos especialistas da área de saúde e algumas autoridades políticas, em nosso cenário se tornou algo corriqueiro e debatido até mesmo entre os leigos. Essa decisão é muito importante porque está intimamente relacionada com o perigo de sobrecarga das unidades de terapia intensiva dos hospitais e que se não for bem gerenciada se pode chegar a cenários de medicina da catástrofe, em que os médicos precisam tomar uma decisão trágica a respeito de quem deve viver e quem deve morrer. De alguma forma aqui Habermas está supondo uma distinção entre uma pandemia que se torna um desastre e uma pandemia que é adequadamente gerenciada e por isso não alcança esse cenário ou talvez apenas esteja preocupado com o fato que “os direitos fundamentais proíbem os órgãos estatais de tomar qualquer decisão que aceite a possibilidade da morte de indivíduos” e se as unidades de terapia intensiva ficassem lotadas os agentes de saúde à serviço do Estado não poderiam isentar-se da decisão que implicaria na morte de indivíduos. A fim de tentar evitar que os agentes estatais precisem tomar esse tipo de decisão, se tornam necessárias limitações das liberdades básicas mais importantes, como a liberdade de ir e vir, mas Habermas chama a atenção que essa exceção à proteção das liberdades básicas, que também é uma competência do Estado, é justificada com base no direito à proteção da vida e da integridade física das pessoas. Esse cenário também traz o risco de se abdicar do princípio da igualdade de tratamento de todos perante à lei, principalmente os setores mais conservadores da sociedade e mais preocupados com a dinâmica econômica da sociedade, que em muitos casos se posicionam abertamente contra o distanciamento social e defendem um tipo de tratamento diferenciado entre as pessoas na sociedade, mesmo que nem sempre digam isso de forma explícita, seu raciocínio supõe que a vida dos idosos ou das pessoas com comorbidades, que são os mais afetados pelos casos mais graves do vírus e com isso estariam pesando o valor da vida humana de alguns seres humanos em relação ao valor da vida de outros e a liberdade econômica estaria acima da vida dessas pessoas e, por conseguinte, estariam adotando uma qualificação objetivamente do ser humano à luz de considerações econômicas. Por fim, Habermas é questionado sobre o crescimento dos grupos extremistas de direita na Alemanha e ele ressalta que o passado histórico alemão de alguma forma preparou a Alemanha contra o reaparecimento forte do extremismo de direita e que num cenário como o da atual pandemia “apenas o Estado pode nos ajudar”, o que de alguma forma trabalha contra uma certa tendência neoliberal na política mundial. Acredito que Habermas aqui está pensando que cenários como de uma pandemia evidenciam como somos dependentes de todo um aparato estatal, muitas vezes questionado pela vertente neoliberal da política, para enfrentar cenários de desastres ou catástrofes, como uma pandemia costuma ser. Como iria se proteger a grande maioria da população pobre de um país como o Brasil, por exemplo, sem o sistema público de saúde e as estruturas estatais que agilizam a assistência saúde? Se pode dizer que, a despeito do posicionamento adverso a certas restrições sanitárias de certas lideranças políticas locais ou nacionais, uma resposta adequada à pandemia atual, tem sido parcialmente realizada pelos funcionários públicos da área de saúde do Brasil, caso contrário, o cenário poderia ser ainda pior. Além disso, acredito que a pandemia tem produzido um sentimento de solidariedade entre as pessoas, uma vez que uma pandemia é um evento de desastre e um desastre costuma causar comoção e solidariedade nas pessoas e esse sentimento tem aberto perspectivas mais positivas a um debate mais democrático e inclusivo.
4 MARTHA NUSSBAUM E UM CONCEITO AMPLIADO DE LIBERALISMO
Martha Nussbaum em Emoções políticas. Por que o amor importa para a justiça?busca recontar uma certa estória, a fim de evidenciar que as emoções, ao contrário do que advoga uma certa visão predominante do liberalismo, não são avessas ou ausentes na política e o que é mais relevante à questão da legitimidade democrática, a estabilidade pelas razões corretas (para empregar um termo tão importante à obra Liberalismo político de John Rawls) exige o cultivo de emoções adequadas. É preciso emoções que reforcem o compromisso com a inclusão, com a igualdade, com o alívio da miséria e com o fim do trabalho escravo (NUSSBAUM, 2013, p. 1-2). Conforme Nussbaum, se faz necessário se afastar de uma pressuposição corrente de que “apenas sociedades fascistas ou agressivas são intensamente emocionais e que apenas tais sociedades precisam focar no cultivo das emoções [mas] [...] todas as sociedades precisam pensar sobre a estabilidade da cultura política” (NUSSBAUM, 2013, p. 2). Ela entende que a manutenção da cultura política exige promover sentimentos ou emoções como a compaixão pela perda, a raiva pela injustiça, a remoção da inveja e do desgosto em prol de um tipo de simpatia inclusiva. A ideia básica é salvaguardar-se contra a divisão e a hierarquia na sociedade, algo que é possível perceber como marca constitutiva de muitas sociedades contemporâneas, em especial a brasileira, em que a divisão política está fortemente relacionada com a manutenção de distinções sociais, que obviamente sabíamos existir, mas que parecia haver um acordo difundido que seria preciso eliminar e se pode perceber que a existência desse acordo nesse momento é tudo menos evidente. O desacordo é que parece mais evidente. A fim de promover a estabilidade da cultura política, Nussbaum pensa em duas tarefas distintas: 1. Engendrar e sustentar um comprometimento forte a projetos dignos que exerçam esforço e sacrifício como a redistribuição social, inclusão plena, proteção do meio ambiente, ajuda ao estrangeiro, e defesa nacional; 2. Manter distante da sociedade alguns tipos de forças ou emoções que levam algumas pessoas a denegrir ou subordinar outras pessoas, o que ela numa interpretação modificada do sentido originário retoma de A religião dentro dos limites da simples razão de Immanuel Kant, a noção de mal radical. Em Kant tal conceito tem a ver com um tipo de propensão à maldade presente na natureza humana e que está relacionada com a disposição de violar os preceitosmorais, em Nussbaum se tratam de emoções que desmerecem a dignidade humana das outras pessoas e dificultam uma cultura política saudável, a saber, inveja e o desejo de infligir inveja nos outros, ou seja, sentimentos que procuram colocar a si mesmo sempre acima dos outros e os outros numa posição de inferioridade tal que seriam considerados indignos de apreço e consideração (NUSSBAUM, 2013, p. 3-4).
A fim de enfatizar que o que ela pretende não é avesso ao ideal de sociedade livre e democrática liberal, Nussbaum lembra que outros pensadores da tradição filosófica democrática como John Stuart Mill, Jean Jacques Rousseau e August Comte pensaram em algo semelhante a uma religião da humanidade como um tipo de estratégia de manter saudável a cultura política de uma sociedade. Não obstante, ela não deixa de reconhecer também que “prescrever qualquer tipo de cultivação emocional pode facilmente envolver limites à liberdade de expressão [...] [e à] liberdade e autonomia” (NUSSBAUM, 2013, p. 4). Uma maneira de operacionalizar de alguma forma as emoções em prol do desenvolvimento de uma cultura política consiste no Estado dar amplo espaço aos artistas desenvolverem obras de arte que estão relacionadas com diferentes visões dos valores políticos mais importantes (NUSSBAUM, 2013, p. 7). Dessa maneira, a proposta de Nussbaum também é de alguma forma reminiscente da concepção de Friedrich Schiller em Cartas para a educação estética da humanidade em que o filósofo e dramaturgo alemão se preocupa com a dimensão estética da política e propõe uma concepção estética que integra a dimensão racional e a dimensão afetiva do ser humano. A sociedade contemporânea, embora ainda empregue termos como motivação racional e motivação emocional, tem uma visão mais neutra das emoções e por isso distingue entre emoções adequadas e inadequadas e por causa disso o papel aqui também não é conciliar razão e emoção, mas promover os tipos adequados de emoções em prol do desenvolvimento de uma cultura política adequada. É importante observar que Aristóteles e os defensores da ética de virtudes também já consideram a existência de emoções que precisam ser promovidas e emoções que precisam ser evitadas ou eliminadas em obras como a Ética a Nicômacos. As virtudes morais se baseiam de alguma forma na razão, mas precisam ser cumpridas com a emoção adequada. Uma pessoa que sofre para realizar um ato virtuoso ainda carece da virtude da coragem, por exemplo. O ato de coragem deve produzir prazer naquele que o executa para ser virtuoso. Nussbaum (2013, p. 9) também procura mostrar que John Rawls, ao menos em Uma teoria da justiça considerou o papel dos sentimentos e das emoções na questão da estabilidade dos princípios escolhidos na posição original, mas que o próprio Rawls teria abandonado de alguma forma essa visão na obra Liberalismo político, uma vez que trata a questão da estabilidade não mais com base numa doutrina abrangente de bem, mas com base num consenso sobreposto de cosmovisões. De alguma forma, mesmo em liberalismo político ainda existe a necessidade que uma concepção de justiça liberal desenvolva nos cidadãos sentimentos adequados para garantir a estabilidade pelas razões corretas.
Por fim, embora Habermas recusa em Facticidade e Validade a saída de Rousseau para o problema da compatibilização entre autonomia política e autonomia privada com base no compartilhamento de uma cosmovisão, o que seria vetado pelo contexto do pluralismo de cosmovisões, a questão é que uma sociedade marcada pelo ódio, pelo discurso do ódio como é o caso de muitas sociedades atuais parece envolver algum tipo de crise de legitimidade e de motivação em cumprir os direitos fundamentais de todos os cidadãos e pensar em estratégias de abertura de perspectiva para aqueles que parecem fechados aos discursos inclusivos pode consistir em algo digno de preocupação por parte das instituições públicas, mas também por parte dos grupos que compõem os movimentos sociais em prol dessa inclusão. Nussbaum como Schiller já havia pensado acredita que as obras de arte poderiam ter um papel importante de abertura de horizontes; o próprio Habermas quando pensa a democracia para além da esfera nacional, com base tanto no pensamento de Kant sobre direito internacional quanto o debate a respeito da consolidação da União europeia chama a atenção para a necessidade de criar solidariedade para além das fronteiras e no intuito de criar uma esfera pública global. Com isso ele estaria reconhecendo alguma relevância para base afetiva às questões de justiça social e seria importante mesmo que através do exercício do discurso pensar um papel importante para arte, como já havia feito pensadores da primeira geração da Escola de Frankfurt, poderia ser uma estratégia frutífera para enfrentar uma crise de legitimidade e motivacional oriunda não apenas da incapacidade dos Estados nacionais cumprir suas funções de gerir a economia doméstica, mas também de uma cultura política marcada pela divisão radical entre grupos antagônicos e aparentemente inconciliáveis.
5 OBSERVAÇÕES FINAIS
Como foi possível observar, na obra sobre a crise de legitimidade no capitalismo tardio, Habermas aponta como um problema desse tipo de formação social consistiu exatamente em tentar resolver as crises de legitimidade recorrendo a meios instrumentais e buscando criar significados, o que parece ter se tornado parte do problema incrementando as tendências de crise. A solução proposta antecipa aspectos da ética do discurso através da abertura de possibilidade de interesses generalizáveis mediante discursos racionais orientados ao consenso. O que a sociedade contemporânea tem experienciado é um crescimento de visões políticas extremistas principalmente à direita do espectro político. A reflexão que eu procurei trazer à discussão é que a pandemia, para o bem ou para o mal, parece ter enfraquecido um pouco, embora ainda tais discursos ainda tenham ainda grande difusão nas sociedades políticas ao redor do globo, essa tendência de fortalecimento dos discursos extremistas à direita. Em parte, esse efeito poderia ser interpretado como resultado do incremento do sentimento de solidariedade que se tornam particularmente mais acentuados diante de desvantagens que pessoas recebem em função de eventos que são passivos e não ativos e uma pandemia é uma evento de desastre e tais eventos são por definição imprevisíveis, indesejados, e em geral não resultados de escolha deliberada dos afetados, mesmo que alguns atos humanos possam aumentar sua incidência.
A entrevista que Habermas concedeu logo após o início da Pandemia do COVID 19 tem o título A solidariedade é a única cura. No texto ele faz referência novamente aos imperativos sistêmicos do mercado e de como eles entram em conflito com o valor da vida humana em cenários como o atual em que muitas pessoas às vezes, mas não apenas os extremistas de direita, costumam preferir a ausência de isolamento social, a fim de causar menos efeitos negativos na economia. Também aponta que o Estado de direito pelo comprometimento com o princípio da dignidade humana não pode oficialmente tomar decisões que acarretem a morte deliberada ou deixar morrer deliberadamente outros seres humanos, o que seria o caso na ausência de uma preocupação sanitária forte, como foi possível presenciar em países como o Brasil em certos momentos.
O meu ponto aqui é que um sentimento como a solidariedade incrementado por um evento catastrófico parece tornar as pessoas mais suscetíveis ao dialógico racional, o que obviamente ainda encontra casos em contrário de convictos defensores de posições políticas extremistas, mas também é notório que pessoas antes da pandemia mais propensas aos discursos extremos à direita, parecem atualmente menos propensos a compartilhar tais posições ou até mesmo mudaram sua posição durante o processo. Empregar a arte ou alguma outra estratégia com o intuito de produzir algum tipo de abertura ao diálogo racional poderia ser um esforço complementar ao mero enfrentamento direto através do discurso e das manifestações na esfera pública da sociedade.
REFERÊNCIAS
ARISTÒTELES. Ética a Nicômacos. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Unb, 1992.
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EDGAR, Andrew. The Philosophy of Habermas. Ithaca: McGill-Queen’s University Press, 2005.
HABERMAS, Jurgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido A. de Almeida. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, 1989.
HABERMAS, Jurgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. Tradução de Vamireh Chacon. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 2002.
HABERMAS, Jurgen. A inclusão do outro. Estudos de teoria política. Tradução de Denilson Luís Werle. São Paulo: Editora Unesp, 2018.
HABERMAS, Jurgen. Facticidade e Validade. Contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democracia. Tradução de Felipe Gonçalves e Rúrion Melo. São Paulo: Editora Unesp, 2020.
KANT, Immanuel. A religião dentro dos limites da simples razão. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70.
NUSSBAUM, Martha. C. Political emotions. Why love matters for justice. Cambridge: Harvard University Press, 2013.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
RAWLS, John. Liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
SCHILLER, Friedrich. Über die ästhetische Erziehung des Menschen. InEiner Reihe von Briefen: mit den Augustenburger Briefen. Stuttgart: Reclam, 2000.
[1]Professor Associado C da Universidade Estadual de Londrina. É professor permanente do Programa de Pós-graduação em filosofia - Mestrado - da Universidade Estadual de Londrina. Graduado em Filosofia - Bacharel (2002) - Licenciatura Plena (2003) - pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Filosofia - área de concentração - Ética e Filosofia Política - na Universidade Federal de Santa Catarina (2004). Especialista em Biossegurança (2004) - pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Filosofia - área de concentração - Ética e Filosofia Política - pela Universidade Federal de Santa Catarina (2009). Posdoutorado em filosofia pela Martin Luther Universität Halle Wittenberg (2015) com apoio financeiro da CAPES.